Mundos do Trabalho no Maranhão Oitocentista | Regina Helena Martins Faria

A historiografia passou por uma guinada radical nas últimas décadas, especialmente no que se refere a seus objetos. Trabalhos comprometidos com a reconstituição das coisas do passado perderam espaço para aqueles dedicados a compreender como se pensavam as coisas no passado. Ou, nas palavras da autora da obra aqui resenhada, de uma historiografia voltada para as estruturas sociais e econômicas, desenvolveu-se uma outra mais preocupada com as mentalidades. As opiniões mais recentes tendem a enxergar a “nova história cultural” como uma das formas de reação à grande crise epistemológica que se abateu sobre as ciências sociais nas três últimas décadas do século XX: diante do esvaziamento dos grandes paradigmas que haviam amparado a pesquisa histórica nas décadas anteriores, frente à perda de confiança nas doutrinas e seus diagnósticos, percebeu-se a insustentabilidade das pesquisas que desejavam reconstituir a realidade global do passado, e ganhou importância observar como os indivíduos e os grupos atribuíram sentido ao seu mundo. Permanece ativa a discussão sobre o significado político dessa opção metodológica. Há quem atribua a esse movimento historiográfico um sinal negativo, reputando-o como conveniente aos grupos dominantes. Para os que assim pensam, a nova história cultural produz apenas discursos domesticados, incapazes de servir à luta.

A leitura dos resultados de pesquisas que incursionam pela história cultural, especialmente no que tange à historiografia maranhense, parece demonstrar o contrário: trabalhos que tratam de representações e discursos, feitos nas últimas décadas por historiadores e intelectuais maranhenses, têm aberto sendas ubérrimas. Tal linha de estudos é responsável por libertar a historiografia maranhense de uma prolongada prisão ideológica. Construções discursivas persistentes que assombravam a historiografia local, e que se arrogavam ares de verdades incontestáveis, vêm sendo refutadas. O mito da fundação francesa de São Luís, por exemplo, foi implodido a partir do deslocamento da discussão, que deixou de se concentrar nos “fatos concretos” século XVII para se dedicar à observação dos acontecimentos culturais da virada do século XX: demonstrou-se as estratégias de uma elite que, em busca de uma nova identidade para si, converteu a imagem dos franceses de invasores em fundadores. Da mesma forma, a crença numa excelência singular do campo intelectual maranhense diante de uma nação inculta, o mito da Athenas Brasileira, vem sendo compreendido em sua natureza discursiva em diversos estudos. Abordagens que partem da compreensão dos mecanismos discursivos vêm sendo empregadas para relativizar outras “verdades” da história maranhense, como aquela que prega a existência de pobreza no Maranhão pré-pombalino, ou aquela que dá como certa a existência de uma decadência da lavoura, espraiando-se como decadência geral da região. Numa visão de conjunto, percebe-se o florescimento da historiografia maranhense nas últimas três décadas, abandonando artifícios retóricos centenários, fenômeno que se deve em grande parte à orientação culturalista das novas pesquisas. É pelo trânsito nessa seara da nova história cultural que se devem muitas das realizações da obra Mundos do Trabalho no Maranhão Oitocentista: os descaminhos da liberdade, de Regina Helena Martins de Faria. Originalmente escrita como dissertação de mestrado, nela a professora da Universidade Federal do Maranhão analisa os discursos da elite letrada maranhense a respeito dos trabalhadores e do trabalho, no contexto da dissolução inevitável das relações escravistas. Num olhar que atravessa o século XIX, detectando mudanças nas representações diante das transformações ocorridas nesse período, a obra percorre o “ciclo chartieriano” ao apontar, além das representações erigidas pela elite letrada, as práticas que colocaram tais idéias em circulação e, finalmente, a institucionalização das representações, consubstanciando-se em instâncias criadas para sua aplicação e manutenção. Antes de partir para a análise central a que se propôs, a autora dedica um capítulo ao esboço do “cenário” onde se desenrola sua trama: o Maranhão oitocentista. Observa economia, população e sociedade, numa busca pelo real, pelas estruturas concretas daquele período. É um capítulo onde predomina a história social e econômica. Se de início ela concorda com as interpretações tradicionais, aceitando a existência de um crescimento econômico e populacional decorrente do reforço da economia agroexportadora a partir da segunda metade do século XVIII – ainda que negue a existência de pobreza no período anterior – ela logo se destaca da narrativa canônica, ao inserir no quadro uma variável que foi esquecida nas análises clássicas: os pobres livres, índios, quilombolas, colonos e imigrantes internos que, a partir de novas organizações do trabalho, substituíram gradualmente a grande lavoura como sistema econômico central do Maranhão. Ao fazer isso, ela aponta o erro mais grave nas antigas interpretações: elas embarcavam no discurso das elites e tomavam a crise da agroexportação como sinal de decadência geral do Maranhão. A autora demonstra que a província não involuiu econômica, territorial ou demograficamente nos Oitocentos, mas que cresceu graças a essa nova base econômica. Dessa forma, promove o reconhecimento das realizações da pequena agricultura maranhense. É a partir desse paradigma, traçado no capítulo inicial, que ela estabelece seu estudo das mentalidades. Os discursos são entendidos num quadro mais amplo, em que se desenrolavam paralelamente o lento desmonte da escravidão, o ocaso da economia agroexportadora baseada na grande propriedade e a ascensão gradual da pequena agricultura à posição de motor econômico do Maranhão.

