Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX – DUARTE (RBH)

A segunda edição de Noites Circenses: espetáculos de circo e teatro em Mi­nas Gerais no século XIX, de Regina Horta Duarte, chegou aos leitores em 2018. Na sua primeira edição (Campinas: Ed. Unicamp, 1995), o livro foi saudado como trabalho muito bem escrito e cativante (Mello e Souza, 1996) e considerado referência para estudos sobre teatro e circo no Brasil (Silva, 1996). Os que lerem a nova edição constatarão que a obra não envelheceu e continua digna desses elogios.

Convicta de que a história é um conhecimento transformador da vida e relevante para as lutas e desafios contemporâneos, a autora vem desenvolvendo ao longo de sua trajetória profissional interesse por temas que estimularam indagações e reflexões que já se encontravam presentes ou indicadas nesta obra, tais como o sujeito social conectado ao mundo e constituído nas relações sociais.

A partir dos anos 1980, tomou corpo na historiografia brasileira um processo de crítica ao estruturalismo e de valorização do papel da cultura para a escrita da história, elementos que contribuíram para alterar certas matrizes de pensamento então vigentes (Barros, 2003). O trabalho de Regina H. Duarte inseriu-se nesse movimento dialogando com a bibliografia brasileira e estrangeira, mas traçando um caminho próprio com base em opções teóricas e metodológicas específicas – inspiradas em Deleuze, Foucault, Derrida, Le Goff e Natalie Davis, dentre outros – por ela utilizadas como instrumentos de reflexão que lhe permitiram transitar com boa margem de liberdade e criatividade, a começar pela narrativa leve e acessível ao leitor especializado ou leigo no assunto.

Noites circenses é fruto da tese de doutoramento defendida por Regina H. Duarte na Unicamp, em 1993, e de uma ampla pesquisa com fontes que vão desde legislação a jornais, passando por relatos de viajantes, literatura, memórias e obras de referência. O tratamento das fontes exigia mediações cuidadosas para que delas fossem elaboradas interpretações apropriadas, trabalho levado a cabo pela autora com sua reconhecida capacidade de reunir conhecimento consistente, sensibilidade histórica e preocupações teóricas pertinentes. No livro são levantadas questões e hipóteses importantes tais como a limitação dos marcos tradicionalmente eleitos como definidores do teatro nacional, e a autora defende a hipótese de que o circo-teatro foi a estratégia adotada pelos circenses para fazer frente à emergência do cinematógrafo.

Governamentalidade e sedentarização são conceitos chave para analisar o Estado e a sociedade a partir das lutas sociais, trazendo para a narrativa as tensões inerentes às relações sociais. A análise tornou possível delinear um cenário em que afloram as contradições presentes nas ações e discursos que tinham em vista construir uma Minas Gerais esquadrinhada, sedentarizada e organizada, e a dissonância representada pela mobilidade de índios, ciganos, vagabundos, párias e artistas, os quais desafiavam cotidianamente tal projeto homogeneizador. Ao assim proceder, Regina H. Duarte revela a inexistência, naquele contexto, de uma visão singularizadora, tradicionalmente sintetizada na noção de mineiridade, até mesmo como projeção de imaginário. Ao contrário, são o múltiplo e o diverso que saltam aos olhos.

Teatro e circo são os temas privilegiados na obra, embora o título seja mais alusivo ao segundo. Ao abordá-los, a autora não seguiu o viés dicotômico cultura de elite / cultura popular, não ergueu um panteão de nomes e obras por antecedência e procurou afastar-se de determinismos e reducionismos. Ela construiu seu argumento mostrando a complexidade do mundo dos espetáculos e revelando que a rejeição ao circo como arte “menor”, tão presente nos discursos letrados da época, não encontrava ressonância junto às plateias, independentemente da categoria social do espectador. Se na Corte se encantaram pelo circo o poeta Gonçalves Dias (Souza, 2001) e o imperador Pedro II (Vanucci, 2004), em Minas foi um fascínio similar que arrancou aplausos dos espectadores anônimos ao assistirem à pequena acrobata Didita, em Ouro Preto; que levou outros tantos a se sentirem arrebatados com os ursos e serpentes do Circo Americano; que influenciou o menino Avelino Fóscolo a engajar-se e mambembar por anos com a companhia do prestidigitador norte-americano Keller, ou que deixou atônitos os espectadores de Diamantina que viram dois trapezistas despencarem das alturas num dos espetáculos.

Se os teatros não exerceram a mesma atração que o circo, não foram por isso menos importantes, pois se transformaram em espaço de enraizamento de práticas que iam desde ver e ser visto à leitura de poesias, a homenagens, discursos, comemorações oficiais, conferências, flertes e debates. Mas foi a feição de espaço de teatralização da política por eles assumida um dos papéis mais importantes que levou, por exemplo, os espectadores de Cataguases a aplaudirem a adaptação de A cabana de Pai Tomás, um clássico mundial da dramaturgia abolicionista oitocentista; que possibilitou ao teatro de Sabará sediar os festejos do primeiro aniversário da república, e ao de São João Del Rey levar A Tomada da Bastilha, todos eles muito aplaudidos pelas audiências. Foi, portanto, como uma espécie de caixa de ressonância de temas e comportamentos candentes e indizíveis que estavam no ar, que os palcos teatrais mineiros se configuraram.

