Novos paradigmas de desenvolvimento para a América Latina: (re)emergência étnica e resistência indígena no tempo presente | Revista Transversos | 2022

Servico de Protecao aos Indios. Criancas Parintintins ouvindo gramofone Posto Antonio Paulo 1926 Imagem Arquivo Nacional
Serviço de Proteção aos Índios. Crianças Parintintins ouvindo gramofone, Posto Antônio Paulo, 1926 | Imagem: Arquivo Nacional

A urgência de um debate sobre o modelo de desenvolvimento implementado na América Latina vem sendo pautada por movimentos sociais com liderança dos povos originários. Esses movimentos têm alcançado recentemente plataformas políticas importantes, fazendo com que as pautas dos movimentos étnicos estejam na ordem do dia em toda a América Latina. O processo de formação de uma nova Constituinte no Chile, em especial, vem mostrando as possibilidades de aplicação do pensamento anti-colonial e decolonial na política a partir da defesa de um novo modelo econômico e de sociedade baseado na ideia do bem viver. Além disso, no Brasil os povos originários vêm sendo importantes atores políticos a evidenciar o esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico baseado apenas na exploração do meio ambiente.

O processo de (re)emergência étnica consiste em elemento central na configuração do atual cenário político latino-americano. Embora desde meados da década de 1950 muitos Estados republicanos tenham incorporado os indígenas formalmente à categoria de “cidadãos”, tal mudança baseou-se a princípio na conversão destes em mestiços e/ou em sua assimilação à cultura ocidental capitalista. O surgimento de movimentos sociais de base étnica voltados ao questionamento das características monoétnicas, monoculturais, excludentes e racistas dos países da América Latina é algo mais recente, remontando a meados da década de 1970. Ao lançar luz sobre a permanência das estruturas coloniais de dominação, passam a relativizar os verdadeiros alcances obtidos pelas independências e pelo processo de formação dos Estados nacionais no continente. Desde então, questionam os discursos de poder legitimadores da dialética “colonizador-colonizado”, elaboram discursividades próprias, que se distanciam do caráter universal reivindicado pela história ocidental, e buscam a recuperação de modelos organizativos ancestrais, que também sejam reconhecidos e englobados pela política institucional ocidental.

No Tempo Presente, mesmo em contextos de crise democrática, são os setores indígenas de países como México, Colômbia, Bolívia, Peru, Equador, Chile e Brasil que continuam vislumbrando em seu horizonte de expectativas a descolonização, o respeito à diferença, a conquista da autodeterminação, o estabelecimento do autogoverno popular e, ao fim e ao cabo, a superação da subalternização.

Como não poderia deixar de ser, a História enquanto disciplina acadêmica que é também produto de seu próprio tempo tem acompanhado essa (re)emergência étnica que acontece no cenário político, seja a partir da incorporação cada vez maior desses atores sociais às Universidades, seja a partir de estudos que mobilizam conceitos e ideias da decolonialidade para pensar criticamente a forma como a história dos povos originários vem sendo escrita. Repensar essa história e abrir espaço para novas discussões foi o impulso que nos motivou à organização deste Dossiê, que conta com seis artigos que refletem como a (re)emergência étnica e a resistência indígena têm sido pensadas dentro do meio acadêmico. Além dos artigos, a Revista também traz em sua 25ª edição um artigo publicado na sessão de experimentações e uma entrevista, que dialogam com o tema proposto em nosso Dossiê.

O artigo de Poliene Soares dos Santos Bicalho apresenta um questionamento mais teórico sobre o movimento indígena em comparação com outros movimentos sociais. A autora se propôs a discutir as especificidades do movimento indígena desenvolvido no Brasil a partir dos anos de 1970, que fazem com que este não possa ser entendido apenas pela lógica da luta de classes. Partindo também de uma reflexão sobre a constituição do movimento indígena no Brasil, o artigo de Luciana Eliza dos Santos, Beatriz Magalhães de Castro e Alexandre Anselmo dos Santos utiliza a metodologia da História Comparada e Conectada para pensar os intercâmbios culturais do movimento indígena no Estado do Acre com os países vizinhos. Os autores fazem uma investigação sobre a permanência de práticas culturais de linguagem híbrida naquela região.

