Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977) | Robson Pereira da Silva

As sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido. O sentimento faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, em sua capacidade tanto mimética como criativa, está presente no processo de tradução da experiência humana.

SANDRA JATAHY PESAVENTO.

Tão importante quanto analisar as letras dos compositores da Música Popular Brasileira (MPB) e contextualizá-las historicamente, se faz extremamente necessário não perder de vista o trabalho dos intérpretes que além de ressignificar as canções, ainda possuem um árduo trabalho criativo e corporal que corrobora para que essas canções ganhem sentidos que são intrínsecos as questões do seu próprio tempo.

Partindo deste prisma, Robson Pereira da Silva analisa a performance do cantor Ney Matogrosso, por meio das suas interpretações, desenvolturas no palco e o diálogo político-social da década de 1970 que foi marcada pela ditadura militar no Brasil. O recorte proposto pelo autor compreende a fase do início da carreira solo de Ney Matogrosso e abrange o período entre 1976 e 1977, logo após a sua saída do grupo musical Secos e Molhados.

Apesar de analisar outros álbuns da carreira do cantor, é o segundo álbum solo de Matogrosso – Bandido, lançado em 1976, que recebe uma análise aprofundada por Silva. Destarte, Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976 – 1977) traz não apenas a trajetória artística de tal interprete, mas também traça um panorama dialógico da Música Popular Brasileira no ambiente político dessa época.

Robson P. da Silva é historiador formado pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), mestre pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), sendo essa obra fruto da sua Dissertação de Mestrado intitulada Para Além do Bustiê – Performances na Contraviolência na obra Bandido (1976-1977) de Ney Matogrosso, defendida em 2016.

Um dos pontos de partida da obra é a produção artística de Ney através da prática política de contracultura, não pelo viés dos acontecimentos da juventude entre as décadas de 1950 e 1960, mas como uma prática pela qual o artista retira a noção pejorativa de marginal através da arte como modo de resistência à Ditadura Militar no Brasil. Segundo Silva:

Esses artistas, pela marginalidade cultural, mesmo sendo integrantes da emergente classe média, executaram a absorção da [re]presentações marginais, do desviante e fronteiriço. No trânsito entre a sociedade de consumo e os empreendimentos de experimentação ética e estética, artistas movimentaram-se em favor da formatação de um corpo não alinhado às medidas de segurança nacional. (SILVA, 2020, p. 28)

É válido lembrar que Ney Matogrosso durante a adolescência já incorporava o conceito de marginal, uma vez que ele deixou de conviver com a família, cujo pai era militar e lhe aplicava normas rígidas, para sobreviver da sua arte (MELLO, 2018). Fora do eixo sul e sudeste, o cantor nasceu em Bela Vista, município de Mato Grosso do Sul. Sair da cidade significou ir além da liberdade individual inexistente no ambiente familiar, mas um caminho essencial para a sua trajetória artística.

Faz necessário compreender Matogrosso através da sua performance no palco e na produção audiovisual. Performance essa, que segundo o autor, deve ser encarada “como uma arte que evidencia o corpo transgressor dentro do próprio contexto da obra, ou seja, com a história”. (SILVA, 2020, p. 29)

Desta forma, o autor justifica a escolha da obra Bandido (1977) que, através dos seus jogos cênicos no seu espetáculo, é dotada de erotismo e violência, bem como toda a sua produção vai na contramão da heterenormatividade regulada pela política vigente.

O primeiro capítulo intitulado, “Sou o que sou e não sou nada” – embates representacionais acerca da resistência cultural à ditadura militar no Brasil” é um balanço crítico que perpassa por discussões teóricos metodológicas que reflete como o Tropicalismo foi um marco construído dentro da história da música brasileira. Segundo o autor, esse é um processo de muito esforço e empenho dos principais agentes dessa construção, no caso da música as figuras centrais são Caetano Veloso e Gilberto Gil, que passam a contar e a rememorar os fatos a partir de sua própria experiência. O empenho de Caetano foi tanto que este escreveu o livro “Verdade Tropical” no qual ele narra a sua trajetória musical juntamente com esse movimento artístico, sendo o ponto de partida o álbum Tropicália ou Panis et Circencis (1968):

