O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo | Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto

Leandro Goncalves e Odilon Caldeira Fascismo
Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto | Fotos: Tribuna de Minas

O Fascismo em Camisas FascismoA obra O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo foi escrita pelos historiadores Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, e publicada em 2020, pela Editora FGV. No tocante aos autores, Gonçalves concentra suas pesquisas em questões relacionadas à História da América Latina nos campos da História Política e Cultural, bem como, estudos no âmbito das direitas, dos fascismos, integralismo, salazarismo e franquismo. Neto tem experiência na área de História Contemporânea e História do Tempo Presente, atuando principalmente nos temas: neofascismos, direita radical, transições democráticas e processos da extrema direita.

Logo na introdução, os escritores buscam promover para o leitor uma reflexão, no que alude a fazê-los entender que os acontecimentos históricos não ficam presos no seu tempo e inertes nos livros, mas que alguns deles estão em constantes metamorfoses, e se apresentam na sociedade tão velhos e tão atuais. E é a partir dessa premissa que o livro é desenvolvido, e ao longo dos seus quatro capítulos expõe e problematiza a história do movimento integralista brasileiro. Leia Mais

Democracia, federalismo e centralização no Brasil – ARRETCHE (TES)

ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012, 232 p. Resenha de: LOBO NETO, Francisco José da Silveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.2, maio/ago. 2014.

O livro de Marta Arretche trata da democracia, do federalismo e da centralização. Temas fundamentais na sociedade radicada neste país continental que, desde 15 de novembro de 1889 se constituiu, pelo decreto n. 1 do Governo Provisório, como Federação.

A autora, ao trabalhar seu objeto, prioriza o aprofundamento da ordem constitucional atual, no qual revela sua trajetória de cientista social e cientista política, recorrendo às referências que lhe oferecem a História e o Direito, na elucidação dos fatos e na construção de sua análise interpretativa.

Importante mencionar, desde já, o rigor metodológico da organização da obra composta de cinco capítulos, cada um deles com sua especificidade e todos se integrando para conformar a unidade do livro, “apresentado originalmente como tese de livredocência defendida no Departamento de Ciência Política na Universidade de São Paulo” (p. 24), em 2007. A própria autora nos diz, na Introdução, que “embora cada capítulo possa ser lido separadamente, o livro tem uma unidade teórica e analítica” (p. 13), no “objetivo de examinar ‘se’ e ‘como’ Estados federativos produzem efeitos centrífugos sobre a produção de políticas públicas, tomando o caso brasileiro como objeto empírico” (p. 13).

Peça importante na interpretação do seu livro é, além da Introdução (p. 1131), o artigo de 2001 “Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana” (Arretche, 2001, p. 30). Nele, ela analisa os estudos da ciência política nos Estados Unidos, revelando-nos rumos novos de pesquisa. Sua preocupação foi “destacar a necessidade de ampliação da agenda de pesquisas sobre a natureza das relações intergovernamentais no Brasil”, sugerindo dois caminhos: “exame dos processos decisórios em que o governo federal foi bem sucedido em implementar sua agenda de reformas” e “análise do processo decisório de políticas que envolvam relações diretas entre o Poder Executivo dos diversos níveis e/ou nas quais o Poder Judiciário funcione como árbitro dos conflitos intergovernamentais” (Arretche, 2001, p. 30).

A importância deste livro, portanto, está justamente na concretização dessa ampliação de agenda na própria produção da pesquisadora, a partir de 2001. As análises contidas nos cinco capítulos respondem a muitas questões, mas abrem, sobretudo, outras tantas indagações.

De fato, a autora menciona duas dimensões centrais no seu foco de análise: “o poder de veto das unidades constituintes nas arenas decisórias centrais (sharedrule) e a autonomia dos governos subnacionais para decidir suas próprias políticas (selfrule)” (p. 13). Assim, a estrutura do livro tem os três primeiros capítulos voltados para a primeira dimensão e os dois últimos abordando a segunda dimensão.

No primeiro capítulo, a pesquisadora examina 59 iniciativas de interesse federativo, que foram aprovadas na Câmara dos Deputados entre 1989 e 2006. Tratam de diferentes matérias que afetam interesses dos governos subnacionais, relacionadas às receitas de estados e municípios; à autonomia dos governos subnacionais na decisão sobre a arrecadação de seus impostos, o exercício de suas competências e a alocação de suas receitas. E ela o faz sempre trazendo o texto da Constituição de 1988, onde claramente é atribuída à União autoridade para legislar “sobre todas as matérias que dizem respeito às ações de Estados e municípios” (p. 70). A autora também demonstra que os constituintes de 1988 “não criaram muitas oportunidades institucionais de veto” e “não previram fortes proteções institucionais para evitar que a União tomasse iniciativas para expropriar suas receitas ou mesmo sua autoridade sobre os impostos e as políticas sob sua competência” (p. 70). Assim, com argumentação solidamente fundamentada, aborda os seguintes aspectos: a partir do federalismo comparado, analisa hipóteses do processo centralizador vivido na década de 1990; estuda amplamente as leis federais afetando interesses dos governos subnacionais, fundamentando-se na distinção entre execução de políticas e autoridade decisória; analisa – como determinantes federativos desse processo – as mudanças nas agendas da Presidência da República e o comportamento das bancadas estaduais; finalmente, identifica a influência das instituições federativas em relação aos processos decisórios. Em sua conclusão “de como 1988 facilitou 1995”, que aparece como título deste primeiro capítulo do livro, Marta nos diz que “há mais continuidade entre as mudanças na estrutura federativa da segunda metade da década de 1990 e o contrato original de 1988 do que a noção de uma ampla reestruturação das relações intergovernamentais autorizaria supor” (p. 72).

Já o segundo capítulo se volta para uma análise do comportamento das bancadas estaduais na Câmara dos Deputados em relação às matérias de interesse federativo, especificamente aquelas em que a União e os “governos territoriais” tinham interesses opostos. Foram identificadas 69 iniciativas – propostas de emenda constitucional (PECs), projetos de lei complementar (PLPs) e projetos de lei (PLs) – representando 24% de votações no período de 1989 a 2009. Este capítulo se ocupa da agenda federativa após a Constituição de 1988 cuja temática principal é a criação de impostos e contribuições não sujeitos à repartição com os estados e municípios, da análise da correlação entre a “centralização decisória nas arenas federais” e a limitação das “oportunidades institucionais de veto dos governos territoriais”. A conclusão da pesquisadora é exposta em um duplo aspecto. Primeiramente a “centralização regulatória combinada à ausência de arenas decisórias adicionais de veto” limita as oportunidades de veto dos governos subnacionais. Em segundo lugar, o comportamento das bancadas estaduais sem coesão em torno das questões estaduais, cedendo mais aos acordos partidários do que aos interesses regionais que representam (p. 112113).

No capítulo terceiro, a investigação se volta para uma análise comparada da relação entre federalismo e bicameralismo, como fundamentação argumentativa do estudo sobre o comportamento do Senado Federal brasileiro. Sobretudo estudando a tramitação de 28 emendas constitucionais, a autora constata que nossos senadores não se deixam afetar pelas pressões dos governadores, das elites econômicas ou da opinião pública dos estados ou regiões que representam. O poder de veto no Senado Federal, de fato, pertence aos partidos políticos e não aos interesses regionais. Unindo o caso brasileiro às teorias que embasam o relacionamento do federalismo ao bicameralismo, a pesquisadora assim se expressa em sua conclusão: “mesmo sob o bicameralismo simétrico em que a Câmara Alta constitua uma arena adicional de veto, o efeito inibidor de vocalização dos interesses regionais sobre a mudança institucional pode ser substancialmente reduzido se a segunda casa legislativa também for uma casa partidária, isto é, se a disciplina partidária prevalecer sobre a coesão da representação regional” (p. 141).

Se até aqui Arretche privilegiou a análise da centralização e o poder de veto das instâncias subnacionais, nos capítulos quarto e quinto seu foco será a descentralização e autonomia nas relações verticais da federação e a questão da igualdade regional.

O capítulo quarto examina as bases teóricas para a análise dos “mecanismos institucionais que permitem aos governos centrais obter a cooperação dos governos subnacionais para realizar políticas de interesse comum” (p. 27). A análise comparada permitiu minimizar uma correlação direta entre a criação destes mecanismos e a forma federalista ou unitária de organização do Estado. A distinção conceitual entre execução e autoridade decisória é mais útil do que a distinção entre estados federativos e unitários “para predizer os efeitos centrífugos da relação central-local, isto é, dos arranjos verticais dos estados nacionais” (p. 170). Isto significa, no caso brasileiro, que a “convergência em torno das regras federais é alavancada quando a) a Constituição obriga comportamentos dos governos subnacionais ou a União controla recursos fiscais e os emprega como instrumento de indução de escolhas dos governos subnacionais.” (…) “Neste sentido, efeitos centrífugos não são diretamente derivados da fórmula federativa, mas mediados pelo modo como execução local e instrumentos de regulação federal estão combinados em cada política particular” (p. 171).

O capítulo final enfrenta – inovando – a questão crucial do pseudo-confronto entre a proposta federalista e a igualdade territorial como forma de manter a unidade da União. Neste sentido, argumenta contra as interpretações de que a Constituição de 1988 criou instituições federativas comprometedoras da eficiência do Estado brasileiro, lembrando que não podem ser ignorados nem o papel das desigualdades regionais, nem as relações da União com os governos subnacionais sobre o seu funcionamento. A divisão entre unidades pobres e ricas é que está “na origem da escolha por um desenho de Estado que permita ‘manter a União’ e evitar os riscos associados à fórmula majoritária” (p. 175). Resgatando as discussões dos capítulos anteriores, Marta Arretche sintetiza: “Distinguir quem formula de quem executa permite inferir que, no caso brasileiro, embora os governos subnacionais tenham um papel importante (…) no gasto público e na provisão de serviços públicos, suas decisões de arrecadação tributária, alocação de gasto e execução de políticas públicas são largamente afetadas pela regulação federal”. Após debruçar-se sobre dados de um panorama das políticas nacionais de redução das desigualdades e seus efeitos sobre a desigualdade territorial de receita, das políticas nacionais de regulamentação e supervisão do gasto e seus efeitos, a autora afirma em sua conclusão: “A parte mais expressiva das transferências federais no Brasil tem sua origem no objetivo de reduzir desigualdades territoriais de capacidade de gasto. Essas foram (historicamente) um elemento central de construção do Estado brasileiro, similarmente a outras federações, em que a ideia de uma comunidade nacional única prevaleceu sobre as demandas por autonomia regional” (p. 201).

Como afirma a apresentadora, o livro traz “uma interpretação inovadora sobre o nosso sistema federativo”. É uma obra fundamental para os cientistas políticos e apoio à autoanálise dos políticos em seu comportamento. Sobretudo, porém, indicado para fortalecer análises de pesquisadores e profissionais da saúde e da educação, já que estes campos manifestam fundamental correlação entre os poderes central e locais.

Referências

ARRETCHE, Marta. Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 23-31, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/spp/v15n4/10369.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2014. [ Links ]

Francisco José da Silveira Lobo Neto – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O documento arquivístico ante a realidade digital: uma revisão conceitual necessária | Rosely Curi Rondinelli

A publicação que ora apresentamos cumpre um importante papel na Arquivologia e na Ciência da Informação ao abordar de maneira interdisciplinar a questão do documento arquivístico digital. Esta é uma obra fundamental para quem lida com os documentos arquivísticos diante da realidade digital, sejam arquivistas, profissionais da informação em geral, ou para a sociedade como um todo. A autora consegue trazer uma obra essencial no conceito da arquivologia a partir de uma vasta bibliografia e um debate conceitual de autores de várias épocas de maneira interdisciplinar e acessível. Com isso, esse livro se torna essencial para o entendimento do documento arquivístico digital com discussões que vão além da sua área específica de conhecimento.

Um exercício epistemológico a partir do desafio de “dar nome as coisas”, nas palavras de Heredia Herrera (2005), uma ciência ou uma disciplina necessitam ter como veículo de expressão um léxico comum para conseguir um entendimento correto. É fundamental contarmos com termos claros, exatos, que correspondam a conceitos universais em matéria de arquivo. Uma saga, vislumbrando entendermos o desenvolvimento do conceito, para então pensarmos em sua consolidação na análise do documento arquivístico digital. O livro é dividido em quatro capítulos (Documento e informação: variações conceituais a partir da ciência da informação e da arquivologia; Diplomática e arquivologia: trajetória que se cruzam; documento arquivístico: o que é?; O conceito de documento arquivístico diante da realidade digital), além da introdução e considerações finais, organizados em subcapítulos, recurso que possibilita uma leitura mais objetiva. Leia Mais

Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII | Ronald Raminelli

Em Nobrezas do Novo Mundo, Ronald Raminelli apresenta os resultados de relevante pesquisa sobre as formas e critérios de nobilitação nas Américas portuguesa e espanhola no decorrer dos séculos XVII e XVIII, e de como estas práticas faziam parte das estratégias de ascensão social dos vassalos de além-mar. O autor aborda a temática demonstrando um extenso conhecimento da produção historiográfica recente e da documentação coeva, sobretudo a que se relaciona aos súditos do reino português radicados na América.

Neste sentido, destaca-se que a obra possui seis capítulos, divididos em duas partes. Os três primeiros capítulos, “Nobreza sem linhagem”, “Nobreza e governo local” e “Riqueza e mérito” compõem a primeira parte, denominada “Variações da nobreza”, na qual o autor estudou as formas de ingresso na nobreza ou de manutenção de privilégios de diversos agentes históricos na Península Ibérica e na Ibero-América. Já os três últimos capítulos, “Malogros da nobreza indígena”, “Militares pretos na Inquisição” e “Cores, raças e qualidades”, estão inseridos na última parte do livro, “Índios, negros e mulatos em ascensão”, em que Raminelli foca sua análise nos atores sociais da América Portuguesa que fracassaram nas suas tentativas nobilitação. Leia Mais

Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII | Ronald RAminelli

A obra de Ronald Raminelli ajuda a entender um pouco mais o universo da América portuguesa e espanhola. Tecendo seu livro em duas partes, Raminellli apresenta discussões acerca da heterogeneidade das nobrezas do Antigo Regime, ou seja, o estamento nobre da sociedade em que, de acordo com o autor, exibe distinções e aproximações entre Metrópole e Colônia. Isto se dá, especialmente quando Raminelli analisa o envolvimento de chefes indígenas e negros frente às Ordenanças Militares, comparando, entre outros pontos, a percepção nobiliárquica de enobrecidos hispânicos coloniais e enobrecidos portugueses da Colônia.

Raminelli nessa obra apresenta um balanço historiográfico da pesquisa dos enobrecidos das possessões americanas, e em suas considerações reflete acerca de crioulos e mazombos, os quais almejam ingressar no estamento nobiliárquico da sociedade hispânica, em especial na hierarquia nobre do Vice-reino de Peru e Vice-reino da Nova Espanha. Quanto à América portuguesa, o autor intenta estudar os índios e mulatos e suas tentativas de obter, por meio de algumas guerras entre Portugal e Holanda no litoral colonial, algumas ascensões sociais e possíveis privilégios das ordenações. Leia Mais

Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735 – 1777) | Ana Paula Pereira Costa

Os trabalhos que tem como objeto de pesquisa os “militares” ou as “instituições militares” tem ganhado cada vez mais espaço no meio historiográfico brasileiro das últimas décadas, consolidando-se como um importante campo de estudos. Contudo, as análises sobre essa temática ainda sofre certa resistência por parte da comunidade acadêmica nacional. Alguns dos motivos que levam os pesquisadores a não enveredar por essa área estão relacionados com a intervenção e a participação dos membros dessas instituições na organização política do Estado brasileira ao longo de sua história republicana (como, por exemplo, o golpe de Estado que pôs fim ao regime monárquico imperial e proclamou a República em 1889; o período ditatorial varguista, também apoiado por setores das forças armadas, conhecido como “Estado Novo” e a recente experiência da Ditadura Civil-Militar de 1964-1985).

Também pode se relacionar a escassez de análises sobre esse objeto específico à compreensão que alguns historiadores ainda possuem em relação à chamada “História/Historiografia Militar”, cuja descrição é comumente associada a uma história factual, sem problemáticas, limitando-se apenas a descrever e narrar determinadas batalhas bem como a vida dos “grandes chefes militares”. Em suma, uma história que estaria relacionada com a chamada História Política praticada, sobretudo, ao longo do século XIX até meados do século XX. Leia Mais

O desafio historiográfico – REIS (AN)

REIS, José C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 160p. (Coleção FGV de bolso. Série História). Resenha de: SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 407-415, jul. 2014.

José Carlos Reis, autor de diversas obras sobre teoria e filo­sofia da história, apresenta, em O desafio historiográfico, uma porção de temas que vem inquietando os historiadores, sobretudo em relação às crises que a ciência da história tem enfrentado desde os meados do século XX. Neste sentido, logo na introdução, o autor lança diversas questões sobre o “fazer” a história e o “ser” historiador. Conforme ressalta, seu livro “[…] tem a pretensão de propor uma reflexão ao mesmo tempo fácil e densa, rápida e profunda […] sobre o ‘desafio historiográfico’” (p. 7).

Qual seria esse desafio? Ou seriam desafios? No decorrer dos seis capítulos do livro (alguns inéditos, outros reorganizados a partir da sua vasta publicação), Reis intentará mostrá-lo[s]. No primeiro deles – homônimo ao título do livro –, o autor inicia a discussão evidenciando algumas das questões que mais têm importunado os historiadores ao longo das últimas décadas. Com “irônico sadismo”, Reis pretende com isso provocar, ou melhor, “irritar” os profis­sionais da história, expondo uma porção de críticas que a área tem sofrido, pois, na sua visão, “[…] o ganho com isso é enorme! É o fim do dogmatismo, da solene e hipócrita confiança no ‘ofício’”, uma vez que promove “o enfraquecimento dos sérios e pedantes tência de fontes; o esquecimento de reserva, isto é, aquele que é rever­sível, um tesouro profundo que pode ser recuperado; e o esquecimento manifesto, aquele que é conscientemente manipulado, apagando-se situações “constrangedoras” da história de um país, por exemplo.3 Como controlar tais abusos e vencer os esquecimentos? Seria a historiografia capaz de proteger a memória? Na leitura de Reis, Ricoeur acredita que sim, pois uma memória  […] instruída, esclarecida pela historiografia, e uma histo­riografia capaz de reanimar a memória declinante, que a rea­tualiza, que reefetua o passado, podem ser uteis à vida […] na busca do reconhecimento de si dos indivíduos em seus grupos, dos grupos em relação aos outros e da humanidade como união universal dos grupos e indivíduos (p. 45).

Ainda no segundo capítulo, o autor apresenta-nos as três fases da operação historiográfica elaboradas por Ricoeur. A fase documen­tária, momento em que o historiador procura coletar dados exte­riores, a partir dos problemas e das hipóteses por ele lançados; a fase da explicação/compreensão, momento em que o pesquisador organiza a massa documental na tentativa de compreendê-la e interpretá-la; e a terceira fase, que é a da representação narrativa, isto é, o fecha­mento da operação historiográfica – sem nos esquecermos, claro, da recepção e apropriação dos leitores.

No fechamento do capítulo, José C. Reis afirma mais uma vez que Ricoeur procura reunir memória e historiografia, pacificar a sua “relação difícil”, demonstrando que o objetivo de ambas é o mesmo: vencer o esquecimento. O objetivo maior da memória-historiografia é a “reconciliação com a vida”, que se realiza “no perdão”, por meio de um trabalho de luto, de “psicologia coletiva” que a historiografia acaba exercendo (p. 61). Tal concepção, no entanto, pode ser criti­cada se levarmos em consideração os perigos que existem com a perspectiva apaziguante ricoeuriana, pois é muito mais fácil para o opressor esquecer-se das atrocidades que cometeu do que para o oprimido se esquecer das que sofreu, e temas como o Holocausto e o Golpe Militar estão aí para nos mostrar como não é fácil achar uma justa medida entre o perdão e a justiça.

No terceiro capítulo, o autor retoma algumas das discussões feitas no início do livro e se dedica a nos mostrar o debate em torno da narrativa histórica, evidenciando especialmente as críticas feitas por Hayden White, que provocaram diversas crises na histo­riografia. O historiador norte-americano é categórico ao sinalizar que o discurso historiográfico não seria realista, pois os historia­dores fazem apenas a construção de versões por meio de um “arte­fato verbal em prosa”, e que a “[…] história é uma representação narrativa das representações-fontes”, não havendo oposição entre história e ficção (p. 64); “o passado como tal” é inacessível e o passado ao qual os historiadores podem ter acesso – seus traços ou restos documentais – é constituído por textos (discursos), e não por uma realidade extradiscursiva – um referente externo ao discurso (FALCON, 2011, p. 170). Em resumo: não há cientificidade na operação historiográfica.

