Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII | Kalina Vanderlei Silva

Não é nada fácil resenhar um livro como Nas solidões vastas e assustadoras, da historiadora Kalina Vanderlei Silva. Professora da Universidade de Pernambuco, trabalha com as linhas de pesquisa que envolve os assuntos relacionados à América Colonial com ênfase na concepção analítica sociocultural. Foi seguindo essa mesma perspectiva de análise que em 2001 a autora publicou O miserável soldo e a boa ordem na sociedade colonial, original de sua dissertação de mestrado. O trabalho dispensa comentários, a não ser os mais belos, pois serviu de grande inspiração para atrair vários novos pesquisadores junto ao exame das instituições bélicas relacionando-as a dinâmica colonial de forma sociocultural. Reafirmando as ideias, abordagens e reflexões que visa buscar a chamada Nova História Militar2, assim como em sua dissertação de mestrado, o seu livro resenhado aqui, resultado das pesquisas de doutoramento da autora, foi publicado em 2010 pela editora Cepe. É rico em detalhes quanto ao processo analisado, o que nos faz querer ressaltar demasiado tudo o que se apresenta na obra.

O processo conhecido como “guerra dos bárbaros3 ” foi constituído por uma série de conflitos armados pela iniciativa privada de sesmeiros em conjunto com a Coroa portuguesa onde o principal objetivo era a conquista dos sertões no intuito de expandir a colonização para o interior das Capitanias da América lusitana. Esse episódio, ainda pouco estudado entre os pesquisadores, nos é narrado por Kalina Silva de forma instigante. O título bem sugestivo de Nas solidões vastas e assustadoras é derivado da imagem de Martinho de Nandes, em consenso com outros cronistas dos séculos XVI e XVII, que deixaram transparecer em seus discursos o imaginário que tinham acerca dos limites que iam além dos núcleos urbanizados do litoral, adentrando os interiores ainda não colonizados da Capitania de Pernambuco e suas anexas. A proposta analítica de Silva ao abordar a chamada Guerra dos Bárbaros tem por objetivo destacar dentre outros elementos, os grupos envolvidos nos combates aos bárbaros do sertão, procurando destacar como os diversos povos indígenas e a “plebe” açucareira foram utilizados nas tropas para esse empreendimento colonial, e como essas relações modificaram e rearticularam seus valores dentro daquela sociedade. De modo que enquadrados à lógica de Antigo Regime por meio das forças militares, demonstra como os vários tipos sociais envolvidos se articularam ou tiveram que se rearticular à dinâmica das vilas açucareiras e aos objetivos de suas autoridades.

A obra é dividida em duas partes, a primeira, “As vilas do açúcar”, visa analisar a dinâmica e o contexto sociocultural no qual estavam inseridos os habitantes das espacialidades urbanizadas, caracterizando o imaginário dominante e a organização social e militar régia. A segunda, intitulado “O sertão”, nos guia para uma jornada rumo aos vazios incultos, reafirmando as imagens de barbárie e selvageria propagada pelo imaginário dominante acerca dos sertões, além de demonstrar o processo de conquista do lugar e o povoamento da região, o que desencadeia a formação de uma sociedade ainda cheia de incertezas ao olhar da Coroa; a sociedade sertaneja.

O primeiro momento é dedicado a análise do universo cultural das vilas açucareiras, examinando o cenário dos núcleos urbanos da Capitania de Pernambuco, bem como os personagens que nelas vivenciaram, Kalina Silva demonstra como o ideal da sociedade de Antigo Regime Lusitano afetará a estrutura social dos indivíduos nas vilas do açúcar, classificando-os pela posição social de cada um. Para Kalina Silva, esta sociedade estamental, baseada em ordens estamentais, vai, no ultramar, deparar-se com uma dualidade, que é gerada pelo sistema escravista. Nas vilas açucareiras esse ideal será ressignificado, por meio das mestiçagens e da conjuntura social vigente. Alterando as relações do status quo dos indivíduos. Nesse contexto, em Portugal se sustentara a “cultura da ostentação e do ócio”4 , enquanto na colônia açucareira se ostentará por meio do imaginário barroco, “em sua faceta de cultura ao ócio, rapidamente se (associando) ao desprezo pelo trabalho manual”5 , opondo, dessa forma, ao modo como se daria o sistema divisor entre os segmentos sociais nos Trópicos. Aos proprietários de terra se reservava a estima de “homem bom”, em contrapartida, aos que possuíssem ofício mecânico, mesmo aos que adquirissem riqueza, trariam consigo máculas de sangue presente por várias gerações.

