Corpo em trânsito: ensaios sobre imagem/memória e cidade | Andréia Casa Nova Maia

O livro Corpo em trânsito, publicado pela editora Telha, no Rio de Janeiro, tem origem no curso de pós-graduação Memória, História e Patrimônio, ministrado por Andréa Casa Nova, professora de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o doutorando Wladimyr Sena Araújo, no contexto da crise sanitária global do SARS-CoV-2. Os organizadores possuem formação na área da história, mas com interesses bastante diversificados. Andréa Casa Nova Maia chefia o laboratório Imagem, Metrópole, Arte e Memória (Imam), assim como participa do Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho (Lehmt), ambos na UFRJ. Em suas pesquisas atuais, trabalha com história e imagem, circulação de ideias e cultura visual, arte urbana e movimento operário. Wladimyr Sena Araújo possui graduação em história pela Universidade Federal do Acre, fez especialização em artes cênicas, mestrado em antropologia social pela Unicamp e, no momento da escrita desta resenha, é doutorando na UFRJ.

Popularmente conhecida como Covid-19, a doença tirou a vida de muitas pessoas ao redor do mundo, sendo o Brasil muito afetado pela pandemia, dada a emergência sanitária conjugada com a irresponsabilidade de autoridades públicas. Nesse contexto, os cursos de pós-graduação estavam experimentando, por necessidade e de maneira improvisada, sua versão virtual. Assim, no ano em que o livro estava sendo produzido, as aulas virtuais foram um desdobramento das medidas preventivas de distanciamento social, isolamento e quarentena devido à pandemia. Em meio a incertezas e traumas, surgia uma nova possibilidade de diálogo, visto que aquela modalidade possibilitou encontros até então muito difíceis de se concretizarem, mas também bastante desejados. As aulas virtuais estreitaram as fronteiras continentais do Brasil, possibilitando uma troca de saberes, olhares e pesquisas entre os programas de pós-graduação, e desse encontro surgiu a presente coletânea, composta por dezesseis textos de mestrandos e doutorandos que participaram do curso, além do artigo introdutório escrito pelos organizadores. Leia Mais

Cidade expandida: estudos sobre o esporte nos subúrbios cariocas | Victor Andrade de Melo

O livro Cidade expandida: estudos sobre o esporte nos subúrbios cariocas apresenta uma original pesquisa sobre a prática de esportes nos subúrbios do Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e meados do século XX. Seu autor, Victor Andrade de Melo, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um experimentadíssimo pesquisador da história dos esportes, com mais de 257 artigos e 80 livros publicados. Quando um pesquisador experiente, com uma carreira consolidada e autor de uma produção acadêmica tão prodigiosa destaca o próprio livro como o “projeto de pesquisa mais feliz, mais engajado, mais significativo” (p. 13), convêm examiná-lo com atenção.

O primeiro capítulo do livro apresenta um arcabouço histórico e teórico de alguns dos principais tópicos que presidirão os seguintes, dedicados, cada um deles, à análise de seis circunstâncias mais específicas, como logo veremos. Em última instância, conforme se apresenta já nesse primeiro capítulo, o propósito mais geral do livro é analisar a história da urbanização do Rio de Janeiro. Todavia, tal empreendimento se realiza a partir de um ponto de vista original, que é aquele oferecido pelo estudo da prática de esportes nos subúrbios da cidade. Leia Mais

Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823) | Hélio Franchini Neto

Helio Franchini Neto Imagem Atelie Editorial
Hélio Franchini Neto | Imagem: Ateliê Editorial

Em meio às reflexões levantadas pelo bicentenário da Independência, é momento de voltarmos aos clássicos produzidos pela historiografia acerca do tema e, sobretudo, promover o diálogo destes com as interpretações mais recentes que reconstituem o processo de Independência por meio diferentes abordagens. Dentre as novas propostas de análise elaboradas nos últimos anos, cabe destacar Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil, 1821-1823, fruto da tese de doutorado em História elaborada por Helio Franchini Neto. Diplomata de carreira, o autor nos contempla com uma abordagem historiográfica que pretende inserir o componente militar no contexto da produção acadêmica que privilegia a reavaliação do processo de Independência do Brasil desde os conflitos ocorridos a partir de 1822.

