O desafio historiográfico – REIS (AN)

REIS, José C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 160p. (Coleção FGV de bolso. Série História). Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 407-415, jul. 2014.

José Carlos Reis, autor de diversas obras sobre teoria e filo­sofia da história, apresenta, em O desafio historiográfico, uma porção de temas que vem inquietando os historiadores, sobretudo em relação às crises que a ciência da história tem enfrentado desde os meados do século XX. Neste sentido, logo na introdução, o autor lança diversas questões sobre o “fazer” a história e o “ser” historiador. Conforme ressalta, seu livro “[…] tem a pretensão de propor uma reflexão ao mesmo tempo fácil e densa, rápida e profunda […] sobre o ‘desafio historiográfico’” (p. 7).

Qual seria esse desafio? Ou seriam desafios? No decorrer dos seis capítulos do livro (alguns inéditos, outros reorganizados a partir da sua vasta publicação), Reis intentará mostrá-lo[s]. No primeiro deles – homônimo ao título do livro –, o autor inicia a discussão evidenciando algumas das questões que mais têm importunado os historiadores ao longo das últimas décadas. Com “irônico sadismo”, Reis pretende com isso provocar, ou melhor, “irritar” os profis­sionais da história, expondo uma porção de críticas que a área tem sofrido, pois, na sua visão, “[…] o ganho com isso é enorme! É o fim do dogmatismo, da solene e hipócrita confiança no ‘ofício’”, uma vez que promove “o enfraquecimento dos sérios e pedantes tência de fontes; o esquecimento de reserva, isto é, aquele que é rever­sível, um tesouro profundo que pode ser recuperado; e o esquecimento manifesto, aquele que é conscientemente manipulado, apagando-se situações “constrangedoras” da história de um país, por exemplo.3 Como controlar tais abusos e vencer os esquecimentos? Seria a historiografia capaz de proteger a memória? Na leitura de Reis, Ricoeur acredita que sim, pois uma memória  […] instruída, esclarecida pela historiografia, e uma histo­riografia capaz de reanimar a memória declinante, que a rea­tualiza, que reefetua o passado, podem ser uteis à vida […] na busca do reconhecimento de si dos indivíduos em seus grupos, dos grupos em relação aos outros e da humanidade como união universal dos grupos e indivíduos (p. 45).

Ainda no segundo capítulo, o autor apresenta-nos as três fases da operação historiográfica elaboradas por Ricoeur. A fase documen­tária, momento em que o historiador procura coletar dados exte­riores, a partir dos problemas e das hipóteses por ele lançados; a fase da explicação/compreensão, momento em que o pesquisador organiza a massa documental na tentativa de compreendê-la e interpretá-la; e a terceira fase, que é a da representação narrativa, isto é, o fecha­mento da operação historiográfica – sem nos esquecermos, claro, da recepção e apropriação dos leitores.

No fechamento do capítulo, José C. Reis afirma mais uma vez que Ricoeur procura reunir memória e historiografia, pacificar a sua “relação difícil”, demonstrando que o objetivo de ambas é o mesmo: vencer o esquecimento. O objetivo maior da memória-historiografia é a “reconciliação com a vida”, que se realiza “no perdão”, por meio de um trabalho de luto, de “psicologia coletiva” que a historiografia acaba exercendo (p. 61). Tal concepção, no entanto, pode ser criti­cada se levarmos em consideração os perigos que existem com a perspectiva apaziguante ricoeuriana, pois é muito mais fácil para o opressor esquecer-se das atrocidades que cometeu do que para o oprimido se esquecer das que sofreu, e temas como o Holocausto e o Golpe Militar estão aí para nos mostrar como não é fácil achar uma justa medida entre o perdão e a justiça.

No terceiro capítulo, o autor retoma algumas das discussões feitas no início do livro e se dedica a nos mostrar o debate em torno da narrativa histórica, evidenciando especialmente as críticas feitas por Hayden White, que provocaram diversas crises na histo­riografia. O historiador norte-americano é categórico ao sinalizar que o discurso historiográfico não seria realista, pois os historia­dores fazem apenas a construção de versões por meio de um “arte­fato verbal em prosa”, e que a “[…] história é uma representação narrativa das representações-fontes”, não havendo oposição entre história e ficção (p. 64); “o passado como tal” é inacessível e o passado ao qual os historiadores podem ter acesso – seus traços ou restos documentais – é constituído por textos (discursos), e não por uma realidade extradiscursiva – um referente externo ao discurso (FALCON, 2011, p. 170). Em resumo: não há cientificidade na operação historiográfica.

