O Massacre dos Libertos. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) | Matheus Gato

Matheus Gato I Imagem CBN Campinas
Matheus Gato I Imagem: CBN Campinas

O Massacre dos Liberto. Sobre Raça e República no Brasil (1888-1889) de Matheus Gato traz para a “sala de estar historiográfica” um acontecimento relegado pela calendário oficial, ocorrido em São Luís do Maranhão, durante o processo de instauração da República Brasileira, chamado “Massacre de 17 de Novembro”. 1

O boato que o golpe militar iria restaurar a escravidão mobilizou a grande população negra da cidade para protestar contra a Proclamação da República, em frente a sede do jornal republicano O Globo. A mobilização foi reprimida pela tropa postada na frente do edifício para garantir a “lei e ordem”, que abre fogo contra a multidão de negros ocasionando mortes e muitos feridos. Leia Mais

De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850 | Mathias R¨hring Assunção

A publicação do livro De caboclos a Bem-te-vis em 2015 deve ser saudada, antes de tudo, por trazer ao público, 25 anos depois, o texto completo, atualizado e traduzido de um dos estudos mais utilizados pela historiografia maranhense dedicada às pesquisas situadas no século 19, embora o alcance e a atualidade do texto não se restrinjam ao Maranhão nem ao Oitocentos.

Até então, a tese defendida em 1990 na Freie Universität Berlin e publicada, em 1993, com o título Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850 (Fazendeiros, escravos e camponeses na província brasileira do Maranhão, 1800-1850), circulara em versões não publicadas, ou de modo fragmentado, em relevantes artigos acadêmicos e capítulos de coletâneas1.

Evidentemente, a publicação é impregnada pelas marcas do tempo em que o texto original foi produzido e, por isso, traz vigorosos debates acadêmicos comuns na década de 1990: a existência e a conformação de um campesinato no Brasil; um sistema escravista e suas variáveis; o plantation e o convívio com outras formas de produção. Tempo esse que convive com questões sempre contemporâneas, especialmente no estado do Maranhão, marcado por um processo contínuo de concentração fundiária, desapropriação de terras comunais e luta pela legalização/manutenção de territórios quilombolas.

Dentre os méritos que emergem do texto, talvez o mais significativo e (ainda) original esteja na proposta de explorar formas não escravistas de trabalho em uma das mais escravistas províncias do Império do Brasil. Tal opção não significou o desprezo pela análise da sociedade escravista; ao colocar em xeque a ideia de monocultura escravista algodoeira, propôs o debate sobre a diversidade dos meios de produção que conviveram/conflitaram com aquela estrutura, oferecendo ao leitor o resultado de uma pesquisa de fôlego sobre a sociedade maranhense.

Nas palavras do autor:

A tese central defendida ao longo das páginas que seguem é que a economia escravista de plantation – apesar de sua implantação tardia – caracterizou-se no Maranhão pelo desenvolvimento de uma economia camponesa relativamente importante, diferenciada e autônoma, sobretudo quando comparada a outras regiões brasileiras onde também predominou a grande lavoura escravista. Apesar de um segmento da economia camponesa assumir uma função complementar à economia de plantation, o antagonismo estrutural entre os dois setores está na base do conflito entre os fazendeiros escravistas e os camponeses, chamados e autodenominados caboclos desde aquela época. Este antagonismo foi a pré-condição para a eclosão da Balaiada (p.21, grifos meus).

A transcrição é longa, mas indispensável por evidenciar o principal pressuposto metodológico que orienta o argumento de Assunção: a perspectiva de uma história comparada à procura das diferenças que caracterizariam a sociedade maranhense, tornando-a capaz de produzir as condições para a emergência do movimento que ficou conhecido como Balaiada.

Confessadamente, o autor propusera-se analisar originalmente uma história da resistência popular maranhense que na Balaiada encontrara o seu ápice2. Ao longo da pesquisa, deslocara o foco para uma “análise das estruturas que levaram ao conflito” (p. 12).

Tais estruturas são apresentadas com base em quadros fartamente subsidiados pela rica documentação que orienta a pesquisa, dá solidez ao texto e serve como referência para a elaboração de dezenas de mapas, gráficos e tabelas, oferecidos pelo autor aos seus leitores (p.411-472). Paisagem; população; luta pela terra; economia e sociedade; estruturas de poder e processo político sucedem-se e imbricam-se, conduzindo o leitor à Balaiada, reservada ao último item do último capítulo (p. 352-366).