A obra resenhada em questão conta com prefácio de Francisco Doratioto e é dividida em oito capítulos, acrescidos de conclusão, apêndice e bibliografia. Dentre muitos objetivos, é necessário salientar que o livro busca alertar o leitor, desde sua introdução, acerca de dois grandes aspectos. O primeiro deles versa sobre a necessidade de se romper com o mito de um processo de Independência feito de forma pacífica, destacando as dificuldades de se consolidar o projeto de Estado-nação após a emancipação. As bases para tal resistência nos levam a um segundo aspecto que o autor persegue ao longo de toda sua pesquisa: a importância dos contextos políticos regionais no processo de emancipação. A participação das diferentes regiões do território brasileiro nos conflitos é ponto primordial para o autor, ao caracterizar os diversos interesses que estavam em jogo durante o período no qual as localidades precisaram, então, optar pela adesão a um dos polos políticos que disputavam a centralidade do poder: Lisboa e Rio de Janeiro.

A pesquisa empírica desenvolvida pelo autor merece destaque. Com o intuito de recuperar os registros das batalhas ocorridas entre 1822 e 1823, Franchini Neto lança mão de um amplo conjunto de fontes, composto, entre outros acervos, por documentos presentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, além da documentação dos arquivos das Forças Armadas brasileiras, da Biblioteca Nacional, bem como o acervo do Arquivo Nacional. Além dessas fontes, cabe salientar que, buscando revelar os indícios de um processo de emancipação permeado pela instabilidade, a obra fornece ao leitor um levantamento primoroso sobre os conflitos e a mobilização militar do período por meio da imprensa e dos arquivos diplomáticos do Brasil, da França e da Áustria, por exemplo. O arcabouço de fontes foi também enriquecido com as correspondências diplomáticas referentes ao Reino Unido e aos Estados Unidos.

Vale ainda ressaltar que o trabalho com a documentação primária abarca também as regionalidades, trazendo à tona documentos importantes para a compreensão das realidades locais, contribuindo, assim, com as interpretações historiográficas que primam pela participação das províncias no processo político da Independência.

Ao longo do texto, o leitor tem acesso a um importante diálogo com pesquisas consolidadas que, no decurso dos anos, nortearam a historiografia sobre a problemática da Independência. Nas mais de seiscentas páginas da obra, evidencia-se o debate enriquecedor com autores primordiais para a compreensão do contexto, como José Murilo de Carvalho, Lucia Bastos, Marcello Basile, João Paulo Pimenta, Evaldo Cabral de Mello, István Jancsó, Hendrik Kraay, entre muitos outros estudiosos da área que igualmente merecem destaque. É em meio a essa ampla rede de historiadores que Franchini Neto se coloca a contribuir com a vasta produção acadêmica já existente na área, visando, sobretudo, ampliar as reflexões sobre a potencialidade do papel da guerra na manutenção da unidade territorial e política em um cenário repleto de conflitos.

No primeiro capítulo, intitulado “O Brasil de 1822”, o autor destaca o contexto histórico que precede o processo da Independência, e ressalta a ideia de uma pluralidade de projetos políticos para o Brasil naquele cenário, bem como as dificuldades de uma administração centralizada, apesar da vinda da corte em 1808 (Franchini Neto, 2019, p. 31). Um ponto importante do capítulo é trazer à tona a multiplicidade de vivências em todo o reino, fato que impactou a forma como as diferentes localidades lidavam com Lisboa. Para o autor, tal indicativo se faz essencial para compreender até mesmo as reações distintas das regiões após a proclamação. Em meio a tal reflexão, Franchini Neto aponta ainda a presença de certa heterogeneidade acerca dos debates sobre variados projetos políticos e sobre o futuro do reino naquele período (p. 47). Ao fim do capítulo, destaca-se que a diferença da experiência histórica em âmbito regional fez emergir também perspectivas díspares entre o norte e o sul do país com relação à disputa que se colocaria logo em seguida entre Rio de Janeiro e Lisboa.