As representações analisadas na obra apresentam um nítido movimento ao longo do século XIX. No início daquele período, momento em que a economia agroexportadora está em plena expansão, aparecem poucas dúvidas a respeito da legitimidade da escravidão. Todos concordam com sua necessidade e pertinência, e idealizam o africano como ser humano primitivo, no limiar da animalidade, único capaz de suportar as agruras do trabalho pesado na região semiequatorial. O poder público corroborava essas noções, chancelando a aplicação de punições físicas aos escravos considerados infratores, mostrando-se reticente em interferir nas relações entre senhores e escravos. Apenas casos extremos, recorrentes ou excessivamente notórios de abusos contra escravos ocasionavam intervenções do Estado, e ainda assim de maneira bastante tímida. Nesta altura, o segmento dos pobres livres, de quem os fazendeiros ainda dependiam pouco como mão-de- obra, merecia pouca atenção: eram descritos como indolentes e refratários ao trabalho “civilizado”. Já os índios “selvagens”, por conta dos repetidos choques com as frentes de expansão da grande lavoura – sempre dependente de “terras descansadas” para continuar produzindo – eram representados como criaturas bestiais, “um inimigo que se opõe ao progresso da lavoura”, uma “ameaça a ser contida”. Ocupando “as melhores matas”, deviam ser convertidos em homens úteis; o caminho para esse processo civilizador passava pela força das armas, expediente pouco recomendado pelo governo, mas pouco combatido ou reprimido. Passava ainda pelos “métodos brandos”: a persuasão pela religião e pela pedagogia. O avançar das décadas – trazendo a inserção gradual de dispositivos jurídicos que inviabilizavam a continuidade da escravidão, reforçando a percepção da incapacidade do aparato coercitivo senhorial contra a ubiquidade das resistências, proporcionando o aparecimento de novas correntes intelectuais – provocou mudanças sensíveis na imagem que se fazia de africanos e crioulos, escravos e forros, índios e pobres livres no Maranhão. Letrados maranhenses ligados ao Romantismo, por exemplo, forjaram uma nova representação do escravo e da escravidão. Seu ideário abrigava imagens contraditórias: se por um lado passavam a atribuir aos escravos aspectos positivos – como honra, coragem, nobreza, afetividade, beleza, pureza, heroísmo – por outro ainda carregam-nos de atributos negativos, herdados das formas anteriores de representação dos escravos, como a inferioridade intelectual, a hipersexualidade, a escassez moral. Além disso, os românticos projetaram nos escravos literários valores próprios da sociedade eurófila, relativos a estrutura familiar, hábitos cotidianos, linguagem, religião. Na literatura romântica, os índios ganharam destaque positivo: identificados como símbolo da nacionalidade, foram recuperados sob o prisma do bom selvagem. A redenção parcial da figura do escravo, experimentada na literatura romântica, não se estendeu à produção jornalística e científica local, que continuou a se escorar nos pilares conceituais da mentalidade da primeira metade do século XIX, reeditados sob novas roupagens: assimilando novidades como o humanitarismo de fundo religioso, o positivismo, o pensamento da Economia Política, jornalistas e cientistas da província maranhense, na segunda metade do século XIX, ainda que aceitassem a inviabilidade da escravidão, mantinham-se fiéis à idéia de inferioridade natural do africano, e relutavam em aceitar revisões profundas na estrutura social e econômica do Maranhão. Cabe ressaltar, de resto, que os vestígios progressistas nos discursos sobre a escravidão e os escravos na segunda metade do século XIX se restringiram meramente ao terreno conceitual. Na prática, no âmbito da vida real e cotidiana, o escravo ainda era indispensável: Gonçalves Dias e João Francisco Lisboa, destacados inimigos da escravidão no mundo das letras, evitaram renunciar aos serviços de seus escravos pessoais. O mesmo pragmatismo conservador marcou a produção daqueles que, diante da inevitabilidade do fim da escravidão, pensaram alternativas a ela; mesmo tendo escrito a partir de perspectivas díspares, tanto pessoais quanto ideológicas, os letrados acabaram por convergir para soluções seguras e cômodas. Tanto o filho do fazendeiro quanto o do militar, tanto o literato quanto o engenheiro, o jornalista e o pequeno burocrata, tanto o liberal quanto o positivista, todos, reconhecendo a impossibilidade da continuidade da escravidão, optaram pela extinção gradual, almejando um eterno protelar da questão. Escolheram a via que passava pelo respeito aos direitos de propriedade da elite, o que resultava sempre em mecanismos de restituição ou indenização das perdas com a abolição; pugnaram pela manutenção de algum grau de ascendência sobre a mão-de-obra. Guardadas as devidas diferenças, os membros do que se denomina nesta obra de elite letrada do Maranhão oitocentista foram unânimes em aceitar o princípio da manutenção da ordem social e econômica. Diante do inevitável, buscaram pelo menos se manter no controle do processo, visando preservar seus privilégios de classe. Nesse processo, suas propostas deram ênfase ao papel disciplinador da educação, caminho para inculcar a submissão e o “amor pelo trabalho” nas mentes dos recém-libertos, desviando-os dos “ganhos fáceis” oferecidos pela natureza abundante do Maranhão.

