Norberto Bobbio – Trajetória e obra | Celso Lafer

Tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista intelectual, é possível que não haja nome mais autorizado no Brasil para escrever sobre o filósofo italiano Norberto Bobbio quanto o jurista Celso Lafer, que conhece a obra do grande filósofo italiano como pouquíssimos no Brasil e cujos pontos de interseção com o mesmo não são pouco numerosos. Como o próprio autor lembra no texto de apresentação a Norberto Bobbio – Trajetória e obra (2013), Lafer conhecera Bobbio pessoalmente quando da vinda deste ao Brasil, em 1982, oportunidade em que o mesmo palestrou na UnB e na USP, além de oferecer algumas entrevistas a jornais do país. Desde então, uma singela amizade entre ambos permitiu que Lafer pudesse participar de eventos acadêmico-científicos ao lado de Bobbio, visitar seu apartamento, trocar cartas, conhecer seu maior discípulo Michelangelo Bovero (que escreve na contracapa da obra), além de – o que considero a honra maior – ter seu grande livro A reconstrução dos direitos humanos (1988), sobre o pensamento de Hannah Arendt, citado na introdução de L’età dei diritti (1990), uma das últimas grandes obras bobbianas.

A obra que aqui resenhamos colige a grande produção de textos esparsos escritos por Lafer sobre a pessoa e, especialmente, o pensamento de Bobbio entre 1980 e 2011, dividido em cinco partes, dedicadas aos temas “perfil”, “relações internacionais”, “direitos humanos”, “teoria jurídica” e “teoria política”. Uma característica marcante e preciosa da obra são as pequenas comparações entre o pensamento bobbiano e o pensamento arendtiano que são oferecidas ao longo de todos os textos. Como Bobbio (positivista) e Arendt (anti-positivista) se ignoraram intelectualmente em praticamente toda a sua produção intelectual, tal comparação soa como uma leitura especialmente (ou talvez mesmo exclusivamente) laferiana do pensamento de Bobbio; em outras palavras, um encontro que apenas Lafer poderia, pelo menos entre nós, proporcionar.

A primeira parte reúne o prefácio escrito ao livro De senectute (1996) e um artigo publicado em jornal sobre Autobiografia (1997), obras que o próprio Bobbio esclarecera em carta a Lafer se tratarem de uma espécie de sequência: a primeira tratando do tema da velhice; a segunda, uma autobiografia montada a partir de história oral coletada pelo jornalista Alberto Pappuzzi e revista por Bobbio. Sobre o primeiro livro, Lafer aborda os diversos temas relatados por Bobbio sobre sua vida e sua obra, lado a lado com a discussão dos diversos fatos políticos que o filósofo conhecera (da Primeira Guerra à Guerra do Golfo), classificando o pensamento bobbiano como “ilimunista-pessimista” e, recorrendo ao conceito arendtiano de “autoridade”, conclui que o pensamento liberal de Bobbio possui um “algo mais”. “O que se pode dizer – escreve – dessa filiação [liberal], do ponto de vista da construção pública de Bobbio? […] Bobbio, no meu entender, acrescentou à tradição liberal algo significativo que o diferencia de Croce e Einaudi. Esse algo, que é um ingrediente importante na construção de sua autoridade, expressa-se na postura de suas obras de cultura militante, como ele as qualifica, e enraíza-se na experiência breve, mas decisiva, de vita activa” (pp. 35-36). Sobre o segundo livro, Lafer aborda especialmente as atividades universitárias desenvolvidas por Bobbio, que destaca na autobiografia terem sido suas principais atividades ensinar e escrever. Da função de professor de filosofia de Direito, exercida em diversas universidades italianas, que o próprio filósofo distinguia em duas vertentes (teórica e histórica), Lafer lembra os diversos trabalhos dedicados à ciência do direito – L’indirizzo fenomenologico nella filosofia sociale e giuridica (1934 [primeiro livro]), L’analogia nella logica del diritto (1938 [tese de doutoramento]), Teoria della scienza giuridica (1950), Teoria della norma giuridica (1960), Il positivismo giuridico (1960-1961), Dalla struttura alla funzione (1977), etc. – e aqueles dedicados à história das ideias jurídicas – Diritto e Stato nel pensiero di Emanuele Kant (1957), Locke e il diritto naturale (1963), Thomas Hobbes (1989), L’età dei diritti (1990), etc. Da função de professor de Ciência Política, exercida especialmente na Universidade de Turim, inúmeras outras grandes obras poderiam ser lembradas. Dois temas bastante delicados ainda lembrados por Lafer serão as manifestações estudantis de maio de 1968 na Itália (que tiveram como um dos líderes estudantis o filho de Bobbio, Luigi Bobbio), que levaram Bobbio a um grande debate contra o democratismo autogestionário propugnado pelos estudantes, e a relação intelectual (e, em menor grau, pessoal), além da compreensível e importantíssima figura de Hans Kelsen – sobre a qual publicara Diritto e potere: Saggi su Kelsen (1954-1886 [escrita], 1992 [publicação]) –, com a figura maldita de Carl Schmitt, com quem Bobbio dividia não apenas a admiração por Hobbes, mas também a concepção realista da política como uma relação entre amigo-inimigo. Considerando Schmitt como uma “sombra” da “tentação demoníaca do poder”, Lafer escreve: “Bobbio, porque foi professor, viveu como professor e atuou politicamente por meio do debate com a sua autoridade de professor, não incide nesse risco” (p. 55)