Em “A Constituinte luso-brasileira”, segundo capítulo da obra, torna-se possível compreender os limites e as contradições do vintismo por meio das reflexões do autor, que exaltam, detalhadamente, as formas múltiplas pelas quais o movimento fora sentido e recebido no plano interno e internacional. Para essa última análise, é importante destacar o debate que se vislumbra no texto a partir do diálogo entre alguns importantes documentos da época, como os registrados na obra de Varnhagen, junto a diversos documentos diplomáticos, que ressaltam as divergências que permearam o movimento vintista. Tais fontes levantadas pelo autor nos apresentam, desse modo, uma narrativa que traduz os bastidores do vintismo pelos olhares de representantes diplomáticos e suas preocupações com a instabilidade política entre Brasil e Portugal. Entre os documentos investigados, as correspondências e ofícios obtidos em arquivos britânicos e americanos nos indicam nuances até então não problematizadas sobre este contexto (Franchini Neto, 2019, p. 66).

As divergências em torno da recepção do movimento no reino, explicitadas por Franchini Neto, se consolidam a partir da relação direta com o modo pelo qual as localidades interagiam com Lisboa e com o Rio de Janeiro. É nesse ponto da investigação que a Bahia emerge como pano de fundo e cenário profícuo para grandes discussões e conflitos, em meio ao processo de emancipação que iria se desenrolar nos meses posteriores. A Bahia, nesse sentido, consolida, nas premissas do autor, a ideia de heterogeneidade no seio das elites regionais, indicativo levantado frequentemente na obra. A mesma variação de comportamento também é visualizada no momento em que Franchini Neto discute o posicionamento dos deputados brasileiros nas cortes. Em meio a essa elite política, nesse sentido, evidenciavam-se dois grupos: os vintistas e os unitários. O pesquisador ressalta ainda que, dessa forma, pode-se compreender que, no processo de convocação das cortes e suas discussões, emergiam ali dois estados buscando legitimação política e a conquista das diferentes regiões do Brasil. As lideranças políticas ligadas a estes centros irão, sobretudo, requerer das províncias sua adesão e lealdade a um dos polos da disputa, o que o autor determina como a consolidação de uma “típica situação de guerra”, que permeou todo o processo de emancipação (Franchini Neto, 2019, p. 91).

Em suma, o segundo capítulo da obra indica que, a partir da dicotomia “regeneração” versus “recolonização”, tem-se então um acirrado conflito político e bélico que dará base à Independência do Brasil. Ademais, o processo de adesão, longe de ter sido fato consolidado desde o primeiro momento, se exibe como um “movimento pendular” diante de interesses e decisões políticas do Rio ou de Lisboa. Como assinala o autor, a adesão das províncias não teria sido, assim, um movimento homogêneo e automático, posto que muitas resistiam até mesmo às duas propostas vigentes, ou ainda não optavam por algum dos lados dessa disputa. Para o autor, o posicionamento diante dos dois projetos (Lisboa e Rio) muitas vezes evidenciou-se como uma demanda vinda de fora das províncias, revelando pressões externas, e não como uma opção advinda internamente.

Durante o segundo capítulo, o autor elabora de forma minuciosa as possíveis causas desses conflitos e seu real significado em meio ao movimento de restauração em Portugal que seria, na verdade, a quebra da estrutura de governo que estava centralizada no Rio de Janeiro e a recolocação de Lisboa como o único centro de poder (Franchini Neto, 2019, p. 92). Objetivando enfatizar as dificuldades de um projeto aglutinador por parte de d. Pedro, o autor também discorre sobre o processo de negociação do príncipe com as elites regionais no contexto interno e, ao mesmo tempo, com a esfera internacional, quando destaca, por exemplo, a posição do Reino Unido, da Prússia e da Áustria diante da causa brasileira na disputa pela proeminência política empreendida por Lisboa e Rio. Para além disso, é levantado outro ponto de importante reflexão na tentativa de extrapolar o debate historiográfico que se baseia no contraponto entre as teses do “nacionalismo de adoção” e do “sacrifício por interesses políticos” por parte do d. Pedro. À primeira interpretação, Franchini Neto atribui a construção do ideário de uma Independência pacífica. Contudo, apoiando-se, entre outros documentos, em ofícios militares diplomáticos e correspondências, o autor mobiliza uma perspectiva historiográfica que atesta o posicionamento e as decisões do príncipe regente diretamente ligadas aos conflitos com as cortes (p. 108).

