Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici

Silvia Federici nasceu em Parma, Itália, em 1942 e vem ganhando cada vez mais leitores e leitoras no Brasil. Em seus trabalhos discute sobre mulheres, gênero, trabalho e como a reprodução – e o trabalho doméstico/reprodutivo – são as chaves para compreender a desvalorização das mulheres na sociedade capitalista.

No livro “Mulheres e caça às bruxas”, lançado no Brasil em 2019, Federici faz uma retomada da discussão desenvolvida no livro “O Calibã e a Bruxa” de 2004, traduzido para o português pelo Coletivo Sycorax e publicado pela Editora Elefante em 2017. Naquele momento, Federici (2017) se preocupava em demonstrar como o processo de acumulação primitiva do capital foi alcançado também a partir da caça às bruxas da era moderna, num amplo e profundo processo de perseguição e disciplinarização dos corpos femininos, da sociabilidade e da reprodução, a incidir sobre a divisão sexual e na desvalorização (e não remuneração) do trabalho doméstico e reprodutivo. A proposta dela era alçar a caça às bruxas ao hall de elementos expostos por Marx sobre a acumulação primitiva, tais como a expropriação agrária dos cercamentos ingleses, o colonialismo, a pirataria e a usura (MARX, 1985). Apesar da centralidade nas relações sociais e no trabalho, não há um consenso se Federici efetivamente avança com as teses de Marx , porém, n’O Calibã, o acúmulo de fontes e experiências daquele processo extensamente analisado revelam, no mínimo, que o capital não teria tamanha força social sem a diminuição proporcional do poder horizontal e comunitário das mulheres.

Nesse novo livro, Mulheres e Caça às Bruxas, Federici se concentra em dois aspectos: retomar a relação entre a violência contra mulheres ao advento do capital e apresentar o novo fenômeno de caça às bruxas em países outrora colonizados. Assim, defende que a caça às bruxas não é algo pontual, localizado num campo cultural de um tempo, mas estrutural e presente nos ciclos do capitalismo desde sua gênese. Para iniciar, reconsidera o ambiente e as motivações sociais que produziram as acusações de bruxaria, dando destaque ao processo de cercamento e privatização de terras no advento do capital, bem como destaca a relação entre a caça às bruxas, o crescente cercamento do corpo feminino e a persistente expropriação agrária nos recônditos do planeta.

O livro é estruturado a partir da organização de vários artigos antes expostos em palestras, divididos em duas partes. A primeira é denominada “Revisitando a acumulação primitiva do capital e a caça às bruxas na Europa” e possui cinco capítulos; a segunda é chamada de “Novas formas de acumulação de capital e a caça às bruxas em nossa época” e possui dois capítulos.

Os primeiros capítulos abordam as motivações histórico-sociais que levaram à tortura de milhares de mulheres na Europa, muitas mortas em fogueiras, entre os séculos XVI e XVII. No primeiro capítulo “Midsommervises ‘Vi elsker vort land’: canção de verão ‘Amamos nosso país’”, Federici destaca como a caça às bruxas se tornou uma prática presente na cultura popular, expressa comumente em canções como a que ela exemplifica no capítulo. No segundo capítulo “Por que falar outra vez em caças às bruxas?”, a autora aborda o aumento das pesquisas sobre bruxas a partir da nova história, com ênfase aos detalhes dos julgamentos, mas alerta serem poucos e novos os estudos sobre as motivações sociais desse processo, das condições socio materiais que levaram às perseguições, e que dialoguem com o conjunto de transformações da transição do feudalismo ao capitalismo. O terceiro capítulo “Caça às bruxas, cercamentos e o fim das relações de propriedade comunal”, sustenta que os cercamentos de terras inglesas e o capitalismo agrário surgido a partir do fim o século XV na Europa oferecem um pano de fundo para compreender muitas das acusações de bruxaria. Neste capítulo a autora destaca que, além dos cercamentos, devese abordar outros aspectos desse período histórico para compreender o aumento no número de perseguições às bruxas e a violência: o crescimento das relações monetárias; a ocupação privada de terra (até então comunais); as novas formas de tributação; perda de direitos consuetudinários das mulheres; surgimento de novas leis (que proibiam até a prática pedinte inclusive às viúvas); e, eliminação de crenças e práticas comuns na Europa medieval. Mote para a autora abordar a ideia de “cercamentos de conhecimentos”, destacando a imposição dos novos padrões de saber e saber-fazer.