Ao longo desse percurso, o autor constrói um quadro com o que definiu como excepcionalidades da ocupação do território maranhense. Esse quadro seria composto por uma série de elementos, a saber: a) às vésperas da Independência, a população ainda se concentrava no núcleo inicial da colonização, com incipiente inserção no centro sul da capitania (p.60); b) a população indígena, arredia ao domínio português, era superior à população colonial (p.60); c) forte predominância de escravos da Guiné na região de plantation (p.72)3; d) menor predomínio da escravidão masculina (p.92-93); e) extensos territórios, nas imediações das zonas de plantation, escapavam ao controle das autoridades (p.106); f) a média de escravos por propriedade era inferior às existentes no engenho açucareiro (p.180); g) presença pouco significativa de uma classe média baixa, branca e escravista, capaz de cooperar com a estabilidade do sistema (p.234); h) parte da população livre, inclusive fazendeiros de médio porte, era hostil ao governo (p.311).

Pari passu, Assunção constrói outro quadro, centrado na região do Maranhão Oriental, especialmente o Vale do Parnaíba, palco principal da Balaiada. Para a região o pesquisador identificou elementos como a presença significativa de migrantes nordestinos (p.134); o número elevado de propriedades em que o dono não residia na freguesia (p.135); a importância dos proprietários médios e de uma “classe média rural” (p. 137-138); o mercado de terras ainda incipiente e predominância de formas não privadas de uso da terra (p.139-141).

Haveria assim, na região, uma concentração de camponeses e de fazendeiros voltados para o mercado interno, cujos interesses se chocariam com aqueles defendidos por negociantes e proprietários envolvidos na economia algodoeira. Razões políticas, historicizadas pelo autor a partir da Independência, teriam criado condições objetivas para a eclosão do conflito. Segundo Assunção, elas se acumulam no tempo. Desde de a Independência era recorrentes as queixas de políticos da região do Parnaíba pela não participação no governo da província – manifestações favoráveis à divisão da província foram relativamente comuns até o final da década de 1830 (p.317). Na década de 1830 se intensificou a histórica denúncia da exploração fiscal provincial por parte do governo central (p.279), a montagem da Guarda Nacional desencadeou resistência ao seu alistamento e, por fim, o sistema de prefeituras, introduzido no Maranhão em 1838, concentrou em São Luís a distribuição dos cargos mais lucrativos no interior da província (p.294). Como se vê, as reformas implementadas pela Regência teriam provocado ou agravado o desequilíbrio de poder entre as elites locais, regionais e nacionais (p. 302).

Contudo, se a motivação inicial da pesquisa foi a Balaiada, ou a análise das estruturas que levaram ao conflito, os resultados ultrapassaram extraordinariamente esses intentos. De Caboclos a Bem-te-Vis é leitura obrigatória para os pesquisadores dedicados às primeiras décadas do século 19. Mais ainda, é leitura obrigatória também aos interessados em compreender as estruturas econômicas, políticas e sociais do estado do Maranhão, outrora grande exportador de produtos primários, e que ontem como hoje preserva o gene da desigualdade social, da violência contra as populações mais pobres e do clientelismo político.

Notas

1. Como exemplos, cito: Quilombos maranhenses. In: João José Reis; Flávio dos Santos Gomes. (Orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, v. 1, p. 433-466; Exportação, mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão, 1800-1850. Estudos Sociedade e Agricultura (UFRJ), 2000, v. 14, p. 32-71; e Miguel Bruce e os horrores da anarquia no Maranhão, 1822-27. In: István Jancsó. (Org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, v. 1, p. 345-378.

2. O próprio título do livro em português revela esse intuito. De um modo geral, as populações camponesas do Maranhão eram reconhecidas como “caboclos”; já os “bem-te-vis” eram os membros do partido liberal no Maranhão, origem de algumas reivindicações incorporadas pelos revoltosos, que passaram a ser reconhecidos, também, como “bem-te-vis”. De Caboclos a Bem-te-Vis transparece o percurso dessas populações até o momento de eclosão do conflito. Em 1988, antes, portanto, da defesa da tese, o autor publicou o livro A guerra dos bem-te-vis. A Balaiada na memória oral, reeditado em 2008 (São Luís: Edufma, Coleção Humanidades, v. 6).