Para fazer tal análise, Reis abordará principalmente a obra Tempo e narrativa4, de Ricoeur, que faz uma profunda discussão acerca dessas indigestas questões apontadas por White. Segundo nosso autor, Ricoeur defende o realismo histórico, pois “[…] o tempo vivido não é inenarrável”, “[…] as narrativas históricas são ‘variações interpretativas’ do passado […] mas [são] realistas”, uma vez que “[…] as intrigas variam, mas as datas, os documentos, os personagens, os eventos, os locais, são os mesmos”. Exemplifi­cando, Reis ressalta que existem várias configurações narrativas sobre a Revolução Francesa ou o Golpe de 64, “[…] mas elas não podem alterar [seus] dados exteriores” (p. 69-76). No decorrer do capítulo, entretanto, ele nos mostrará que, para Ricoeur, apesar de inicial­mente heterogêneas e opostas, as narrativas histórica e ficcional também se entrecruzam, porém sem se confundir.

Como exemplo de tal afirmação, no último tópico do capí­tulo, há uma análise do debate feito por Ricoeur acerca da obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico à época de Felipe II, de Braudel, que “[…] seria um exemplo revelador do caráter produtivo do entrecruzamento entre narrativa histórica e ficcional” (p. 83) e que evidencia o fato de que não há um “retorno à narrativa” – na prática, nunca houve “nem partida nem abandono”, pois mesmo as primeiras gerações dos Annales nunca abandonaram a narrativa, uma vez que “sociedades”, “classes”, “mentalidades” e inclusive o “Mediterrâneo” são “quase-personagens” de uma narrativa, já que “mesmo a mais estrutural é construída a partir das fórmulas que governam a produção das narrativas (CHARTIER, 2002, p. 86-87), o que, claro, não invalida o discurso histórico.

No quarto capítulo, o autor faz uma descrição geral das princi‑pais características dos Annales, mostrando aquilo que houve de inovador na sua prática historiográfica, em oposição à historiografia tradicional oitocentista. Segundo Reis, os primeiros Annales são parti­dários de uma “história-problema”, que se opunha à historiografia tradicional, acusada de ser meramente narrativa, descritiva e despro­blematizada, pois pretendia apenas “[…] narrar os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, em sua evolução linear e irreversível, ‘tal como se passaram’”. Na “história-problema”, o historiador escolhe seus objetos no passado a partir de interrogações do presente (p. 93). Para obter tal êxito, os Annales inovaram de várias maneiras: a noção de “fato histórico” como construção, em oposição ao “fato dado” nos documentos (escola metódica); a ampliação e a variedade do uso das fontes histó­ricas; e a ambição de uma história total e global. Unindo-se a tais propostas, os annalistes propuseram o uso da interdisciplinaridade.

Ainda que breve, tal discussão servirá como uma antessala para o debate feito no capítulo seguinte, Annales versus marxismos: os paradigmas históricos do século XX. Nesse capítulo, o autor faz inicial­mente uma abordagem acerca das principais diferenças entre a modernidade iluminista e a pós-modernidade para poder, poste­riormente, situar os Annales e o marxismo. No primeiro caso, o projeto moderno iluminista é eminentemente racional e constrói um sujeito singular-coletivo absoluto e consciente, e a história é um processo inteligível com um final claro, isto é, “[…] a vitória da razão, que governa o mundo” (p. 105). Para tanto, segundo Reis, a modernidade desprezava o presente e o passado, lançando seu olhar para o futuro e provocando, assim, uma “aceleração da história”. Esse é um dos pontos em que recaem as críticas a tal projeto, pois a “intervenção radical da realidade histórica” acabou por produzir um nível de agressão que não trouxe progresso e feli­cidade. Daí emerge uma visão anti-iluminista, que pretende pôr fim ao “projeto moderno” em favor de um “pós-moderno”.

O pós-modernismo é dividido em duas fases: a primeira delas é ligada ao estruturalismo, que criticava a noção de “sujeito­-universal”, uma vez que, para os estruturalistas, “[…] o homem não é só sujeito, mas também objeto” (p. 108). Entretanto, ali ainda havia uma tentativa de “[…] produzir uma inteligibilidade ampliada da história”, “um discurso da razão” (p. 110) – não mais centrada no sujeito absoluto, pois “sua verdade é oculta” e fica além da ilusória, falsa e aparente razão. Na segunda fase, mais conhecida como pós­-estruturalista, radicalizavam-se algumas posições, incluindo-se até mesmo os primeiros estruturalistas nas críticas, por ainda manterem um discurso racionalizante. Nas palavras de Reis, a  pós-modernidade desconstrói, deslegitima, deslembra, desmemoriza o discurso da ‘razão que governa o mundo’ […], aborda um mundo humano parcial, limitado, descentrado, em migalhas […], assistemático, antiestrutural, antiglobal” (p. 111), e “o conhecimento histórico é múltiplo e não definitivo: são in­terpretações de interpretações (p. 112).

“Onde situar os Annales e os marxismos?”, nos pergunta Reis. Em primeiro lugar, é difícil situá-los, pois ambos não são homo­gêneos e talvez isso seja até um componente positivo, conforme ressalta, talvez “[…] a heterogeneidade interna dos dois grupos permita alguma aproximação e colaboração” (p. 114). Neste sentido, o autor divide sua discussão em três leituras, enfatizando espe­cialmente as diferenças entre o marxismo-soviético e os Annales: uma primeira que valoriza aquilo que é comum; a segunda, que nos mostra sua oposição; e uma terceira que os considera simples­mente diferentes, isto é, nem complementares nem opostos, apenas “[…] vistos como teorias, hipóteses de trabalhos que só têm valor e só podem dialogar porque são ‘diferentes’” (p. 115), e só assim é possível obter elementos para a escrita de uma história plural, e não totalitária. A respeito da sobrevivência ou não de ambas as correntes – Annales e marxismo –, tudo dependerá do resultado do embate entre “o projeto moderno” versus “pós-modernidade”, uma vez que ainda não há total abandono do iluminismo.

O último capítulo da obra pareceu um tipo de apêndice, que teve como intenção inserir a historiografia brasileira em um debate teórico até então eminentemente norte-americano-eurocêntrico. A discussão ali feita é válida e importante, mas seria mais apropriada em outra ocasião, pois é curioso que uma abordagem tão rica tenha sido feita em um capítulo tão curto. Cremos que o ideal seria dedicar uma obra de mesmo perfil (isto é, versão de bolso) somente às contribuições de Freyre, já que tal investida nos pareceu solta e sem conexão direta com os demais capítulos. De qualquer modo, é importante frisar que Reis intentou abrir uma discussão sobre “ser historiador do/no Brasil” no sexto capítulo. No entanto, como tal tarefa seria impossível de ser realizada em tão pouco espaço, o autor apresenta apenas a contribuição de Gilberto Freyre, sobre­tudo no que tange ao seu talento como narrador e como precursor de uma porção de temas inovadores na historiografia, uma vez que “[…] descobriu, ao mesmo tempo que os franceses dos Annales, a história do cotidiano […] das mentalidades coletivas, a renovação das fontes da pesquisa histórica” (p. 144) etc. Isso significa dizer que, apesar de toda a contradição e a polêmica que cercam a obra e a figura de Gilberto Freyre, ele também foi um inovador, e não somente um reprodutor de tendências europeias, não desconside­rando, é claro, que boa parte de sua formação acadêmica foi feita nos Estados Unidos, sob forte influência alemã.  O desafio historiográfico é uma importante contribuição, espe­cialmente para historiadores mais jovens, pois José Carlos Reis consegue fazer um debate extremamente complexo muito didatica­mente, e isto é louvável. Não podemos deixar de dizer, entretanto, que algumas questões são tão resumidas que podem dificultar a compreensão de um leitor iniciante, exigindo, de certo modo, uma leitura prévia de alguns temas ou uma busca em outra bibliografia, como o próprio autor avisa na introdução da obra.

Ademais, além de advertir contra um dos maiores males da escrita da história e de seus profissionais, isto é, a tendência “parri­cida” em relação aos nossos mestres e às correntes historiográficas anteriores a nós, o que ficou subentendido é o fato de que Reis inclina-se a aceitar a proposta ricoeuriana, isto é, a via do diálogo e da “não dogmatização” do saber histórico. O ideal, na visão do autor, é caminharmos sempre pela via da compreensão, ainda que os embates sejam inevitáveis. Neste sentido, faz-se necessário aproveitarmos o que há de importante nas mais diversas vertentes historiográficas, sem incorrermos no erro de ficarmos cegos e per‑didos em uma só visão.

Notas

1 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain Fran­çois. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.

2 Ricoeur – diz Reis – pondera, entretanto, que em algumas profissões, como o teatro, por exemplo, a “memória artificial” é uma poderosa arma contra o esquecimento (p. 37).

3 Helenice Rodrigues da Silva dá um exemplo típico em relação ao esquecimento mani‑festo. Diz ela que, nas comemorações dos “500 anos do Brasil”, foram “esque‑cidos” “os massacres indígenas, a escravidão negra, as violências da história”, em prol dos “mitos fundadores e das utopias nacionais (o ‘paraíso tropical’ e o ‘país do futuro’)” (2002, p. 432).

4 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF/Martins Fontes, 2010.

Referências

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

FALCON, Francisco J. C. Estudos de teoria e historiografia, volume I: teoria da histó­ria. São Paulo: Hucitec, 2011.

SILVA, Helenice Rodrigues da. “Rememoração”/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 425-438, 2002.

Cláudia Regina Bovo – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Mato Grosso, doutoranda em História/Unicamp. Endereço Eletrônico: [email protected]

Tempo presente e usos do passado / F. F. Varella, H. M. Mollo, M. H. F. Pereira e S. Mata

A profusão de acontecimentos e velozes transformações que marcaram “o breve século XX” provocaram nos historiadores, especialmente após a Segunda Grande Guerra, o interesse por investigar as questões de seu próprio tempo. Enfrentando preconceitos historiográficos estabelecidos no século XIX, quanto à (im)possibilidade de historicização do presente, os que se dedicaram a essa empreitada atravessaram décadas de questionamentos acerca da legitimidade científica de seus estudos. Nessa trajetória de enfrentamentos, que resultou na institucionalização da chamada história do tempo presente, a criação de institutos em vários países europeus voltados para a abordagem do pós-guerra e as demandas sociais pelo conhecimento da história próxima – muitas vezes, guiadas pela ideia de justiça e “preservação” da memória, a “aceleração” do tempo e o contexto de renovação historiográfica, a partir dos anos 1970 – exerceram importante papel, no terço final do século passado.

No Brasil, especificamente, a preocupação com problemas relacionados ao tempo presente começou a ganhar fôlego na historiografia nos anos 1990, como atesta, por exemplo, a tradução e publicação de importantes obras de historiadores europeus dedicados à análise do presente e luta por sua legitimação como objeto de investigação histórica. O surgimento de revistas especializadas, a instituição de laboratórios, grupos de pesquisa e a promoção de eventos com foco na temática demonstram o crescente espaço que o tempo presente vem conquistando na constelação das preocupações historiadoras em nosso país. Leia Mais

A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII – RAMINELLI (S-RH)

RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, 180 p. Resenha de: CHAVES JUNIOR, José Inaldo. Uma era revisitada: a  América Espnahola em Tempos de conquistas. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [30] jan./jun. 2014.

É eclética e volumosa a produção de saberes sobre a América desde a chegada dos europeus nos estertores do século XV, com notícias sobre as suas potencialidades, suas gentes, matas, rios, minérios e, principalmente, os caminhos para acessálos.

Em tempos de expansão marítima, uma cartografia do lugar foi desde cedo valorizada pela Monarquia católica e recompensados com mercês e honras foram aqueles que se dispuseram a produzi-la. Doravante, uma controvertida literatura de viagem, produzida por religiosos, conquistadores e aventureiros das mais variadas origens geográficas e sociais, dedicou-se à narrativa da conquista ibérica sobre o Novo Mundo. Plenamente inseridos no contexto de consolidação das monarquias europeias, estes relatos demonstraram a intrínseca relação mantida entre homens e mulheres de cá e d’além-mar, desde quando os primeiros pés castelhanos pisaram o chão do Eldorado. Desde o século XVI, o Novo Mundo jamais conseguiu ser tão distante e ausente como alguns relatos faziam crer, e, a despeito da imensidão oceânica e das intempéries das rotas marítimas, suas histórias entrecruzaram-se com as do velho continente, integrando-se aos cenários renascentista e de formação dos estados modernos.

O contato inicial entre ameríndios e europeus foi copiosamente narrado e ilustrado, asseverado em descrições barrocas acerca da violência étnica, da guerra e da consequente ruína demográfica indígena, resultados últimos da desapropriação de seus bens e das doenças trazidas pelo homem branco. Um discurso de vitimização das populações indígenas da América hispânica caracterizou parte significativa dos relatos da conquista, assinalando, por outro lado, a crueldade colonizadora e sua sanha pelo sangue autóctone, pelo ouro e por suas terras. Em larga medida, este imaginário da violência, produzido, em sua maioria, pelos opositores da hegemonia ibérica sobre o Atlântico ou por religiosos protestantes e católicos que questionavam os propósitos da conquista, contagiou uma cultura histórica subsequente.

A era das conquistas, de Ronald Raminelli, dedica-se generosamente a este e outros temas, passando por frutíferas searas, como o governo imperial de Carlos V e Felipe II, as elites coloniais e o acirrado relacionamento entre a Coroa, os conquistadores e as populações indígenas entre os séculos XVI e XVII. Realizando um importante balanço historiográfico e problematizando tradicionais jargões de uma vasta e qualificada historiografia sobre a América espanhola, esse livro integra o arrojado editorial da coleção de bolso da Editora FGV, que já lançou outros títulos de igual relevância, defendendo a proposta de livros de síntese escritos pelos melhores especialistas, mas prezando por uma linguagem acessível ao grande público, e não apenas aos iniciados2.

Neste sentido, é ocioso acrescentar que o tema do livro resenhado não constitui novidade para Raminelli, experiente professor de História da América na Universidade Federal Fluminense. Não somente suas aulas, mas sua produção acadêmica tem se voltado para o campo da História da América há algum tempo, o que faz do autor uma reconhecida referência. Seguindo a trilha inaugurada por Sergio Buarque de Holanda, sobretudo no seu Visão do Paraíso (1959), o autor localiza muitos de seus livros e artigos na intersecção entre as histórias das Américas portuguesa e hispânica, buscando, a partir de sólidas e refinadas investigações sobre as elites coloniais, as hierarquias sociais e a produção de saberes no Novo Mundo, um caminho comparativo autêntico e rigoroso, não afeito aos modismos, sem com isso descuidar do diálogo com os pares, como atesta este novo livro3.

Em sua introdução, A era das conquistas destaca as Grands Voyages, do impressor e gravador calvinista Theodore de Bry, obra publicada em 1590 e que marcou significativamente as representações do Novo Mundo produzidas a partir de então, uma vez que abriu espaço às coleções de narrativas em vernáculos, acompanhadas por iconografias que somente alcançaram o grande público depois do referido título. Os treze volumes reunindo relatos das primeiras viagens à América popularizaram-se, sobretudo, por conter centenas de xilogravuras que impunham uma visão aterradora do Novo Mundo e de seus habitantes aos europeus em sua maioria iletrados. No entanto, os gravuristas e cronistas que passaram pela América ou dela ouviram falar registraram suas impressões do outro, do novo, a partir de um conjunto rico de lembranças e memórias próprio das culturas europeias.

Neste sentido, o esforço de absorção do estranho, desse exótico Novo Mundo, se deu graças ao uso de códigos e padrões estéticos forjados em associações e experiências anteriores, aproximações (como na fórmula de Merleau-Ponty, “perceber é recordar”)4 que integraram o americano ao imaginário europeu enquanto selvagem, bárbaro, canibal e satânico. Como nos lembra Lucien Febvre, os homens de Quinhentos, tanto os frequentadores dos círculos letrados quanto o humilde camponês analfabeto, enxergavam um universo povoado de e imagéticos que eles registraram seu contato com a América e os povos que por cá viviam.

Esta percepção do outro enquanto “reconhecimento” e “projeção de lembranças” valeu inclusive para fundamentar as críticas produzidas contra a própria ação conquistadora, como ilustrou Theodore de Bry, nascido em Liège em 1528. De Bry era filho de uma abastada família, mas perdera tudo ao converter-se ao calvinismo durante a perseguição religiosa promovida pelos espanhóis católicos nos Países Baixos. Refugiando-se em Estrasburgo, cidade de relativa liberdade religiosa e política e com um florescente mercado editorial, aprimorou sua arte e pôs em gravuras a conquista da América, tendo como referencial político as guerras de religião e a aversão à idolatria e ao papismo dos espanhóis6. Numa Europa dividida pelas guerras religiosas e apavorada pela expectativa da Parúsia, as visões escatológicas do Novo Mundo oscilaram entre a descrição do Paraíso – um ponto originário e redentor onde os homens viviam despidos do pecado – e o lugar da depravação moral, prenunciadora do fim dos tempos7. Nas suas imagens, a crueldade dos espanhóis na conquista era vista como emblema de uma monarquia decadente e perniciosa, sendo sua destruição anunciada pelo desvio do propósito evangelizador.

Dentre os relatos utilizados por De Bry estava o do frei Bartolomé De Las Casas, em sua Brevíssima relación de la destrucción de las Indias, de 1552. O cronista e religioso católico era um conhecido crítico da conquista espanhola e registrou particularmente “as guerras, a exploração dos nativos, e os desvios do projeto de conversão e salvação das almas americanas”8. Ronald Raminelli relata que a ilustração de De Bry, de 1598, “agravou ainda mais as denúncias de Las Casas” e endossou a leyenda negra – uma história em que uns poucos espanhóis armados a cavalo conseguiram ardilosamente roubar a vida, as terras e as riquezas de milhares de ameríndios9.

Entretanto, como nos mostra Raminelli, as imagens de Theodore de Bry, fundadas em cronistas como Las Casas, fizeram muito mais que difundir os horrores da conquista espanhola, descreveram também a inércia americana, sua incapacidade frente ao avanço europeu, estando, pois, na gênese de uma arraigada interpretação vitimizadora do lado indígena que, ao fim e ao cabo, tornou-se contraproducente na compreensão das estratégias de resistência, acomodação e sobrevivência não apenas física, mas política dos povos indígenas em situação colonial. Por sua vez, uma visão linear, determinista e excessivamente sectária (conquistadores versus ameríndios) obliterou as disputas existentes dentro dos próprios flancos espanhóis e as imprescindíveis alianças entre chefias indígenas e conquistadores que tiveram como propósito inicial a destruição de inimigos comuns. As próprias lógicas culturais da guerra ameríndia operaram alianças deste tipo desde muito antes da chegada dos europeus, de modo que a vitória hispânica sobre os impérios mexica e inca dependeu largamente da contribuição de povos indígenas insatisfeitos com o jugo anterior.

Não por menos, o autor trata de conquistas, buscando apresentar um panorama multifacetado de atores, empresas e diferentes estratégias que compuseram a construção do mundo colonial hispânico entre os séculos XVI e XVII, revendo, portanto, “uma visão simplista e imparcial da conquista da América”10. O percurso analítico escolhido faz a opção por integrar plenamente a conjuntura do assalto espanhol ao Novo Mundo aos processos estruturais de formação das monarquias ibéricas, sendo as guerras empreendidas em solo americano parte primordial da estratégia de fortalecimento da autoridade régia. Segundo o autor, Com a prata americana, os reis expandiram a burocracia, remuneraram aliados e armaram tropas. De fato, os ameríndios não foram os únicos a se submeter às leis monárquicas. Colombo, Cortés, Pizarro e os mais afamados conquistadores se enquadraram ou foram aniquilados pelos representantes de Sua Majestade.11 Neste novo trabalho, o historiador fluminense explora a afirmação do poder real diante do ímpeto de conquistadores que pretendiam afirmar-se como verdadeiros senhores feudais na América. Destarte, homens como Cortés e Pizarro “não dispunham dos mesmos trunfos empregados pela nobreza castelhana no momento da negociação de seus direitos”12 e, por conseguinte, a autoridade central terminou por controlar melhor as localidades distantes que os próprios reinos e ducados da Península, repletos de facções e partidos que dividiam as nobrezas e fragilizavam o poder régio13. Na verdade, reiterando a tese do renomado historiador inglês John Elliott, Raminelli acrescenta que, sob algum aspecto, “a administração hispânica da América era mais moderna que o próprio governo da Espanha e das monarquias da Europa quinhentista”14.

Isto ocorria porque a América estava menos sujeita às chantagens dos poderes locais e aos impasses da manutenção de uma ampla rede de aliados, problemas diuturnamente enfrentados pela Monarquia de Carlos V, espremida entre a cruz e a espada, entre a satisfação da expansão imperial sobre territórios político e culturalmente variados e o atendimento dos anseios da nobreza castelhana, ressentida com seu rei absenteísta e desinteressado15.