Para fazer tal análise, Reis abordará principalmente a obra Tempo e narrativa4, de Ricoeur, que faz uma profunda discussão acerca dessas indigestas questões apontadas por White. Segundo nosso autor, Ricoeur defende o realismo histórico, pois “[…] o tempo vivido não é inenarrável”, “[…] as narrativas históricas são ‘variações interpretativas’ do passado […] mas [são] realistas”, uma vez que “[…] as intrigas variam, mas as datas, os documentos, os personagens, os eventos, os locais, são os mesmos”. Exemplifi­cando, Reis ressalta que existem várias configurações narrativas sobre a Revolução Francesa ou o Golpe de 64, “[…] mas elas não podem alterar [seus] dados exteriores” (p. 69-76). No decorrer do capítulo, entretanto, ele nos mostrará que, para Ricoeur, apesar de inicial­mente heterogêneas e opostas, as narrativas histórica e ficcional também se entrecruzam, porém sem se confundir.

Como exemplo de tal afirmação, no último tópico do capí­tulo, há uma análise do debate feito por Ricoeur acerca da obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II, de Braudel, que “[…] seria um exemplo revelador do caráter produtivo do entrecruzamento entre narrativa histórica e ficcional” (p. 83) e que evidencia o fato de que não há um “retorno à narrativa” – na prática, nunca houve “nem partida nem abandono”, pois mesmo as primeiras gerações dos Annales nunca abandonaram a narrativa, uma vez que “sociedades”, “classes”, “mentalidades” e inclusive o “Mediterrâneo” são “quase-personagens” de uma narrativa, já que “mesmo a mais estrutural é construída a partir das fórmulas que governam a produção das narrativas (CHARTIER, 2002, p. 86-87), o que, claro, não invalida o discurso histórico.

No quarto capítulo, o autor faz uma descrição geral das princi‑pais características dos Annales, mostrando aquilo que houve de inovador na sua prática historiográfica, em oposição à historiografia tradicional oitocentista. Segundo Reis, os primeiros Annales são parti­dários de uma “história-problema”, que se opunha à historiografia tradicional, acusada de ser meramente narrativa, descritiva e despro­blematizada, pois pretendia apenas “[…] narrar os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, em sua evolução linear e irreversível, ‘tal como se passaram’”. Na “história-problema”, o historiador escolhe seus objetos no passado a partir de interrogações do presente (p. 93). Para obter tal êxito, os Annales inovaram de várias maneiras: a noção de “fato histórico” como construção, em oposição ao “fato dado” nos documentos (escola metódica); a ampliação e a variedade do uso das fontes histó­ricas; e a ambição de uma história total e global. Unindo-se a tais propostas, os annalistes propuseram o uso da interdisciplinaridade.

Ainda que breve, tal discussão servirá como uma antessala para o debate feito no capítulo seguinte, Annales versus marxismos: os paradigmas históricos do século XX. Nesse capítulo, o autor faz inicial­mente uma abordagem acerca das principais diferenças entre a modernidade iluminista e a pós-modernidade para poder, poste­riormente, situar os Annales e o marxismo. No primeiro caso, o projeto moderno iluminista é eminentemente racional e constrói um sujeito singular-coletivo absoluto e consciente, e a história é um processo inteligível com um final claro, isto é, “[…] a vitória da razão, que governa o mundo” (p. 105). Para tanto, segundo Reis, a modernidade desprezava o presente e o passado, lançando seu olhar para o futuro e provocando, assim, uma “aceleração da história”. Esse é um dos pontos em que recaem as críticas a tal projeto, pois a “intervenção radical da realidade histórica” acabou por produzir um nível de agressão que não trouxe progresso e feli­cidade. Daí emerge uma visão anti-iluminista, que pretende pôr fim ao “projeto moderno” em favor de um “pós-moderno”.

O pós-modernismo é dividido em duas fases: a primeira delas é ligada ao estruturalismo, que criticava a noção de “sujeito­-universal”, uma vez que, para os estruturalistas, “[…] o homem não é só sujeito, mas também objeto” (p. 108). Entretanto, ali ainda havia uma tentativa de “[…] produzir uma inteligibilidade ampliada da história”, “um discurso da razão” (p. 110) – não mais centrada no sujeito absoluto, pois “sua verdade é oculta” e fica além da ilusória, falsa e aparente razão. Na segunda fase, mais conhecida como pós­-estruturalista, radicalizavam-se algumas posições, incluindo-se até mesmo os primeiros estruturalistas nas críticas, por ainda manterem um discurso racionalizante. Nas palavras de Reis, a  pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, desmemoriza o discurso da ‘razão que governa o mundo’ […], aborda um mundo humano parcial, limitado, descentrado, em migalhas […], assistemático, antiestrutural, antiglobal” (p. 111), e “o conhecimento histórico é múltiplo e não definitivo: são in­terpretações de interpretações (p. 112).