3. Para essa excepcionalidade, o autor apenas observa que suas implicações foram pouco estudadas até aquele momento.

Marcelo Cheche Galves – Universidade Estadual do Maranhão, Maranhão – MA, Brasil. E-mail: [email protected]


ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão nas primeiras décadas do Oitocentos: condições para a eclosão da Balaiada. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 356-359, jan./abr., 2017.

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Mundos do Trabalho no Maranhão Oitocentista | Regina Helena Martins Faria

A historiografia passou por uma guinada radical nas últimas décadas, especialmente no que se refere a seus objetos. Trabalhos comprometidos com a reconstituição das coisas do passado perderam espaço para aqueles dedicados a compreender como se pensavam as coisas no passado. Ou, nas palavras da autora da obra aqui resenhada, de uma historiografia voltada para as estruturas sociais e econômicas, desenvolveu-se uma outra mais preocupada com as mentalidades. As opiniões mais recentes tendem a enxergar a “nova história cultural” como uma das formas de reação à grande crise epistemológica que se abateu sobre as ciências sociais nas três últimas décadas do século XX: diante do esvaziamento dos grandes paradigmas que haviam amparado a pesquisa histórica nas décadas anteriores, frente à perda de confiança nas doutrinas e seus diagnósticos, percebeu-se a insustentabilidade das pesquisas que desejavam reconstituir a realidade global do passado, e ganhou importância observar como os indivíduos e os grupos atribuíram sentido ao seu mundo. Permanece ativa a discussão sobre o significado político dessa opção metodológica. Há quem atribua a esse movimento historiográfico um sinal negativo, reputando-o como conveniente aos grupos dominantes. Para os que assim pensam, a nova história cultural produz apenas discursos domesticados, incapazes de servir à luta. Leia Mais

O Epaminondas Americano – trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves

As mais recentes teorias que amparam a investigação sociológica têm em comum a crença de que o processo social é fruto da relação dialética entre sujeito e estrutura, dinâmica que gera e reproduz o social. Em “O Epaminondas Americano” os autores apresentam os resultados de uma análise que parte desse pressuposto, especialmente valioso também para a nova história social. Nos territórios de Clio, esse movimento tem sido entendido como “a volta do sujeito”.

Perseguindo as trajetórias do advogado português Manoel Paixão dos Santos – que, além de adicionar o apêndice “Zacheo”, “o puro”, ao seu sobrenome, adotou outros epítetos, como “Epaminondas Americano” – os autores penetram no emaranhado período final da experiência colonial, abarcando as conjunturas de Portugal, do Brasil e do Maranhão. A partir da perspectiva extremamente singular da experiência do indivíduo – que vivenciou e que foi agente no contexto observado – a obra nos leva ao cerne de movimentos importantes que ocorriam paralelamente e que se articulavam de formas bastante variadas. Zacheo nos leva a testemunhar um momento importante na história do pensamento jurídico, atravessado por transformações profundas no final do século XVIII. Aproxima-nos das grandes renovações políticas e sociais também em andamento, e permite que se vislumbre a expressão desses fenômenos no Brasil, condicionados pelas circunstâncias singulares do país. Leia Mais

O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis / Juliano C. Nascimento

O livro de Juliano Nascimento traz, para os estudiosos de literatura feita por mulheres no Brasil, uma grande contribuição, na medida em que o autor faz uma belíssima investida sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense do século XIX.

Nascida em 1825 na província do Maranhão, mulata e pobre, Maria Firmina dos Reis conseguiu uma façanha extraordinária para as mulheres do oitocentos: escrever e publicar um romance em 1859, Úrsula. Não só o ineditismo da escrita feminina, fato que eram poucas, bem poucas mesmo as mulheres de letras do século XIX, como também a forma inusitada de falar da e contra a escravidão presente em seu romance.

Firmina inaugura, dessa forma, uma literatura abolicionista inédita para o período, pois em seu romance os negros cativos têm voz e vez e falam da escravidão e contra ela, de forma direta, muito antes mesmo do famoso poema Navio Negreiro, de Castro Alves, de 1868.