A segunda parte traz quatro textos escritos sobre o pensamento internacionalista de Bobbio, sendo o primeiro uma conferência sobre Il problema della guerra e le vie della pace (1979), apresentada na UnB, no qual Lafer destaca o grande tema internacional analisado por Bobbio, a relação entre guerra e paz, e sua filosofia militante por um pacifismo ativo (especialmente na forma kelseniana da paz pelo direito), que se fundamenta na defesa do valor da paz, exposta em inúmeros textos. Depois de uma exposição das três matrizes jusnaturalistas do pensamento internacional moderno (Grócio, Hobbes e Kant), Lafer argumenta pela relação dupla de Bobbio entre as influências de Hobbes (especialmente sua concepção de anarquia internacional) e Kant (especialmente sua concepção de federalismo internacional): “Daí minha conclusão – escreve – de que, em última análise, Bobbio é um pacifista que vê a guerra como antítese do direito: um pacifista, no entanto, que não é um grociano idealista e que se viu marcado pelo realismo hobbesiano, sem, contudo, aceitar, seja a proposta da gramática da obediência de um Leviatã de alcance planetário, seja a anarquia do estado de natureza que compromete o papel positivo do direito como instrumento de delimitacao da força e do medo. É isso que aproxima Bobbio da visão kantiana” (p. 68). O segundo texto, publicado na imprensa, analisa a posição de Bobbio sobre a guerra do Golfo – que seria exposta na obra Una guerra giusta? (1991), infelizmente ainda não publicada em português. O texto discute a posição bobbiana sobre o conflito, descrito como uma guerra justa dos EUA (como protetor do Kwait) contra o Iraque, o que causou grande polêmica especialmente entre a esquerda antiamericanista italiana. O terceiro texto consiste no prefácio escrito ao livro Il terzo assente (1989), publicado no Brasil apenas duas décadas depois, postumamente, e que concebe as relações internacionais a partir da teoria do tertium non datur [terceiro não dado], considerado uma sequência de Il problema della guerra e le vie della pace (1979). Lafer faz um balanço, no âmbito do pensamento bobbiano, das obras anteriores sobre as relações internacionais, mencionando sua troca de cartas com o autor sobre a guerra do Golfo, a discussão da relação entre direito/poder e política/moral desde a teoria jurídica até a teoria política, a tensão entre os pensamentos hobbesiano e kantiano, a relação entre democracia e paz, a questão termonuclear, o modelo do contratualismo (pactum societatis/pactum subjectionis) para a reflexão sobre a ONU e, novamente, a defesa do princípio da paz por meio do direito. “Na tarefa de afirmar – escreve – uma ética do diálogo, Bobbio, em O terceiro ausente, exerce o papel do intelectual independente, que, segundo ele, agita ideias, levanta problemas, elabora programas, persuade ou dissuade, encoraja ou desencoraja, exprime juízos, aconselha, voltado para desatar os nós que impedem, no labirinto da convivência coletiva, os caminhos da saída bloqueada” (p. 116). No quarto texto, publicado em obra italiana sobre o pensamento bobbiano, em 2011, Lafer discute novamente as obras de relações internacionais de Bobbio, destacando os temas recorrente do filósofo italiano sobre o assunto: a relação entre a guerra e a paz, a defesa da paz, a questão nuclear, o pacifismo ativo, a ONU como tertium inter partes [terceiro entre as partes] (e não super partes ou juxta partes).