A era das conquistas divide-se em cinco capítulos, nos quais o autor testa, com habilidade, seu argumento de que diferentes frentes de conquista subsidiaram a produção dos territórios coloniais da Monarquia católica, da Espanha à América.

O artífice central (embora não exclusivo) das empresas de conquista foi a própria Coroa dos Habsburgo que, sob duras penas, afirmou seu poder em um processo de construção de centralidades com marchas e contramarchas na Europa e nas possessões ultramarinas. No primeiro capítulo, Raminelli narra as dificuldades da Monarquia em controlar a insatisfação dos nobres castelhanos, levantados em armas na Revolta dos Comuneros (1520-1522). Conservadores, os nobres saudavam a antiga Castela, anterior a união dos reinos de Isabel e Fernando de Aragão (1469); defendiam seus antigos privilégios, esquecidos desde então; e questionavam o peso tributário lançado pela Coroa e a sagração de Carlos V como imperador do Sacro Império. Um rei ausente e mais preocupado com as suas batalhas travadas no norte da Europa, contra a Inglaterra e o avanço protestante, desprestigiara a nobreza castelhana, embora precisasse mais que nunca de seus préstimos para manter sua política imperial belicosa. Todavia, para os nobres castelhanos, mais importava a Espanha que o Império.

Como a história nos conta, a revolta da fidalguia de Castela foi debelada por Carlos V ao levar-se ao limite a sua política de alianças, feito um “gigante inerte”, dependente do apoio financeiro e militar das nobrezas castelhana e estrangeira de seu vasto Império, e igualmente frágil diante da concessão de seu poder interventor sobre as localidades – um preço alto a ser pago na tentativa de conter os focos de resistência aristocrática. Este interessante capítulo segue com o debate acerca do Estado moderno, seu limites, conflitos de jurisdição bem como as principais interpretações historiográficas acerca de sua emergência. O pano de fundo continua sendo a Monarquia católica e seu complexo acerto imperial. A missão de governar na época moderna era partilhada e o rei dividia, ao menos, com a Igreja, a nobreza e as municipalidades as atribuições do governo dos povos – um governo indireto e polissinodal, caracterizado pela difusão dos centros de decisão política. Todavia, nestes primeiros tempos da modernidade, ainda que a instituição “Estado”, tal como nos é acessível hoje em dia, fosse desconhecida dos coevos, o autor relata que as monarquias reuniram as condições de sua posterior emergência a partir da ampliação da esfera jurisdicional, do crescimento do oficialato régio e da sistematização de leis e a territorialização do poder régio16.

A disseminação da autoridade do rei em cenários nos quais os poderes locais possuíam fortíssima proeminência, tanto na Europa quanto na América, proliferou os conflitos de jurisdição, motivados, na maioria das vezes, pela própria inserção dos oficiais da Coroa (vice-reis, magistrados, bispos dentre outros) nos jogos políticos locais. Embora a decisão final das querelas sempre dependesse do Conselho das Índias, criado entre 1523 e 1524, ou, em último caso, do rei, “a distância e a fugidia presença régia promoviam forças centrífugas e levavam, por vezes, para longe de Madri o governo do Novo Mundo”17. Diante da dispersão das decisões políticas, a venalidade dos altos oficiais de Sua Majestade, em especial dos vice-reis, tornouse um primoroso mecanismo político através da construção de lealdades que nem sempre significaram o incremento do poder real. Coube a Monarquia cercear estes desvios de autoridade, uma missão quase sempre realizada parcamente, mas para a qual dedicou-se conspícua atenção dos órgãos centrais.

Entretanto, se, por um lado, os conflitos de jurisdição e as venalidades foram fenômenos típicos dos modos de governar na época moderna, tanto na Europa quanto no ultramar, segundo Ronald Raminelli, as disputas entre poderes locais e poder central no Novo Mundo não tiveram as mesmas proporções daqueles desencadeadas na metrópole, isto porque por aqui “o governo sentia menos as interferências do legado feudal, dos senhorios, das jurisdições múltiplas, enfim do forte poder local, ainda determinante na Espanha”18. Além disso, como nos conta o autor:

Em princípio, na América colonial, os impedimentos contrários ao bom cumprimento das ordens régias eram atenuados, pois os poderes locais nativos foram dizimados nas guerras, nas epidemias e nas negociações empreendidas entre monarcas, conquistadores e chefes indígenas.19 Neste sentido, uma das principais contribuições trazidas por Ronald Raminelli é apontar que, se as guerras contra os indígenas e a crueldade colonial foram dimensões inegáveis da conquista, como apontaram os cronistas, não foram elas, contudo, monopolizadoras de um processo muito mais intricado. As conquistas do Novo Mundo implicaram, inclusive, no enquadramento dos interesses dos primeiros conquistadores e das chefias indígenas aliadas, segmentos sociais ambiciosos pelas benesses régias, os prêmios e honras da empresa colonial. Este é o assunto do 2º capítulo de A era das conquistas. Após um período de concessões e salvaguarda das vassalagens a partir de uma eficiente economia das mercês, a contínua redução da capacidade remuneratória da Coroa fez parte de uma “política de sufocamento” do poder dos conquistadores antigos, que contou ainda com a extinção da transmissão hereditária das encomiendas (Leis Novas) e com a supressão do controle do trabalho indígena por parte dos encomienderos (1549), que passaram a dispor legalmente apenas dos tributos pagos pelos nativos. Por sua vez, o incentivo régio à colonização produziu mais concorrência por terra e trabalho, ao passo que garantiu a formação de uma segunda geração de conquistadores fiel à Sua Majestade, sem os tradicionais vícios da leva que trouxe Colombo, Pizarro e Cortés ao Novo Mundo.

Cabe-nos destacar, na esteira da reflexão encetada por Raminelli, que, ao inviabilizar a concentração de poder, tanto entre os conquistadores quanto entre vice-reis, ouvidores governadores e bispos, a Coroa hispânica elevou o fenômeno dos conflitos de jurisdição ao patamar de estratégia primaz do exercício de sua autoridade na América, pois, ao jogar com as parcialidades e promover uma contínua redistribuição dos poderes, conseguia neutralizar a autonomia de seus agentes e garantir a vigilância contínua diante de possíveis focos de contestação (system of checks and balance). Aquilo que aparentemente representava irracionalidade administrativa e erosão política transformou-se num poderoso mecanismo de controle sobre as municipalidades coloniais, ainda que houvesse sensíveis limites a plena ação do poder real, dadas as sempre precárias condições da governabilidade no ultramar.

Aliás, o 3º capítulo dedica-se à discussão de conceitos-chave da recente historiografia política da época moderna, em especial das conquistas coloniais, a exemplo da aplicação da categoria elites nas investigações sobre segmentos sociais privilegiados no Novo Mundo. Neste sentido, o autor apresenta uma caracterização do cabildo enquanto locus do poder local na América hispânica, considerando as formas de enriquecimento e ascensão, as práticas sociais, como o descaminho e a ilicitude, os perfis regionais, as condições de ingresso e as tentativas da Coroa de limitar os seus poderes na localidade, inclusive através dos conflitos de jurisdição com órgãos como as audiências.

De acordo com Raminelli, para resistir às investidas da Coroa e de seus agentes, sobretudo dos governadores e das Audiências, as elites locais encasteladas nos cabildos tradicionalmente recorreram à máxima da administração castelhana, “obedezo pero no cumplo”, repetindo no ultramar os valores de uma cultura política própria do Antigo Regime, ainda que desta mantivesse sensíveis distanciamentos.

Seja como for e dadas as contumazes interferências régias, o fato é que os cabildos do Novo Mundo perderam gradativamente sua capacidade de representar os interesses locais e negociar com a Coroa e, pelos idos de 1650, “entraram em franca decadência”, recobrando alguma proeminência apenas no século XVIII, em meio às decorrências das reformas bourbônicas20.

Doutra feita, uma relevante problematização de conceitos como “sociedade estamental” e “Estado absolutista” é realizada pelo autor, que afirma que os novos estudos acerca das hierarquias e da mobilidade social no Antigo Regime ibérico questionaram abertamente a suposta rigidez das classificações sociais na Europa moderna e, mais ainda, no Novo Mundo, haja vista a permissividade de sociedades onde a norma e a prática não possuíam limites claros, nem mesmo para os representantes do poder constituído. Considerando o caso espanhol, Raminelli resgata a tese do historiador Enrique Soria, para quem “a ascensão social era o importante motor do poder régio, ou seja, que em busca de honra e enriquecimento os vassalos prestavam serviços e demonstravam lealdade ao soberano. Portanto, aos poucos, as ordens (nobreza, clero, povo) tiveram suas fronteiras enfraquecidas”21.

Por conseguinte, mais do que preocupar-se em encontrar as razões de um suposto Estado absoluto e onipresente, o problema historiográfico atual tem se voltado para a compreensão dos corpos políticos periféricos e de seu primordial papel na afirmação da centralidade régia ao longo da época moderna – uma verdadeira inversão analítica, das macroestruturas aos micro-poderes –, tendo em consideração que “o poder local nem sempre se situava no plano da lei e do direito oficial, mas à margem dessa lei e desse direito”22.

Os capítulos que encerram esta contribuição historiográfica de Ronald Raminelli dirigem a análise a um outro palco desta era de conquista no plural pois, se, em sua primeira parte, o autor concentrou-se em discorrer sobre as tentativas e efetividade do controle régio sobre as forças colonizadoras – conquistadores e oficiais da Coroa –, integrando a colonização da América ao contexto de afirmação da Monarquia católica; neste último momento, seu interesse se voltará para os colonizados. A questão central dos capítulos 4º e 5º é, pois, a superação, nos estudos coloniais, de uma interpretação que considerou a conquista do Novo Mundo enquanto aculturação. Segundo o autor, o conceito aculturação ganhou relevo nos anos 1980 e seu uso visou investigar “as transformações culturais provocadas pela conquista, pelo confronto entre a tradição ibérica e as várias etnias encontradas na América”, porém, compreendendo-as como perdas das tradições indígenas originárias23.

Resgatando clássicos estudos que utilizaram o conceito, o autor cita, por exemplo, as tipologias propostas por Wachtel. Algumas delas foram as categorias de “processo de integração” e “processo de assimilação” para dar conta das modificações nos padrões culturais e socioeconômicos das sociedades indígenas em situação colonial. De acordo com Raminelli, por “processo de integração” Wachtel definia a “incorporação de valores e costumes estranhos, mas que adquiriam novo sentido entre os autóctones”; já “processo de assimilação” era caracterizado pela “transformação cultural imposta pelos colonizadores”24. Outro renomado autor, Todorov, também recebeu a atenção de Raminelli, justamente por, tal como Wachtel, dedicar-se à análise dos mecanismos de dominação espanhola tendo como premissa o conceito de aculturação. Na perspectiva de Todorov, a grande artimanha de colonizadores como Cortés foi justamente aprender a manipular os valores e símbolos ameríndios, revertendo em seu favor às estruturas de poder e dominação de uma época pré-hispânica. Além disso, para Todorov, uma superioridade técnica (armas e mobilidade) teriam completado a equação que garantiu uma vitória inexorável aos espanhóis.

Atualmente, perspectivas interpretativas como as Wecthel e Todorov encontramse em desuso e uma leva de estudos tem proposto uma nova abordagem da conquista, resgatando a agency indígena e contestando uma participação meramente figurativa ou pálida. Como vimos no início deste breve comentário à obra de Raminelli, desde os cronistas coloniais, as populações indígenas foram tradicionalmente condenadas ao desaparecimento pela violência devastadora da conquista, não lhes restando mais que a morte ou a assimilação. A irredutibilidade do trágico devir indígena, tantas vezes narrado nas tristes cenas das crônicas coloniais, contagiou boa parte da historiografia e estudos sociais dedicados à conquista da América. Destarte, uma New Indian History e as aproximações entre história e antropologia, sobretudo a partir de um redimensionamento da noção de grupo étnico, não mais visto como portador de uma essência cultural atemporal, promoveu uma mudança qualitativa nas análises sobre as interações sociais da época da conquista, não mais entendidas necessariamente como “perdas culturais”, mas retratadas a partir de conceitos como “etnogênese” e “mestiçagem”25.

As investigações acerca da importância da participação indígena nas empresas de conquista, bem como o papel dos cacicazgos na mediação do contato com o mundo colonial, tem relevado relações sociais que sobreviveram “sem as dicotomias cristalizadas pela história tradicional, sem a oposição rígida entre os interesses espanhóis e indígenas, sem a superioridade inconteste dos exércitos espanhóis, sem a debilidade inerente às sociedades indígenas”26. Num situação colonial, quase sempre tangenciada pela violência, os indígenas traçaram suas próprias estratégias de adaptação (resistência adaptativa), que poderiam representar também objetivos pragmáticos de redução de perdas27. Destarte, as chefias indígenas que apropriaram-se dos códigos aristocráticos da cultura ibérica, recebendo da Coroa ofícios e honras militares, tornaram-se mediadoras fundamentais na execução da administração colonial, que não pôde abrir mão das heranças pré-hispânicas de governo e teve que fazer concessões para tornar a conquista efetiva. Não se trata, pois, de negar a agressividade da ordem colonial, mas de explorar interpretações que destaquem as possibilidades de reação indígena, não restrita à tradicional dicotomia “morrer ou aculturar-se”28. Tal como conclui o autor da obra resenhada, Em sua suma, os povos não estavam submersos na tradição imemorial, congelados no tempo e incapazes de reagir. Por vezes a conquista e a colonização promoviam identidades novas, transformações socioculturais para sobreviver em meios adversos. O conflito e a violência eram promotores de novos arranjos políticos, culturais e sociais. A mestiçagem e a etnogênese são conceitos fartamente empregados para analisar a reação das comunidades indígenas frente aos conquistadores.29 Se é a reflexão historiográfica e o diálogo com os pares uma reconhecida dimensão de nosso ofício, em A era das conquistas Ronald Raminelli realiza com maestria um exercício próprio dos grandes historiadores, unindo erudição e originalidade em um caminho crítico que apresenta riquíssima e larga literatura especializada, sem, contudo, ceder à exposição enfadonha e despropositada. Ao final da obra, sua tese de uma conquista multifacetada – conquista no plural – que atuou não somente sobre indígenas, mas também sobre conquistadores e encomienderos, compondo, deste modo, a conjuntura de afirmação da autoridade régia na Europa e no Novo Mundo, é fartamente defendida. Contudo, o autor não deixa de considerar que os custos de manutenção da Monarquia católica, entre os séculos XVI e XVII, eram enormes. Um acerto imperial que reunia díspares interesses e possuía a guerra como seu principal mote, não tardou até demonstrar sinais de esgotamento. Doutra feita, julgamos excessivo o papel atribuído à capacidade interventiva da Coroa espanhola sobre os territórios coloniais, de modo que nos parece mais prudente pensar que a construção da centralidade régia processou-se, diacronicamente, a partir de uma forte dependência das forças políticas e sociais periféricas, como propôs Xavier Gil Punjol30. Seja como for, este é um tema em aberto e A era das conquistas lança-se como uma importante contribuição.

Notas

2 Da série História, destacamos, em especial, MALERBA, Jurandir. A história na América Latina:

ensaio de crítica historiográfica Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto & KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

3 Cf. notavelmente: RAMINELLLI, Ronald. “A monarquia católica e os poderes locais no Novo Mundo”. In: AZEVEDO, Cecília & RAMINELLI, Ronald (orgs.). História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011; RAMINELLI, Ronald. “Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico setecentista”. Revista de Historia (USP), vol. 169, p. 83-110, 2013. RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do Índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

4 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

5 FEBVRE, Lucien. Problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

6 BAUMANN, Thereza B. “Notícia de uma coleção: as ‘Grandes Viagens’ da família De Bry”. Paper avulso. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ, s.d. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0036.htm>.

7 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lúcia Machado; tradução de notas de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. A esse respeito, cf. também: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Pasado: para una semântica de los tempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993, sobretudo a primeira parte.

8 RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2013, p. 09.

9 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 10.

10 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 11.

11 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

12 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

13 Vale ressaltar que a ideia de uma inversão administrativa colonial das monarquias ibéricas esteve presente na obra de Sergio Buarque de Holanda, que já em Raízes do Brasil aventou a tese de que uma administração colonial mais centralizada e dominadora foi levada a cabo justamente pela Monarquia hispânica, habituada com a contumaz descentralização de seus territórios continentais, acentuadamente divididos política e culturalmente e, nalguns casos, rebeldes, como era a Catalunha. Em Portugal, entretanto, onde a centralização régia havia sido operada muito antes, já nos estertores do medievo, o desleixo e o desinteresse ditaram a tom do governo ultramarino, sobrelevando, a esse respeito, a própria precariedade das formas urbanas do Brasil colonial, assimétricas, desordenadas e feitas ao acaso, quase sem contradizer a natureza, quando comparadas com a regularidade arquitetônica da América hispânica. A esse respeito, ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110. Para uma crítica ao primado da irracionalidade do urbanismo colonial português, ver: MOURA FILHA, Maria Berthilde de Barros Lima e. De Filipéia à Paraíba: uma cidade na estratégia de colonização do Brasil (séculos XVI-XVIII).Tese (Doutorado em História da Arte). Universidade do Porto. Porto, 2004 (introdução).

14 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

15 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 13.

16 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 21.

17 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 43.

18 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.

19 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.

20 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 105.

21 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 73.

22 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 72.

23 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 108.

24 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 110.

25 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 115. Para uma síntese das recentes contribuições à história indígena, cf. a importante reflexão presente em: BOCCARA, Guillaume. “Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo”. Nuevo Mundo Mundos Nuevos – Débats [On Line], 08 fev. 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/426>. Acesso em: 15 jan. 2014. Segundo o autor, uma tendência recente da historiografia indígena (New Western History e New Indian History) considerou a “re-inscripción de las realidades indígenas en su contexto histórico por un lado y el nuevo interés por las estratégias y los discursos elaborados por los nativos por el outro, han conducido a romper con un conjunto de dicotomías discutibles (mito/ historia, naturaliza/ cultura, pureza originaria/ contaminación cultural, sociedades frías/ sociedades cálidas) para buscar en las narrativas y en los rituales indígenas así como también en las reconfiguraciones étnicas y en las reformulaciones identitarias, los elementos que permitan dar cuenta tanto de las conceptualizaciones nativas relativas al tremendo choque que representaron la conquista y colonización de América como de las capacidades de adaptación y reformulación de las ‘tradiciones’ que desembocaron en la formación de Mundos Nuevos en el Nuevo Mundo”. BOCCARA, “Mundos nuevos en las fronteras…”, p. 03.

26 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 118.

27 ALMEIDA, Os índios na História do Brasil…, p. 23.

28 Neste sentido, cabe-nos ressaltar a importância da categoria de “índio colonial”, proposta por Karel Spalding e magistralmente discuta por John Monteiro. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese (Livre Docência). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.

29 MONTEIRO, Tupis, Tapuias e Historiadores…, p. 115.

30 PUNJOL, Xavier Gil. “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII”. Penélope – Fazer e desfazer a história, n. 6, Lisboa, 1991, p. 129-130.

José Inaldo Chaves Júnior – Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela mesma instituição, Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Assistente de História do Brasil na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em História Cultural da UFF (NUPEHC/UFF). Bolsista de Doutorado do CNPq. E-Mail: <[email protected]>.

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A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades – CARDOSO (TES)

CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro, Editora FGV/Faperj, 2010,463 p. Resenha de: SANTANA, Marco Aurélio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.3, set./dez. 2013.

É moeda corrente que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo. Temos um longo histórico nesta tradição, demonstrando o quão persistente é nossa desigualdade. Nosso ranking global é dos piores. Disso já sabemos não é de hoje. Somos constantemente bombardeados com comparações entre o nosso país e outros para cima e para baixo na escala de presença mundial. Em muitos casos, ficamos ruborizados com os resultados destas comparações. Desta situação decorrem não só estratégias para que tentemos melhorar nosso posto – tantas vezes sem sucesso -, mas também, para acalentá-las, reflexões e investigações acerca do como vamos neste quesito, para entendermos os caminhos trilhados e que nos trouxeram a tal ponto.

O livro de Adalberto Cardoso traz aos leitores um novo alento nesta direção. Incorporando o “mundo do trabalho” em tal mirada, se coloca, de forma instigante, a questão da persistência da referida desigualdade em conexão com “os mecanismos de vertebração da sociedade brasileira”, no percurso de nossa experiência em termos de construção da sociedade do trabalho.