O processo de diáspora e o aviltamento nos tumbeiros que transportavam os negros africanos para o Brasil são descritos de forma minuciosa pela personagem preta Suzana criada por Firmina, assim como dois outros personagens cativos ganham voz na pena firminiana, que são o escravo Túlio e o velho escravo Antero. Túlio, em um ponto alto do romance, fala que “a mente, essa ninguém pode escravizar” (Reis, p.38), questionando a situação a que estava submetido e o desejo de liberdade que não calava em sua consciência.

Ora, como bem coloca Nascimento, muito já foi dito sobre a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Talvez isso hoje se coloque com mais força porque agora a autora esteja relativamente em alta graças à visibilidade de um discurso sobre a afro-descendência, do “Brasil de e para todos”.

A autora foi por muito tempo esquecida, tanto no âmbito do cânone literário como da historiografia literária. Afinal, é apenas em 1962, ou seja, quase cem anos depois da primeira edição de Úrsula, que Horácio de Almeida, ao encontrá-la em um sebo do Rio de Janeiro, a obra chama a sua atenção por vir assinada com o pseudônimo de “uma maranhense”.

Em 1975, o mesmo Horácio de Almeida traz a lume a segunda edição de Úrsula, em edição fac-similar, hoje também uma raridade encontrada apenas em sebos. (MUZART,2000) Em 1975, também, Nascimento de Morais Filho, desenvolvendo pesquisa sobre autores maranhenses, traz à tona o livro Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma vida, no qual o autor reúne tudo o que encontrou nos jornais do Maranhão da segunda metade do século XIX – jornais que foram espaço onde Maria Firmina publicou bastante: Jornal do Comércio, A Moderação, A Verdadeira Marmota, Jardim dos Maranhenses, A Imprensa, Eco da Juventude, Publicador Maranhense, Porto Livre, O Domingo, O País, A revista Maranhense, Diário do Maranhão, A Pacotilha, Federalista.

Morais Filho reúne também em seu livro poesias, dois contos de Firmina (Gupeva de 1861 e A Escrava, de 1887) e entrevistas com ex-alunos, já que Maria Firmina dos Reis foi professora por quase toda a vida, em Guimarães, interior da província do Maranhão.

No livro de Morais Filho encontramos uma defesa acirrada de que a autora havia sido a primeira romancista brasileira, fato que inaugurou uma famosa disputa pelas origens entre os críticos literários, da primogenia ou não de Maria Firmina em relação à publicação de um romance feito por mulher no Brasil.

Depois desse “resgate”, o livro Úrsula será retomado mais uma vez com uma terceira edição em 1988, centenário da abolição no Brasil. Prefaciado por Charles Martin, o autor coloca Firmina no patamar de primeira escritora abolicionista, e compara o seu romance com outros como A escrava Isaur, de Bernardo Guimarães, de 1875. Para Martin, a autora consegue colocar-se muito melhor, inaugurando, nas letras abolicionistas do XIX, “uma rara visão de liberdade”.

É nesse cadinho que a obra de Maria Firmina dos Reis vai se tornando relativamente conhecida fora do Estado do Maranhão: escritora, mulher, mulata, abolicionista. Daí surgem, ao longo dos tempos artigos, pequenas biografias e, por fim, dois trabalhos de maior fôlego: Algemira Macêdo Mendes e Adriana Barbosa de Oliveira – respectivamente, uma tese de doutorado e uma dissertação de mestrado.

Algemira Macêdo, em sua tese, na qual trabalha com Maria Firmina e Amélia Beviláquia, tem como questão central “rastrear o processo de inclusão e de exclusão das escritoras Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláquia na historiografia literária brasileira do século XIX e XX”. (MENDES, 2006, p.28) Já Adriana Oliveira busca “fazer uma leitura do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, que evidencia a denúncia da condição de desigualdade a que as mulheres e que os africanos e seus descendentes estavam submetidos, no Brasil, do século XIX, devido à atuação do regime patriarcal”. (Oliveira,2007 p. 24) Juliano Nascimento, no entanto, acerta em cheio ao afirmar que “o fato consiste no tempo perdido sem que se examinasse seriamente se há um discurso poético ou não na obra, se há qualidade literária aliada a crítica cultural no romance Úrsula, ou se o romance se mostra apenas como um dramalhão onde mulheres e negros aparecem de forma exótica, ou no melhor dos casos, peculiar.”( Nascimento,2009, p. 24).