É então no terceiro capítulo, “Uma rebelião armada”, que o autor se propõe a detalhar o contexto do Fico, ressaltando o clima de violência que marcou o período após esta data decisiva. Assim, o Fico, segundo Franchini Neto, seria não somente uma mera proclamação, mas também um ato político do qual resultou um conflito armado e mobilizações militares importantes em diferentes regiões do país (Franchini Neto, 2019, p. 143). O contexto violento e conflituoso de 1822 é reconstruído por meio de fontes importantes como as informações subsidiadas por correspondências oficiais escritas pelo coronel Malet, diplomata francês que transmitiu nuances do cenário conturbado que se montou no Rio de Janeiro. Além disso, o autor se baseia na análise dos impressos e das atas da Assembleia Constituinte para destacar os conflitos e a mobilização militar daquela quadra.

Ao estudar o processo de emancipação e a disputa entre Rio e Lisboa, a obra evidencia a necessidade do príncipe em angariar esforços para sua causa. Franchini Neto, ao indicar as localidades que se tornaram base para a resistência de d. Pedro, as chamadas “províncias coligadas”, acentua que, até mesmo onde ele parecia dispor de algum apoio político, demandou-se também um longo processo de negociação em torno das elites regionais em prol da manutenção de tal adesão à causa brasileira. Assim, em localidades como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, que afirmaram, naquele contexto, seu apoio à causa brasileira, notou-se certa oscilação nesse posicionamento em prol de d. Pedro. Tal fato, acentua o autor, demandou esforços intensos por parte do príncipe. Todavia, o capítulo demonstra que a base política de d. Pedro era, assim, pouco sólida, sobretudo pela existência de divergências internas nas províncias.

Ao caracterizar todo o processo político que levou à emancipação, o pesquisador aponta elementos que consolidaram o agravamento da situação política em 1822, levando à Independência do Brasil e ao estabelecimento do imperador. No entanto, mesmo após o rompimento, o Brasil ainda permanecia dividido, nas palavras do autor, caracterizando-se por “uma identidade ainda em construção”, o que levou a uma guerra que atingiu, sobretudo, as regionalidades (Franchini Neto, 2019, p. 216). O conflito movimentou as questões internas nas províncias, a partir também das demandas políticas regionais.

Nas demais províncias do reino do Brasil, situações conflitivas apareceram, dando conta da agitação política em que se encontrava o território português. Não existiu apenas uma tendência nesses territórios, ao contrário do que a historiografia tradicional aponta e qualifica como exemplo de uma brasilidade preexistente. (Franchini Neto, 2019, p. 189)

Desse modo, ao levantar documentos provenientes das juntas governativas, como diários, cartas e ofícios advindos de diversas localidades do reino, e a partir de indícios publicados no Diário do Governo de Lisboa, o autor demonstra uma série de desdobramentos políticos que ocorreram em diferentes províncias, que auxiliam na reconstrução dos cenários provinciais em torno da disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, mesmo após a efetiva emancipação.

Nesse contexto, torna-se árdua a tarefa de unir o povo em uma mesma identidade, apoiando uma só causa. Assim, é no quarto capítulo, denominado “A mobilização militar”, que autor redesenha a magnitude da mobilização militar que atuou no processo de consolidação da Independência, a partir de fontes que elucidam as operações da Marinha, assim como diversos dados contidos em escritos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O levantamento é rico em detalhes ao traduzir a estrutura do aparato militar que atuou em território brasileiro e, ao mesmo tempo, aponta a organização militar proveniente do outro lado do Atlântico, em meio ao contexto conflituoso que se estabeleceu após a emancipação. Nessa parte do texto, Franchini Neto nos contempla com tabelas e registros bastante completos que evidenciam o contingente de armamento vigente naquela ocasião (Franchini Neto, 2019, p. 245). É neste ponto do capítulo que o autor acentua uma discussão bastante oportuna acerca do conceito de “guerra” e do motivo de sua não utilização por parte do Rio de Janeiro e de Lisboa durante aquele período. A ausência de uso do vocábulo, no entanto, não exclui a existência de um conflito armado significativo durante o processo de Independência.