Os procedimentos de memorização e interpretação culminam na prevalência de uma determinada memória sobre os acontecimentos (inclusive firmada neles) que hierarquiza, exerce introjeção sobre os agentes, ou, até mesmo, exclui-os do mesmo fato. Talvez, esse seja motivo pelo qual a verdade tropical seja vencedora, não simplesmente por ocupação de espaços referentes à cultura e mídia. Inclusive, por esse aspecto, notamos a presença constante da memória histórica produzida a partir de Caetano Veloso e suas respectivas intervenções no tocante a de outros agentes da MPB. (SILVA, 2020, p.50)

Como bem afirma Silva, ao passo que esse processo de criação de um fato elege alguns sujeitos e marcos, exclui outros. Nesse sentido o autor demostra que esse movimento Tropicalista já se utilizava de uma renovação estética pré-estabelecida através de artistas como Hélio Oiticica e o movimento do Cinema Novo. A partir dessa discussão, o autor se propõe a compreender a participação de artistas que mostravam resistência através da sua produção cultural a partir de representações de marginalidade. Aqui se faz necessário atribuir a importância do interprete nesse cenário, posto que o compositor, escritor, cineasta, críticos e teóricos de arte ocupavam um lugar de destaque através dos seus textos. Através dos jogos performáticos, os interpretes também mostrariam resistência através dos palcos, onde estavam ligados as questões do nacional popular.

Dentro dessa lógica de fabricação do marco Tropicalista, 1968 foi dado como o ano inicial do movimento, contudo foi marcado pela implementação do AI-5 no país, limitando, ainda mais, manifestações artísticas contrárias ao governo. Por esse motivo, vários autores apontaram, que a década de 1970 sofreu um “vazio cultural”, dado a repreensão brutal que o ato institucional proporcionou. Porém Silva contesta esse conceito e nos mostra que esses autores só enxergam esse “vazio” pois estão olhando o processo pela ótica do movimento Tropicalista, visto que seus principais agentes tinham sido exilados na Europa.

Aqui desconsidero veemente essa perspectiva de vazio, afinal é preciso explorar cada vez mais o “material expressivo” do referido período, produzido mesmo à sombra da atuação dos aparelhos de censura, como é o caso da figura de Ney Matogrosso que está incluso principalmente pela performance. (SILVA, 2020, p. 56)

Ao olhar para esses artistas que foram subjugados a essa memória oficial do Tropicalismo, Silva amplia nosso olhar para a diversidade de obras que foram produzidas nesse período e por não estarem no eixo do marco, possuem um triunfo: a possibilidade de representar outros sujeitos e trajetórias que foram igualmente excluídas do holofote histórico.

As questões negligenciadas também ao ponto consequente do olvide desses artistas na história, sobretudo atores, intérpretes de música popular, artistas plásticos, performers etc., que por elas não estiveram diretamente ligados de maneira determinada ao nacional popular. Isso fez que tais artistas tocassem em questões diferentes e dimensionam sujeitos cênicos marginais (Gypsys, tramps, and thieves) – bandidos, ciganos, meretrizes etc. (SILVA, 2020, p.64)

Dessa forma, ao não fazer parte diretamente dessa memória do Tropicalismo e ser artista em plena ditadura militar, Matogrosso passa a incorporar o conceito de marginalidade, por meio da violência, sexualidade, latinidade, diálogos entre o homem e a natureza e, claro, da política, seja através da figura do bandido ou do Homem de Neanderthal, figuras adotadas a partir do seu primeiro disco solo, Água do Céu – Pássaro (1975), além do homem híbrido e primitivo com o grupo Secos & Molhados:

Esses sujeitos sociais, cênicos em Ney Matogrosso, possibilitaram que o artista construísse diálogos com a marginalidade, que conheceu bem em sua experiência como hippie, ou mesmo na favela carioca e na fronteira sul mato-grossense. Essa opção por incorporar esses personagens, firma uma posição política e estética dialógicas com objetos estéticos dos artistas supracitados. (SILVA, 2020, p. 85)

Assim o artista assume para si, ainda que cenicamente, personagens que estão à margem da sociedade para interpretar as canções. Fica claro nessa representação a sua contribuição para a transgressão da Música Popular Brasileira (MPB). O pensamento de subversão se constrói em etapas, através do videoclipe, fonograma, encarte do disco e, principalmente, no momento do espetáculo.