A obra de Regina Helena contribui de muitas formas para o avanço das discussões historiográficas no Maranhão. O texto retoma a todo momento estudos monográficos, costurando-os numa visão global dos processos, numa urdidura que tem a dupla vantagem de oferecer um olhar de conjunto da trajetória abordada, a partir de perspectivas e temas variados, e que permite conhecer melhor a produção historiográfica maranhense, o que serve também para salientar temas pouco explorados, sugerindo caminhos para novos estudos. Empreende uma normatização do objeto, demonstrando as nuances do universo mental da elite maranhense, catalogando-o, indicando genealogias, recorrências, marcando singularidades, ajudando a compreender suas dinâmicas no tempo e no espaço. Explicita os mecanismos sócio-econômicos que se articulam com essas interpretações sobre a realidade social, sobre a economia, sobre a trajetória temporal do Maranhão. A pesquisa demonstrou a correlação entre os discursos da elite maranhense e a questão da mão-de-obra na província: num contexto de dissolução das relações escravistas, ao enfraquecimento da capacidade coercitiva sobre os trabalhadores correspondeu o crescimento das vozes que falavam em decadência, em crise por falta de braços, e que imputavam ao outro, ao índio, ao pobre livre, ao negro, ao escravo, ao forro, enfim, ao trabalhador insubmisso, a incursão na vadiagem, na corrupção, no crime. Demonstra o que há por trás destes queixumes, e ao apontar suas origens e suas lógicas internas, cassa-lhes o estatuto de explicações. Ao articular realidade e discurso, o trabalho de Regina Helena escapa daquela que é a principal fraqueza de muitos trabalhos voltados para a análise da cultura, conforme apontou François Dosse, que é a consideração isolada do universo cultural, sem a necessária observação dos fatores concretos com os quais ele se relaciona. Pela vastidão do objeto e pelos paradigmas interpretativos que constrói, constitui-se numa obra matricial, pronta a servir de ponto de partida para estudos setoriais. Por fim, resta considerar que a obra de Regina Helena questiona frontalmente interpretações canônicas que foram tomadas como fatos indiscutíveis até bem pouco tempo, e que ainda o são, entre alguns setores da intelligentsia maranhense. Inscreve-se, portanto, entre aqueles que ajudam a desmontar visões mitológicas do processo histórico e social maranhense.

Daniel Rincon Caires – Historiador do Instituto Brasileiro de Museus – Museu Lasar Segall.


FARIA, Regina Helena Martins de. Mundos do Trabalho no Maranhão Oitocentista: Os descaminhos da liberdade. São Luís: EDUFMA, 2012. Resenha de: CAIRES, Daniel Rincon. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.4, n.8, p. 180-185, jan./jun. 2015. Acessar publicação original [DR]

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