O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito | Jeffrey Lesser

As sociedades conformam determinadas noções através das quais se identificam, reconhecem-se e são reconhecidas, conferem sentido e legitimidade a si mesmas, às suas estruturas, às suas instituições, às práticas e às relações dos indivíduos que as compõem. O processo de imposição e de generalização, de produção da adesão a essas noções, é concomitante ao de sua naturalização, isto é, de negação do seu caráter histórico e social. É como crenças, portanto, que elas se afirmam e operam, orientando as percepções e as ações dos indivíduos.

O que têm feito as ciências sociais, em boa medida, é relativizar algumas dessas noções, desencantá-las restituindo seus vínculos históricos, remetendo-as aos espaços e às relações sociais a partir dos quais são produzidas e que, ao mesmo tempo, contribuem para produzir. É preciso reconhecer, entretanto, que nem sempre este exercício de relativização se mostra possível, incorporando também o cientista social noções impostas que, desse modo, terminam por se constituir em obstáculos a uma efetiva compreensão dos processos sobre os quais se volta.

Uma das noções que orientaram fortemente as percepções que, de um modo predominante, a sociedade brasileira tem de si mesma, é a de democracia racial. Segundo a visão corrente, a nossa seria uma nação sem preconceitos, cujo povo seria formado pela associação de três raças —branca, negra e indígena—cada uma das quais contribuindo com suas características próprias para a conformação da brasilidade.

Esta visão vem sendo relativizada por diversos autores que, principalmente a partir de estudos sobre os negros em nossa sociedade, têm, já há algumas décadas, procurado mostrar como a retórica da tolerância e da igualdade pode, de fato, estar na base de mecanismos discriminatórios. Mais recentemente, com o deslocamento do eixo de discussão da questão das raças stricto sensu para a das culturas, as atenções vêm se voltando também para outros gaipos que, da mesma forma, seriam objeto de visões e práticas preconceituosas. Entre estes estão os judeus.

Trata-se no caso destes, em grande parte, de evidenciar como, incorporadas por setores importantes de nossas elites, formas de pensamento anti-semita teriam pesado na formulação e implementação de determinadas políticas, produzindo efeitos discriminatórios. Esta linha de análise tem sido seguida por alguns historiadores, que elegeram como campo privilegiado de investigação, e assim também de demonstração, as décadas de 1930 e 1940, com ênfase no período do Estado Novo. Inscrevem-se aqui os trabalhos do professor americano Jeffrey Lesser, como o recente O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito.

O fio condutor do livro é constituído pelas visões, tomadas de posição e ações dos principais agentes e agências do Estado brasileiro em relação à imigração judaica. Muito embora sua pesquisa incida, basicamente, sobre a década de 1930, o autor tanto recua à década de 1920 quanto avança sobre a de 1940 de modo a fazer comparações, estabelecer contrastes. A extensão temporal é fundamental, dado que um dos objetivos de Lesser é mostrar como as mesmas imagens em relação aos judeus podem, em diferentes momentos, em situações diversas, assumir conotações distintas, ora possibilitando, ora dificultando a sua imigração. Assim, ainda que fossem, de maneira geral, considerados indesejáveis, o que os tornou objeto de fortes resistências, gerando normas e regulamentos restritivos, os judeus continuaram entrando no país e, em alguns momentos, em quantidades consideráveis, mas sempre após um longo, tenso e imprevisível processo de negociação.

O que torna o caso analisado por Lesser particularmente dramático é que o que se jogava com a discussão em torno da imigração era não apenas a possibilidade cie um determinado grupo étnico se estabelecer e ampliar sua presença no país, mas a própria sobrevivência de pessoas ameaçadas. O – enrijecimento das barreiras imigratórias, no Brasil, coincidiu com a ascensão do nazismo na Europa. Perseguidos, grupos de judeus passaram a identificar na emigração a sua única condição de sobrevivência, e o Brasil, mais do que um destino viável, era percebido como um país onde se abriam possibilidades de mobilidade ascendente. Pelo lado das autoridades e de setores influentes brasileiros, contudo, o fluxo imigratório judaico afigurava-se, no contexto da década de 1930, como potencialmente deletério, cabendo, desse modo, se não interrompê-lo de modo absoluto, ao menos minimizá-lo e controlá-lo de forma rígida.

O Brasil vinha, já de longa data, constituindo-se em ponto de chegada de judeus que abandonavam suas regiões de origem em busca de melhores condições de vida. Aqui aportando, eles se instalavam principalmente nas cidades, onde muitos prosperavam e alguns chegavam mesmo a alcançar posições de prestígio. Como demonstra Lesser, contudo, este grupo que, grosso modo, até a década de 1930, não vinha despertando maiores atenções, passa a ganhar visibilidade, constituindo-se em um “outro”, um estranho. Isto se deu em um quadro de mudanças econômicas associadas à crise de 1929, de deslocamentos políticos produzidos pelo enfraquecimento do Estado liberal e o fortalecimento de propostas autoritárias de cunho nacionalista — ou até nativista —, e de temor de que, premidas pela situação na Europa, vagas de judeus começassem a se deslocar para o Brasil.

