O arquivo e o lugar: custódia arquivística e a responsabilidade pela proteção aos arquivos | Margareth da Silva

O livro O arquivo e o lugar é resultado da tese de doutorado da professora Margareth da Silva, defendida na Universidade de São Paulo, e tem reflexões muito oportunas a partir de sua atuação como arquivista no Arquivo Nacional, e professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense. A tese preenche uma lacuna com relação às discussões epistemológicas na arquivologia, em particular sobre as questões conceituais que envolvem a custódia, o arquivo e os marcos teóricos da área.

Silva (2017) apresentou como problema as relações que envolvem o arquivo e o seu lugar de custódia. Quanto à metodologia, é uma pesquisa exploratória, em que arquivo e custódia são analisados como termos de forma interdisciplinar, envolvendo a arquivologia, o direito e as tecnologias da informação e comunicação, além do levantamento da trajetória histórica dos arquivos.

A professora participou da Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos (CTDE), associada ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), sempre preocupada com o lugar dos documentos digitais, sua preservação, autenticidade e fidedignidade. O trabalho de pesquisa se justifica por refletir os impactos e os desafios das tecnologias da informação nos arquivos, nas instituições arquivísticas e nos arquivistas, no que dizem respeito às relações entre arquivo e custódia.

No primeiro capítulo, “A custódia como guarda e proteção aos arquivos”, a autora buscou enfocar os aspectos etimológicos, da origem e evolução das palavras, com base em dicionários de arquivologia e jurídicos, como uma metodologia de trabalho para analisar os termos, os significados e as relações entre eles. Em dicionários e léxicos nacionais e internacionais foram analisados os termos custódia e custodiador e discutidos outros termos que orbitam em torno destes, como vigilância, proteção, guarda, cuidado, preservação e segurança. Foram produzidas nuvens de termos para dar maior visibilidade da reflexão ao leitor.

No segundo capítulo, “O arquivo como lugar e conjunto orgânico de documentos: uma abordagem etimológica”, foi abordado o termo arquivo, assim como o conceito de custódia foi analisado no capítulo anterior, baseado em léxicos e dicionários nacionais e internacionais, buscando refletir a amplitude e especificidade do termo no tempo e no espaço.

No terceiro capítulo, “O lugar e a concepção jurídica de arquivo”, a autora buscou o conceito e a trajetória dos arquivos desde a Grécia antiga, passando pelo direito romano, pelo entendimento do modelo de arquivo como um lugar – concepção adotada pelo direito medieval e moderno –, dando destaque para o Código de Justiniano, do século VI, utilizado pelos juristas medievalistas e modernos. Foram consultados autores como Brenneke (1968) e Duranti (1994). Os arquivos evoluíram na Idade Medieval e Moderna, levando em consideração as monarquias, o Tresór de Chartres, a centralização política e a centralização dos arquivos.

No quarto capítulo, “A formação dos arquivos centrais de Estado e a dicotomia entre arquivos administrativos e arquivos históricos”, aborda-se como os arquivos foram institucionalizados e vinculados aos soberanos nos séculos XVI e XVIII, surgindo a formulação do princípio da territorialidade e a indivisibilidade dos arquivos. De arquivos administrativos passaram a arquivos históricos no século XIX, em período pós-revolucionário. Esses fatos corroboraram para as definições de arquivos naquele século e no século XX, em particular na definição de custódia e de arquivo. Foram escolhidos pela autora os teóricos Hilary Jenkinson (1922) e Schellenberg (2006) para a análise e reflexão de pensamento quanto a esses termos.

O quinto capítulo, “Arquivos sem muros e arquivos como lugar”, analisa como a revolução e o ambiente da tecnologia vem impactando o mundo dos arquivos. Discute-se o valor de prova e o vínculo do documento arquivístico digital, quais as diferenças encontradas na realidade dos documentos digitais, como se dá o documento arquivístico digital como objeto na nossa área de conhecimento e a preservação pelo órgão produtor ainda na fase corrente.

A autora analisou as dimensões arquivísticas do pré-paradigmático, paradigmático, e pós-paradigmático. Silva (2017) se utilizou desses marcos teóricos por intermédio de Thomassen (1999) para afirmar que a arquivologia não se constituía em ciência antes do Manual dos arquivistas holandeses, de 1898, que se encontrava num estágio pré-paradigmático, numa ambiguidade de conceitos com a diplomática e a administração. Considerou-se que a diplomática naquela ocasião estava mais preocupada com a análise crítica do documento para os historiadores, contudo, para a administração, havia maior preocupação com a descrição das séries e itens e o objetivo era promover a consulta aos documentos.