Antes de qualquer coisa, é preciso que se diga que Cardoso primou em seu trabalho pela combinação bem medida, nem tão fácil, nem tão trivial, das perspectivas ‘quali’ e ‘quanti’, o que tem sido uma das características de seus investimentos ao longo de sua trajetória de pesquisa. Aos leitores é fornecido um conjunto de dados produzidos pela literatura sociológica e historiográfica, sempre em diálogo constante com o campo analítico e suas formulações teóricas pertinentes. Transita-se por achados provenientes de análises historiográficas, survey, entrevistas, análise de trajetórias etc. Além disso, percorrendo período lato de tempo, necessário ao tratamento da questão, efetiva finas análises em seu percurso histórico e sociológico, produzindo o que o autor define como “uma sociologia historicamente referenciada”. O leitor é conduzido por operações analíticas que incluem processos ‘macro’ e ‘micro’, os quais, articulados, fornecem uma ampliação da capacidade de entendimento do tema em tela. Ressalte-se, ainda, que dada a forma de redação e desenvolvimento do texto, ele se torna acessível a um público mais amplo que o acadêmico.

Cardoso usa todo este arsenal no intuito de abrir uma nova picada explicativa acerca da persistência regular e indómita da desigualdade em nosso país. Que elementos manteriam sua durabilidade e sua especificidade no Brasil? Como por ele indicado, o ‘ser desigual’já está no DNA do sistema capitalista. O fato é que, em certo momento, a legitimação do sistema dependeu, no mundo ocidental, de “sua capacidade redistributiva, mediada pelo Estado do bem-estar”. Ainda que aberta a questionamentos, Cardoso parte da visão de que o Brasil experimentou “seu Estado de bem-estar”. O mesmo “que aqui, como acolá, é um Estado redistributivo”. Mas aí teríamos uma especificação de nossa formação social e económica: “essa redistribuição jamais se universalizou e não foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis”.

Isso, segundo o autor, se deveria aos seguintes fatores combinados: (1) “padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista no início do século XX, que deixou heranças profundas na sociabilidade capitalista posterior”; (2) “a estrutural fragilidade do Estado, sempre às voltas com seus próprios déficits e sua incapacidade de enraizamento no vasto território nacional”; (3) “a persistente violência estatal contra o trabalho organizado, muito superior à ameaça que este eventualmente representou ao longo da história”; (4) “a diminuta participação do operariado industrial na estrutura social e a enorme fragmentação das formas desorganizadas de obtenção de meios de vida no mundo urbano, fora do mundo do trabalho formal”; (5) “o baixo patamar da riqueza social produzida”; (6) “e o padrão de incorporação dos trabalhadores no mercado de trabalho urbano a partir da década de 1940, resultante da abdicação, pelo Estado, da tarefa de regular o mundo agrário, com isso transformando as cidades em polo irresistível de atração para os trabalhadores pobres do campo”.

Estes seis pontos serão fios orientadores na condução da análise que se dividirá em duas partes. Na primeira, centra-se na questão da construção da sociabilidade capitalista no Brasil. Por ‘sociabilidade’ Cardoso define, segundo ele “sem nenhuma pretensão teórica mais geral”, “as inter-relações resultantes do modo de operação das linhas de força que estruturam a ordem social, linhas que organizam as expectativas recíprocas de grupos e classes sociais quanto: aos valores mais gerais de orientação da ação recíproca, ou da ação que leva o outro em conta; e aos padrões prevalecentes de justiça, ou de bem comum, ou ‘do que deve ser’ a vida em comum; e, com ambos, as próprias ações recíprocas”.

Neste particular, o autor defende a posição de que “a escravidão deixou nela marcas muito mais profundas do que o conhecimento acumulado sobre o tema se dispõe a aceitar”. Segundo ele, “Não só a sociabilidade capitalista moldou-se pela inércia da ordem escravista, como o próprio Estado capitalista construído no quarto século brasileiro estruturou-se pela escravidão e para sustentá-la”. Com isso, ele acabou “transferindo muito de sua dinâmica (e inércia institucional) de uma geração a outra, dificultando e retardando a problematização da questão social como relevante para a sustentabilidade da ordem”.

Tal processo, mais longevo, acabou por receber reforço exatamente do período no qual houve a tentativa de implantação de uma dinâmica que marcasse uma ruptura com a escravidão. Quando no período Vargas, ao regular-se o mundo do trabalho, deixou-se de “equacionar as relações de trabalho no campo, ao tempo em que instituía a promessa de proteção social e trabalhista nas cidades”, gerando forçosamente “um campo gravitacional urbano que atraiu muito mais gente do que o mercado de trabalho capitalista em construção foi capaz de incorporar”. Aí, teríamos, a explicação de “boa parcela da persistência da desigualdade entre nós”.

Na segunda parte, o autor avança na análise do “processo estrutural de construção da sociedade do trabalho no país a partir de 1940”. Ele foca “na transição da escola para o trabalho, tomada como momento privilegiado da construção de anseios, projetos e ambições individuais e coletivas numa sociedade capitalista embalada por promessas de igualdade, liberdade e realização pessoal”. Nesta parte, Cardoso defende a posição de que “apesar das enormes tensões e conflitos que cortam a sociedade brasileira de alto a baixo, e por todos os lados, sua sustentabilidade no longo prazo é assegurada pela adesão da maioria dos brasileiros às promessas de nosso parcial Estado de bem-estar”. Esta ‘adesão’ se daria também “e muito especialmente ao capitalismo como um conjunto de oportunidades de promoção pessoal”. Tudo isso ocorreria “apesar da resistente frustração das expectativas a que seu caráter inercial deu guarida”.

Este ponto, aliás, subjaz ao longo de todo o livro a animar a reflexão e a investigação. Diante de ordem social tão desigual, por que os menos aquinhoados não se rebelam contra ela na tentativa de pô-la abaixo? Se em outras experiências o Estado de bem-estar, via redistribuição, abriu caminho para a legitimação de sua ordem, no caso brasileiro, com toda esta herança e um Estado de bem-estar a nosso modo, ‘parcial’, por que é que os do andar de baixo não se sublevam ao ponto de mudar a ordem estabelecida?

A questão da percepção dos atores sociais se torna muito importante. Uma ordem social pode ser percebida de formas muito diferentes pelos atores, classes e grupos sociais, levando-se em conta critérios, tais como ‘justiça/injustiça’, ‘igualdade/desigualdade’ e ‘legítimo/ilegítimo’. Nestas percepções, nem sempre o ‘desigual’ se associa com o ‘ilegítimo’. O que poderiam parecer conjugações ‘óbvias’, ‘imediatas’, ‘necessárias’ etc., nem sempre o são. É exatamente neste tipo de conjugação que se assenta o ritmo de dinâmica e inércia apresentada por uma determinada ordem social capitalista.

No caso brasileiro, a partir dos elementos apresentados por Cardoso teríamos que a “sociedade é desigual, a sociedade é injusta, a cidadania é impotente diante disso, o padrão de justiça de ricos e pobres é igualitarista, e o Estado é o agente da solução da desigualdade”. Este conjunto atuaria diretamente como fator impeditivo de que “a ordem desigual seja vista como ilegítima, por indicar que, no futuro, as coisas estarão melhores do que hoje, e que cada um pode se beneficiar da melhoria geral do país”.

Há, aí, por esta via, a produção de uma “legitimidade da desigualdade”. Os pobres não perceberiam “a estrutura de posições” como ‘desigual’, mas a aceitariam “como consequência esperada de meios vistos como aceitáveis”. Assim, eles “aspiram a essas posições, mas concordam que não as merecem. É o mesmo que dizer que estariam nelas se tivessem feito por isso”. Nestes termos, o que ocorre é que como a sociedade é percebida como aberta, a “frustração em relação à posição atual, se existe, não é vivida como resultado da injustiça social, ou da dinâmica coletiva, mas sim como fracasso individual”.

O que se tem, a partir do exposto, é que os possíveis processos de alteração da ordem restariam obstados em nome de uma ‘utopia brasileira’, como nomeada por Cardoso, ou seja, as sedutoras “promessas sempre amesquinhadas de inclusão nessa mesma ordem desigual”. Associada à forte repressão às ‘forças do trabalho’ ao longo de nossa história republicana, a crença nesta ‘utopia’ deixaria reduzidíssimo, para não dizer nenhum, espaço para projetos alternativos de transformação social. Como antes, e sempre, repressão e consenso em operação. Ante as mudanças sociais profundas e de largo espectro, estaríamos, na sociedade brasileira, entregues às ‘pequenas’ mobilidades sociais, as quais, em um universo de extrema desigualdade, ganhariam dimensão enorme, ainda que em termos ‘pessoais’, além de sempre garantirem a visão de um campo de possibilidades futuro, aberto à frente. Neste quadro, as propostas alternativas e seus atores foram ‘substituídos’ pelo Estado como “agente da utopia social-democrata”.

O estudo de Cardoso auxilia muito no sentido de pensar a ordem social, sua construção e manutenção ao longo do tempo. É uma reprodução que se trata de entender. Como se preocupa com a ‘persistência’, as forças de possibilidade alternativa acabam ficando marginais, sendo minimizadas ou, ainda, sendo trazidas para o interior da reprodução do sistema. Como em todo estudo deste corte, a força do enfoque da reprodução pode gerar uma certa claustrofobia pessimista. O peso do passado molda o presente e engolfa reprodutivamente as possibilidades de futuro.

Após quatro séculos de escravidão no Brasil, e com ela marcando indelevelmente a sociedade capitalista, como ‘escapar’ desta herança? O arremedo de social-democracia que tivemos, se abriu espaços possíveis de superação, forneceu ainda elementos complicadores aos projetos de transformação. ‘Movimentos’ se transmudaram em ‘mobilidade’. Antes de mudar a sociedade, mudar seu lugar nela. Deslocando ainda da cidadania ao Estado o papel de ‘agente da utopia’. E, sobretudo, garantindo, especificada, a persistente desigualdade.

Interessante pensarmos mais especificamente, sob a luz do trabalho de Cardoso, a sociedade brasileira nos últimos dez anos, nos quais retornaram, ainda que atualizadas, as discussões sobre o desenvolvimento ‘econômico’ e ‘social’ e, com elas, a das formas de lidar com a desigualdade social, através de uma perspectiva para além do mercado. Muitos avanços foram conseguidos. Sobre este período, que seria a mais recente estação de um longo percurso, poderiam surgir questões. Entre outras tantas, tais como: que sendas alternativas puderam ou não ter sido abertas em nossa longa herança? Até que ponto reiteramos onde poderíamos ter diferido? Que papel jogaram ou deixaram de jogar as ‘forças do trabalho’ neste processo? Fomos eficazes em produzir bases sólidas para o enfraquecimento dos pilares de sustentação da desigualdade? Seja lá como for, a questão da persistência de nossa desigualdade está e, pelo visto, estará ainda na ordem do dia. E o livro de Cardoso se impõe, nesta quadra, como leitura indispensável.

Marco Aurélio Santana – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). E-mail: [email protected]

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Qual o valor da história hoje? – Marcia A. Conçalves, Helenice B. Rocha, Luís Resnik e Ana M. Monteiro

A inquietação que toma a forma de uma questão – Qual o valor da história hoje? – incomoda a todos os profissionais que têm como ofício escrever livros de história ou ensiná-la na educação básica. O Grupo de Pesquisa Oficinas da História colocou esta mesma pergunta aos seus próprios membros e a pesquisadores convidados para o Seminário Nacional O Valor da História Hoje, realizado em maio de 2010 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Seu objetivo foi problematizar a própria interrogação e pensar respostas múltiplas e provisórias. As instigantes apresentações, enriquecidas pelas profícuas discussões realizadas, deram origem ao livro que transformou o título do Seminário numa pergunta – “Qual o valor da história hoje?” – de maneira a potencializar ainda mais a inquietação que o inspirou. Mas, para entender essa publicação, é preciso contextualizá-la no grupo de pesquisa que a produziu e articulá-la com as contribuições anteriores do Grupo Oficinas.

O Grupo de Pesquisa Oficinas da História dedica-se a pesquisas na área do ensino de história e vem produzindo contribuições importantes para as reflexões acerca desde campo de pesquisa desde a sua fundação, em setembro de 2004. O grupo apresenta um perfil interinstitucional e é composto por vinte pesquisadores que atuam ministrando aulas na graduação e pós-graduação em cursos de educação e de história. O Grupo Oficinas está sediado na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e a maioria dos seus membros está situada em instituições universitárias desse estado, apesar de alguns deles atuarem em instituições de outros estados. O livro Qual o valor da história hoje? é a terceira publicação organizada por membros do grupo desde a sua criação. A primeira foi o livro A história na escola: autores, livros e leituras1 resultado do projeto desenvolvido entre 2005 e 2007 pelo Oficinas intitulado O Livro Didático como Discurso Historiográfico. A segunda publicação foi o livro A escrita da história escolar: memória e historiografia2 resultado de um projeto mais amplo intitulado Culturas Políticas e Usos do Passado – Memória, Historiografia e Ensino de História, que contou com a participação de alguns membros do grupo Oficinas.

O livro Qual o valor da história hoje?, organizado por Marcia Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, reúne 16 textos apresentados no seminário nacional realizado em 2010. Entre 2009 e 2011, o Grupo Oficinas desenvolveu o projeto Ensino de História e Historiografia que, entre outras iniciativas, organizou o Seminário Nacional O valor da história hoje. Os textos das apresentações no seminário foram reorganizados no livro em três partes: “Formas de escrever e ensinar história”, “Memória e identidade” e “Tempo e alteridade”. Os temas que organizam essas partes são escolhidos em função de sua forma de aproximação de respostas possíveis à questão proposta no título.

O capítulo inicial da primeira parte nos ajuda a situar a questão de acordo com as diversas perspectivas acerca da história. O texto de Durval Albuquerque Junior – “Fazer defeitos na memória: para que servem o ensino e a escrita da história” – faz uma revisão sintética sobre os diferentes regimes historiográficos e a maneira como cada um deles pensou os usos e a função da história na sua dimensão formativa das subjetividades. Revisão audaciosa, que não se limita a resumir, mas interpreta e apresenta uma leitura da possível função do ensino de história hoje, historicizando o tempo presente e utilizando a compreensão da alteridade numa dimensão diacrônica para preparar os contemporâneos para a valorização da diversidade.

Os outros três capítulos que compõem essa parte também investem em reflexões teóricas sobre a escrita da história e o seu ensino. Márcia de Almeida Gonçalves, no texto “O valor da vida dos outros…”, aceita o desafio de pensar a questão título da obra pelo viés que a relaciona ao problema da consciência histórica, discutindo as concepções de sujeito e a produção biográfica. Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral, no texto “Ciências do espírito: relações entre história e educação”, recupera a concepção de pedagogia defendida por Dilthey, na qual esta é pensada como uma tarefa filosófica e elevada à categoria de ciência do espírito. Por fim, Valdei Lopes de Araujo, no texto “A aula como desafio à experiência da história”, propõe-se a pensar os desafios pedagógicos para o enfrentamento, em sala de aula, da temporalidade em geral, através do diálogo com as contribuições filosóficas de Husserl e Heidegger.

A segunda parte do livro traz seis textos sobre a temática da “Memória e identidade” sob diferentes abordagens e utilizando diferentes referenciais teóricos. Eunícia Barros Barcelos Fernandes, no texto “Do dever de memória ao dever de história: um exercício de deslocamento”, discute os usos da memória frente às inquietações surgidas com a legislação que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, a Lei 11.1645/2008, recorrendo ao conceito de consciência histórica. Luciana Heymann e José Maurício Arruti, no texto “Memória e reconhecimento: notas sobre as disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil”, traçam alguns paralelos entre as controvérsias públicas que envolvem o tema da memória nos contextos francês e brasileiro. Margarida de Souza Neves, no texto “Cartografias da memória: história, memória e ensino da história”, propõe um exercício de interpretação do mapa de Lopo Homem-Reinéis do século XVI como uma maneira metafórica de cartografar o continente da memória de forma a assinalar nesse mapa o lugar das disputas que lhe conferem relevo. Rui Aniceto Nascimento Fernandes, no texto “Uma província na disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920”, discute as disputas em torno da memória imperial frente aos embates políticos da década de 1920, problematizando o impacto destas no campo das políticas públicas educacionais.

Os dois últimos capítulos da segunda parte enfrentam mais especificamente a temática da identidade. No texto “A história é uma escola: o paradigma do nacional na literatura didática de Viriato Correa”, José Ricardo Oriá Fernandes, utilizando uma concepção ampliada do conceito de livro didático, analisa a presença do nacionalismo nos livros escolares de Viriato Correa, com destaque para a História do Brasil para crianças (1934). Luís Fernando Cerri, no texto “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, discute e apresenta alguns resultados do projeto de pesquisa internacional “Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história”, que, inspirado nas potencialidades do projeto europeu “Youth and history”, aplicou questionários aos jovens do Brasil, Argentina e Uruguai. Esses dois textos que concluem a segunda parte podem ser articulados com alguns dos textos da terceira parte que tratam do tema da alteridade. Cecilia Goulart, em “Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos”, vai discutir o conceito de alteridade no contexto dos estudos da linguagem em perspectiva bakhtiniana, ilustrando-o com situações pedagógicas de diversas origens para, por fim, analisar situações de aulas de história. No texto “A leitura na aula de história como experiência de alteridade”, Helenice Rocha vai discutir a leitura comentada, uma prática comum no ensino de história, mediante a análise de aulas observadas na sua pesquisa. No capítulo intitulado “Do colorido à cor: o complexo identitário na prática educativa”, Júnia Sales Pereira busca discutir as polêmicas e disputas em torno das relações raciais no Brasil e os seus impactos na prática docente daqueles que se veem confrontados com essas questões em sala de aula.

Outra temática especialmente cara ao ensino de história é o objeto de três textos dessa última parte: o tempo. Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro, no texto “Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão”, aborda a questão do presente no ensino de história, recorrendo aos conceitos de regimes de historicidade e de acronia para lançar uma nova luz sobre esse problema. Em “Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?”, Carmen Teresa Gabriel aposta na análise de temporalidades recontextua–lizadas no ensino de história apropriando-se especialmente das reflexões teóricas de Paul Ricoeur sobre o tempo e a narrativa. “Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incertezas: reflexões e desafios para o professor de história”, de Sonia Regina Miranda, aponta alguns desafios contemporâneos enfrentados pelos professores de História ao lidar com a complexa questão do tempo histórico através da análise das representações do tempo encontradas em livros didáticos.

Esta breve apresentação das temáticas de cada uma das três partes do livro e um breve panorama dos objetos e objetivos de cada um dos seus capítulos serve apenas como um convite para aqueles que se interessam pelo ensino de história. O que constitui o maior mérito do livro é a maneira coerente como os diversos capítulos convergem de diferentes maneiras no enfrentamento da inquietação presente em seu título e a atualidade das discussões e referenciais teóricos utilizados. Mas o livro traz outra marca, além da inquietação com relação ao valor da história hoje: a tentativa de lidar com a perda do professor Manuel Salgado Guimarães, citado e mencionado em diversos textos que fazem parte desta coletânea. Os capítulos da obra reconhecem e valorizam a importância das obras de Guimarães para o estudo da historiografia, do ensino de história e da relação entre esses dois campos de pesquisa. O livro Qual o valor da história hoje? acaba por constituir uma bela homenagem à herança intelectual de um colega que fará tanta falta nas oficinas da História e de seu ensino.

Notas

1. ROCHA, H.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M. (Org.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.         [ Links ]

2. ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, R. (Org.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.         [ Links ]

Fernando de Araujo Penna – Doutor em Educação (UFRJ), professor de história do Colégio Santo Inácio. R. São Clemente, 226, Botafogo. 22260-000 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].


GONÇALVES, Marcia de A.; ROCHA, Helenice Ap. de B.; RESNIK, Luís; MONTEIRO, Ana M. F. da C. (Org.) Qual o valor da história hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. 328p. Resenha de: PENNA, Fernando de Araujo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.65, 2013. Acessar publicação original [IF]

Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil / Janaína M. Cordeiro

No processo de permanente reconstrução da memória social sobre a ditadura civil-militar brasileira, prevaleceu, ao longo das últimas décadas, o mito de uma sociedade sempre resistente aos militares. Como considera Daniel Aarão Reis (2004), de sua parte, a academia tendeu também a privilegiar como objeto de estudos os grupos que resistiram à ditadura, “relegando ao silêncio as manifestações de apoio e consentimento de expressivas parcelas da sociedade”. Apenas recentemente a historiografia tem abordado, com o devido cuidado, os movimentos, instituições e manifestações que, respaldaram o regime, desconstruindo, na opinião de Denise Rollemberg (2010), “uma memória de resistência, não raramente mitificada”. Revisitar, assim, os processos que teriam nos levado a um “consenso democrático”, produtor de conciliação e esquecimento, é uma tarefa que se apresentaria como o principal desafio para um conjunto de historiadores e cientistas sociais empenhados em “tentar compreender o regime instaurado em 1964 como um processo de construção social”, do qual participam ativamente diversos atores sociais.