O capítulo “Guerra no centro estratégico: Bahia”, quinto da obra, nos permite dimensionar a importância dessa região durante os conflitos militares que emergem no processo de emancipação política e nos meses que se seguiram. A Bahia e, sobretudo, a figura de general Madeira, configuram-se como peças fundamentais na narrativa do autor para apresentar minuciosamente ao leitor como teria ocorrido o enfrentamento entre Lisboa e Rio de Janeiro. A partir da análise dessa região, Helio Franchini Neto consolida sua tese, que leva em conta o cenário de guerra que emerge no processo de emancipação. A obra exibe um levantamento baseado na releitura da historiografia sobre a Bahia e ancora-se em fontes como o jornal A Idade d’Ouro, além de ofícios dirigidos às cortes e panfletos manuscritos. Com posição estratégica entre as demais regiões do território e importância também no âmbito econômico, a Bahia se tornou o centro do conflito armado. Nessa perspectiva, ao elaborar o clima bélico durante o processo de adesão aos dois polos políticos, o autor faz questão de enfatizar a linha de pensamento que persegue por todo o texto: a importância das dissidências regionais diante do apoio à causa da Independência. Assim, naquela região as posições também não eram unânimes em favor de Lisboa ou do Rio. Panfletos do período corroboram a ideia de três grupos políticos distintos consolidando o contexto político que serviria de palco para o conflito armado (Franchini Neto, 2019, p. 290).

No sexto capítulo Franchini Neto apresenta “O teatro de operações Norte”, conduzindo o leitor a compreender que as operações militares nessa região nos comprovam o quanto a emancipação dependeu dos conflitos militares e das negociações regionais. Interessante destacar que, ao abordar as províncias separadamente no cenário de conflito armado, o autor deixa claro que os contextos regionais não se construíram de forma isolada, pois apresentavam relação direta com os acontecimentos do Rio de Janeiro e da Bahia, por exemplo. Desse modo, é notória a iniciativa da obra em dar voz às realidades regionais, incorporando- -as a um contexto conflituoso que atravessava todo o território.

Assim, ao elaborar sua análise sobre o longo processo que levou à incorporação de províncias como Piauí, Maranhão e Pará ao projeto político brasileiro de d. Pedro, o autor traz percepções bastante esclarecedoras, como a problematização acerca do fato de que incorporar uma região à causa brasileira não significou angariar sua total fidelidade dentro do conflito (Franchini Neto, 2019, p. 491). Além disso, na maioria das vezes, como cita o pesquisador, o posicionamento regional nasceu da necessidade de se adaptar às mudanças impostas na dinâmica política. Em algumas regiões, mesmo sem o vínculo com Lisboa, agora quebrado a partir dos conflitos armados, também era difícil constituir um vínculo sólido com o Rio de Janeiro (p. 519).

O sétimo capítulo tem como foco a Cisplatina e o processo de adesão à Independência do Brasil em meio a conflitos já existentes naquela região. Lisboa e Rio mantinham certo diálogo com a localidade, disputando apoio político. A manutenção da Cisplatina, como acentua o autor, seria fundamental para a consolidação do projeto político concebido por José Bonifácio para o império brasileiro. Diante do impasse, mais uma vez a solução tendia a ser o conflito militar. A composição do cenário de guerra naquela região, sobretudo por parte das forças militares portuguesas, que reagiram a partir da obrigação de se posicionar diante da política pendular do Rio e de Lisboa, foi amplamente discutida pelo autor por meio de ofícios e correspondências diplomáticas. Já no oitavo capítulo, centrado, sobretudo, em 1823, são demonstrados os percalços que envolveram todo o momento pós-guerra e o longo processo de reconhecimento da Independência do Brasil, entre perdas, ganhos e arranjos. A investigação de Franchini Neto elucida de que forma terminam esses conflitos em todo o território e reconstitui as principais negociações que envolveram a emancipação do Brasil, dando ênfase aos documentos diplomáticos e à atuação inglesa no processo de reconhecimento. Os combates, como acentua o autor, terminam em 1823. Todavia, é necessário enfatizar a existência de conflitos políticos posteriores que emanam do Rio de Janeiro, bem como a incidência de revoltas, sobretudo regionais, relacionadas ao apoio à Lisboa. A obra evidencia que Maranhão e Pará são exemplos da duração dessas contendas, que permanecerão vivas até meados de 1825, no momento de reconhecimento da Independência.