A terceira parte apresenta dois textos sobre a temática dos direitos humanos no pensamento bobbiano, sendo o primeiro uma introdução escrita para a edição brasileira de L’età dei diritti (1990) – obra em cuja introdução Bobbio citara o próprio Lafer –, em que se analisa a discussão sobre o jusnaturalismo como fundamentação dos direitos humanos e a análise da Frevolução Francesa em função desse mesmo tema, além dos textos bobbianos sobre a pena de morte, a resistência à opressão e a tolerância, todos tratados em função da passagem da sociedade ex parte principis (como são as sociedades absolutistas) para uma sociedade ex parte populo (como são as sociedades liberal-democráticas) “É o livro – afirma – da convergência dos temas recorrentes de Bobbio nos diversos campos de estudo a que se dedicou e, por isso mesmo, um livro explicitador da coerência que permeia sua trajetória de pensador” (p. 133). O segundo texto desta parte fora publicado na revista Cult em 2006, abordando os temas do preconceito e do racismo, presentes em obras como a citada L’età dei diritti (1990) e Elogio della mitteza (publicado originalmente pela revista Linea d’Ombrea, em 1994), mas focando especialmente – em função do que pode ser considerado o auge da comparação laferiana (descrita como “convergência”) entre Bobbio e Arendt – o texto “Quinze anos depois” (escrito em 1960, mas publicado no Brasil, na Revista USP, apenas em 2004), em que Bobbio analisa o tema do holocausto judaico, destacando, ainda, o emprego que o autor fizera das ideias de Bobbio, como amicus curiae [amigo do tribunal], na análise do caso Ellwanger junto ao STF.

A quarta parte da obra é composta por dois textos que abordam a teoria jurídica bobbiana, entre os quais o primeiro consiste no prefácio escrito para o livro Teoria dell’ordinamento giuridico (originado num curso homônimo oferecido no ano acadêmico de 1959-1960 – o qual, conjuntamente com o curso oferecido no ano acadêmico de 1957-1958, intitulado Teoria della norma giuridica e publicado como livro em 1960, seriam reunidos e publicados conjuntamente em 1993, com o título de La teoria generale del diritto), em que Lafer analisa o normativismo (distinção do fenômeno jurídico) e o positivismo jurídico bobbianos, entre outros temas correlatos, como as atividades de professor de filosofia do direito na Universidade de Turim, os cursos sobre história das ideias jurídicas e (os citados acima, incluindo ainda o curso oferecido no ano acadêmico de 1960-1961, com o título de Il positivismo giuridico, também publicado em livro posteriormente) sobre teoria geral do direito, estes especialmente inspirados no pensamento de Kelsen. Afirma o autor: “A filosofia do direito de Bobbio, como uma filosofia do direito sub specie juris, é uma admirável expressão da razão jurídica, voltada para ecslarecer as operações intelectuais e práticas na criação do direito e na aplicação do direito” (p. 168). O segundo texto, por sua vez, consiste na apresentação da obra Dalla struttura alla funzione (1977), que consiste na obra que opera a formidável abertura do pensamento bobbiano para a sociologia jurídica, como uma ponte entre Kelsen e Weber, absorvendo a importante distinção hayekiana entre “normas de comportamento” e “normas de organização” e contendo ainda um estudo sobre Tullio Ascarelli, jurista italiano que teria grande influência no direito brasileiro.