Dessa forma, Juliano Nascimento, pela primeira vez e de forma séria, tenta ver o romance Úrsula para além daquilo que o autor entende como motivos “extra-literários”. Ou seja, o valor do romance estaria em seu pioneirismo de ser ou não a primeira publicação de uma mulher brasileira, ou por falar da e contra a escravidão de forma diferenciada, ou por abordar a questão da mulher, entendida hoje como questão de gênero.

Para o autor, que defendeu seu trabalho em forma de dissertação na área de teoria literária na UFRJ e depois o transformou em livro, o importante e fundamental ainda não teria sido feito, que é aprofundar a crítica ao romance, ler e reler a obra como aconselhou Alfredo Bosi, ao falar da falta de leitura de uma determinada nova crítica literária, empenhada em fazer uma super análise, onde o texto não mais apareceria e sim as motivações do crítico literário ou aquilo que ele gostaria de ler na obra. (BOSI, 2009) Nascimento não faz isso, não exerce a super análise, e sim se deixa levar pela narrativa de Maria Firmina dos Reis, fazendo um trabalho minucioso dividido em quatro capítulos: a receptividade da obra, as possibilidades estéticas e ideológicas do romance, a forma do relacionamento entre gêneros no romance e a forma estética e ideológica do negro em Úrsula.

O trabalho é primoroso e chega em boa hora, visto que, como o próprio autor aponta, estava passando do tempo de um debruçamento crítico literário sobre o que Maria Firmina escreveu, para além das razões extratextuais. Fato é que a dissertação de Juliano Nascimento intitula-se: O romance Úrsula de Maria Firmina dos Reis: estética e ideologia no romantismo brasileiro. O título do livro O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis é obviamente uma escolha mercadológica da editora para vender o livro. No entanto, o título não faz jus à abrangência e ao mérito da obra, mas essa já é outra história…

Régia Agostinho da Silva. Professora da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Doutoranda FFLCH-USP. São Luís, MA- Brasil. E-mail: [email protected].


NASCIMENTO, Juliano C. do. O negro e a mulher em Úrsula de Maria Firmina dos Reis. Rio de Janeiro: Caetés, 2009.130p. Resenha de: SILVA, Régia Agostinho da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.13, p.255-257, jul. 2012.  Acessar publicação original. [IF].

 

O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão | Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves

O título do livro soa pomposo. A quem os autores chamam de Epaminondas Americano? Logo nas primeiras páginas vimos não se tratar de um pseudônimo, mas de um dos heterônimos assumidos por um português, o bacharel em Direito Manoel Paixão dos Santos Zacheo, em vários escritos que fez publicar, nos decênios de 1820 e 1830, manifestando seus posicionamentos nos debates ocorridos no Maranhão, após a Revolução do Porto (ou Vintismo) e nos primeiros tempos da constituição do Estado brasileiro.

Esse advogado é um personagem intrigante. Na Universidade de Coimbra, onde estudou, seu nome consta como Manoel Paixão dos Santos, mas o sobrenome Zacheo ou Zaqueu já estava incorporado nos documentos que atestam sua chegada ao Maranhão em 1810, e permaneceu nos registros posteriores. Os autores do livro levantam a hipótese de ele ter querido associar sua imagem à conotação hebraico-religiosa do termo “zacheo”, que significa “puro”. Quanto ao heterônimo Epaminondas, supõem ser uma possível “referência ao general tebano, que liderou a vitória contra as tropas espartanas na batalha de Leuctras (371 a. C.)”. E explicam:

Vencedor de lutas sangrentas – que lhe custaram a vida –, Epaminondas também ficara conhecido como homem de larga cultura e pelo princípio de jamais mentir. Coragem, conhecimento e sinceridade, aliadas à “pureza” pregressa, parecem compor a base da personalidade assumida por Manoel Paixão dos Santos – o Zacheo-Epaminondas –, forma de legitimar uma imagem de si e desqualificar a de seus oponentes (p.27).