“Onde situar os Annales e os marxismos?”, nos pergunta Reis. Em primeiro lugar, é difícil situá-los, pois ambos não são homo­gêneos e talvez isso seja até um componente positivo, conforme ressalta, talvez “[…] a heterogeneidade interna dos dois grupos permita alguma aproximação e colaboração” (p. 114). Neste sentido, o autor divide sua discussão em três leituras, enfatizando espe­cialmente as diferenças entre o marxismo-soviético e os Annales: uma primeira que valoriza aquilo que é comum; a segunda, que nos mostra sua oposição; e uma terceira que os considera simples­mente diferentes, isto é, nem complementares nem opostos, apenas “[…] vistos como teorias, hipóteses de trabalhos que só têm valor e só podem dialogar porque são ‘diferentes’” (p. 115), e só assim é possível obter elementos para a escrita de uma história plural, e não totalitária. A respeito da sobrevivência ou não de ambas as correntes – Annales e marxismo –, tudo dependerá do resultado do embate entre “o projeto moderno” versus “pós-modernidade”, uma vez que ainda não há total abandono do iluminismo.

O último capítulo da obra pareceu um tipo de apêndice, que teve como intenção inserir a historiografia brasileira em um debate teórico até então eminentemente norte-americano-eurocêntrico. A discussão ali feita é válida e importante, mas seria mais apropriada em outra ocasião, pois é curioso que uma abordagem tão rica tenha sido feita em um capítulo tão curto. Cremos que o ideal seria dedicar uma obra de mesmo perfil (isto é, versão de bolso) somente às contribuições de Freyre, já que tal investida nos pareceu solta e sem conexão direta com os demais capítulos. De qualquer modo, é importante frisar que Reis intentou abrir uma discussão sobre “ser historiador do/no Brasil” no sexto capítulo. No entanto, como tal tarefa seria impossível de ser realizada em tão pouco espaço, o autor apresenta apenas a contribuição de Gilberto Freyre, sobre­tudo no que tange ao seu talento como narrador e como precursor de uma porção de temas inovadores na historiografia, uma vez que “[…] descobriu, ao mesmo tempo que os franceses dos Annales, a história do cotidiano […] das mentalidades coletivas, a renovação das fontes da pesquisa histórica” (p. 144) etc. Isso significa dizer que, apesar de toda a contradição e a polêmica que cercam a obra e a figura de Gilberto Freyre, ele também foi um inovador, e não somente um reprodutor de tendências europeias, não desconside­rando, é claro, que boa parte de sua formação acadêmica foi feita nos Estados Unidos, sob forte influência alemã.  O desafio historiográfico é uma importante contribuição, espe­cialmente para historiadores mais jovens, pois José Carlos Reis consegue fazer um debate extremamente complexo muito didatica­mente, e isto é louvável. Não podemos deixar de dizer, entretanto, que algumas questões são tão resumidas que podem dificultar a compreensão de um leitor iniciante, exigindo, de certo modo, uma leitura prévia de alguns temas ou uma busca em outra bibliografia, como o próprio autor avisa na introdução da obra.

Ademais, além de advertir contra um dos maiores males da escrita da história e de seus profissionais, isto é, a tendência “parri­cida” em relação aos nossos mestres e às correntes historiográficas anteriores a nós, o que ficou subentendido é o fato de que Reis inclina-se a aceitar a proposta ricoeuriana, isto é, a via do diálogo e da “não dogmatização” do saber histórico. O ideal, na visão do autor, é caminharmos sempre pela via da compreensão, ainda que os embates sejam inevitáveis. Neste sentido, faz-se necessário aproveitarmos o que há de importante nas mais diversas vertentes historiográficas, sem incorrermos no erro de ficarmos cegos e per‑didos em uma só visão.

Notas

1 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain Fran­çois. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

2 Ricoeur – diz Reis – pondera, entretanto, que em algumas profissões, como o teatro, por exemplo, a “memória artificial” é uma poderosa arma contra o esquecimento (p. 37).

3 Helenice Rodrigues da Silva dá um exemplo típico em relação ao esquecimento mani‑festo. Diz ela que, nas comemorações dos “500 anos do Brasil”, foram “esque‑cidos” “os massacres indígenas, a escravidão negra, as violências da história”, em prol dos “mitos fundadores e das utopias nacionais (o ‘paraíso tropical’ e o ‘país do futuro’)” (2002, p. 432).

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010.

Referências

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

FALCON, Francisco J. C. Estudos de teoria e historiografia, volume I: teoria da histó­ria. São Paulo: Hucitec, 2011.

SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 425-438, 2002.

Cláudia Regina Bovo – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: [email protected]

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