O livro Direitas em Movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil, defendido originalmente por Janaina Martins Cordeiro como dissertação de mestrado e agraciado com o Prêmio Pronex/ UFF em 2009, compõe de forma exemplar esse amplo leque de estudos, voltados para uma releitura das relações entre o regime militar e a sociedade civil. Em sua análise, a autora aponta claramente para a função legitimadora que alguns setores da sociedade brasileira tiveram não apenas no momento do golpe, mas durante as mais de duas décadas que marcaram a implementação de um projeto de “modernização conservadora” que permitiu que os militares se mantivessem no poder. Embasado nas reflexões do alemão Andreas Huyssen e dos franceses Pierre Laborie e Henry Rousso, o estudo nos permite, de muitas formas, ampliar a compreensão acerca do complexo “universo simbólico, cultural e também material dos grupos que apoiaram o golpe” e a ditadura civil-militar. Leia Mais

Os índios na História do Brasil | Maria Regina Celestino de Almeida

A Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que torna obrigatório o estudo de história e cultura indígenas (além da africana e afro-brasileira) nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, público e privado, explicita algumas importantes questões sobre o ensino dessa disciplina escolar. A mais evidente é o fato de não haver esse componente curricular nos cursos de Graduação e Licenciatura em História, salvo raras exceções, o que traz uma série de implicações àqueles professores que desejam cumprir a determinação legal, pois devem suprir essa lacuna na formação pelos mais diversos meios disponíveis. Entre eles, certamente, destaca-se o livro didático – esse ‘produto cultural complexo’, como disse Stray –, que acaba por exercer inusitado e importante papel na formação docente.

Outro aspecto, no entanto, ganha relevância na abordagem dessa temática em sala de aula: o fato de a cultura indígena não ser a dominante em nossa sociedade, tanto que é objeto dessa legislação específica. Assim, é considerada ‘a outra’, diferente, diversa, exótica e estranha, frente à cultura dominante, ocidental, branca, europeia, civilizada, cristã e ‘normal’. Sujeita aos estigmas classificatórios, a cultura desse ‘outro’ será identificada como primitiva, étnica, inferior e atrasada, será entendida como essencialista, ou seja, pura, fixa, imutável e estável, portanto, a-histórica. Dessa forma, o indígena que não se apresenta nesse suposto estado puro será considerado aculturado, não índio, sem identidade e sem tradição, daí os índios serem representados predominantemente como figuras do passado, mortas ou em franco processo de extinção, fadados ao desaparecimento.

Embora não seja destinado especificamente a suprir a demanda desses conteúdos pelos professores da educação básica, o livro Os índios na História do Brasil de Maria Regina Celestino de Almeida apresenta importante e denso panorama da temática, dentro dos limites de um livro de bolso (coleção FGV de bolso, Série História), e bem serviria a esse propósito. Baseia-se na produção historiográfica mais recente, em novas leituras decorrentes de documentos inéditos, novas abordagens fundamentadas em novos conceitos e teorias, bem como em pesquisas interdisciplinares, e começa, justamente, pela complexa discussão sobre a concepção de cultura indígena que acabou por alijar esse grupo social da História.

Desempenhando papéis secundários ou aparecendo na posição de vítimas, aliados ou inimigos, guerreiros ou bárbaros, escravos ou submetidos – nunca sujeitos da ação, uma vez dominados, integrados e aculturados –, desapareciam como índios na escrita histórica e, não à toa, estariam condenados ao desaparecimento também no presente, prognóstico derrubado pelas evidências apontadas pelo censo demográfico do IBGE de 2010, que aponta crescimento de 178% no número de indígenas autodeclarados desde 1991, bem como a existência de 305 etnias e 274 línguas.

O reconhecimento aos povos indígenas do direito de manter sua própria cultura, garantido pela Constituição de 1988, assim como sua maior visibilidade em lutas pela garantia de seus direitos, tiraram esses grupos dos bastidores da história – para usar uma imagem da própria autora –, garantindo-lhes um lugar no palco, despertando o interesse dos historiadores que passaram a percebê-los como sujeitos participando ativamente dos processos históricos. Tal percepção foi ainda favorecida pela imbricação entre história e antropologia na perspectiva de “compreensão da cultura como produto histórico, dinâmico e flexível, formado pela articulação contínua entre tradições e novas experiências dos homens que a vivenciam” (p.22), possibilitando novos entendimentos das ações dos grupos indígenas nos processos em que estavam envolvidos.

Ao discutir hibridação cultural, Canclini afirma que “quando se define uma identidade mediante um processo de abstração de traços (língua, tradições, condutas estereotipadas), frequentemente se tende a desvincular essas práticas da história de misturas em que se formaram”, o que torna impossível para esse antropólogo “falar das identidades como se se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma nação”.1 Nesse sentido, Almeida chama nossa atenção para o necessário entendimento das “identidades como construções fluidas e cambiáveis que se constroem por meio de complexos processos de apropriações e ressignificações culturais nas experiências entre grupos e indivíduos que interagem” (p.24), que tornou possível nova mirada dos historiadores sobre a identidade genérica imposta sobre esses grupos, a começar pela denominação ‘índios’, como se constituíssem um bloco homogêneo, desconsiderando não só as diferenças étnicas e linguísticas, mas também os diferentes interesses, objetivos, motivações e ações desses grupos nas relações entre si e com os colonizadores europeus que, como não poderia deixar de ser, foram se modificando com a dinâmica da colonização.

Importante ressaltar que as considerações da autora sobre cultura e identidade são fundamentais para compreender a perspectiva adotada pelos historiadores que se debruçam sobre essa temática, mas igualmente necessárias para o leitor que pretende conhecer um pouco mais sobre os índios na História do Brasil e, por que não dizer, indispensáveis aos professores do ensino básico que, tendo de se haver com o ensino de história e cultura indígenas nos estabelecimentos de ensino público e privado, deparam com toda sorte de preconceito, racismo e etnocentrismo.

Imbuída dessa concepção dinâmica de identidade e cultura, a autora nos apresenta ao longo dos seis capítulos do livro alguns dos principais debates e pesquisas acadêmicos sobre a temática, sem entrar na discussão historiográfica sobre haver ou não uma história indígena, propriamente dita, ou sobre a controversa denominação etno-história, daí a interessante solução encontrada para o título da obra: Os índios na História do Brasil.

A autora esclarece que para o estudo das relações entre os colonizadores e indígenas, já nos primeiros contatos torna-se necessário não tomar estes últimos como tolos ou ingênuos dispostos a colaborar com os portugueses em troca de quinquilharias, mas compreender seu universo cultural. Discutindo, por exemplo, a peculiar relação com o outro na cultura Tupinambá, implicada na guerra, nos rituais de vingança, escambo e casamento, nos alerta que “embora eles tivessem grande interesse nas mercadorias dos europeus, suas relações com estes últimos significavam também oportunidades de ampliar relações de aliança ou de hostilidade” (p.40). Da mesma forma, afirma que “eles trabalhavam movidos por seus próprios interesses, e quando as exigências começaram a ir além do que estavam dispostos a dar, passaram a recusar o trabalho” (p.42), o que se somou ao fato de que no universo cultural desse grupo o trabalho agrícola era considerado atividade feminina.

Embasada em vasta bibliografia e em fontes primárias, a autora percorre a complexidade das relações indígenas nas diversas regiões do país – capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Itamaracá, Ilhéus, Bahia, Ilhéus, Espírito Santo, São Tomé, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro etc. Nesse percurso, reafirma a identidade dos grupos indígenas como característica dinâmica, como é o caso dos temiminós do Rio de Janeiro, que provavelmente seriam uma construção étnica do contexto colonial, oriunda do subgrupo Tupinambá no processo de relações e interesses dos grupos indígenas e estrangeiros, pois “afinal, se a identidades étnicas são históricas e múltiplas, não há razões para duvidar de que os índios podiam adotar para si próprios e para os demais, identidades variadas, conforme circunstâncias e interesses” (p.61).

A condição de agentes históricos atribuída aos indígenas ganha evidência na análise da política de aldeamentos que, conforme demonstra Maria Regina Celestino de Almeida, possuía diferentes funções e significados para a Coroa, religiosos, colonos e índios. Para estes, poderia significar terra e proteção frente às ameaças a que estavam submetidos nos sertões, como escravização e guerras, o que não os impedia de agir conforme seus interesses e aspirações na relação com os outros grupos, não obstante as limitações de toda ordem a que estavam sujeitos nesses espaços de conformação. Dessa forma, valendo-se da legislação decorrente das políticas indigenistas, os índios aldeados “aprenderam a valorizar acordos e negociações com autoridades e com o próprio Rei, reivindicando mercês, em troca de serviços prestados. Sua ação política era, pois, fruto do processo de mestiçagem vivido no interior das aldeias. Suas reivindicações demonstraram a apropriação dos códigos portugueses e da própria cultura política do Antigo Regime” (p.87).

Nesse sentido, afirma a autora, os aldeamentos devem ser pensados como “espaços de reelaboração identitária” (p.98), seja ressignificando os rituais religiosos católicos, aprendendo a ler e escrever o português ou estabelecendo relações complexas e ambíguas com os diferentes grupos sociais, inclusive indígenas, segundo seus interesses.

Esse processo pode ser ainda observado na Amazônia de meados do século XVIII, quando índios tornaram-se vereadores, oficiais de câmara e militares (p.120), e se prolonga pelo século XIX, quando indígenas eram recrutados compulsoriamente para os serviços militares, notadamente a Marinha (p.147). Interessante lembrar o episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870), na qual lutaram índios Terena e Kadiwéu, não sem utilizar diversas estratégias para escapar ao alistamento como Voluntários da Pátria. Mais tarde, no último quartel do século XX, essa participação foi evocada na reconstituição da memória desses grupos para reivindicar direitos territoriais no Mato Grosso do Sul ancorados no heroísmo e colaboração com o Estado (p.149). Sujeitos históricos no presente e no passado, condição que dialoga com as possibilidades de romper a invisibilidade indígena no passado e no presente.

Nota

1 CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2008. p.23.

Antonio Simplicio de Almeida Neto – Departamento de História, Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. Resenha de: ALMEIDA NETO, Antonio Simplicio de. Indígenas na história do Brasil: identidade e cultura. Revista História Hoje. São Paulo, v.1, n.2, p. 275- 279, jul./dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

Estudos de Historiografia Brasileira | Lucia Maria Bastos Pereira Neves e Lucia Maria Paschoal Guimarães

Estudos de Historiografia Brasileira revela o sentido histórico e plural da produção historiográfica no Brasil. Trata-se de uma competente avaliação de percursos, teorias, métodos e autores que, no conjunto, fornece um panorama variado sobre as nossas formas de interrogar as relações dos homens no tempo.

A coletânea, afinal, resulta do I Seminário Nacional da História da Historiografia Brasileira, realizado no IFCH/UERJ em 2008. Neste evento, ficou claro aos participantes que as reflexões sobre a temática cresceram muito nos últimos anos, e que, além disso, fazem parte de um campo de conhecimento específico: a história da História. O livro – organizado por Lucia Maria Bastos Pereira das Neves, (PUC-RJ), Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ), Marcia de Almeida Gonçalves (UERJ/PUC-RJ) e Rebeca Gontijo (UFRJ) – traduz, portanto, um diálogo instigante entre historiadores de várias gerações e quadrantes brasileiros que se dedicam a pensar a história de seu próprio ofício. Leia Mais

Qual o valor da história hoje? | Márcia A. Gonçalves, Helenice Rocha, Luís reznik e Ana Maria Monteiro

Coletânea resultante de um seminário ocorrido em 2010, intitulado o valor da história hoje, o livro organizado pelos historiadores Márcia de Almeida Gonçalves, Helenice Rocha, Luís Reznik e Ana Maria Monteiro, lança uma interrogação que desloca a certeza presente no título original para um ponto ignoto, ao qual concorrem os mais diversos juízos, e que como a própria apresentação da obra sugere, tem a intenção de indicar o caráter movediço do dilema.

Qual o valor da história hoje? revisita a problemática relação constituída entre a teoria da história e a didática da história, só que com a singularidade de uma argumentação tecida com base em objetos pouco habituais neste tipo de tema: é a tensão resultante da inter-relação entre memória e história, e a necessidade do ingresso de debates sobre questões do tempo presente – ou ao menos que estabeleçam ligações com ele – na sala de aula, que orientam as discussões.

A obra reúne as reflexões de um significativo contingente de pesquisadores com estudos voltados principalmente para questões de teoria e método. O desafio do livro reside na conciliação entre as abordagens mais atinentes à epistemologia da disciplina histórica e aquelas que partem de elementos vinculados aos aspectos cognitivos da pedagogia. O primeiro ponto de convergência é a temática que atravessa as divisões do livro: as permissões e interdições impostas pelos sentidos atados à experiência – a vivência e a sua correlata memória –, ao estabelecimento do discurso histórico. Um segundo ponto, este inferido por um menor número de textos, está no entendimento de que um dos lugares onde essa questão se apresenta com maior riqueza é a sala de aula.

O efeito das aproximações e distanciamentos entre os textos se nota na ordem instituída pela organização dos capítulos. Como as rubricas, memória, tempo, e ensino de história, perpassam a maioria dos textos, de fato, parece impossível que se imputasse classificações fechadas que satisfizessem indubitavelmente alocações conjuntas ou separações dos textos. Ainda assim, o resultado é bastante inteligível.

A coletânea se divide em três partes: Formas de escrever e ensinar história, Memória e identidade e Tempo e alteridade. Apesar de atenderem a designação dos subcapítulos, a organização dos textos indica o estabelecimento de uma gradação que ultrapassa os aspectos mais visíveis. Tempo e alteridade relaciona os artigos que melhor trataram da relação entre os formatos e tipos de transmissão da narrativa e a sala de aula; Memória e identidade se apresenta como uma miscelânea de textos que guardam significativa distância entre si, aproximadas em grande parte por discussões que circundam a bandeira do nacionalismo e os sentidos de identidade; e Formas de escrever e ensinar história ensaia uma discussão relativa à variação de tropos, problemas, e parâmetros de subjetividade na escrita da história.

Uma característica que fica clara é que enquanto alguns textos, como os de José Ricardo Oriá Fernandes e Margarida de Souza Neves, acerca da literatura de Viriato Correa, e da relação entre cartografia e memória, respectivamente, buscam suas respostas em elementos pertinentes à pesquisa no âmbito acadêmico, salientando um determinado valor da cultura histórica que se prolonga até o espaço escolar, outros se baseiam em manifestações contíguas à sala de aula, atentando para aspectos que vão das interpretações e entonações presentes no discurso do professor ao desdém dos alunos quanto à possibilidade de futuro, como é o caso dos textos Alteridade e ensino de história: valores, espaços-tempos e discursos de Cecília M. A. Goulart e Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incerteza: reflexões e desafios para o professor de história, de Sônia Regina dos Santos.

Apesar da existência de dois vieses de análise, a prevalência dos questionamentos acerca das vicissitudes de uma pedagogia da história, para o entendimento do valor da história hoje, fica clara mesmo quando olhamos os artigos em separado. Embora a Parte I seja, dentre as três divisões, a única a trazer no título uma referência direta ao ensino, a temática predomina nos títulos ou conteúdos dos textos. As exceções ficam por conta dos artigos: O valor da vida dos outros… de Márcia de Almeida Gonçalves, Uma província em disputa: como os fluminenses lidaram com a memória imperial na década de 1920, de Rui Aniceto Nascimento Fernandes, e Memória e reconhecimento: notas sobre disputas contemporâneas pela gestão da memória na França e no Brasil, um trabalho conjunto de Lucianna Heymann e José Maurício Arruti.

Apresentando, respectivamente, a singularidade dos valores cognitivos dos relatos vivenciais, os usos políticos da construção memorialista, e as disposições e disponibilidades da gestão da história quanto às reivindicações e anseios reparatórios, os citados artigos procuram a atualidade da disciplina na reavaliação de velhos tópicos. A vinculação destes textos com os demais artigos se dá, principalmente, pelas opções de abordagem e teóricos mobilizados. É nítida a preocupação em estabelecer as diferentes modalidades de apreensão de passagem do tempo, e as subjetividades que derivam de cada definição.

Da fenomenologia de Husserl à crítica moral nietzschiana, vemos uma variedade de formas de inquirição das bases teóricas das principais acepções e conceitos de tempo histórico, e de suas inclinações meta-históricas, trabalhadas por um copioso número de perspectivas, tanto em função dos objetivos dos autores dos artigos, quanto pela diversidade de pensadores evocados. Apesar disto, no conjunto da obra, as preferências são claras: Wilhelm Dilthey, François Hartog, Reinhart Kosseleck, Jörn Husen, e Paul Ricouer recebem um tratamento mais aprofundado.

A pluralidade dos usos da história é uma premissa fundamental na organização da obra. Dado que, inclusive, engendra interessantes antíteses. Se na narrativa sobre as transformações das percepções do conceito de história, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, mergulhamos na história da história e somos apresentados às dissoluções e afirmações de sentido desta maneira de explicar o mundo, mais adiante recebemos a interdição de Valdei Lopes de Araújo à imputação de sentido, e somos recomendados a também mostrarmos aquilo que, do ponto de vista de uma tradicional ética presente nas análises historiográficas, não encontram amparo. Em que pese o fato de que mostrar: “a tragédia, a injustiça, o, o horror como parte integrantes de nossa condição”, nem sempre fez parte do discurso historiográfico, a asserção nos remonta a uma perspectiva contemporânea de história.

Este é um ponto fundamental. A condição humana como o valor premente da história hoje, surge como um discurso comum, e dá a uniformidade à coletânea para apresentar experiências e olhares distintos sobre a história, sobre a educação, ou sobre ambos. Se as definições, e conceitos sobre temporalidade ocupam uma parte considerável do livro, remetendo a uma maior proximidade com a academia, o reconhecimento de como esses conceitos podem ser instrumentalizados para produzir uma ética – vincada ao presente e a partir da sala de aula – nos dá a conhecer uma série de pesquisas e propostas que instigam a construção de um ensino de história diferente, abrangendo desde as séries mais elementares. Indo além, podemos dizer que os artigos colocam em xeque o próprio modelo de ensino de história.

O panorama que os textos descortinam reflete a preocupação em levar para o ambiente escolar a perspectiva de uma necessária orientação em relação a cultura histórica ampla, oferecendo alternativas à dominante narrativa canônica, muitas vezes derivadas do livro didático, e às concepções que parecem atemporais. É nessa chave que podemos interpretar as investigações encetadas pelas supracitadas Cecilia M. A. Goulart e Sônia Regina Fernandez, e por Luis Fernando Cerri e Helenice Rocha.

Esses textos ilustram a diversidades de interpretações que atualmente suscitam os relatos ou as conformações históricas. Tomando como referência apenas os dois últimos: em Nação, nacionalismo e identidade do estudante de história, de Cerri, se destacam as tonalidades e margens de discordância sobre os aspectos tradicionais e as novas questões em relação à nação e ao sentimento nacional entre os alunos. Já em A leitura da aula de história como experiência de alteridade, de Helenice Rocha, é reveladora a discussão que apresenta a maneira como os comentários e leituras com base no livro didático são modeladas pelas representações construídas pelo docente, não somente acerca dos conteúdos, como também da capacidade de entendimento do corpo discente.

Está claro que a publicação indica a ideia de que a história hoje é móvel, e essa mobilidade confronta tabus e abre novas perspectivas. Prova disso são as reiteradas citações sobre as possibilidades de produção de saberes pela incorporação de um viés anacrônico na aula de história. Perpassa-se o juízo de que os embates em torno do tempo, em torno da história, estão presentes de diversas formas a todo tempo, e em todo lugar; o que de maneira implícita reforça a sua contraparte: a experimentação da história está para além dos formatos que procura imprimir o historiador. Por isso, o livro também ilustra uma imposição de um fazer específico e profissional sobre um campo aberto.

A concepção da vigência de uma atualidade permeada de referências históricas, presente com clareza em Ana Maria Monteiro, com Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão e Carmem Teresa Gabriel, e seu Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?, por exemplo, também circunda os outros textos. Eles sinalizam para o ensejo de uma reelaboração da figura do historiador/ educador diante deste quadro, em que a apreciação das narrativas põe em evidência um caráter valorativo da história concernente tanto à sua faculdade de orientação, quanto à sua capacidade em reafirmar e desqualificar memórias no jogo de legitimação de legados e realidades, que se sobrepõe, excluem-se e se complementam.

Apesar da miríade de possibilidades sugeridas e defendidas, e questões postas, a sintonia entre os artigos, e o objetivo claro da realização de uma problematização do campo, arrefecem, no leitor, o típico afã da obtenção de respostas definitivas. Todavia, os encaminhamentos são muito sugestivos. Na verdade, a sensação é de que a vertigem causada pelo profundo abismo, derivado do afastamento entre a sala de aula e a academia, já nos deixa menos mareados. Como ‘orientação’ desponta como a insígnia de Qual o valor da história hoje?, reafirmando a incerteza e a condição humana do fazer histórico, pode-se atribuir está qualidade à publicação, em termos de mapeamento das dificuldades a serem enfrentadas e de propostas que precisam ser evidenciadas.