O período paradigmático, ou da arquivologia clássica, atinge marcos teóricos, como o do Manual dos arquivistas holandeses, que viu no fundo documental e no conjunto documental os objetos da arquivologia; passando por Hilary Jenkinson, nos anos de 1920, com o seu Manual de documentos administrativos, o qual assinalou características da área como autenticidade, imparcialidade, organicidade e unicidade. Ainda no período paradigmático, destacamos Theodore Roosevelt Schellenberg, nos anos de 1940 e 1950, com as teorias das três idades documentais, do ciclo vital de documentos e da gestão de documentos.

A obra A estrutura das revoluções científicas, elaborada por Thomas Khun (1988), vem sendo utilizada por teóricos da arquivologia, assim como Fonseca (2005) e Silva (2017), influenciando na ruptura de paradigma atualmente na área. No período pós-paradigmático, pós-custodial e pós-moderno representado por autores como o inglês Hugh Taylor (1987), o canadense Terry Cook (2001) e Thomassen (1999), ocorreu o questionamento do princípio da proveniência documental de forma tradicional e iniciou-se um conceito de gestão de processos ou de processos de negócios, resguardando o contexto dos metadados envolvidos em transações. As concepções canadenses e australianas de arquivologia foram revolucionárias, pois acarretaram novos olhares para os impactos das tecnologias da informação nos princípios e funções arquivísticas, tais como a classificação, a avaliação, a destinação, a descrição e a difusão de informações. Derrida (2001) relacionou os arquivos ao poder e à sociedade. Na Antiguidade clássica, somente os arcontes dominavam a linguagem, a interpretação e a guarda dos documentos nos arquivos.

Nas considerações finais, a autora retoma os pontos que inspiraram sua pesquisa, ou seja, o impacto da revolução tecnológica, a crítica dos autores da corrente de pensamento pós-custodial com relação à custódia para garantir a preservação dos documentos digitais, e as mudanças ocorridas no registro e na documentação produzidas por indivíduos e organizações. Houve uma grande mudança, pois do foco nas instituições arquivísticas, passou-se para uma atenção aos produtores que estão se utilizando das ferramentas tecnológicas e, consequentemente, aos usuários. O arquivista passou a ser um mediador entre os produtores e os usuários, que devem ser familiarizados em sistemas de informação mais complexos. Silva (2017) ficou preocupada em definir a custódia e os arquivos, considerando que a maioria dos dicionários e léxicos utilizados na pesquisa revelou maior definição para lugar do que para conjunto de documentos, e os dicionários jurídicos enfatizaram o local de conservação como essencial. Constatou-se uma polissemia nos estudos etimológicos ligados ao termo arquivo, com as definições de instituição, móvel ou fundo documental, a trajetória dos arquivos, suas diversas formas, aspectos materiais, o lugar de conservação e custódia nos arquivos.

Na Antiguidade clássica o termo arquivo era Archeion, mas o que deu o sentido de lugar público de conservação e acesso foi a definição de arquivo oriunda do direito romano, que presumia que eram autênticos os documentos ali conservados. Os arquivos centrais surgiram na Grécia e em Roma, e não na Revolução Francesa, relacionados a regimes democráticos que davam acesso aos documentos. O sistema de registro de documentos surgiu na Roma antiga e se disseminou pelo mundo, influenciando o conceito de protocolo para conceito de arquivo e, ainda, o de vínculo arquivístico na Itália. O direito romano fixou a definição de arquivo como lugar público de conservação, agregando a instituição da fé pública e o Tabularium, que significa que pertencia ao povo romano.

No período da Idade Moderna, observou-se a centralidade das monarquias absolutas e consequentemente dos arquivos para servirem administrativamente aos soberanos. Dessa forma, vimos os efeitos da centralização de documentos em arquivos, com alguém de confiança do monarca tomando conta dos depósitos. A autora aborda a transversalidade do conceito de custódia e a concepção do arquivo como lugar, levando a reflexões sobre princípios como o da territorialidade, sistemas de registro e de arquivo, com a observação sobre os níveis de custódia, chegando até os arquivistas do século XX da Europa e da América.