A autoimagem favorável aparece em outro heterônimo que usou em duas publicações – o Arguelles da província. Para este, os autores levantam a hipótese de uma “provável alusão a Augustin de Arguelles Alvarez, deputado espanhol às Cortes de Cadiz, instância na qual ficou conhecido como o ‘divino’, dada a qualidade de sua oratória” (p.28).

No Maranhão, Zacheo não tardou a se integrar em várias redes de sociabilidade. Quando seus escritos vêm a público, dez anos após sua chegada, está casado com uma moça da terra, é advogado do Tribunal da Relação do Maranhão, juiz demarcante dos julgados do Mearim e das vilas de Viana, Tutóia e Icatu, além de declarar-se dono de fazendas e escravos em Rosário e Alcântara. Atuava, portanto, na capital da Província, a cidade de São Luís, situada numa ilha costeira, e em localidades do continente.

Em abril de 1821, foi um dos oito cidadãos que votou contra o prolongamento da administração de Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca – o último governador da província do Maranhão antes do Vintismo – e defendeu a instalação de uma junta governativa. Em janeiro daquele ano, uma representação de sua autoria havia sido lida nas Cortes portuguesas. Outras foram apresentadas nos meses seguintes. Denunciava tramoias do governador e fazia sugestões para o trabalho dos constituintes. A oposição a Pinto da Fonseca levou-o a refugiar -se na vizinha província do Grão-Pará e Rio Negro, para escapar da prisão que este lhe decretara. Retornou ao Maranhão no ano seguinte.

No início de 1823, como essa província permanecesse fiel a D. João VI, Zacheo foi um dos deputados eleitos para a segunda legislatura das cortes portuguesas. Viajou para Lisboa, mas não assumiu o cargo, pois encontrou as Cortes dissolvidas e o antigo regime restaurado. Permaneceu alguns meses em Portugal. Em 1º de janeiro de 1824, a bordo da escuna que o trazia para o Brasil, participou de um ato solene de juramento à independência do novo país. Retornando ao Maranhão, retomou as atividades políticas. Continuou com os escritos inflamados; os opositores acusavam-no de ter “má língua”. Apoiou o conturbado governo de Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce, o primeiro presidente nomeado pela Coroa brasileira para a província. Criticou D. Pedro I, mas dedicou-lhe um trabalho de quase cem páginas, para subsidiar os Códigos Civil e Criminal que o Brasil precisava elaborar. Elegeu-se deputado para o Conselho Geral da Província e integrou o Conselho Presidial (ou de Governo).

A singular personalidade de Zacheo, sua trajetória de vida e o teor dos escritos que publicou o tornam um objeto de estudo privilegiado. Yuri Costa e Marcelo Cheche Galves, professores da Universidade Estadual do Maranhão, foram extremamente felizes ao escolhê-lo, especialmente porque puderam potencializar o capital cultural acumulado em outras vivências intelectuais. Galves defendeu, em 2010, na Universidade Federal Fluminense, a tese de doutorado em História, intitulada “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência do Maranhão (1821-1826). E Costa fundamenta-se na dupla formação de historiador e bacharel em Direito.

Os autores foram felizes também na maneira como apresentam os resultados do estudo realizado. Organizaram o livro O Epaminondas Americano em duas partes. Na Parte I – Advogado, Proprietário e Político –, estruturada em quatro capítulos, a proposta é fazer um “recorte biográfico”, entremeado pelas tensões de “ação individual” e “contexto” (p.19). Na Parte II – Documento, nos presenteiam com a reprodução facsimilar de um exemplar existente na Fundação Biblioteca Nacional – Brasil da publicação, que certamente é a mais importante entre as lançadas pelo advogado: Projectos do Novo Código Civil e Criminal no Império do Brasil, oferecidos ao Senhor D. Pedro I, Imperador Constitucional seu Protector e Defensor Perpétuo e ao Soberano Congresso Nacional e Legislador.