Foi nesse contexto que o judeu, segundo o argumento de Lesser, se configurou em uma questão, um problema a ser resolvido, tornando-se objeto de discussões entre políticos, intelectuais e agências do Estado responsáveis pela imigração. Feitas com base em estigmas, imagens negativas, entretanto, tais discussões terminaram por gerar medidas que visavam restringir, ou mesmo bloquear, a entrada de novos judeus no país. É dessas medidas, de sua efetividade, de seus efeitos concretos sobre os fluxos migratórios e das noções que lhes deram suporte que trata o livro em questão.

O trabalho é bastante minucioso, reconstituindo de forma exaustiva as modulações da política imigratória brasileira durante o período estudado. Ele se escora em um extenso levantamento de dados, inclusive quantitativos, feito em uma ampla gama de fontes colhidas em arquivos e bibliotecas do Brasil e também do exterior. Trata-se, portanto, de uma obra rigorosa, rica em informações, em dados novos, e que, até por isso, permite descortinar outras tantas vias e pontos possíveis de pesquisa e reflexão, para além mesmo daqueles desenvolvidos pelo autor.

Ainda assim, quando se desloca o foco de atenção dos eventos e processos reais que constituem a temática central de O Brasil e a questão judaica, para os modos através dos quais foram recortados, tratados, organizados e explicados, algumas questões mais gerais emergem. Uma delas diz respeito a como os supostos de análise e as opções iniciais de uma pesquisa, de maneira mais ampla, determinam seus resultados finais. As visões do historiador são constituidoras e constitutivas dos seus objetos de estudo. No caso do trabalho em questão, é o seu olhar retrospectivo, informado pelo conhecimento e a indignação diante dos horrores do Holocausto, por uma vertente de pensamento que se opõe ao determinismo racial, por uma perspectiva multiculturalista e por determinados padrões de correção política que lhe permitem estranhar percepções acerca dos judeus correntes em 1930, transformando-as em objeto de atenção hoje.

Um dos riscos que corre o historiador, no entanto, é o de não submeter os seus próprios supostos e pontos de vista a um exercício de crítica e relativização, deixando de percebê-los como também históricos e sociais. Ao invés de construído, nesse caso, seu objeto torna-se imposto, circunscrevendo-se a sua capacidade explicativa, fazendo com que seja percebido como familiar e dado o que deveria ser estranhado. Abre-se, por essa via, a possibilidade de que se resvale para a produção de juízos morais, desqualificando para a análise elementos que poderiam ser reveladores e deixando de dar conta das configurações sociais passadas segundo suas lógicas e significados próprios, avaliando-as a partir dos atuais.

Ainda que em parte, estas observações se aplicam à obra em questão. Tomando por base e universalizando uma noção de democracia hoje dominante, que é pluralista, que resgata e valoriza a idéia de diferença, por exemplo, o autor descarta de pronto, como princípio, a tese da democracia racial brasileira, uma vez que, aqui, o “outro” era discriminado. Com isso, entretanto, ele se desobriga de refletir sobre a tese em si, seus sentidos e usos sociais, deixando de se apropriar de importantes elementos de compreensão, inclusive de como operavam os próprios mecanismos de discriminação.

Alguns dos problemas que se pode apontar decorrem igualmente das opções iniciais do autor, que resultaram em um trabalho mais cronológico do que sociológico. O livro ressente-se da falta de uma história social. Fica-se sem compreender, muitas vezes, por que atores e instituições defendiam determinadas idéias, tomavam determinadas posições, da mesma forma que nem sempre ficam patentes as razões da vitória de umas ou de outras, do desfecho dos inúmeros conflitos e disputas no interior da estrutura do Estado que, como evidencia Lesser, emergem em torno da questão judaica.

Não se trata de cobrar do autor aquilo que não foi previamente colocado como objetivo, mas de reconhecer que seu trabalho poderia ganhar ainda mais em riqueza, em entendimento. Em que pesem estas observações, O Brasil e a questão judaica é, sem dúvida, pela sua seriedade, pela sua sistematicidade, pela brutal quantidade de informações que traz, um trabalho indispensável para todos os que se interessam pelo assunto e pelo período tratados. Ele lança luz sobre aspectos ainda pouco estudados da história do país, mas que são fundamentais para a compreensão de nossa sociedade.


Resenhista

Mario Grynszpan – Pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) e professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).


Referências desta Resenha

LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995. Resenha de: GRYNSZPAN, Mario. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.3, n.3, nov. 1996. Acessar publicação original [DR]

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