No tocante ao imaginário ibérico dos grupos dominantes, que afetava às demais camadas sociais nas vilas açucareiras, conservava-se uma grande preocupação quanto à ordem em relação a definição e classificação dos grupos. Essa divisão começa a se delinear no século XVI, e no século XVIII essa classificação já esta nitidamente definida. Para a autora eram três níveis que definiam a hierarquia açucareira. Em primeiro lugar na pirâmide social estavam as autoridades militares, civis, religiosas, completada com os senhores de engenho. Em segundo, estavam a grande massa de pessoas livres, alguns funcionários subalternos, soldados burocráticos, pequenos comerciantes, taberneiros e artesãos em geral. Em terceiro lugar, ficavam os escravos e os vagabundos livres6.

É dentro desse contexto sociocultural, seguindo a lógica de Antigo Regime que se desenvolveu o imaginário acerca dos sertões. Nas vilas açucareiras o sentido de sertão remetia-se aos locais no interior das capitanias, ainda pouco explorados. Esta visão agregará esse desconhecimento do interior como locais perigosos, devido as suas vastidões e aos seus habitantes, majoritariamente os grupos indígenas, genericamente chamados de tapuias7. Dessa forma, nas vilas açucareiras se criará a visão de sertão, como espaços da barbárie e da selvageria.

No momento seguinte, discute sobre o cenário urbano e demográfico das vilas do Recife e Olinda no século XVII. O intuito em fazer as respectivas observações é para entender o contexto das duas maiores vilas da Capitania de Pernambuco, afinal, concentravam grande extensão de terras que continham várias povoações sob suas jurisdições8.

Dispondo de uma visão demográfica das vilas e dos termos da Capitania de Pernambuco é demonstrado um vislumbre em que se pode estimar os indivíduos recrutáveis e as localidades que mais cederam homens aptos a pegar em armas para compor os braços armados da Coroa.

Com o foco na plebe9 açucareira, o interessante é notar como alguns ofícios mecânicos, em especial aos que estavam ligados a propriedade de terra, eram honrosos até meados do século XVI, período em que eram ocupados majoritariamente por reinóis. Já nos séculos XVII e XVIII, quando há um crescimento bem significativo da população e do tráfico negreiro, esses ofícios começam a perder a dignidade por conta de uma camada expressiva da população de cor a começar a ocupa-los. É interessante, também, notar as relações que começam a existir com a participação mais ativa de pessoas de cor na ocupação desses ofícios. Para alguns, que conseguiram concentrar certa quantidade de riqueza por meios dos ofícios, era esse o meio encontrado para tentar afastar as ligações que tinham com a escravidão, pelo menos em seus imaginários.

Dentre os grupos sociais analisados por Kalina Silva, são destacados aqueles que sofriam a maior perseguição pelas autoridades militares nos núcleos urbanos, onde vadios e bandidos eram os alvos preferências. Sendo desses tipos sociais que foram constituídas e supridas durante os conflitos na guerra dos bárbaros e os mesmos utilizados para a defesa das ameaças externas no litoral.

Próximo ao término da primeira parte da obra, inicia-se sua narrativa sobre as tropas coloniais. O objetivo neste momento é demonstrar como se estruturava a organização militar nas vilas do açúcar. O que a autora esclarece nesse capítulo é a composição do exército de modelo português nas vilas açucareiras e os critérios para o recrutamento, levando em conta as especificidades da Capitania de Pernambuco.

Composta por três tipos,

Cada uma dessas organizações se caracterizava por congregar tipos sociais específicos. “As ordenanças” agregavam todos os homens livres de uma freguesia em idade produtiva, em geral casados e que não estivessem registrados em nenhuma outra tropa; “as milícias”, tropa elitista, bastante seletivas quanto a seus componentes, arregimentavam homens de uma mesma camada econômica ou étnica, enquanto “a tropa burocrática”, a única para a qual era realizado um recrutamento obrigatório, alistava homens solteiros e das mais baixas camadas sociais. (…) atingia, assim, os pobres livres e os vadios, sendo que, no primeiro caso, eram alistados principalmente os jovens sem ligações sociais estáveis: solteiros, oficiais mecânicos sem emprego ou renda fixa. Como a situação de homem casado equivalia à homem produtivo e socialmente respeitado, a tropa burocrática deveria excluir, assim, os personagens considerados úteis para a sociedade colonial1.