Na Introdução, avisam aos leitores que tratarão apenas da atuação pública de Zacheo no Maranhão, principalmente dos dois decênios em que publicou seus trabalhos. Mas fazem bem mais que isso. No primeiro capítulo da Parte I, Um publicista irrequieto, traçam uma narrativa biográfica que informa sobre a família, o local de nascimento e o período em que o biografado esteve em Coimbra; especulam acerca dos significados dos nomes que adotou; delineiam suas múltiplas inserções na vida política da Província e contextualizam as polêmicas em que ele se envolveu e que geraram seus escritos, além de outros aspectos de sua vida pública.

No segundo capítulo, O bacharel e as leis, enveredam pela cultura jurídica luso-brasileira da época. A intenção é situar a produção de Zacheo nos dois processos em que ele foi partícipe: a “modernização da cultura jurídica em Portugal” e a “construção organizacional e legislativa do Brasil independente”. É também buscar entender as “práticas e as representações que se originam no (ou perpassam o) campo jurídico e dão sentido à atuação de profissionais do Direito (p.43)”, em Portugal e no Brasil.

Expõem o teor da reforma acadêmica implantada na Universidade de Coimbra, a partir da década de 1770, e as principais mudanças que a reforma trouxe nas concepções e nas práticas jurídicas na metrópole e em sua possessão na América. Adotam a periodização da História do Direito Português, elaborada por Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, que lhes permite situar nosso advogado na transição do período de influência iluminista (que vai da metade do Setecentos à Revolução de 1820) para o período de influência liberal e individualista (dessa revolução liberal ao início do Novecentos). Mostram que Zacheo conviveu com a crítica ao Direito românico e à tradição medieval canônica, com a valorização do Direito nacional (o então chamado Direito pátrio), a formulação do Direito natural moderno e as concepções ilustradas sobre o Estado e o indivíduo. Veem em sua obra diferentes concepções teóricas, fruto da formação acadêmica e das experiências vividas na América Portuguesa. Era, por exemplo, um entusiástico defensor do constitucionalismo, julgando-o perfeitamente conciliável com a monarquia e a escravidão. Entendia que as “boas leis” eram fruto do intelecto humano, e não deveriam servir apenas para nortear as ações dos governantes, mas ser um meio de viabilizar “a distribuição da ‘felicidade’ no corpo social” (p.41). Além disso, seriam boas as leis que tivessem redação clara e simples, de modo a permitir compreensão correta e eficaz execução. E Zacheo procurava seguir esses princípios nas sugestões que enviou a legisladores e governantes.

Os autores entendem que ele, informado e formado nestes e por estes debates intelectuais e jogos políticos, procurou ser um cidadão participante, como jurista, publicista e político, tanto em relação ao Estado português quanto ao Estado brasileiro que via nascer. E historiam suas múltiplas atuações e analisam-lhe as publicações, dialogando com a literatura que trata das ideias presentes nos projetos políticos em discussão no Brasil nas primeiras décadas do Oitocentos.

No terceiro capítulo, Da justiça ou da falta dela, a análise dos escritos e da atuação de Zacheo volta-se mais para as denúncias que ele fez a homens públicos da província do Maranhão. Foi um áspero crítico dos desmandos das autoridades judiciais, acusando-as de negligência, abuso de poder e conluio com os governantes. Fundamentava as acusações com casos vivenciados como advogado no Tribunal da Relação dessa província e chegou a sugerir a extinção não só deste, como dos demais Tribunais da Relação, justificando que desembargadores, corregedores e juízes tinham práticas espúrias.

Mas sua ira não se voltava apenas para os togados. Era vigilante em relação aos jogos políticos e às ações dos ocupantes dos altos cargos do Executivo. Abordando essa faceta do biografado, os autores entram nos meandros da história da imprensa no Maranhão. Como a primeira tipografia da província foi instalada na administração de Pinto da Fonseca e sob os auspícios do governo, por ser desafeto dessa autoridade e crítico de outras pessoas gradas na política local, Zacheo precisou publicar a maior parte de seus primeiros escritos em outros lugares.