O que se vê não é uma contraposição, e nem mesmo de complementaridade entre teoria da história e didática da história, mas a idéia de um prolongamento não-hierárquico entre os dois fatores. Se durante muito tempo, o precipício forjado entre ensinar e pesquisar se afigurou como virtualmente intransponível, hoje os esforços de superá-lo são explícitos, sendo Qual o valor da história hoje? parte integrante desse movimento. Fincando estacas nos dois lados do dilema, os artigos reunidos na coletânea procuram estender uma ponte obre a falha, possibilitando que a interpenetração de conceitos e a circulação de saberes gere para a disciplina histórica algo maior que a soma das partes.

Welinton Serafim da Silva.

GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria Orgs). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Resenha de: SILVA, Welinton Serafim da. Construindo pontes, superando abismos: o valor da conciliação entre o ensino e a pesquisa em história. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.8, n.8, p.345-350, 2012. Acessar publicação original [DR]

 

Os Índios na História do Brasil | Maria Regina Celestino Almeida

Durante longo período na historiografia brasileira convencionou-se estudar os povos indígenas como meros apêndices sem vontade de uma sociedade conquistadora e dominante. Vistos enquanto vítimas passivas de um processo assimilador, os mesmos acabavam submetidos e incorporados ao sistema colonial, perdiam sua identidade, sua língua, deixando de ser índios e desaparecendo da história. Na atualidade, felizmente, tais ideias já não se sustentam mais, tendo em vista o avanço das concepções teórico-metodológicas das investigações realizadas em diferentes centros de ensino e pesquisa, sobretudo a partir dos últimos 20 anos. Cada vez mais, diferentes pesquisadores revelam a imensa capacidade dos povos indígenas de agir com movimentos próprios, diante das mais adversas situações, criando múltiplas estratégias de sobrevivência que incluem negociações, conflitos, rearticulações culturais e identitárias.

Entre os pesquisadores desta nova corrente historiográfica que vem quebrando preconceitos e visões estereotipadas sobre as populações indígenas, está Maria Regina Celestino de Almeida, professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Em seu livro Os Índios na História do Brasil, a autora analisa a trajetória da inserção dos povos indígenas na historiografia brasileira, enfocando os avanços conceituais dos últimos anos e trazendo a tona o que John Manuel Monteiro chama de uma “nova história indígena” (2001, p. 5). Nesta concepção, é uma tarefa para os historiadores refazer as trajetórias múltiplas para entender que a história dos índios também faz parte da história do Brasil. Leia Mais

Militares/ Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Su | Maria Celina D’Araújo

O papel dos militares na política do Brasil e dos demais países da América Latina, ao longo do século XX, é amplamente estudado, embora exista predominância do período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o da Guerra Fria, quando estiveram à frente do poder da maior parte dos países do subcontinente. Conquanto tenham sido um dos principais atores políticos dos países sul-americanos até meados da década de 1980, quando as ditaduras da região começaram a ser substituídas por governos civis, não perderam a grande relevância no cenário político interno e externo dessas nações. No livro “Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América do Sul”, Maria Celina D’Araújo1 analisa o papel contemporâneo das forças armadas no Brasil e nos demais países da América do Sul, com foco nas atuações em defesa dos regimes democráticos de direito, nas cooperações militares regionais, nos aspectos hodiernos da corporação. O supramencionado livro é dividido em duas partes principais, que tratam, separadamente, da América do Sul como um conjunto e do Brasil, individualmente, em oito capítulos. Leia Mais

Indústria Cultural: uma introdução – DUARTE (AF)

DUARTE, Rodrigo. Indústria Cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. (Coleção FGV de Bolso, Série Filosofia). Resenha de: MARINHO, Lucas Alves. Artefilosofia, Ouro Preto, n.10, abr., 2011.

Conformado, em seis curtos capítulos, aos propósitos da coleção que integra, destinada a “interessados em filosofia de uma forma geral [que] a partir de textos claros poderão ter acesso às grandes questões do pensamento filosófico”, o livro Indústria Cultural: uma introdução é exemplo de didatismo que segue bem de perto, sobretudo em seus quatro capítulos centrais, a exitosa sequência expositiva de Teoria Crítica da Indústria Cultural 1. O surgimento da Teoria Crítica da indústria cultural, segundo capítulo do livro, relata as mais importantes ocorrências relacionadas ao Instituto para a Pesquisa Social: desde seu surgimento em 1924 na Alemanha, às expensas de Felix Weil, como alternativa entre as diretrizes ideológicas da social democracia e do comunismo ortodoxo: a invasão do instituto em 1933, então sob a direção de Horkheimer, o exílio de seus integrantes e o prosseguimento das atividades junto à Columbia University, até a chegada de Adorno aos Estados Unidos em 1938. Naquele país, Adorno, juntamente com Horkheimer, reuniu as condições teóricas e vivenciais – o conhecimento dos mecanismos de produção e difusão cultural já industrialmente instalados, as reflexões sobre a ciência e personalidade burguesas, o acirramento do antissemitismo e o início da Segunda Guerra, bem como os aforismos Sobre o conceito da história, legados por Walter Benjamin – para elaboração da Dialética do Esclarecimento. Após essa aproximação histórica, segue-se uma breve explanação temática dos seguintes capítulos da obra sobre a dialética: “Conceito de Esclarecimento”, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, “Juliette ou Esclarecimento e Moral”. Explanação que conduzirá o leitor ao, digamos, vestíbulo do cerne do livro: a terceira seção do segundo capítulo, A crítica à indústria cultural no contexto da Dialética do Esclareci- mento, onde estão inseridos destacadamente os excursos constituintes da Dialética do Esclarecimento mais afeitos ao propósito de Indústria Cultural: uma introdução, aqueles sobre a “Indústria Cultural”, modelo liberal, e sobre o “Antissemitismo”, modelo autoritário das sociedades tardocapitalistas ; ambos vinculados, por uma articulação magistral, à semicultura, condição subjetiva da perpetuação de tais modelos. Vamos ao cerne do livro: Trata-se do capítulo terceiro, Os operadores da indústria cultural segundo a crítica de Horkheimer e Adorno, onde são desvelados os “procedimentos típicos da indústria cultural […] os quais se constituem também como critérios de identificação não apenas de suas práticas, mas, eventualmente, até mesmo dos seus produtos mais típicos” –; eis exatamente o que se quer dizer com operadores. Estes perfazem cinco referências básicas que explicitam, com bastante clareza e objetividade, as estratégias repressoras da indústria cultural: a manipulação retroativa – corresponder minimamente às expectativas dos consumidores (expectativas previamente enxovalhadas pela própria indústria cultural) enquanto impõe padrões de consumo, de comportamento moral e político comprometidos com a perpetuação do status quo ; a usurpação do esquematismo – antecipação estandardizada e reles, até a quase absoluta previsibilidade, das possibilidades interpretativas (individuadoras) de seus produtos; a domesticação do estilo – correlato produtivo daquela usurpação do esquematismo receptivo, que reproduz a desproporção real existente entre todo (mundo administrado) e parte (indivíduo) no interior dos produtos da indústria cultural pela sobreposição artificial, estereotipada, por isso violentamente coercitiva, de clichês in- vestidos de universalidade; a despotencialização do trágico – correlato antropológico da relação coercitiva entre todo e parte nos produtos da indústria cultural que interdita ao sujeito (parte) qualquer possibilidade de individuação, de resistência afirmativa, experiência e expressão do sofrimento (encarnação da negatividade) para além do mundo ad- ministrado (todo); tudo isso posto sob um disfarce – o fetichismo das mercadorias culturais – que sobrevaloriza seus produtos, oferecendo-os como “nobres” mercadorias pretensamente distanciadas do mercado dos gêneros utilizáveis, para escamotear exatamente suas danosas implicações sociais.

Depois da sucinta e segura apresentação do caráter regressivo dos produtos da indústria cultural a partir desses cinco tópicos básicos, o autor tematiza, no capítulo quarto, as Retomadas do tema da indústria cultural na obra de Adorno. Ele destaca duas obras do último período do pensamento do filósofo, Teoria Estética e Sem modelo: pequena estética, em busca de adições críticas relevantes ao tema da indústria cultural posteriores à publicação de Dialética do Esclarecimento, quais sejam: a reflexão adorniana sobre a histórica apropriação mercantilizada e desvigorada de conceitos da arte autônoma pela indústria cultural, que o autor ilustrará referindo-se aos conceitos de estilo e catarse ; e aquelas reflexões que atualizam, no livro Sem modelo: pequena estética, “as tendências predominantes na indústria cultural” pós- Dialética do Esclarecimento. Ele aponta, por um lado, no surgimento e consolidação da televisão como medium maximamente invasivo, a hipertrofia da estratégia cinematográfica de reduplicação e naturalização do mundo para reprodução simples do espírito; por outro lado, no desenvolvi- mento histórico de formas alternativas de cinema, a possibilidade de um cinema libertário que tematizasse diretamente, ou seja, que recuperasse objetivamente o modo imagético (assim como a pintura para o modo visível e a música para o modo auditivo) da experiência.

O quinto capítulo propõe aprofundar a atualização da interpretação crítica dos fenômenos da indústria cultural a partir das “ferramentas conceituais legadas por Horkheimer e Adorno”. Ocasião para uma frutuosa apresentação das posições de Ulrich Beck e Scott Lash, às quais o autor recorre para bem delimitar (histórica e geopoliticamente) seu objeto, a globalização – período de virulento triunfo de empreendedores transnacionais (sobremaneira intensificado nas duas últimas décadas do século XX, quando os rendimentos de capital cresceram 59%, contra apenas 2% dos rendimentos oriundos do trabalho, e a produção mundial saltara de 4 para 23 trilhões de dólares) em detrimento do operariado organizado nos moldes da modernidade clássica, os “perdedores” (nesse mesmo período o número de pobres aumentara em 20%) inexoravelmente suplantados por uma classe média qualificada, informatizada, “vencedora da reflexividade” ao lado das quatro centenas de bilionários detentores de mais da metade de toda a riqueza produzida pela humanidade. O autor não se furta a lhes impingir (às posições de Beck e Lash) sólidas emendas críticas quanto às supostas implicações culturais da globalização – no fundo mais uma versão daquele ingênuo, gracioso (porque apressado) borboletear pós-moderno onde tudo são dinâmicos fragmentos dispostos a vigorosas alternativas simbióticas que confirmariam a “liberdade das pessoas no tocante à ‘escolha’ de opções que a indústria cultural apresenta”. Ridículo como dizer: “Nem mesmo sob tortura me farão preferir Bob Dylan a Noel Rosa. Portanto, sou livre.” Rodrigo Duarte insiste, contra esse otimismo fácil, a-dialético, na vocação marcadamente totalitária da indústria cultural globalizada, cuja matriz tecnológica, a digitalização, mais que democratizar fluxos imagéticos, teria permitido intensificar, “capilarizando” na mesma medida da internacionalização e concentração histórica do capital, a coercitividade e analgesia das mercadorias culturais.

No que apresentamos até aqui, ou seja, do segundo ao quinto capítulo, tem-se o esforço fundamental do autor: a apresentação do “modo mais simples e direto […] do quadro conceitual apropriado para se compreender os fenômenos audiovisuais reunidos sob a rubrica de ‘cultura de massas’”.

Mencionemos, por fim, os dois capítulos de cunho prevalentemente histórico do livro. As origens históricas da cultura de massas, capítulo primeiro, relato utilíssimo da constituição e consolidação histórica da “cultura de massas” segundo dois movimentos complementares: a disponibilização (e massificação) do público acompanhando a progressiva distinção entre tempo de trabalho e tempo de lazer; e a progressiva concentração do capital privado no ramo do entretenimento, assenhorando-se desse tempo livre – dos Music Hall a Hollywood. E o capítulo sexto que narra o desenrolar – usual- mente servil a projetos políticos autoritários – da Indústria Cultural no Brasil, desde as primeiras transmissões radiofônicas e confecções cinematográficas “artesanais” da segunda década do século XX; passando pelo estabelecimento industrial desses media durante o Estado Novo; até sua conformação definitiva, com o advento da televisão e sagração sistemática da TV Globo, não por acaso, a partir de 1964. O autor ensaia, em seguida, nas mais bem-sucedidas fórmulas desse mais bem-sucedido conglomerado da indústria cultural brasileira (a telenovela e o telejornal) um arguto reconhecimento daqueles referi- dos “operadores” (a manipulação retroativa, a usurpação do esquematismo, a domesticação do estilo, a despotencialização do trágico, o fetichismo das mercadorias culturais) acrescidos de um mecanismo original: certa “vocação filantrópica” – tutela dúbia atinente à parcela mais desassistida da população pela promoção regular de campanhas para arrecadação de fundos e prestação de serviços básicos em lugar do Estado – típico do modelo da indústria cultural brasileira. Indústria Cultural: uma introdução assim cumpre (e ultrapassa) seus desígnios didáticos.

Nota

1 DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003(coleção Humanitas).

Lucas Alves Marinho

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A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência – CARDOSO (NE-C)

CARDOSO, Adalberto Moreira. A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência Secular das Desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. Resenha de: LIMA, Jacob Carlos. O trabalho e a utopia da igualdade social. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Nas últimas décadas, a sociologia tem questionado e debatido o trabalho como categoria explicativa estruturante das sociabilidades nas sociedades contemporâneas, tendo como pano de fundo as transformações econômicas e políticas do final do século XX. O fim das experiências socialistas, a crise do Estado de bem-estar social, a reestruturação da produção e a revolução tecnológica informacional reconfiguraram as relações capital-trabalho e o papel do Estado como mediador dos conflitos e regulador dessas relações. Isso não significou o fim desse papel, mas seu questionamento permanente em nome da redução dos custos da força de trabalho, da competitividade internacional etc. De forma aparentemente paradoxal, o trabalho assalariado percebido nos primórdios do capitalismo como a nova escravidão a ser combatida, foi ressignificado a partir da incorporação progressiva de direitos sociais aos contratos de trabalho. A relação de assalariamento, regulada por ganhos, jornada de trabalho, direito à saúde, educação, previdência, constituiu o bem-estar social das sociedades capitalistas avançadas como um ideal a ser alcançado de maior igualdade política, social e econômica.

A proposta de revolução operária, de uma sociedade gerida pelos trabalhadores, deu lugar ao avanço contínuo das conquistas sociais, num viés socialdemocrata, da busca da utopia da igualdade e justiça social, sem rupturas revolucionárias. Assim, conceitos como sociedade do trabalho, sociedade dos direitos, sociedade salarial, cidadania social tornaram-se explicativos de um período específico do desenvolvimento capitalista1, no qual a luta de classes assumiu novas características e a mudança social significou a incorporação crescente dos trabalhadores na ordem capitalista por meio da regulação das formas de produção e reprodução social. Trabalho e cidadania – entendidos como direitos sociais, políticos e econômicos – tornaram-se sinônimos, em certa medida. O conceito de trabalho, constituía-se em instrumento fundamental na compreensão e na explicação da organização da vida social de forma geral, das questões do cotidiano, à construção de identidades sociais, e dos movimentos de transformação da sociedade.

No Brasil, a sociedade do trabalho nunca se efetivou no sentido de que a maioria dos trabalhadores sempre esteve fora da cidadania regulada pelo trabalho. Como afirma Oliveira2, mais que Estado do bem-estar social, no Brasil, sempre houve um Estado de mal-estar social representado pela inclusão de parcelas minoritárias dos trabalhadores aos direitos sociais propiciados pelo trabalho formal. Entretanto, a partir da década de 1930, no governo Getúlio Vargas, a regulação das relações capital-trabalho, ainda que restrita, construiu uma expectativa de direitos sociais que marca a sociedade brasileira até hoje.

A proposta do livro de Cardoso é recuperar a construção dessa inconclusa sociedade do trabalho no Brasil, desde os momentos iniciais do Estado brasileiro até os mecanismos excludentes que o constituíram e o mantêm ainda hoje como um dos países campeões mundiais da desigualdade social. A persistência das desigualdades sociais se dá pelos padrões de incorporação dos trabalhadores ainda na nascente ordem capitalista, e se perenizam na construção das relações sociais posteriores, marcada pela fragilidade estatal, pela violência contra o trabalho organizado, pelas formas desorganizadas de inserção dos trabalhadores migrantes no mercado de trabalho urbano e pela insensibilidade das elites dominantes em relação aos “de baixo”. A herança escravista de dominação e descaso com os trabalhadores persiste na nova ordem republicana que se inicia.

Esse conjunto de fatores Cardoso defende serem responsáveis por e estruturantes de uma sociedade caracterizada pela grande inércia que resulta na reprodução geracional de pobreza e desigualdades. Para ele, “o Brasil construiu seu estado de bem estar social como estado redistributivo, mas a redistribuição jamais se universalizou nem foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis. Não levou a uma turbulência social-revolucionária, mas uma violência circunscrita a pequenos grupos em momentos específicos da história” (p.17).

O livro apresenta um conjunto de hipóteses instigantes, visando lançar novo olhar às interpretações sobre a nossa “questão social”. A proposta é ambiciosa e divide-se em duas partes recortadas temporalmente: do Império à República Velha na constituição do que seria a construção da sociabilidade capitalista e sua inércia estrutural para a mudança social; e, a partir de 1940, a construção da sociedade do trabalho na ordem social instituída por Vargas que representou uma ruptura nessa dinâmica inercial oriunda da ordem escravista, renovando as estruturas estatais sem mexer, contudo, nas relações de trabalho no campo. Isto resultou em mudanças lentas e graduais mantendo as desigualdades. A persistência dos padrões de desigualdade social é o fio condutor que dá unidade ao livro, cujas partes podem ser lidas autonomamente.

A primeira parte, organicamente estruturada, recupera as contribuições das pesquisas da história social e do trabalho das últimas décadas, confrontando com as interpretações consolidadas. O autor ressalva, entretanto, que sua preocupação não é historiográfica e sim sociológica, analisando as contribuições recentes da pesquisa histórica sob o olhar da sociologia, o que lhe permitiu formular novas hipóteses. Entre estas podemos destacar a relação entre a escravidão e a “construção de uma ética do trabalho degradada, uma imagem depreciativa do povo, uma indiferença moral das elites em relação às carências da maioria e uma rígida hierarquia social marcada por grandes desigualdades” (p. 49). Fundamentando essa hipótese, Cardoso recorre a uma releitura distinta da visão clássica ou o que chama de “são Paulo centrica”, discutindo os diversos regimes de escravidão e contrapondo-se à interpretação da plantation e da escravaria a ela ligada. Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e região Sul tinham situações diferentes; a plantation era restrita a algumas regiões. A imigração não seria, dessa forma, a substituição dos escravos, que em sua maioria já estavam liberados para atender as necessidades dessa mesma plantation, e de outras atividades econômicas constituindo uma massa diversificada de mestiços, dispersos e nômades. A libertação dos escravos não alterou as formas de controle social representada pelas milícias privadas nas mãos dos senhores locais com implicações políticas durante todo o período.

A coexistência do um trabalho livre e o controle social privado favoreceu o surgimento de um “Estado antissocial” marcado pela descentralização do poder controlado das oligarquias locais e regionais, inexistência de qualquer legislação voltada para a questão social. Aliás, tal questão, para as elites, “não existia”, tudo o que se referia aos pobres era uma questão de polícia. A federação constituiu-se no instrumento dessas oligarquias que viviam brigando entre si, mas que se juntavam contra escravos e pobres sempre que se sentiam ameaçadas. Os interesses públicos não excediam os interesses privados, o que se manteve no início da industrialização, quando as elites industriais respondiam com repressão a qualquer ameaça grevista beneficiada com o “estado de sítio permanente que vigorou nos centros industriais mais importantes a partir de 1922, por causa das revoltas militares” (p. 133).

A massa de desocupados e subocupados nas cidades favoreceu o desenvolvimento de relações de trabalho com condições precárias e baixos salários. Inicia-se a segregação espacial das cidades, a violência e a repressão estatal à desordem, o povo sendo culpado pela própria miséria na visão das elites. Dessa forma, constrói-se um mercado de trabalho que tem como característica estruturante a precariedade das condições de inserção, permanência e mobilidade, situação que, em grande medida, ainda se mantém.

A hipótese discutida por Cardoso de que a imigração não seria a mera substituição dos escravos, que os imigrantes ocuparam os espaços do mercado e, portanto, os capitalistas urbanos não precisaram recorrer ao disciplinamento do cotidiano para a implementação de uma educação para o trabalho é instigante e ao mesmo tempo polêmica. É possível sustentar que a situação de São Paulo foi distinta por conta do boom da cafeicultura e que os proprietários privadamente organizavam a vinda de imigrantes e os submetiam a condições de trabalho similares à da escravidão. Sem dúvida isto pode colocar em xeque a ideia da busca de trabalhadores habituados ao assalariamento e ao trabalho livre, coisa que os próprios fazendeiros não estavam. Mas ao sair de São Paulo (e mesmo em São Paulo), tendo em mente o trabalho industrial, a implementação de uma educação para o trabalho talvez não tenha sido tão irrelevante.