Seguindo para sua conclusão, o autor resgata questões importantes que permeiam toda a interpretação histórica que se contrapõe a uma ideia de emancipação pacífica. Para Franchini Neto, é necessário que todo o percurso conflituoso caracterizado na obra não seja visto simplesmente como o processo de Independência do Brasil, mas sim como um trajeto histórico que, entre tantos resultados possíveis, culminou, então, na emancipação. A obra acentua o cenário marcado pela instabilidade política e pela ausência de identidade nacional em meio ao caminho que levou à emancipação. Desse modo, Franchini Neto conjectura que a Independência fora então o resultado da disputa entre os dois polos, Rio e Lisboa, que conflitaram na tentativa de angariar alguns eixos principais: a Bahia, o Norte e a Cisplatina. Foram nesses cenários em que d. Pedro precisou ampliar sua adesão política, sobretudo diante das elites regionais, objetivando o reconhecimento de seu projeto político (Franchini Neto, 2019, p. 568).

Apoiando-se em autores cruciais que dão base ao debate sobre a historiografia da Independência, temática que apresenta vasta produção acadêmica, sua perspectiva historiográfica pretende inserir o componente militar no centro das discussões e aponta reavaliações históricas pertinentes sobre o período. Por meio de minucioso trabalho empírico, contemplando um amplo arcabouço de documentos, além de variados acervos, a obra recupera e traz à luz os registros das batalhas motivadas pela disputa entre Rio de Janeiro e Lisboa, destacando as dinâmicas regionais, e, ainda, acentuando a participação popular, ao enfatizar as dificuldades de adesão encontradas por d. Pedro.

Assim, na esteira dos estudos que emergem no momento do bicentenário da Independência do Brasil, a obra certamente contribui para a composição das interpretações historiográficas que buscam reavaliar o contexto da emancipação e seus desdobramentos. O livro de Helio Franchini Neto se destaca, entre outras características, por dialogar com interpretações consolidadas dentro da temática e, ao mesmo tempo, por conseguir, com êxito, inserir a mobilização militar que ocorreu entre 1822 e 1823 como elemento fundamental na construção do Estado-nação e na unidade territorial brasileira.

Referência

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821- 1823). 1. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.


Resenhista

Karulliny Silverol Siqueira – Doutora em História Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professora do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de Arquivologia da Ufes, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro: Topbooks, 2019. Resenha de: SIQUEIRA, Karulliny Silverol. Entre conflitos e negociações: a Independência do Brasil sob a ótica do enfrentamento militar. Acervo. Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, p. 1-9, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Digital humanities in Latin America | H. F. L’Hoeste, J. C. Rodríguez

Editado pela University of Florida Press e organizado por Héctor Fernández L’Hoeste e Juan Carlos Rodríguez, respectivamente, professores da Georgia State University e Georgia Institute of Technology, em Atlanta, nos Estados Unidos (EE.UU), Digital humanities in Latin America é uma coleção de ensaios produzidos com suporte no simpósio Latin/o American Media Studies in the Age of Digital Humanities, realizado em março de 2015 pelas instituições supracitadas. O livro traz críticas contingenciais correntes das humanidades digitais que atestam a produção de conhecimento como um processo neutro, enfatizando, em seus 15 capítulos, que o sujeito é moldado por forças políticas, econômicas e culturais, tese similar às compreensões latinas sobre “mediação” (mediation). Além de organizarem o livro, Héctor Fernández L’Hoeste e Juan Carlos Rodríguez assinam um capítulo cada um, além de participarem da última seção do livro como entrevistadores de Gimena del Río Riande, Ana Lígia Silva Medeiros e Isabel Galina Russell. Leia Mais