O tópico “Henriques e pardos” merece atenção especial, pois é o local reservado por Silva para nos explicar o que foram as milícias de cor não só na Capitania de Pernambuco, mas a sua representação para a Conquista portuguesa. Apresentando a hipótese de que as milícias foram os locais encontrados para que pardos e pretos encontrassem brechas para ascender socialmente no sistema colonial. Há diversos exemplos encontrados nas fontes utilizadas pela autora para demonstrar esse processo, no qual o mais emblemático em que apoia suas afirmações é o de Henrique Dias. Percebe-se que no universo açucareiro as milícias de cor, em especial de Henriques, foram se elitizando na medida que foram institucionalizadas pelos serviços prestados a Coroa, sendo sua atuação, assim como a sua manutenção, de extrema importância para a Coroa portuguesa. A estabilidade que essa força militar trazia para seus membros transparece nos exemplos de Antônio Gonçalves Caldeira, Amaro Cardingo, Jorge Luis e entre vários outros pretos ou pardos que, apesar de carregarem consigo uma “mácula de sangue”, eram indivíduos envolvidos em laços sociais e políticos altamente articulados.

Essa brecha na ordem escravista gerou impasses entre a própria Coroa e os senhores locais, que tinham seus contingentes de escravos diminuídos em tempos de guerra, o que teoricamente era temporário se tornava vitalício com a justificativa de os escravos terem servido tanto tempo que requisitavam, ou mesmo lhes era concedido, suas liberdades. Internamente nas milícias, também ocorriam conflitos. Esses eram gerados pelos antagonismos entre pretos e pardos, crioulos e africanos. Para Kalina Silva uma herança de seus antigos laços étnicos, que nas milícias se configuram muitas vezes na busca de autoridade entre os terços.

Na segunda parte da obra, intitulada O sertão, é o momento que nos é apresentado a narrativa mais pormenorizada sobre o significado de sertão para os habitantes do litoral. O aporte teórico utilizado por Silva para desvendar essa questão se baseia a partir da literatura produzida pelo grupo dominante da época, em especial recorte no século XVI, quando a imagem de sertão já estava formada no imaginário colonial mesmo antes das investidas ao sertão. Seus dois principais interlocutores são as crônicas de Ambrosio Fernandes Brandão e Gabriel Soares de Souza, além da obra de Domingos Loureto Couto, este do século XVIII. É enfaticamente que Kalina Silva utiliza as crônicas de Souza e Brandão nesse capítulo, pois esses dois personagens “exerceram influência sobre a sociedade açucareira, eram eles próprios personagens inseridos no imaginário barroco dominante nas vilas do açúcar de Pernambuco”11. Para frisar a importância dessas fontes e ainda demonstrar ser uma pesquisadora de alto calibre, Silva ressalta que as fontes produzidas por pessoas, em determinada época, encobertas de interesses particulares não os faz ausentar em seus discursos “um conjunto de opiniões e visões particulares, mas uma partícula de um imaginário maior que abarcava o próprio autor”12.

A partir das primeiras investidas rumo ao interior continental, com a dupla visão de ser os sertões o local de desordens e liberdades, em contrapartida, o mesmo era associado a locais que conservavam abundâncias de gêneros e metais preciosos. Silva demonstra que essa busca por promessas de riquezas, além de agregar às tropas os homens da plebe das vilas do açúcar, empregou vários grupos indígenas sobre o pretexto de que estes, comandados por homens práticos do sertão e experientes no comando desses tipos sociais, como o mestre de campo Domingos Jorge Velho e o capitão Simão Jacques Thomas, entre outros, os ameríndios tornavam-se homens ideais para conquistar as regiões conflituosas, por conta da experiência contra Palmares já tinham mostrado. Tal fato ressalta as eficiências dessas milícias frente as decadentes tropas burocráticas existentes no cenário colonial.

Por fim, ao nos direcionar para o cenário pós guerra dos bárbaros, Kalina Silva demonstra que a região dos sertões após a conquista não teria se desvinculado aquele imaginário que o ligava à barbárie. As várias expedições rumo a esse interior teriam dispersado vários desertores, o que culminou na formação de grupos no sertão. Afastados da ordem estatal, o território continuou a ser selvagem, porém seus habitantes gozavam da soltura e de liberdade, longe das rédeas do governo. Henry Koster atribui o termo de “estado feudal13” a essa sociedade sertaneja em formação.