Basta lembrar que nesse período numerosas fábricas surgiram nas diversas regiões do país; vilas e cidades operárias foram construídas como forma de disciplinarização e imobilização de uma força de trabalho desacostumada aos ritmos e às exigências do trabalho industrial. Excluindo São Paulo e o Sul do país, o empresariado utilizou basicamente o elemento nacional, com exceção de profissionais qualificados e cargos gerenciais em alguns casos. Leite Lopes3 (1988), em sua pesquisa sobre a fábrica Paulista no município do mesmo nome em Pernambuco, no que hoje constitui a Região Metropolitana do Recife, demonstrou o papel disciplinador e educativo pretendido pelo empresário na constituição de sua força de trabalho. Os trabalhadores eram aliciados no sertão nordestino, uma vez que já havia a preocupação (na primeira década do século xx) com trabalhadores contaminados por ideologias subversivas nas fábricas do Recife, que então se constituía em importante centro industrial têxtil. O trabalho etnográfico de Lopes demonstra a construção de uma cultura operaria mediada por empresários, no sentido de uma “correta” educação operária, com igrejas e lazer programado numa versão tupiniquim das company towns norte-americanas e inglesas. Pesquisas sobre Rio Tinto na Paraíba4, outras ainda em Pernambuco5, Minas Gerais6 e São Paulo7 apontam no mesmo sentido. Essa preocupação empresarial não invalida a hipótese de Cardoso da privatização das relações capital e trabalho, mas matiza o descaso empresarial com a construção de uma disciplina do trabalho e com a degenerescência moral dos trabalhadores nativos, uma vez que estaria relacionada com a crescente ameaça política representada pela organização do operariado fabril nas cidades.

O ensaio finaliza apontando a revolução de 1930 e o início da construção da utopia representada pela proteção estatal presente na legislação social e trabalhista. Entretanto, a debilidade do Estado restringiu sua abrangência, o que excluiu os trabalhadores rurais, até a década de 1980, de qualquer proteção social, mas criou a expectativa de integração social de massas de migrantes que passaram a buscar as cidades como forma de melhoria de vida. Isto resultou no crescimento da população urbana e num mercado de trabalho fortemente marcado pela informalidade, ilegalidades diversas e violência que configuraram os cenários urbanos das grandes e médias cidades brasileiras.

Independentemente dos limites e de seu alcance, a legislação trabalhista varguista “instaurou um campo legítimo de disputa, cuja legitimação era o próprio Estado”, a cidadania regulada, utilizando o conceito de Santos8, com a promessa de integração social. Esta cidadania torna-se então a forma institucional da luta de classes, com o trabalhador em busca legítima por seus direitos. Inicia-se, pois, o processo civilizatório do capital, inexistente até então na construção de um Estado marcadamente antissocial. A CLT torna-se símbolo identitário. Ser trabalhador pressupõe ter carteira de trabalho, e esta simboliza acesso a direitos.

Na segunda parte do livro, o argumento da persistência das desigualdades e sua legitimação é discutido com a utilização de dados de censos demográficos, PNADs e pesquisas realizadas no âmbito do Iuperj, em 2001. São três capítulos que podem ser lidos como artigos independentes, pois trabalham com recortes específicos e utilizam metodologias distintas. O ponto central é como o mercado de trabalho urbano absorveu a massa de migrantes que correram para as cidades e em que medida essa mobilidade espacial resultou em mobilidade social atendendo as aspirações, os projetos de vida e as concepções de justiça desses trabalhadores.

No primeiro capítulo da segunda parte, são discutidas mudanças estruturais do período de 1940 a 2000 tendo como recorte a urbanização acelerada, o aumento da escolaridade e a entrada no mercado de trabalho dos jovens saídos da escola. Demonstra, nesse período, a permanência de mercados de trabalho estruturalmente precários, a manutenção de condições de trabalho e vida que indicam pouca mobilidade social, em que pese a universalização crescente do acesso ao ensino básico e mesmo a expansão do ensino superior. A hipótese defendida é que a educação teve pouca importância para esse mercado de trabalho, frustrando a expectativa da escolarização como condição de mobilidade. Nesse argumento, o autor destaca a decepção com uma escolaridade que não propiciou qualificação para o mercado, marcado pelo emprego mal remunerado, de baixa qualidade e instável, seja pela informalidade, pela rotatividade utilizada pelas empresas como forma de rebaixamento da remuneração, seja pelos tipos de ocupação disponíveis etc.

A urbanização e a maior escolarização melhorou a chance de ocupação e mesmo de mobilidade para os mais escolarizados, mas a maioria deles ficou de fora, num lento processo de mobilidade em comparação com as gerações anteriores. Tal lentidão foi agravada pela reestruturação econômica dos anos posteriores, que aumentou as exigências de escolaridade sem a equivalente melhoria da qualidade do emprego. A maior escolarização teve, assim, um resultado paradoxal: a piora das condições de entrada dos jovens no mercado de trabalho, independentemente de seu perfil educacional. As afirmações baseiam-se em dados quantitativos que estabelecem tendências. É possível discuti-las, na medida em que a urbanização, mesmo que precária, significou em grande medida acesso à escolarização e mesmo certa melhoria comparativa com a estagnação do meio rural, dos trabalhadores mais pobres no que diz respeito ao acesso a bens materiais e simbólicos. Também deve ser considerado que a modernização da agricultura teve resultados não apenas na expulsão do homem do campo, mas produziu um relativo aumento de ocupações qualificadas, significando mudanças lentas em termos de mobilidades para os trabalhadores. Todavia, isso não modifica as tendências apontadas pelos dados apresentados por Cardoso em seu recorte analítico.

Suavizando a aridez dos dados quantitativos apresentados na perspectiva da estrutura de oportunidades de inserção no mercado, o capítulo seguinte busca demonstrar a fluidez existente nas trajetórias individuais nessa estrutura que, no conjunto, é pouco dinâmica. Utilizando perspectiva similar à adotada por Lahire9 em seus retratos sociológicos nos quais recupera as disposições dos indivíduos e a realidade por eles reconstruídas, Cardoso recorre, com base em depoimentos, interpretação de comportamentos, práticas, opiniões e trajetórias, a dois casos exemplares de trabalhadores que “escaparam” de uma estrutura social que não favoreceria a mobilidade social.

Com Marlene, do interior de Minas, e Marcos, do interior do Ceará, Cardoso reconstrói as histórias de mobilidade. A primeira, como costureira, e o segundo, na construção civil, viraram empreendedores, por necessidade ou acaso, e conseguiram melhorar suas condições de vida e trabalho; possibilitaram a escolarização superior dos filhos e construíram um patrimônio num contexto de instabilidade econômica e política, altos índices inflacionários e desastrosos pacotes econômicos. As histórias permitem visualizar, segundo o autor, uma estrutura social relativamente aberta em baixo e mais fechada no topo. Os dois casos seriam representativos dos caminhos seguidos no processo de mobilidade. Situações diversificadas, em que capital social e acaso se juntam eliminando qualquer determinismo estrutural na análise. Para Cardoso o capital social e a estrutura de oportunidade, embora socialmente configurados, não são estanques, modificando-se contextualmente a partir de mudanças econômicas, políticas e sociais.

Situação análoga foi estudada entre operários fabris na Bahia por Guimarães10, que apontava a existência de “atalhos” utilizados por trabalhadores pouco escolarizados e qualificados na direção de melhores posições. Em algumas situações, a fábrica significou esse atalho. Nesses casos, a mobilidade geralmente era apenas horizontal, mantendo a condição “operária”, mas possibilitava adquirir habilidades úteis no meio urbano e resultar em certa ascensão com melhoria nas condições de vida. Processo similar pode ser percebido na construção civil, em que a experiência vai se constituindo em qualificação. Mesmo com a maior procura dos trabalhadores que se especializaram nos canteiros de obras, a informalidade e os contratos temporários marcam as condições de trabalho, bem como a instabilidade permanente, o que compromete a mobilidade11. Em outras palavras, a fluidez da mobilidade é mediada por um mercado no qual formalidade e informalidade se imbricam estruturalmente, e os trabalhadores circulam entre eles o tempo todo, mesmo em ocupações mais qualificadas, autônomas ou “empreendedoras”, perenizando a instabilidade como condição.

Por fim, o terceiro capítulo discute as concepções de justiça, da percepção da desigualdade e legitimação da ordem. Com base em dados provenientes de um survey de 2001 e em depoimentos, Cardoso conclui que a imensa maioria, principalmente dos pobres, percebe a desigualdade como uma injustiça, mas a considera legítima. De qualquer maneira, a maioria da população possui grandes expectativas de melhoria, o que aponta para a utopia brasileira de mobilidade permanente como percepção dominante.

O Estado continua sendo percebido como o grande agente da resolução da desse problema social. O acesso aos direitos teria garantias e a inserção seria uma possibilidade permanente. Não ter êxito é considerado questão pessoal, falta de sorte ou desígnio divino. Aqui os dados apontam que estudos sobretudo qualitativos podem aprofundar a análise de que exista uma correlação positiva na qual o Estado é percebido como instrumento para maior acesso à igualdade e à justiça.

Se é possível uma síntese, A construção da sociedade do trabalho no Brasil elenca numerosas hipóteses, análises e provocações, difíceis de discorrer no âmbito restrito desta resenha. O extenso período e as diversas proposições sugeridas oferecem, entretanto, numerosos insights para a análise da estrutura da sociedade brasileira, propondo novas pautas de pesquisa.

Dados recentes sobre mobilidade social desta última década, com o crescimento e a estabilidade econômica, o aumento progressivo do salário mínimo e a implementação de políticas sociais compensatórias, trazem para primeiro plano a necessidade de mais estudos sobre as mudanças em nossa estrutura social com a diminuição, pela primeira vez em décadas, da pobreza absoluta. Nesse sentido, o livro é instrumento importante para a análise da mobilidade social e contribui significativamente para o debate a cada dia com maior visibilidade.

Lentamente a população brasileira move-se para patamares acima da pobreza absoluta e se depara com uma cidadania “regulada” mais pelo consumo do que pelos direitos. Cresce o número de empregos formais, e há maior distribuição territorial desses empregos. Discutir sua qualidade exigiria uma análise mais ampla sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo. A informalidade, embora tendencialmente em queda, ainda representa cerca de 50% do mercado de trabalho, sendo que a circulação dos trabalhadores entre formal e informal constituem-se em característica, digamos, estrutural. O trabalho informal também tem sido ressignificado como trabalho autônomo e empreendedor, mas aí adentramos em uma outra discussão.

A defesa dos direitos sociais vinculados ao trabalho pressupõe forte presença estatal na regulação capital de trabalho, o que decorre, em grande medida, de mobilização social e política. Mobilização complexa num quadro de flexibilização das relações de trabalho no qual os direitos sociais são percebidos como custos que comprometem a competitividade empresarial e as políticas sociais, percebidas financeiramente como ameaça ao fechamento das contas públicas.

As mudanças políticas desta década têm reforçado o papel do Estado na implementação de políticas sociais, na recuperação do salário mínimo e em outras medidas fundamentais para o maior atendimento das demandas sociais das populações mais pobres e diminuição da desigualdade social. Nossa sociedade do trabalho continua em construção e, para o bem ou para o mal, a utopia social brasileira continua passando pelo Estado. O livro de Cardoso é uma contribuição significativa para esse debate.

Notas

1 Período que podemos situar historicamente com as propostas keneysianas a partir da década de 1930 nos Estados Unidos, e os anos pós-Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental até a crise da década de 1970 e a reestruturação econômica de corte neoliberal.
2 OLIVEIRA, Francisco de. “A metamorfose da arribaçã”. Novos Estudos Cebrap, nº 27, jul. 1990, pp. 67-92. [Links] 3 LEITE LOPES, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo/Brasília: Marco Zero/CNPq, 1988. [Links] 4 VALE, Eltern Campina. Tecendo fios, fazendo história: a atuação operária na cidade-fábrica Rio Tinto (Paraíba, 1959-1964). Fortaleza: dissertação de mestrado, Sociologia, PPGHS, 2008. [Links] 5 LIMA, Jacob Carlos. Trabalho e formação de classe: um estudo sobre operários fabris em Pernambuco. João Pessoa: Editora da UFPB, 1996; [Links] Egler, Tamara Cohen. O chão de nossa casa: a produção da habitação em Recife. São Paulo: tese de doutorado, Sociologia, PPGHS/USP, 1987. [Links] 6 BRANDÃO LOPES, Juarez R. Crise do Brasil arcaico. São Paulo: Difel, 1967. [Links] 7 BLAY, Eva Alterman. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985. [Links] 8 SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. [Links] 9 LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004. [Links] 10 GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. “A ilusão do atalho: a experiência operária da pequena burguesia em descenso”. In: GUIMARÃES A. S., AGIER, Michel e CASTRO, Nadya Araújo (orgs.). Imagens e identidades do trabalho. São Paulo: Hucitec, 1995. [Links] 11 COCKELL, Fernanda Flávia. Da enxada à pá de pedreiro: trajetórias de vulnerabil

Jacob Carlos Lima – Professor titular do Departamento de Sociologia da UFSCar.

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Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares

A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.

Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.

Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.

Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.

Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.

A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.

Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.

O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.

Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.

Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.

O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.

No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.

Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.

Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.

Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.

A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.

O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.

Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.

A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.

Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.

Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.

Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.

O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.

O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.

A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.

O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.

Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.

Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: [email protected]


ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.

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A Marinha Brasileira na era dos encouraçados/ 1895-1910. Tecnologia/ Forças Armadas e política | João Roberto Martins Filho

Até o outono da marinha veleira o Brasil podia ser considerado uma potência naval. O arsenal da Marinha e outros armadores empregavam madeiras e saberes há muito disponíveis para construir e manter grande variedade de navios. O avanço da Revolução Industrial trouxe o vapor e as estruturas metálicas; já a Revolta da Armada, no início da República, destroçou boa parte da Marinha brasileira, de modo que o seu poder naval no final do século XIX tornou-se uma sombra do que fora cinquenta anos antes. O livro do João Roberto Martins Filho investiga os caminhos, motivações e implicações do processo de modernização naval brasileiro, que, em meio à febre tecnológica dos encouraçados, procurou reposicionar a Marinha brasileira entre as potências mundiais. Leia Mais

Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro

O livro Microcrédito: O Mistério Nordestino e o Grameen Brasileiro fornece a melhor visão da indústria microcréditícia brasileira e de seu futuro do que a maioria do que foi escrito sobre o assunto. De forma interessante, a análise não discute o microcrédito brasileiro de uma perspectiva global, mas enfocando desde o ponto de vista quase exclusivamente institucional e sobre uma instituição em particular: o CrediAMIGO do Banco do Nordeste.

O livro demarca claramente os desafios enfrentados pelos praticantes de microcrédito no Brasil, dando ênfase particular à diversidade demográfica da maioria dos clientes potenciais e à informalidade dos seus negócios. Porém, também propõe soluções a esses problemas oferecendo uma visão duma indústria microcreditícia baseada numa forte presença estatal. E, no pano de fundo, é bem perceptível a mão de Marcelo Neri. Organizador e autor principal do livro, ele é seguramente um dos economistas mais importantes do Brasil. Formado em Economia e com mestrado pela PUC do Rio de Janeiro e doutorado pela Princeton University nos Estados Unidos, suas áreas de trabalho principais são o bem-estar social, o trabalho, e a micro-econometria. Leia Mais

A história na escola: autores, livros e leituras | Helenice Aparecida Bastos Rocha, Luís Reznik e Marcelo de Souza Magalhães

Na última década, tenho vislumbrado um significativo avanço nas pesquisas na área de ensino de história no Brasil, traduzido pela presença de dissertação e teses defendidas nos programas de pós-graduação em História e Educação versando sobre temas como produção, circulação e usos dos livros didáticos, formação e prática do professor, novas linguagens e tecnologias, políticas públicas e currículos entre outros. Esse crescente interesse pelo assunto fica evidente na quantidade de livros, coletâneas e dossiês em periódicos científicos publicados no país. A Revista de História da Biblioteca Nacional, criada em 2005, à guisa de ilustração, desde o seu primeiro número tem dedicado uma seção às questões do ensino da História na escola de educação básica.

Em 1998, quando iniciava os primeiros passos na pesquisa, podia-se rapidamente levantar mentalmente a pequena lista de obras de referência sobre a história do ensino da História no Brasil, mesmo as dissertações e teses ocupavam poucas páginas após uma busca bibliográfica. Não me esqueço da alegria que fora mim receber do orientador de iniciação científica a coletânea O saber histórico na sala de aula, organizado pela historiadora Circe Bittencout. Até então só conhecia Repensando a história, organizado por Marcos Silva (1984), Ensino de História: revisão urgente (1986), de Conceição Cabrini e outras autoras, O ensino de história e a criação do fato (1988), organizado por Jaime Pinsky, Caminhos da história ensinada, de Selva Guimarães Fonseca (1993), e artigos publicados em um ou dois dossiês na Revista Brasileira de História e Cadernos CEDES. Leia Mais

Mulheres, Mães e Médicos: discurso maternalista no Brasil / Maria Martha L. Freire

Este livro Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista no Brasil (2009) é resultado da tese de doutorado de Martha Freire e obteve uma premiação de publicação pela Associação Nacional dos Professores de História, edição Rio de Janeiro em 2008, com o objetivo de apresentar esta produção a um público mais amplo.

A autora possui uma escrita leve e inteligente conseguindo realizar abordagens que caracterizam a mulher sob seu aspecto social de esposa e mãe, mas com um diferencial que é a percepção de “melhorar” estes atributos naturais a partir de uma posição científica, é então que entra a figura dos médicos enquanto auxiliadores científicos das mães.

Mas, de que mães esta autora fala? Como seu foco de pesquisa foi convergido em revistas voltadas para um público feminino, ela basicamente se atém às mulheres de classe media e alta, pois eram as maiores consumidoras destes serviços e claramente alvo das propostas de médicos e higienistas nos artigos publicados.

O livro destaca o papel essencial das revistas no processo de divulgação do que era considerado uma maternidade saudável, científica e correta na década de 1920, e ao realizar esta análise sobre a mulher em uma maternidade. A autora também oferece uma análise acerca da situação social feminina na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que as revistas também são um interessante suporte no sentido de compreender o papel desempenhado por mulheres-mães no ambiente social, perpassando também pela compreensão do “ser” mulher no mesmo contexto mais amplo da cidade e relações de convivência, trabalho, cidadania e mesmo feminismo.

As duas principais revistas que vão compor este estudo são: Vida Doméstica (1920-1963) cujo editor foi Jesus Gonçalves, ele tinha mais interesse no ramo empresarial que a revista proporcionaria, e Revista Feminina (1914 – 1936) fundada por Virgilina de Souza Salles, cujos objetivos eram claramente voltados para a valorização da mulher brasileira em seus atributos. Estas revistas foram escolhidas em razão da declarada intenção de ensinar a mulher a “ser mulher”.

A autora parte do ideal republicano de papel da mulher na figura de mãe para perceber como médicos e o discurso cientificista entraram nos lares de classe média e alta ampliando os saberes femininos sobre cuidado com as crianças, tendo em vista que estas representavam o futuro da nação e deveriam ser bem assistidas desde a tenra infância.

A autora atenta-se para a demarcação de exigência de uma educação para o exercício da maternidade, a necessidade da elite em oferecer um parto e infância higiênicos.

Na virada do século XIX para o XX, a maternidade ocupou papel central nas formulações teóricas e práticas reivindicatórias dos primeiros movimentos feministas ocidentais, dos mais aos menos radicais, que reclamavam o reconhecimento público da maternidade como função social. (FREIRE, 2009, p.23) Ela defende que a busca pela legitimidade da maternidade por alguns movimentos feministas estavam atreladas às tentativas de regaste da valorização feminina retirando apenas o caráter natural de ser mãe e buscando com isso destinar mais poder às mulheres – através da própria iniciativa e participação. Isso porque, ao promover o deslocamento dos “valores femininos” do espaço doméstico para a esfera pública, descortinou para as mulheres, tornando-as simultaneamente sujeitos e objetos de públicas de proteção.

Assim, a partir das revistas voltadas para um público feminino e a destinação de ser mãe, havia uma convergência de interesses em regenerar a família como uma estratégia para alcançar a ordem e o progresso na nação. Como ciência principal para o desenvolvimento dessa noção de maternidade, infância e família estava a “descoberta” e aplicação de conhecimentos médicos, higiênicos e eugênicos.

A organização do livro se dá através de quatro (4) capítulos, em que seguem a seguinte abordagem: O primeiro capítulo tem como título As múltiplas faces da mulher moderna: descrição do cenário geral da década de 1920, onde a autora realiza uma breve das duas maiores fontes de pesquisa para seu trabalho as revistas Vida Doméstica e Revista Feminina, neste capítulo a autora analisa as implicações de ser mulher moderna para estes veículos de comunicação e como uma constante temática está o feminismo e emancipação da mulher.