As mídias audiovisuais ganhavam força na década de 1970, através dos programas de televisão e pela produção de videoclipes, servindo como uma espécie de vitrine para os músicos. A performance do artista ultrapassa as apresentações ao vivo, e começava-se a estender para um público mais amplo através do aparelho de televisão.

É nessa perspectiva, mas acreditando que o audiovisual comporta o conjunto de signos, que acuso que Ney Matogrosso, durante os “anos de chumbo”, dispôs imagens e sonoridades dos textos musicais de compositores; por isso, devemos captar a inclinação de um intérprete em gerar a intensidade simbólica que amplia o texto que, primeiramente, apresentou-se na transposição da oralidade para a escrita. Ora, o intérprete subverte essa lógica. A capacidade de articulação de mídias fez com que Ney Matogrosso procurasse significar o mundo em meio ao contexto da fragmentação do arranjo tecnocrata, com a proposição de transgressão erótica. (SILVA, 2020, p.87)

Outro ponto importante que Silva traz à tona nesse primeiro capítulo é a interação com as camadas populares através da figura entre o cigano e o bandido, rompendo as fronteiras entre o culto e popular. A MPB ainda era consumida basicamente pela classe média brasileira, valendo-se de hibridismos dessas diferentes estruturas culturais. Esse esforço de estabelecer uma ligação com as camadas mais populares fica claro em várias escolhas feitas por Ney Matogrosso, tais como: a escolha do repertório do álbum Bandido que possuiu sonoridades como salsa, mambo, bolero ou o gênero chamado de “brega” e também pela escolha do cantor por interpretar canções que já fazem parte de um repertório da música popular. Seu espetáculo possuiu recursos visuais que remetem as chanchadas e ao Teatro de revista. Outro elemento foi o preço acessível para esse espetáculo.

Partindo desse pressuposto, o autor faz uma análise profunda das atividades performáticas de Ney Matogrosso, na década de 1970, no seu segundo capítulo: “Constelações de personagens marginais em Ney Matogrosso: entre navalhas e revólveres…a profanação das interdições”, no qual Silva se debruça na obra Bandido para compreender a historicidade subversiva do músico através da sua estética performática. Ao longo do capítulo, Silva faz uma análise sólida sobre as músicas que foram escolhidas para o repertório desse álbum, reforçando como é importante para o artista ter o poder de escolha sobre sua obra, em todos os sentidos.

Logo no seu primeiro álbum solo Água do Céu – Pássaro e o seu espetáculo de 1975, Ney Matogrosso já deixava evidente a sua marca da contraviolência nas suas performances. O próprio vocal do intérprete já sinalizava o grito e a agitação do ritmo para interpretação das canções, num exercício de forma e conteúdo. Robson Silva novamente nos alerta para importância do interprete dentro da MPB nos anos de chumbo:

[…] a atuação do intérprete como [uma] ampliação dos textos de tais compositores, com vinculações discursivas próprias, sendo a composição a primeira fonte escolhida, como parte do processo inicial da construção performática. Ney Matogrosso tomou essa ampliação a partir da captação do audiovisual, cena, som e imagem; constituindo singularidade, uma capacidade “autoral”, a fim de marcar-se na música popular como fenômeno cultural visualmente apresentável, incluindo os objetos cortantes no seu aparato cênico. (SILVA, 2020, p. 108)

Destarte, o autor classifica três eixos temáticos existentes na obra do músico durante a sua trajetória artística na década de 1970: humor, sexualidade e irreverência. Tais características enveredam um projeto de liberdade e subversão que é adotada por Matogrosso. Assim, o cantor abusava da contraviolência como resposta a realidade reguladora e opressora vivida pelo período da ditadura.

O título do seu segundo álbum, Bandido, nos traz a ideia de agressividade humana que se estabelece esteticamente na imagem do cigano, explicitando os sujeitos marginalizados pelo Estado. Completando essa atmosfera, Ney Matogrosso fez a primeira apresentação do álbum na Penitenciaria Lemos de Brito, no Rio de Janeiro. Foi escolhido pelos próprios detentos como uma figura que representava a liberdade, onde o autor afirma ser uma experiência laboratorial, que concretizou o encontro entre representação e o representado:

Ney Matogrosso, ao penetrar o espaço disciplinar, por escolhas dos corpos a serem docilizados e úteis, reconfigura a subversão do dispositivo na medida em que incorporado na figura do bandido transmite a insígnia da liberdade compartilhada com o público alvo da apresentação. (SILVA, 2020, p, 131).