Finalizando, Kalina Vanderlei Silva discorre em seu livro dialogando com uma gama de fontes primárias, proporcionando que suas análises e reflexões sobre o processo estudado tornem a leitura de seu livro uma saborosa viajem pelo processo de formação da região compreendida como o “Nordeste do Brasil”. Interligando sua narrativa sobre o processo com outros campos da História, principalmente ao estudar os indivíduos considerados marginalizados pela História tradicional, demonstra-nos um interessante exemplo das novas concepções de História Militar, expondo como esses homens se relacionavam com a sociedade e como a Coroa portuguesa por meio da instituição militar, o veículo intermediador, gerou metamorfoses no sentido de misturas culturais. Tudo isso implicou na perca de referências sociais e no extermínio de diversos grupos indígenas aliados ou inimigos dos portugueses. Ao mesmo tempo, a autora coloca os problemas de manutenção das tropas, desde o recrutamento às condições degradantes em que os homens viviam, levando muitos a deserção. Sendo um estudo de referência recomenda-se a leitura do livro resenhado pois se trata de um trabalho bem escrito e fundamentado, principalmente para os interessados no desbravamento dos sertões e da história militar.

Notas

2. As novas possibilidades de pesquisa como as novas abordagens e inovações metodológicas da própria História levou que alguns historiadores criassem uma definição para os novos tipos de abordagem aplicados à temáticas bélicas, não só no Brasil, mas no exterior, a utilizarem o termo de Nova História Militar. Luiz Moreira e Marcello Loureiro descrevem a respeito desse conceito que (…) se a história é tecida por homens, não é viável excluir da análise as orientações valorativas que permeiam uma determinada sociedade. Não parece possível compreender as relações entre homens, no tempo, desvencilhando-os da dinâmica social em que estão inseridos e que atualizam a partir de suas ações. Especialmente para o caso militar, não é possível examinar fenômenos bélicos por eles mesmos, de forma totalmente abstrata, como se a sua natureza não estivesse pautada em sujeitos sociais. MOREIRA, Luiz G. S.; LOUREIRO, Marcello José Gomes. A nova história militar e a América portuguesa: balanço historiográfico. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar e Defender: Portugal, Países Baixos e Brasil. Estudo de História Militar na Idade Moderna. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 16.

3. Uma obra já consagrada sobre o mesmo tema é a de PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. HUCITEC, 2002.

4. SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010, p. 16.

5. SILVA, Kalina Vanderlei. Ibid., p. 17, grifo do autor.

6. A aurora estuda mais ao fundo esses grupos sociais, o que é interessante ver: SILVA. Ibid., pp.41-77.

7. Por exemplo, na região conflituosa sob jurisdição de Pernambuco, residiam no século XVII os xocó, cariniayos, jacós, paraquiós, carateus, carnijós, guegués, che-che,xucurús, peraricoanhas, cariris, rodela, coremas, ariús, janduis, canindés, paiacus, pinacus, caborés, capelas, paniguaçus, jenipapos, parasus, quixelós,icós, genipapoaçus, calabaças, quesqués, procás, pipipás, panatis e pegas. Apesar dessa grande diversidade cultural, foram todos generalizados com o nome de “tapuias”. SILVA. Ibid., pp. 139-140.

8. Somente para citar, Olinda, por exemplo, em 1680 (…) englobava as vilas de Igarassu, Nossa Senhora da Conceição, Serinhaém, Porto Calvo, Alagoas e são Francisco do Penedo, além de treze povoações: o Cabo de Santo Agostinho, Possuica, São Gonçalo do Uma, Alagoas, São Miguel, Muribeca, Santo Amaro de Jaboatão, São Lourenço, Nossa Senhora da Luz, Várzea do Capibaribe, Goiana, Tejucupapo, Taquara, e o Recife. SILVA. Ibid., p. 24, grifo do autor.

9. A autora utiliza o termo para se referir aqueles que estavam nas camadas mais baixas da sociedade colonial, abarcando os vadios, criminosos, libertos e oficiais mecânicos. Cf. SILVA. Ibid., p. 52.

10. Idem, Ibid., p. 80, grifos do autor.

11. Idem, Ibid., p. 113.

12. Idem, Ibid., p. 113.

13. Idem, Ibid., p. 200.


Resenhista

Everton Rosendo dos Santos – Graduando do curso de História Bacharelado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Pesquisador no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010. Resenha de: SANTOS, Everton Rosendo dos. A guerra dos bárbaros: Diversidade Social na Conquista do Sertão. Revista Ultramares. Maceió, n.5, v.1, p. 223 – 229, Jan./Jul. 2014. Acessar publicação original [DR]

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