Os artigos de Breno Luiz Tommasi Evangelista, João Gabriel da Silva Ascenso e Alex Bruno Feitoza Magalhães se complementam e podem ser lidos como uma espécie de linha do tempo sobre o desenvolvimento da questão indígena no Brasil a partir de uma perspectiva político-institucional. O texto de Breno Luiz Tommasi apresenta como o Estado brasileiro tratou da questão indígena em dois momentos específicos a partir de dois organismos oficiais: o Serviço de Proteção aos Indígenas criado na Primeira República e a Fundação Nacional do Índio criada durante a Ditadura Militar Brasileira. É possível perceber continuidades e rupturas nesse processo e pensá-lo no longo prazo, trazendo as questões levantadas pelo autor para o momento de hoje. Já o artigo de João Gabriel Ascenso discute a relação entre o Estado brasileiro e o movimento indígena durante os anos de 1970, partindo de duas figuras centrais da época e que também representam o processo de institucionalização do movimento: os vereadores Ângelo Cretã e Jair de Oliveira. Tratando de um contexto mais recente, o artigo de Alex Bruno Feitoza Magalhães debate um tema bastante atual – os processos de Justiça de Transição à luz do movimento indígena -, estabelecendo os limites destes para lidar com a violência cometida contra os Aikewara no Brasil. O autor discute ainda como os parâmetros da justiça transicional são em sua maioria parâmetros colonialistas e que muitas vezes deixam de fora perspectivas que saem desse lugar-comum.

Por fim, a contribuição de Bruno Azambuja Araujo para o Dossiê nos permite deixar o contexto brasileiro e pensar experiências de mobilização indígena em um Estado plurinacional, como é o caso da Bolívia. Dialogando com uma perspectiva decolonial, o autor discute a experiência da Escuela-Ayllu de Warisata, procurando destacar como a proposta educacional da Escola contou com a participação ativa dos setores indígenas locais.

O artigo de Danielle Freire da Silva e a entrevista realizada por Alessandra Seixlack que finalizam essa edição da Revista também contribuem enormemente para a discussão do tema proposto, trazendo a experiência chilena para o debate. As autoras abordam o movimento mapuche em momentos diferentes: Danielle da Silva partindo da relação deste com o governo de Salvador Allende e a pesquisadora Alessandra Seixlack realizando uma entrevista com Ricardo Olave, que através das mídias digitais desenvolve um trabalho de divulgação, de produção intelectual e de resistência mapuche na contemporaneidade.

Os artigos e a entrevista que compõem essa edição da Revista Transversos consistem em importantes fontes de pensar a (re)emergência étnica, os movimentos indígenas, suas temporalidades e suas epistemologias. A discussão da História Indígena no Tempo Presente nos permite abrir portas para uma nova escrita da História, que rompa de forma definitiva com os paradigmas colonialistas, que muitas vezes ainda pautam o nosso exercício historiográfico.


Organizadores

Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack – Possui Pós-Doutorado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Adjunta de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A investigação desenvolvida no Doutorado versa sobre a relação entre os mapuche e os Estados nacionais argentino e chileno durante o processo de imposição de sua territorialidade, em fins do século XIX. Atualmente, desenvolve pesquisas voltadas para o diálogo entre a história e as epistemologias indígenas e para a análise da produção intelectual mapuche na contemporaneidade. Coordenadora do Projeto Prodocência UERJ “Descolonizando o conhecimento. Contribuições indígenas e africanas para um novo olhar sobre a História”.

Fernando Luiz Vale Castro – Professor Associado de História da América da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Pós-Graduação em História Social (PPGHIS- UFRJ), do Programa de Pós -Graduação em História Comparada (PPGHC- UFRJ) e do Mestrado Profissionalizante em Ensino de História (Prof HIst. UFRJ). Pesquisador do PEA (Programa de Estudos Americanos) da UFRJ. Desenvolve pesquisas sobre intelectuais latino-americanos que pensaram projetos nacionais e continentais nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, com destaque para as diferentes formulações sobre o conceito de raça. Seus estudos também versam sobre o indigenismo no Canadá.

Lays Corrêa da Silva – Professora Substituta de História Contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em História Social do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS/UFRJ) com bolsa CAPES e Mestre em História Social (PPGHIS/UFRJ). Pesquisadora do grupo de pesquisa certificado pelo CNPq “Núcleo de História Oral e Memória (TEMPO/UFRJ)” e colunista do site “História da Ditadura”. Desenvolve pesquisas sobre o papel dos intelectuais no processo de transição política no Chile, Justiça de Transição e Comissões de Verdade. Possui estudos voltados também para a análise da relação entre os mapuche e o Estado contemporâneo chileno.


Referências desta apresentação

SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho; CASTRO, Fernando Luiz Vale; SILVA, Lays Corrêa da. Apresentação. Revista Transversos. Rio de Janeiro, n. 25, p. 6-10, 2022. Acessar publicação original [DR]

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