Seu álbum e espetáculo mostraram mais contidos do que o álbum anterior, Água do Céu – Pássaro, que foi marcado com uma superprodução musical que encareceu os custos dos ingressos dos shows e ficou fechado para um público considerado elitista, segundo o próprio artista. Nessa nova fase, Ney Matogrosso verbaliza nas entrevistas, que um dos objetivos desse projeto era atingir uma camada mais diversificada, no entanto, sem perder a qualidade. Sob essa perspectiva, Bandido reflete o exercício do desejo imbricado pelo erotismo e no corpo, numa sociedade reguladora e violenta vigente naquela época. Vale ressaltar que a década de 1970, no Brasil, houve um aumento de materiais eróticos, seja através de revistas masculinas e principalmente no cinema com a ascensão da pornochanchada. Diferente do cinema que representava a sociedade dominante1, Matogrosso era perseguido pela censura com adjetivações injuriosas e considerado uma ameaça a moral da época.

O autor conclui que o erotismo presente na performance do artista corrompia alguns ideais que existiam no regime militar naquele momento, pois desviava os “bons costumes” da família tradicional brasileira. Nessa época o corpo jovem devia ser moldado para o trabalho e no desenvolvimento físico, sem estar em sintonia com questões eróticas e, especialmente, dotado de masculinidade.

Ao assumir essa postura de enunciar o abjeto ou mesmo sujeitos que não são privilegiados pelo corpo social, Ney Matogrosso poderia estar próximo dos pressupostos da teoria queer, à medida que se apropria daquilo que é expurgado pela sociedade, a fim de parodiá-la, por conseguinte, torna esses expurgos discriminatórios obsoletos, diante dos sujeitos atingidos por tais rotulações, ou seja, formados pela abjeção (o sanguinário, feroz etc.). Privilegia-se então, outra performatividade; a não hegemônica. Com essa postura de nuances voltadas para o erotismo, o artista apropria-se do abjeto tomado pelo personagem marginalizado e retira a fixidez da identidade pela sociedade sobre ele. (SILVA, 2020, p. 170/171)

E é a partir desse gancho que o autor finaliza a discussão no capítulo “O bandido invade a cena: redescrição da marginalidade na exibição de práticas da liberdade” cuja proposta central é fazer uma análise crítica do espetáculo Bandido e algumas performances exibidas pela televisão, bem como parte de sua recepção.

Após a apresentação na Penitenciária Lemos de Brito, Matogrosso realizou um espetáculo de lançamento no Teatro Ipanema em 1976. Nesta fase ficou visível algumas mudanças na estética do cantor, como o uso mais leve de maquiagem em comparação as apresentações de outrora, cuja performance seria focada na totalidade do corpo e não apenas na face.

Se antes ele fazia um paralelo do seu ser com um bicho, agora ele se aproximava de uma figura mais humanizada:

A referência à metamorfose figurativa, por exemplo, consiste da retirada da máscara como componente principal da construção da personagem. A máscara acompanhou as performances de Ney Matogrosso desde o início da sua carreira com Secos & Molhados, mas, a partir de 1976, essa primeira figuração passou a ser diluída na formação de uma fisionomia e um corpo que definisse a intenção de “redescrição” da agressividade do híbrido (homem/animal) para o marginal (bandido e cigano). (SILVA, 2020, p. 210).

Sua primeira aparição televisionada com o novo projeto foi no programa Metamorfoses, exibido pela TV Bandeirantes, que contou com performances no palco, entrevistas e videoclipes do músico. Com bom índice de audiência e de críticas, Matogrosso agradeceu ao espaço concedido pela emissora para a divulgação do seu trabalho, já que a Rede Globo era acusada de apenas exibir um estilo mais suave na sua programação, sobretudo em especiais musicais.

Novamente o autor revela essa marca na música popular brasileira pautada pela referência do Tropicalismo, em especial quando é feita a comparação entre Ney e Caetano Veloso, em que este último serviu mais como fonte de inspiração comportamental do que estilo musical:

Houve a cristalização discursiva por repetição, responsável por centralizar o Tropicalismo na história cultural brasileira pela ideia de linha evolutiva, com todas as rotulações subjacentes dessa memória histórica dominante, em que se valoriza essa vertente da música como diferente, singular e atualizada em detrimento de outras manifestações que tiveram suas especificidades obscurecidas por tal valorização. (SILVA, 2020, p. 231).