Eterna vigilância: como montei e desvendei o maior sistema de espionagem do mundo | Edward Snowden

Eterna Vigilância, escrito por Edward Snowden, é um livro autobiográfico que narra o percurso que levou o ex-agente da Agência Central de Inteligência (CIA) e da Agência Nacional de Segurança (NSA) americanas a se transformar num dos mais emblemáticos whistleblowers do século XXI. Lançado em 2019, manteve-se durante semanas como um dos mais vendidos em diversos países, impulsionado pelo próprio governo americano ao anunciar que seria recolhido na tentativa de impedir a divulgação de dados sigilosos. Todavia, o livro não apresenta revelações que já não tenham sido publicadas pela imprensa. A grande novidade da obra em si é o esforço para ordenar e justificar, na forma autobiográfica, as ações de Snowden ao longo de uma trajetória de vida. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Ailton Krenak, 66 anos, filósofo, escritor, jornalista, ativista e líder do povo krenak, é considerado um dos mais importantes pensadores brasileiros. Desde o seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, o intelectual indígena luta pelos direitos dos povos tradicionais indígenas, por política socioambiental e medidas assertivas sobre proteção ao planeta Terra. Leia Mais

Sem consentimento: a ética na divulgação de informações pessoais em arquivos públicos | Heather MacNeil

Heather MacNeil é uma das referências contemporâneas no campo arquivístico. Professora da Faculdade de Informação na Universidade de Toronto, no Canadá, suas pesquisas abordam temas que vão da confiabilidade dos documentos em ambientes analógicos e digitais a análises que tomam arquivos e instrumentos de pesquisa como artefatos culturais. Mais recentemente, com sua colega Wendy Duff, tem se dedicado ao papel dos arquivos em contextos de busca por justiça social. Foi editora-chefe da revista Archivaria, um dos mais influentes periódicos da área, entre 2014 e 2015. Leia Mais

La diffusion numérique des données en SHS: guide des bonnes pratiques éthiques et juridiques | Véronique Ginoves, Isabelle Gras

Em um artigo intitulado “Comment s’élabore la mémoire collective sur le web”, a socióloga francesa Valérie Beaudouin, ao estudar sites, blogs e fóruns on-line sobre a Primeira Guerra mundial, constata que a memória coletiva é escrita na internet pelos mais diversos atores e se apoia majoritariamente em documentos (textos, fotos, filmes) provenientes, em sua grande maioria, de fundos de arquivos públicos (Beaudouin, 2019). O estudo demonstra que a digitalização de documentos de arquivo e sua difusão na internet é, hoje, um fato que revela, igualmente, a diversificação dos usos e usuários dos arquivos. Ainda que esses documentos sejam descontextualizados, como conclui o estudo de Leyoudeck (2015). Leia Mais

Explosão feminista: arte/cultura/política e universidade | Heloisa Buarque de Hollanda

Sou uma feminista da terceira onda. Minha militância foi feita na academia, a partir de um desejo enorme de mudar a universidade, de descolonizar a universidade, de usar, ainda que de forma marginal, o enorme capital que a universidade tem. Leia Mais

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O reconhecimento, nas ciências sociais, da importância do afeto ao lado da razão, do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida, incluindo a política, é o fundamento teórico central do que atualmente denominamos virada afetiva. Nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, nos últimos anos, a abordagem tem sido usada de forma pioneira pelas teorizações feministas e queer. De todo modo, guardadas as diferentes filiações teóricas em torno da virada afetiva, há, pelo menos, duas convergências que merecem destaque: primeiro, a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento (Almeida, 2018, p. 33-32); segundo, o enfoque tanto em “nosso poder de afetar o mundo a nossa volta, quanto o de sermos afetados por ele” (Hardt, 2015, p. 2). Leia Mais

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Tomo emprestada a expressão “diálogos em delay” das reflexões de Julio Groppa Aquino, que nos fala de diálogos que entrecruzam temporalidades e nos deslocam do tempo linear da cronologia: Leia Mais