A quinta parte, por fim, é composta por seis textos que tratam da teoria política bobbiana, começando pelo prefácio escrito ao primeiro livro de Bobbio publicado no Brasil, em 1980, La teoria delle forme di governo nella storia del pensiero político (publicado originalmente em 1976 e originado do curso oferecido no ano acadêmico de 1975-1976), no qual Lafer empreende uma introdução ao pensamento jurídico-político do filósofo, iniciando pela apresentação do normativismo bobbiano e as relações entre filosofia do direito e filosofia política e desembocando na teoria da democracia bobbiana, a embute uma preferência axiológica pela democracia, encerrando uma crítica ético-política – presente desde Quale socialismo? (1976) – baseada na análise do sujeito (quem governa?) e do exercício (como governa?) do poder, contrária especialmente à teoria política marxista, baseada exclusivamente na análise do sujeito do poder em detrimento do tema da distinção entre bom governo e mau governo. Os segundo e terceiro textos cosistem em resenhas escritas para as obras Stato, governo e società (1985, com textos extraídos da Enciclopédia Einaudi), discutindo os critérios metodológicos bobbianos (descritivo, axiológico e histórico), e Thomas Hobbes (1989), publicado por razão da comemoração dos 80 anos de Bobbio. O quarto texto trata-se do prefácio escrito à obra organizada e publicada exclusivamente no Brasil Três ensaios sobre a democracia (1991), abordando diversos temas ligados à democracia, como a racionalidade, a não-violência, a regra da maioria, os direitos individuais fundamentais, a necessidade de transparência (contra os arcana imperii) e a democracia no sistema internacional (num texto que seria republicado novamente em inúmeras outras coletâneas com o nome do filósofo), sendo destacados os métodos democráticos, que permitem – frase repetida ao longo de vários textos laferianos – “contar cabeças e não cortar cabeças”. O quinto texto consiste numa conferência oferecida em 2007, tratando justamente do tema da relação entre democracia e relações internacionais, discutindo as relações entre direito, razão, paz e direitos humanos e a influência da teoria da paz do sociólogo francês Raymond Aron sobre Bobbio, todos temas discutidos em função do cenário internacional contemporâneo do pós-11 de setembro de 2001 e da comparação entre o decisionismo schmittiano e o pacifismo jurídico kelseniano. A conclusão apresentada é a seguinte: “Bobbio […] entende que o único salto qualitativo da história – possível, mas não necessário – é o da passagem do reino da violência para o da não violência” (p. 231). Finalmente, o último texto consiste no prefácio à recentemente publicada no Brasil conferência bobbiana “Qual democracia?” (1959), em que Lafer tenta novamente abalizar a ampla produção bobbiana sobre o tema da democracia, terminando por afirmar: “O resultado dessa dimensão do percurso bobbiano foi uma constelação de trabalhos de límpida reflexão, arguta análise e profundidade de pensamento que abrem caminhos para o bom governo da convivência coletiva” (p. 241).

São inúmeras as qualidades da obra de Lafer, desde a rica coletânea de fotos de Bobbio (incluindo uma com Lafer) presente em suas páginas até passagens que discutem com profundidade pouco conhecida o pensamento bobbiano, assim como pode ser considerado que o formato da obra (uma coletânea de prefácios e textos gerais de divulgação do pensamento bobbiano) não a torna imune à repetição. Todavia, frente aos inúmeros trabalhos que se vêm acumulando no Brasil de estudos especializados sobre o pensamento bobbiano, com recortes muitas vezes muito justos, o livro de Lafer tem a inaudita qualidade de ser um livro bastante abrangente, capaz de dar conta em grande medida das inúmeras dimensões do pensamento bobbiano – da história das ideias à filosofia, da ética à política, do direito às relações internacionais, etc. – sem redundar sintomaticamente em discussões desconexas, superficiais ou excessivamente genéricas. Indubitavelmente, a autoridade de um estudioso que realmente conhece em profundidade o pensamento bobbiano (e inclusive suas fontes) e que certamente fora até aqui o maior divulgador do pensamento bobbiano no Brasil convergem para a gênese de um livro cujos textos, se não são inéditos, ganham certamente uma nova dimensão – penso que justamente a dimensão da abrangência – quando publicados agora conjuntamente.


Resenhista

Rafael Salatini – Doutor em Ciência Política – FFLCH-USP Professor de Ciência Política – Unesp-Marília. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CELSO, Lafer. Norberto Bobbio – Trajetória e obra. São Paulo: Perspectiva, 2013. Resenha de: SALATINI, Rafael. Um leitor brasileiro de Bobbio. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.2, n.4, p.367-375, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]

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