Embora a segunda edição tenha mantido a estrutura original da primeira, a obra passou por revisão e ampliação. A introdução ganhou a forma de uma conversa com o “caríssimo leitor”. Nela, a autora dialoga com seus críticos, justifica a incorporação ou não de suas sugestões e reforça convicções anteriormente firmadas. Ao longo do texto percebe-se, também, o cuidado em reescrever e/ou adensar passagens com resultados obtidos em pesquisas posteriores. Além disso, a autora incluiu uma conclusão e executou uma correção cuidadosa que retirou do texto a maior parte dos problemas formais da primeira edição.

A análise dos anúncios de jornais, uma grata e significativa novidade da segunda edição, permite acompanhar as estratégias comerciais e simbólicas utilizadas por empresários e diretores artísticos e constatar que neles misturavam-se recursos da escrita e da oralidade perceptíveis na utilização de dispositivos tipográficos que tinham por objetivo conferir maior expressividade à palavra escrita e atingir uma ampla gama de leitores/observadores. Tais estratégias buscavam atrair espectadores num momento em que teatro e circo emergiam como meios de comunicação de massa em competição, ainda que nessa disputa o circo saísse favorecido, em função tanto dos preços mais acessíveis quanto dos próprios espetáculos, provavelmente mais atrativos por se encontrarem distantes da noção de palco como tribuna e escola de costumes tão prezada pelos críticos, dramaturgos e literatos da época. Porém, o mais instigante na análise dos anúncios é que por meio dela vislumbram-se possibilidades de pensar as experiências inéditas provocadas pela visualidade que levavam os espetáculos a começarem na mente do leitor/observador antes mesmo de acontecerem.

Se Noites circenses tornou-se referencial quando foi lançado, hoje se percebe de forma mais explícita quanto o trabalho antecipou questões que só posteriormente passariam a ser contempladas nos estudos sobre circo e teatro brasileiros que vêm sendo realizados levando em conta um processo que Christophe Charle denominou “primeira globalização cultural” (Charle, 2012, p. 29). Nos anos 1990, a autora já nos mostrava como as cidades mineiras foram incorporadas a um circuito de turnês e consideradas mercado potencial para diferentes indivíduos envolvidos com as artes a despeito das dificuldades que enfrentavam, tais como os deslocamentos em lombo de cavalos pelo interior do território. Apresentações de companhias como as do Circo Sul Americano, Grande Circo Estrela do Oriente e Circo Pery e Coelho; de atores de teatro como Andrea Maggi e Furtado Coelho; de atrizes como Ismênia dos Santos e Luiza Leonardo e dos prestidigitadores Kyj, Amarante, Peyres, Trajano Pires e Antônio Monteiro são testemunhos dessa intensa circulação artística pelas Minas Gerais.

Deste quadro esboçado em largas linhas, pode-se dizer que Noites circences revela de forma criativa, e sem abrir mão de uma análise histórica rigorosa, uma faceta pouco conhecida das artes do espetáculo nas Minas Oitocentistas e seu triplo papel de componente de subversão nas experiências culturais, casas de sonhos e instâncias de influências simbólicas que permitiram interações capazes de promover mudanças nos costumes, hábitos e códigos morais e difundiram novas representações e comportamentos da vida em sociedade que se tornariam comuns em fins do século XX.

Referências

BARROS, José D’Assunção. História cultural: um panorama teórico e historiográfico. Textos de História. v. 11, n. 1/2, p. 145-171, 2003. [ Links ]

CHARLE, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. [ Links ]

MELLO E SOUZA, Laura de. Artes na província. Folha de S. Paulo, Jornal de Resenhas,11 fev. 1996. Disponível em: http://jornalderesenhas.com.br/resenha/artes-na-provincia/. [ Links ]

SILVA, Ermínia. Noites Circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. História Social, Campinas: IFCH/Unicamp, n. 3, p. 205-210, 1996. [ Links ]

SOUZA, Silvia C. M. de. Gonçalves Dias: um crítico teatral dividido entre o teatro e o circo. História Social, Campinas: IFCH/Unicamp , n. 8/9, p. 105-128, p. 205-210, 2001. [ Links ]

VANUCCI, Alessandra (org.). Uma amizade revelada: correspondência entre o Imperador Dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de sua época. Rio de Janeiro: FBN, 2004. [ Links ]

Silvia Cristina Martins Souza –  Universidade Estadual de Londrina (UEL), Centro de Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, Londrina, PR, Brasil. [email protected].


DUARTE, Regina Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Fino Trato, 2018. 248p. Resenha de: SOUZA, Silvia Cristina Martins. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.39, n.82, set./dez. 2019Acessar publicação original

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1 comentário

  1. gigi em 16 de fevereiro de 2023 às 18:08

    Só hoje encontrei, por acaso, esta resenha de meu livro. Fiquei muito feliz com a avaliação tão positiva da obra, assim como a qualidade da escrita da resenha. Muito obrigada, Regina Horta Duarte.

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