Instantâneos de Rui: fotografias das campanhas presidenciais de Rui Barbosa (1910-1919) | Luís Guilherme Sodré Teixeira, Pedro Krause Ribeiro, Silvana Maria da Silva Telles

Na virada de 1909 para 1910, o Brasil chegou a conhecer uma corrida presidencial que entrou na história como campanha “civilista”. Pela primeira vez no país surgiu uma disputa pública e democrática por votos, encabeçada pelo então candidato Rui Barbosa (1849- 1923). Até esse momento, nos pleitos anteriores ao cargo de presidente, os eleitos Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves e Afonso Penna sequer viram-se compelidos a se empenhar ativamente em campanhas eleitorais. O resultado das eleições já tinha sido negociado no meio da elite política através de conversas de bastidores, entre muros fechados. Leia Mais

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O livro O arquivo e o lugar é resultado da tese de doutorado da professora Margareth da Silva, defendida na Universidade de São Paulo, e tem reflexões muito oportunas a partir de sua atuação como arquivista no Arquivo Nacional, e professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense. A tese preenche uma lacuna com relação às discussões epistemológicas na arquivologia, em particular sobre as questões conceituais que envolvem a custódia, o arquivo e os marcos teóricos da área. Leia Mais

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Muitos livros já foram publicados sobre a história do Brasil desde que, entre 1619 e 1630, frei Vicente do Salvador resolveu escrever a primeira obra do gênero de que se tem notícia. Quase quatrocentos anos depois, o assunto parece ainda longe de estar esgotado e pesquisadores de diversos campos de conhecimento continuam – felizmente – a buscar diferentes abordagens para interpretar os fatos que contribuíram, ao longo do tempo, para a formação da nação brasileira. Leia Mais

Acessibilidade cultural no Brasil: narrativas e vivências em ambientes sociais | Francisco Nilton Gomes de Oliveira, Gerda de Souza Holanda, Patrícia Silva Dorneles, Juliana Valéria de Melo

De início, torna-se importante destacar que esta publicação foi gestada por discentes e docentes da segunda turma do curso de especialização em acessibilidade cultural, promovido pelo Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em convênio com o Ministério da Cultura (MinC). Trata-se de coletânea de artigos, organizada por Francisco Nilton Gomes de Oliveira, terapeuta ocupacional e professor adjunto da UFRJ; Gerda de Souza Holanda, pedagoga; Patrícia Silva Dorneles, professora adjunta da UFRJ, terapeuta ocupacional e coordenadora do curso de especialização em acessibilidade cultural; e Juliana Valéria de Melo, terapeuta ocupacional e professora assistente da UFRJ. Leia Mais

Dar nome aos documentos: da teoria à prática | Danielle Ardaillon

Como nomear adequadamente documentos de arquivo dotados de diferentes linguagens, suportes, técnicas de registro e formatos e que, muitas vezes, resultaram de atividades que não correspondem a atos de caráter jurídico e administrativo familiares aos arquivistas? Eis a complexa e fulcral questão discutida durante o seminário Dar nome aos documentos: da teoria à prática, promovido, em 2013, pela Associação dos Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP) e pela Fundação Fernando Henrique Cardoso (FHC). Após pouco mais de dois anos, desde a realização deste evento que reuniu renomados pesquisadores do Brasil e do exterior, seus organizadores disponibilizaram gratuitamente, em formato de e-book, os textos apresentados pelos palestrantes, bem como os comentários da plateia presente na ocasião. Leia Mais

Acervo | Arquivo Nacional | 2012

Acervo

Acervo (Rio de Janeiro, 2012-) é a revista do Arquivo Nacional, publicada desde 1986. Seus números são quadrimestrais, e, desde maio de 2021, foi adotado o formato de publicação contínua. A revista tem por objetivo divulgar estudos e fontes nas áreas de ciências humanas e sociais aplicadas, especialmente história e arquivologia. É composta pelas seções Entrevista, Dossiê Temático, Artigos Livres, Documento e Resenha.

O periódico se dirige a todos aqueles interessados nos temas relacionados a arquivologia, ciência da informação e história.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre

ISSN 2237-8723 (online)

ISSN 0102-700-X (impresso)

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