Dessa forma, Silva aponta como esse processo de legitimação do marco Tropicalista é reforçado constantemente pela imprensa em várias reportagens e, ademais, demonstra como a figura de Caetano Veloso se transformou num autoreferencial dentro da música popular brasileira, separando o que vem antes e depois do músico e, consequentemente, apagando outras experiências artísticas.

O autor encerra a reflexão sobre a performance ao apontar como Ney Matogrosso, no palco, se apropria de um texto musical e o reescreve a partir da sua encenação audiovisual, o que confere-lhe também a “função de autor”, entendido aqui na concepção de Roger Chartier que a compreende pelo processo de difusão e pluralidade dos discursos pré-estabelecidos. Para compreender essa ação, Silva explica:

Interessa como articulação (colaborativa) desses textos que se expandem do seu significado prévio e desdobram-se em outras discursividades pelo processo de interpretação constituído de corpo, imagem, voz e som – como prática criativa, não meramente de reprodução. (SILVA, 2020, p. 237).

Deste modo o autor conclui que a importância do papel do intérprete não está apenas no ato de cantar, mas sim nos gestos, figurinos, jogos cênicos e na desenvoltura através dos palcos, que nos revela ser um grande campo de resistência e atuação política. A intenção de Matogrosso era buscar a liberdade individual e ir na contramão do conservadorismo presente na sociedade marcada pela ditadura militar.

Portanto, Bandido foi mais político do que parece, inclusive ao próprio artista que naquele momento observava a prática política somente àquela vinculativa a posição ideológica, instrucional e partidária. Porém, ao enfrentar posicionamentos e anseios estabelecidos no corpo de uma sociedade marcada pela violência e autoritarismo de essência normativa masculina sobre o corpo, eróticas e comportamentos em geral, Ney Matogrosso desempenhou um exercício político, mas no campo da sensibilidade e pelo gesto. Consequentemente, nota-se por isso que “a política é a esfera dos puros meios, isto é, da absoluta e integral gestualidade dos homens” (SILVA, 2020, p. 273)

Além de nos apresentar e nos colocar a par de um debate acerca da construção de uma memória, que ao mesmo tempo que elegeu seus agentes e fatos históricos, também excluiu tantos outros, um debate que é tão caro não só a nós, historiadores, mas todos que trabalham em geral com objetos artísticos. Esta obra também nos mostra a importância de um artista que exerce sua força política a partir do campo das sensibilidades, através de vastos objetos artísticos e documentos considerados não “oficiais”, fazendo jus a um dos maiores intérpretes do Brasil que se manifesta artisticamente e politicamente através das suas performances.

Nota

1 Como bem salienta o autor Rodrigo Gerace, “as pornochanchadas limitaram o desejo à representatividade dominante, heteronormativa, sem subverter de fato os valores conservadores do país submerso na ditadura militar. Elas apenas reafirmaram muitos preconceitos sobre homossexuais, mulheres, homens e sobre o próprio país, este nunca destinado à seriedade. O sexo à brasileira nas pornochanchadas fora motivo de piada, alienado de pulsão erótica reprimida pelo conservadorismo nacional”. In: GERACE, Rodrigo, 2015, p.143.

Referências

GERACE, Rodrigo. Cinema Explicito: Representações cinematográficas do sexo. São Paulo: Perspectiva, 2015.

MELLO, Ramon Nunes. Ney Matogrosso – Vira-lata de raça. São Paulo, Tordesilhas, 2018.

SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977). Curitiba: Appris, 2020.

SILVA, Robson Pereira da. Para Além do Bustiê – Performances na Contraviolência na obra Bandido (1976-1977) de Ney Matogrosso, 2016. Dissertação (mestrado em História), Universidade Federal de Goiás, 2016.


Resenhistas

Grace Campos Costa – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU). E-mail: [email protected]

Lays da Cruz Capelozi – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SILVA, Robson Pereira da. Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977). Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: COSTA, Grace Campos; CAPELOZI, Lays da Cruz. Marginalidade, contraviolência e performance: questões acerca da obra “Bandido” (1976) de Ney Matogrosso. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 17, n. 1, p.408-417, Jan./Jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

 

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