No quarto capítulo “A caça às bruxas e o medo do poder das mulheres”, Federici destaca o novo código social e ético que passou a ser imposto às mulheres, com suas bases no Estado e na Igreja. A teoria desse capítulo é que as mulheres eram acusadas de bruxaria porque as transformações que geraram a base do capitalismo destruíram os seus meios de sobrevivência e as bases do seu poder social, deixando-as dependentes de caridade, em uma sociedade que pregava a desintegração dos laços comunais. Aborda a caracterização mais comum da bruxa, como uma mulher pobre e idosa que vivia sozinha, dependia de doações, ameaçava e amaldiçoava as pessoas por conta da sua marginalização. No último capítulo dessa primeira parte, “Sobre o significado de ‘Gossip’”, a autora historiciza esse termo, que no medievo significava a amizade entre mulheres, com foco na solidariedade feminina, mas que durante o desenvolvimento do capitalismo foi descaracterizado até significar, de forma depreciativa, “encontros” de mulheres para beber e fofocar, com o foco nesta última ação. A transformação do significado de “gossip” se deu pari passu ao fortalecimento da autoridade patriarcal e a feminização da pobreza.

Na segunda parte, os capítulos abordam a caça às bruxas e as novas formas de perseguição e violência empregadas às mulheres no século XXI, com destaque para a realidade das mulheres africanas. No sexto capítulo, “Globalização, acumulação de capital e violência contra as mulheres: uma perspectiva internacional e histórica”, a autora revela as novas formas de caça às bruxas a partir da literatura crescente sobre o tema, destacando ainda os encontros e conferências internacionais que discutem a violência, maternidade, estupro e outras temáticas que envolvem as mulheres. Federici afirma que desde os anos de 1990, no continente africano e na Índia, houve a volta do fenômeno da caça às bruxas, vinculando-o a fatores como: fragmentação das relações comunais, décadas de empobrecimento, desnutrição e doenças, precarização do trabalho, sistemas de saúde desestruturados, expansão de seitas evangélicas neocalvinistas e, principalmente, interesses econômicos de uma camada social específica.

No sétimo capítulo, intitulado “Caça às bruxas, globalização e solidariedade feminista na África dos dias atuais”, Federici caracteriza a nova caça às bruxas como sendo expedições punitivas de homens jovens que participam de grupos paramilitares ou se autodenominam perseguidores de bruxas. Para a autora, essa caça às bruxas é compreendida no processo de crise da reprodução social causada pela liberalização e pela globalização das economias africanas. Essa crise enfraqueceu as economias locais e desvalorizou a posição social das mulheres, produzindo intensos conflitos relativos ao uso de recursos naturais, principalmente a terra. Federici destaca que as feministas deveriam dar mais atenção ao novo fenômeno de caça às bruxas, que está atingindo as mulheres de formas tão violentas que, em algumas regiões do continente africano, como Gana, foram criados campos de bruxas onde as acusadas vivem em exílio.

A leitura de “Mulheres e caça às bruxas” evidencia como Silvia Federici possui um vasto cabedal de fontes sobre as caças às bruxas de ontem e hoje, e como a suas pesquisas e vivências no continente africano, como professora, possibilitaram relacionar o desenvolvimento e o metabolismo do capitalismo com a descaracterização da figura do feminino. Reitera como esse fenômeno produziu marcas de violência, torturas e mortes de indivíduos vitais à reprodução do capitalismo, mas também à sua resistência, no passado e no presente.

A leitura deste livro é mais dinâmica que em “O Calibã e a Bruxa” (2017), pois a autora se empenhou em desenvolver a discussão da temática de forma mais direta e em uma obra mais curta, justamente pela proposta do livro ser mais acessível ao grande público. Mas a obra não deixa de ser uma continuidade, uma reunião de debates que se sucederam àquela primorosa pesquisa histórica. Basta lembrar que em vários momentos do livro, a autora indica algumas ideias que foram mais extensamente discutidas no Calibã, mas é possível compreender a argumentação, mesmo sem ter feito a leitura do primeiro livro. Nossa recomendação, todavia, é que leiam o conjunto todo da obra de Federici que foi traduzido para o português, não apenas para o reconhecimento de uma história outra sobre a modernidade, mas porque esta abordagem ganha um sentido prático ao entendimento da violência contra às mulheres e no seu necessário combate, nas malhas entrelaçadas do corpo, da terra, do trabalho e do capital.

Referências

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017.

_______. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais.CANDIANI, Heci Regina (trad.). 1° ed. São Paulo: Boitempo, 2019. 158p.

MARX, Karl. A Chamada Acumulação Primitiva. In: O Capital. Lv. I, Vol. 2, São Paulo: Difel, 1985.

Kathiusy Gomes da Silva – Graduanda do 7ª período no curso de História UFMS/CPTL. Bolsista PET e Pivic. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-9947-8589

Mariana Esteves de Oliveira – Professora Adjunta na UFMS/CPTL; Doutora em História (UFGD/2016); Membro da diretoria da ANPUH (Brasil 2019-2021 e MS 2018-2020); Pesquisadora associada do INCT Proprietas. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0001-9411-3206


FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019. Resenha de: SILVA, Kathiusy Gomes da; OLIVEIRA, Mariana Esteves de. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.18, p. 302-306, Jan./jul. 2020. Acessar publicação original [DR]

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