O conceito de cultura | Beth Dillingham e Leslie A. White

O livro de Leslie A. White, antropólogo americano nascido em janeiro de 1900 e falecido em março de 1975, foi resultado de um curso de verão de duas semanas oferecido, no ano de 1961, a 34 professores universitários no Instituto Summer de Antropologia da Universidade do Colorado – EUA. Visando a produção de uma publicação que reuniria as apresentações de vários professores visitantes, as aulas foram gravadas e transcritas. Entretanto, somente após dez anos, tendo sido abandonado o projeto inicial de publicação, a professora Beth Dillingham, após a leitura do material transcrito, pôs em relevância o texto de White, se dispôs a revisar o texto e o conteúdo foi, finalmente, editado.

Desse modo, chega ao público uma obra relativamente curta, dividida em oito partes, organizadas de modo bastante didático, cada uma equivalente a uma das aulas proferidas por White. Numa sequência de temas interligados, o autor expõe suas concepções, explica cada um dos conceitos que utiliza e defende sua aplicação.

O primeiro dos sub-capítulos intitula-se “A base da cultura: o símbolo”, proposição que deve permear todo o texto. Dela deriva o termo simbologizar, que o autor define como “a capacidade de originar, definir e atribuir significados, de forma livre e arbitrária a coisas e a acontecimentos no mundo externo, bem como de compreender significados” (p. 9). Na compreensão de White, o homem torna-se humano, e se diferencia dos demais animais, quando adquire a capacidade de simbologizar. E a ciência, que pretende conceituar e caracterizar todas as coisas, não deu conta de construir um conceito capaz de dar conta dessa capacidade humana, pré requisito para a existência da cultura.

Na aula subordinada ao tema “Homem e cultura”, White reforça a relação entre cultura e simbologização, procurando demonstrar que a cultura norteia a organização humana, enquanto que, entre os animais, a biologia é determinante. White pensa o homem como fruto de uma evolução e de uma revolução: sua transformação em animal simbologizador lhe facultou o domínio sobre o mundo tendo como instrumento o discurso articulado. É a capacidade de conceituar, verbalizar, classificar que abre a possibilidade de uma variação quase infinita de organização e de desenvolvimento. Enquanto a organização animal é pouco elástica, o homem se distingue pela capacidade de organização de um sistema cultural que compreende aspectos ideológicos, sociológicos e tecnológicos.

O papel da cultura é, para White, tornar a vida segura e duradoura para a espécie humana, argumento apresentado na terceira parte do livro, “Homem, variação cultural e o conceito de cultura”. Neste ponto, propõe a distinção do homem enquanto organismo biológico do homem enquanto ser social e desconstrói noções antigas ao negar a existência de relação direta entre raça e cultura. White ainda faz uso de termos como cultura superior e cultura inferior, mas avança em defender a idéia de que não é a biologia que determina a organização cultural e nega a possibilidade de mensurar ou provar empiricamente que habilidades possam ser determinadas biologicamente.

A cultura, na compreensão de White, se modifica com o tempo e, embora o autor aceite a existência de uma relação intima entre cultura e habitat, deve-se considerar que variações podem ocorrer dentro de um mesmo espaço, em decorrência dos fenômenos de difusão ou isolamento.

A esta altura, White se propõe a conceituar cultura, ressaltando a natureza polissêmica do termo e relembrando as sucessivas tentativas de definição que ocuparam espaço na produção acadêmica. Dessas diversas tentativas resultaram conceitos, todos contestáveis, segundo White, que propõem considerar cultura como idéia ou como abstração. Frente à fragilidade das diversas conceituações de cultura, White retoma, nos dois capítulos seguintes, intitulados “Outras concepções de cultura” e “Culturologia”, a defesa do conceito de simbologização.

Na sexta aula, “A cultura como sistema”, o autor se ocupa em marcar a diferença entre a interpretação psicológica e a culturológica como estratégias de estudos da espécie humana. Dedicadas a um objeto comum, essas interpretações, e as ciências que delas resultam, estão assentadas sobre problemáticas bastante específicas com áreas de atuação bem delimitadas.

Retomando a idéia, já propagada no campo da sociologia, de sociedade como sistema, White propõe o conceito de sistema cultural. Sistema é aqui definido como “uma organização de fenômenos tão inter-relacionados que a relação de uma parte com outra é determinada com o todo” (p. 81) e a perspectiva sistêmica é, para o autor, fundamental à retomada do debate sobre evolução.

No sentido contrário aos teóricos da cultura que enunciam o repudio ou rejeição à teoria evolucionista, White defende que “a teoria da evolução cultural tem sido uma das questões mais importantes na antropologia não biológica desde Darwin” (p. 86). No seu entendimento, tendo a ciência ocupado o lugar da teologia, precisou cumprir com a mesma função que aquela, ou seja, propor explicações para a origem e evolução do homem e da cultura, exigência da qual não pode escapar. Na defesa incisiva da teoria evolucionista, o autor apresenta, desqualifica e procura desconstruir os argumentos freqüentemente utilizados para destratá-la como instrumento válido de análise e conclui que os que se opõem à teoria evolucionista certamente não a conhecem. White destaca, entretanto, a impropriedade de se falar em evolução de parte de um sistema e salienta os cuidados que devem ser tomados no tratamento de temas como difusão de cultura e contato cultural.

Para traçar um panorama do desenvolvimento das sociedades humanas, pensado a partir do conceito de processo evolutivo, por ele francamente defendido, na ultima parte do livro, intitulada “Como a cultura evoluiu”, White lança mão de leis da termodinâmica e do conceito de energia. Essas seriam, na acepção do autor, as teorias mais inteligíveis e adequadas à compreensão sobre o desenvolvimento das sociedades humanas. Entretanto, tendo sido elaboradas por físicos e químicos, com pequena participação dos antropólogos, enfrentam a relutância dos cientistas sociais.

Embora o sugestivo título do livro aponte para a perspectiva de se encontrar uma resposta concreta, um modelo pronto de abordagem sobre cultura, seu mérito consiste exatamente em provocar novas reflexões. Ao abordar o percurso da ciência na construção do conceito de cultura, ao retomar o debate sobre princípios teóricos aparentemente consolidados ou superados, ao apresentar novas proposições e buscar demonstrar suas convicções, o autor traz uma contribuição decisiva para o debate e abre novas possibilidade de tratamento para noções correntes nos meios acadêmicos. Suas aulas amealhadas em um único conjunto, publicado como livro, abrem a possibilidade de se repensar e recriar antigas noções e a elas acrescentar novas, como os conceitos de simbologização e sistema cultural. Sua leitura faz-se, portanto, obrigatória para todos aqueles que pretendem enveredar pelos estudos culturais, tarefa bastante complexa, mas extremamente profícua.


Resenhista

Vanessa da Silva Nascimento – Especialista em Cultura Afro-Brasileira pela Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC e pós-graduanda em História: Política, Cultura e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Uesb. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

WHITE, Leslie A.; DILLINGHAM, Beth. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. Resenha de: NASCIMENTO, Vanessa da Silva. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 9, n. 1, p. 313-316, 2009. Acessar publicação original [DR]

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