Esse capítulo analisa também as posições do advogado acerca do sistema escravista, criando a ocasião para Costa e Galves entrarem nos debates que tratam da história das ideias sobre a escravidão. Mostram que Zacheo, como muitos outros declarados adeptos do liberalismo àquela época, não via qualquer possibilidade de “grandeza” e “opulência” para o Brasil sem o recurso do braço escravo. A familiaridade dele com a obra de Antonil é notada não apenas na utilização desses dois termos; revela-se ainda na metáfora consagrada pelo padre de serem os escravos os “braços” e “pernas” de quem almejasse ser proprietário por essas terras. Assim, não propunha o fim da escravidão nem do tráfico humano transatlântico. Julgava que o constitucionalismo monárquico não era afetado pela existência de escravos, pois estes eram naturalmente inclinados ao cativeiro. Aliava este argumento – baseado na concepção milenar da “servidão natural”, que subordina alguns povos e/ou pessoas – a outros com base religiosa e racionalista. Desse modo, a inferioridade e a preguiça que atribue serem inatas aos “negros” e “índios” não resultariam apenas da vontade divina. Deus criara todos com o livre arbítrio de “obrar ou não obrar”. Foram eles que decidiram não trabalhar e permanecer na ociosidade e na libertinagem (p.98). No “estado natural” em que se encontravam, tornavam-se “cidadãos impossíveis”.

O quarto capítulo da Parte I, A adaptação aos novos tempos: o Zacheo “brasileiro”, aborda a inserção dele na política, após o retorno de Portugal, quando o Maranhão já fazia parte oficialmente do Império do Brasil. Os autores especulam sobre as razões que o teriam levado a optar pela volta.

Em tal decisão, talvez tenham pesado, de um lado, a guinada absolutista da política portuguesa; e de outro, a perspectiva constitucional brasileira, corporificada pela reunião de uma Assembleia Constituinte. Porém, não é possível ignorar outras razões, como os vínculos familiares que criou na província, o patrimônio que acumulou e a legitimidade que conquistou, como fatores de seu regresso (p102).

Seguindo indícios encontrados em escritos de Zacheo e de outros publicistas da época, consideram que ele integrava e (ou) apoiava o grupo político que subiu ao poder na Província, com o presidente Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce (1824-1825), após a adesão à Independência. O curto governo de Bruce foi bastante tumultuado. Por mais de uma vez os opositores tentaram derrubá-lo; houve repetidas sublevações da “tropa” e do “povo”; além de ter sido acusado de apoiar a Confederação do Equador. Acusação que recaiu também sobre nosso advogado, que conta em um de seus escritos ter sido preso em São Luís, no ano de 1824, possivelmente num dos motins contra esse governo.

Nesse capítulo o foco é no Zacheo que jurou a independência do Brasil e participou das tramas políticas em momentos de fortes manifestações de antilusitanismo na Província, quando a expulsão de portugueses constava da pauta das reivindicações dos movimentos populares. Inclusive, ele integrava o Conselho Presidial da Província, quando houve a Setembrada (em 1831) e participou das deliberações sobre as principais exigências dos rebelados: “expulsão dos postos militares dos ‘brasileiros por Constituição’; expulsão dos ‘brasileiros adotivos’ de todos os empregos civis, de Fazenda e Justiça […]“ (p.111).

Por fim, à guisa de introdução da Parte II, no texto Os Projetos de Zacheo e seu tempo, os autores fazem ainda uma análise do documento reproduzido, cotejando-o com outros projetos que lhe foram contemporâneos, à luz da discussão historiográfica sobre os assuntos abordados.

O Epaminondas Americano insere-se, portanto, na profícua produção acerca do processo de independência, da construção do Estado e formação da nação brasileira. Embora essas temáticas possuam lugar cativo nos clássicos da História do Brasil, nas últimas décadas foram retomadas com renovado interesse, devido ao fortalecimento da “nova história política” e à diversificação das abordagens no campo histórico. O vigor dos debates pode ser visualizado nos balanços historiográficos sobre a produção clássica e a recente, bem como na grande quantidade de novos títulos publicados, entre os quais este livro vem ocupar importante lugar.

Regina Helena Martins de Faria – Mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (CFCH/UFPE – Recife/Brasil), e professora no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão (CCH/UFMA – São Luis/Brasil). E-mail: [email protected]


COSTA, Yuri; GALVES, Marcelo Cheche. O Epaminondas Americano: trajetórias de um advogado português na Província do Maranhão. São Luís: Café & Lápis / Editora UEMA, 2011. Resenha de: FARIA, Regina Helena Martins de. Almanack, Guarulhos, n.2, p. 151-155, jul./dez., 2011.

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