Houve a mudança na dimensão dos arquivos, em função de órgãos extintos e fundos fechados nos arquivos centrais do Estado, após o período revolucionário do século XVIII e início do XIX. No século XX, Jenkinson (1922) se preocupou com o foco no órgão produtor após o uso primário dos documentos, com o risco de se perderem ou serem desmembrados do conjunto documental, e com a fixação de conceitos que impedissem a mistura dos fundos custodiados.

A visão dos teóricos pós-custodiais posicionou-se contra a visão de Jenkinson (1922), por ser considerada obsoleta, em função das particularidades dos documentos digitais. Características dos documentos de arquivos como imparcialidade e autenticidade tornaram-se irrelevantes. Os arquivistas passaram a ter uma intervenção controlada no nível da produção documental, fazendo com que os documentos não fossem para a custódia arquivística tradicional nas instituições públicas. Para os pós-custodialistas, a preservação é contínua, pois começa no produtor. A segurança do preservador não reside somente nas instituições arquivísticas públicas, ainda que os pós-custodialistas considerem os valores culturais.

Na pesquisa de Silva (2017) constatou-se que ao lado das questões jurídicas encontram-se as questões tecnológicas em diversos autores, como se o conhecimento arquivístico dependesse do suporte físico do documento e de sua dimensão material. A autora continuou suas reflexões finais na direção de reiterar o foco no núcleo teórico sobre os conceitos, princípios, características e métodos arquivísticos, que não podem ficar submetidos às questões momentâneas das tecnologias e de suas soluções; envolvendo metadados em planos de classificação, tabelas de temporalidade, prazos de guarda, e requisitos que mantenham o vínculo arquivístico no ciclo de vida dos documentos e a sua autenticidade documental. Conforme Silva (2017, p. 267) “[…] a preservação e o acesso se entrecruzam com várias questões, como a revolução tecnológica, a ampliação das reivindicações democráticas por transparência do Estado e, portanto, uma maior exigência de acesso e uso dos documentos”. Finalmente, a autora afirma que os arquivos estão inseridos no presente, e não no passado e nem no futuro. A dimensão do presente não é somente para atender às necessidades burocráticas, mas os arquivos são voltados para a cidadania através do acesso à informação.


Referências

ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS HOLANDESES. Manual de arranjo e descrição de arquivos. Tradução de Manoel Adolpho Wanderley. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1973. 136 p.

BRENNEKE, Adolf. Archivistica: contributo alla teoria ed alla storia archivistica europea. Traduzione italiana de Renato Perrela. Milano: Antonio Guifrfré, 1968. 665 p.

COOK, Terry. Archival Science and Posmodernism: New Formulations for old Concepts. Archival Science, v. 1, n. 1, p. 3-24, 2001.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 130 p.

DURANTI, Luciana. Registros documentais contemporâneos: como provas de ação. Trad. Adelina Novaes Cruz. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 49-64, 1994.

FONSECA, Maria Odila Kahl. Arquivologia e ciência da informação. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 124 p.

JENKINSON, Hilary. A Manual of Archive Administration Including the Problems of War Archives and Archive Making. Oxford: Oxford University, 1922. 243 p.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. de Beatriz Viana Boeira e Nelson Boeira. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. 257 p.

SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. Trad. Nilza Teixeira Soares. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 380 p.

TAYLOR, Hugh. Transformation in the Archives: Technological Adjustment or Paradigm Shift. Archivaria, n. 25, p. 12-28, Winter, 1987-1988.

THOMASSEN, Theo. The Development of Archival Science and its European Dimension. In: Seminar for Anna Christina Ulfsparre. Stockolm: Swedish National Archives, February 1999.


Resenhista

Rosale de Mattos Souza – Doutora em Ciência da Informação (UFRJ-Ibict) e professora adjunta do Departamento de Estudos e Processos Arquivísticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).


Referências desta Resenha

SILVA, Margareth da. O arquivo e o lugar: custódia arquivística e a responsabilidade pela proteção aos arquivos. Niterói: Eduff, 2017. Resenha de: SOUZA, Rosale de Mattos. Transversalidades entre o arquivo e a custódia: as mudanças de paradigmas na arquivologia. Acervo. Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p. 116-120, set./dez. 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.