No segundo capítulo, intitulado Maternidade: a aliança entre mulheres e médicos, Martha Freire edita com clareza as principais concepções acerca de maternidade associando esta função feminina tanto ao instinto natural de todas as mulheres como também às técnicas implementadas por médicos e a higiene. Na intenção de normatizar mulheres, os novos padrões científicos das ciências aplicadas eram divulgados nas revistas como a fomentação para a mulher enquanto “cientista do lar”. É abordada ainda a saída feminina do lar a partir da profissionalização.

Já no terceiro capítulo, cujo título é Higienizando corpos, mentes e lares, a autora aborda em sua pesquisa como a atividade maternal se tornou um debate em favor do sanitário, onde os princípios científicos associados a práticas femininas se constituíram em uma aliança entre médicos e mães.

O pressuposto que fundamentava esse consenso era que as mulheres – tanto as das classes mais elevadas quanto as operárias – não estavam preparadas para o desempenho adequado de suas funções primordiais de esposa e mãe. As soluções propostas, entretanto, variavam conforme os distintos matizes políticos e ideológicos de cada revista ou de seus articulistas, embora, na defesa de suas idéias, seguissem a mesma polarização da imagem feminina. (p.108) Para alcance destes objetivos foram organizados também reformas educacionais que priorizavam a intelectualização da mulher para melhor desempenho de suas funções sociais.

Por fim, o quarto capítulo, Robustos e sadios: a alimentação dos filhos salienta todas as características de formação de uma maternidade científica e descreve diversas situações que médicos influenciaram diretamente posturas femininas de maternidade social.

Notas

1 Sobre a autora: Maria Martha de Luna Freire é médica e mestre em saúde da mulher e da criança e doutora em história da ciência e da saúde pelo Casa Oswaldo Cruz – Fiocruz. Atualmente é professora da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora no campo da história materno-infantil no Brasil.

Tatiane da Silva Sales – Mestranda em História pela UFBA


FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, Mães e Médicos: discurso maternalista no Brasil. Rio de Janeiro: editora FGV, 2009. Resenha de: SALES, Tatiane da Silva. Outros Tempos, São Luís, v.6, n.8, p.169-171, 2009. Acessar publicação original. [IF].

América latina no século XXI: em direção a uma nova matriz sociopolítica | Manuel Antonio Garretón

O livro América Latina no século XXI é o resultado de uma série de debates acadêmicos que se iniciaram no seminário Rethinking development theories in Latin America: democratic governance, process of globalization and societal transformations, promovido em 1993 pela University of North Carolina. Esses debates foram retomados em encontros na Universidad de Salamanca e, posteriormente, nos congressos da Latin American Studies Association (LASA) – uma entidade internacional que tem como missão fomentar a discussão intelectual, a pesquisa, o ensino e a “participação cívica através da construção de redes sociais e de debate público”1. A primeira versão desta obra coletiva foi redigida pelo sociólogo Manuel Antonio Garretón (Universidad de Chile) e teve como base vários artigos publicados por ele em revistas acadêmicas. Os demais autores contribuíram com seções e parágrafos ao longo do texto e o cientista político Jonathan Hartlyn (University of North Carolina) coordenou a revisão final.

A obra é dividida em seis capítulos que procuram elaborar um “modelo geral” para a interpretação das transformações sociopolíticas e das tendências históricas da região. A princípio, os autores argumentam que os países latino-americanos estão se dirigindo, ainda que de forma irregular, a novas estruturas políticas e padrões de governança ligados fortemente às mudanças sociais que essas nações têm vivenciado nos últimos anos. Ou seja, ao contrário daqueles que procuram uma análise estrutural fundamentada em grandes paradigmas, os autores defendem um estudo das interrelações entre a economia, a política, a sociedade e a cultura através de hipóteses de médio alcance – capazes, segundo eles, de reagir à “excessiva generalização teórica” e aos modelos que pensavam a América Latina exclusivamente em torno de questões como “desenvolvimento”, “revolução”, “dependência”, “modernização” e “democratização”. Leia Mais

Amazônia e Defesa Nacional. | Celso Castro

Após o regime militar brasileiro (1964-1984), a Amazônia ganhou importância nas discussões sobre defesa nacional, com destaque para o projeto Calha Norte em 1985 e na década seguinte o Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia). Tal livro pretende contribuir com os estudos sobre Amazônia e defesa nacional no meio acadêmico civil. Com a nova realidade e as novas posturas estratégicas sul-americanas (como uma maior presença e interferência dos Estados Unidos e as atenções voltadas para a Amazônia internacional, assim como a diminuição das preocupações estratégicas brasileiras com a Argentina), torna-se necessário mais estudos abrangendo tais temas, principalmente devido à importância atribuída à região amazônica.

No primeiro capítulo (As Forças Armadas Brasileiras e o Plano Colômbia), João Roberto Martins Filho disserta como a questão sobre defesa da Amazônia ganhou força após o final da Guerra Fria e a criação no Brasil do Ministério da Defesa em 1999, mesmo ano da implantação do Plano Colômbia. O autor afirma que o Brasil se viu obrigado a voltar suas preocupações para a defesa das fronteiras e aos conflitos em território colombiano. A postura do Ministério da Defesa reafirmou a não-interferência brasileira no combate ao narcotráfico na Colômbia, fato esse que passou a ser visto pelas autoridades brasileiras como um assunto de segurança e não mais de defesa, pois o tráfico de entorpecentes é encarado no Brasil como um problema interno, de responsabilidade policial e não militar, não cabendo a outros países intervir nesse tipo de assunto. Tal decisão ganhou força principalmente devido aos interesses e pressões norte-americanos para que o Brasil reconhecesse as guerrilhas colombianas como grupos terroristas e realizasse ações militares em território colombiano. Leia Mais

Jango: as múltiplas faces – FERREIRA; GOMES (AN)

FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, 272p. Resenha de: TEIXEIRA, Wagner da Silva. Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.28, p.279-287, 2008.

de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Angela de Castro Gomes é pesquisadora do CPDOC/FGV e autora de diversos livros, entre eles Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil (1979), A invenção do trabalhismo (1988) e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo (1996). Doutor em História pela USP, Jorge Ferreira é pesquisador do CNPq e já publicou uma série de livros, tais como Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1997), Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (2002) e O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (2005).1 Escrever uma biografia certamente não é tarefa fácil, descrever uma vida inteira já é complexo, ainda mais analisar todo o período de uma existência, levando em conta seu contexto, suas especificidades, seus meandros, as visões que outras pessoas têm do mesmo personagem.

Uma biografia pode tender a contar a história de uma vida de forma linear, os fatos parecem encadeados, numa seqüência que pode dar a idéia de ser imutável, como se a vida das pessoas não pudesse ser alterada, como se não houvesse alternativas possíveis, escolhas a serem feitas. Nesse sentido, Giovanni Levi afirma que, muitas vezes, “seguindo uma tradição biográfica estabelecida e a própria retórica de nossa disciplina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas” (LEVI, 1989, p.169). Sobre isso, vale lembrar a advertência de Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica: “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou” (BOURDIEU, 1986, p. 190).

O livro de Angela e Jorge escapa a essa cilada, com uma linguagem objetiva e direta, que diz claramente o que pretende. Os autores realizaram um trabalho que mostra diversas visões e diferentes opiniões sobre João Goulart. Sua trajetória é contada de forma que parece muito mais o sujeito da história do que um objeto de análise.

O livro é composto por sete capítulos, organizados de forma que cada capítulo é dividido em duas partes, uma primeira escrita pelos autores, na qual se apresenta o contexto político do período abordado e a trajetória de Jango, e uma segunda formada por entrevistas e documentos. Os relatos dos entrevistados dão vida à narrativa, é a fala de quem conviveu com Jango, quem o viu de perto e teve contato com ele, pessoas que estavam ao seu lado ou contra ele, que trabalharam em seu governo ou que articularam a sua queda. Os documentos também são outra fonte de vitalidade para o livro, demonstram as preocupações, as decisões e as escolhas que foram realizadas no momento em que foram escritos. A obra compreende a trajetória de Jango, de seu nascimento em São Borja em 1919, até sua morte em uma de suas fazendas na Argentina, na fronteira com o Brasil em 1976.

No primeiro capítulo, Jango em pessoa nos é apresentado sua infância no campo entre a estância e a escola, a convivência com os peões e o gado. A adolescência marcada pela expulsão da escola e pela conquista do campeonato gaúcho juvenil de futebol pelo Internacional.

A realização do curso de Direito, a preocupação com os negócios particulares da família e, no final de 1945, o contato cada vez maior com Getúlio Vargas, exilado dentro de suas fazendas em São Borja. Seguindo conselho de Vargas, entrou no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e se elegeu deputado estadual em 1947; em 1950 participou da Campanha de Getúlio para a Presidência e se elegeu deputado federal; em 1952, foi definitivamente para o Rio de Janeiro onde teve um escritório político dentro do Palácio do Catete: estava pronto “para novas funções no PTB e no governo” (p.19).

No segundo capítulo, Tempos de formação, são exatamente as atuações de Goulart na presidência do PTB e depois no Ministério do Trabalho que passam a ser analisadas. Em 1950, o partido aumentou sua bancada federal de 22 para 51 deputados, neste mesmo período, consolidaram-se novas lideranças no interior da legenda, nomes como o do próprio Jango, Leonel Brizola e Fernando Ferrari passaram a representar uma nova postura do partido, orientada pelo nacionalismo e pelo reformismo. Em 1952, passou a ocupar a presidência nacional do PTB e, em sua gestão, procurou reduzir as disputas internas e promover o crescimento do partido entre a classe operária. Em 1953, assumiu o Ministério do Trabalho e inovou ao retirar duas das principais amarras dos sindicatos – a necessidade de atestado ideológico e as intervenções quando alguma chapa de oposição era eleita. De acordo com o depoimento transcrito de Hugo de Faria, “foi a época de maior liberdade sindical” (p. 63).

O terceiro capítulo aborda a relação entre Jango, o movimento sindical e as esquerdas. A atuação de Jango no Ministério do Trabalho e na presidência do PTB propiciou uma aproximação com as esquerdas, principalmente o Partido Comunista do Brasil (PCB), mas também com as esquerdas de forma geral, em especial as que atuavam no movimento sindical. Naquele momento, o movimento sindical estava cada vez mais ativo, com um forte discurso nacionalista, reivindicativo e reformista. João Goulart foi se tornando um elo entre sindicalistas e governo. De acordo ainda com Hugo de Faria, Jango era um ministro que sempre dialogava com os sindicalistas, independente do seu grupo político: “tinha abertura política para discutir com um dirigente sindical sem se preocupar se aquele dirigente era comunista, socialista, trabalhista, petebista ou o que fosse” (p. 93).

O quarto capítulo, Jango vice-presidente, trata de sua ascensão à vice-presidência da República em 1955 e sua reeleição em 1960. Naquele período, o vice era eleito de forma direta e independente, isso implicava ter um projeto político e partidário próprio. Sua campanha tinha vida própria na disputa dos votos dos eleitores. O vicepresidente exercia ainda a presidência do Senado e tinha funções diplomáticas, isso “significava possuir espaços políticos próprios extremamente visíveis e valiosos politicamente” (p. 111). Como vice de Juscelino Kubitschek, exerceu uma função de mediação entre governo e sindicatos. Nas eleições de 1960, presidente e vice foram eleitos por chapas diferentes. Com a renúncia de Jânio Quadros e a tentativa de golpe dos ministros militares, teve início um forte movimento de resistência ao golpe, liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Depois do acordo parlamentarista que pôs fim à crise, “João Goulart e seu partido, o PTB, chegavam ao poder; um poder esvaziado e conquistado de forma muito tensa” (p. 117).

Jango presidente da República é o título do quinto capítulo, que mostra a conjuntura crítica na qual Jango assumiu a presidência e governou o país entre 1961 e 1964. Sua posse, nas palavras de Raul Ryff, deu-se diante de uma “situação completamente adversa, com crise política, crise militar, crise econômica, inflação em marcha, tudo isso” (p. 158). Nessa situação, suas primeiras medidas foram no sentido de garantir sua permanência no poder. Na fase parlamentarista, uma postura de “conciliação nacional” foi aos poucos sendo substituída por uma estratégia de enfraquecimento do parlamentarismo.

Após o plebiscito de janeiro de 1963 e o retorno ao presidencialismo, as esquerdas deram início a uma luta cada vez mais radical pelas reformas. De outro lado, a conspiração civil/militar para derrubá-lo ganhava cada vez mais espaço. As iniciativas de San Thiago Dantas de tirar Goulart do isolamento político depois da tentativa de decretação do Estado de Sítio em setembro de 1963 se viram frustradas. A opção de João Goulart foi de se reaproximar das esquerdas.

O tema do sexto capítulo é Jango e o golpe de 1964. Os autores destacam o papel que os vários grupos políticos e militares envolvidos tiveram naquele momento, evitando assim colocar somente sobre João Goulart a responsabilidade sobre aquele evento. De um lado, o alinhamento político de Goulart com o movimento sindical e as esquerdas radicais em defesa das reformas de base. De outro, a postura agressiva da oposição ao governo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo. O impacto da Revolta dos Marinheiros nas Forças Armadas, a quebra da hierarquia e a anistia significaram “um golpe profundo em sua integridade profissional, sustentada pelos valores de disciplina e hierarquia militar” (p.193). No dia 31 de Março, o jornal Correio da Manhã publicou o editorial “Fora”; Auro de Moura Andrade manifestou o rompimento do Senado com o governo; o General Mourão Filho partiu de Juiz de Fora ruma à Guanabara. No dia 1º de abril, Jango foi do Rio para Brasília e de lá para Porto Alegre. O Congresso decretou a vacância do cargo. O presidente estava deposto e chegava ao fim aquele período democrático.

O isolamento final de Goulart no país e sua saída para o Uruguai são os temas do último capítulo Jango no Exílio. Para os autores, seu exílio teve início logo no dia 2 de abril quando foi para uma de suas fazendas em São Borja. Tentou permanecer no Brasil até o dia 4 quando o cerco militar apertou e, “sem alternativas, pediu asilo ao governo uruguaio” (p. 229). Após uma expectativa de retorno imediato, viu aos poucos os militares se consolidarem no poder.

Do ponto de vista pessoal, a estadia no Uruguai permitiu a Jango uma recuperação financeira. Houve tentativas de retorno à ação polí tica, uma reaproximação com Brizola e depois a formação da Frente Ampla com JK e Carlos Lacerda. O aumento da vigilância e das perseguições a ele e a sua família após o golpe militar, em 1973, no Uruguai, forçaram a mudança para Buenos Aires. Em 1975, diante das ameaças da Operação Condor, foi para Londres, onde realizou vários exames, pois sua saúde física e psicológica estava muito debilitada.

Foram várias as tentativas de retorno ao Brasil, todas elas sem sucesso. Em dezembro de 1976, às vésperas de uma nova tentativa de atravessar a fronteira, sofreu um infarto fulminante.

Uma das grandes contribuições do livro é jogar luzes sobre a vida de João Goulart, já que alguns trabalhos anteriores sobre Jango cometiam um equívoco indicado por Norbert Elias em sua biografia sobre Mozart. Segundo Elias, tal equívoco ocorre quando “o interesse é apenas por sua obra, e não pelo ser humano que a criou” (ELIAS, 1995, p. 10). No livro, aparece o João Goulart político: deputado, líder partidário, ministro, vice-presidente e presidente; mas também o gaúcho de São Borja: filho de estancieiro, estudante, jogador de futebol, pecuarista, pai e avô. A obra também não foge ao debate de assuntos polêmicos, como a crise que culmina com o golpe em 1964. Evita o caminho percorrido por outros trabalhos, nos quais a imagem de Jango aparece quase sempre de forma negativa, definindo-o como o único responsável por aquele desfecho. Prefere resgatar a participação de outros personagens políticos: os militares, as direitas, as esquerdas e as forças estrangeiras, enfatizando que todos eles tiveram sua parcela de responsabilidade nos acontecimentos de março e abril de 1964 que resultaram na instauração da ditadura militar.

O texto é muito bem escrito, com uma linguagem direta e explicativa. Sua originalidade fica por conta da forma como foram usados os depoimentos, do grande número de entrevistados e da transcrição de diversos documentos da época. O livro cumpre o seu objetivo ao permitir o encontro do leitor com as múltiplas faces do ex-presidente João Goulart. As diversas falas, algumas de pessoas de seu convívio pessoal, como sua esposa Maria Theresa; auxiliares diretos, como Hugo de Faria; aliados, como o comunista Hércules Correia e o trabalhista Almino Afonso; ou inimigos políticos, como os militares Ernesto Geisel e Antonio Carlos Muricy.

O livro conta ainda com a inclusão inovadora de um CD com discurso de Jango pronunciado na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG), em 31 de maio de 1963, no qual pode-se ouvir, entre outras coisas, a defesa da Reforma Agrária.

Outros elementos que enriqueceram o livro são as fotografias e notas explicativas. Ambas auxiliam o leitor na visualização e compreensão de diversos fatos e personagens citados pelos autores ou pelos depoentes ao longo da obra. Sobre as notas, vale ressaltar que os autores poderiam ter aproveitado melhor este recurso, inserindo- as também para apresentar os dados biográficos dos entrevistados, possibilitando ao leitor elementos para um melhor entendimento das opiniões expostas sobre Goulart e sobre o contexto político de sua trajetória. A lista de depoentes colocada ao final do livro permite essa contextualização, porém se os dados biográficos estivessem distribuídos ao longo do texto tornariam mais fácil a leitura da obra.

Essa é a primeira biografia escrita pelos autores, ambos com uma larga experiência no trabalho historiográfico, especialmente na temática do trabalhismo. O livro foi lançado num momento muito importante, em que se refletiam ainda as discussões em torno dos 30 anos da morte de João Goulart. Sem dúvida nenhuma, o livro dos historiadores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira constitui um marco na historiografia sobre o passado recente do Brasil, tocando em feridas ainda não cicatrizadas. Para isso, utilizam a trajetória de um dos principais personagens daquele período. Uma leitura que se torna indispensável para quem pretende conhecer ou pesquisar a história política brasileira do tempo presente.

Notas

1FERREIRA, Jorge. O Imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil. Niterói/Rio de Janeiro: Eduff/ Mauad, 2002. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1988. GOMES, Angela de Castro. Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1979. GOMES, Angela de Castro. História e Historiadores: a política cultura do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio.Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In. AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e Abusos da História Oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

Wagner da Silva Teixeira – Tem graduação e mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FRANCA) e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]

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A Independência brasileira: novas dimensões | Jurandir Malerba

Em meio aos preparativos para a comemoração dos 200 anos da vinda da corte portuguesa para o Brasil, surge no mercado editorial a A Independência brasileira: novas dimensões. Organizado por Jurandir Malerba, o livro é um convite à reflexão sobre um momento crucial da nossa história. Há muito a historiografia sobre o período colonial vem sendo revista por novas teses que compartilham perspectivas inovadoras e dialogam com o que há de mais recente no meio historiográfico internacional. Os artigos da coletânea, originalmente apresentados no seminário New Approaches to Brazilian Independence, em 2003, na Universidade de Oxford, são o resultado de pesquisas de uma nova geração de historiadores sobre o tema. Seu subtítulo (Novas dimensões) visa tanto sublinhar o valor de uma obra que marcou época – organizada, em 1972, por Carlos Guilherme Mota –, quanto distanciar-se de seus pressupostos e métodos de abordagem histórica.

O instigante artigo de Jorge Pedreira, Economia e política na explicação da Independência do Brasil, abre a primeira parte do livro. Ao discutir os argumentos de uma historiografia “clássica” sobre o tema, contesta as interpretações de Fernando Novais e de Carlos Guilherme Mota, baseadas na crise do antigo sistema colonial, uma vez que, segundo o autor, o império luso-brasileiro conheceu uma notável expansão comercial em sua fase final. O conceito de vulnerabilidade – já utilizado por Valentim Alexandre em Os sentidos do império – aplica-se, segundo Pedreira, para designar aquela conjuntura complexa e mutante, pois nada indicava que o sistema colonial estivesse condenado à desintegração. Analisa as convulsões políticas que abalaram Portugal, a transmigração do rei e da corte para o Brasil, a abertura dos portos, o tratado de 1810, o isolamento do grupo mercantil no Reino. Tais fatores teriam gerado um conjunto impreciso de idéias, assim como projetos de “regeneração nacional”. A análise do espaço de convergência entre os interesses dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas políticas de uma importante facção das cortes constituintes levam-no a concluir que, apesar da relevância das questões econômicas, a dinâmica que desembocou na secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político. Leia Mais

Jango: as múltiplas faces | Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira

Em primeiro de abril de 1964, um furioso editorial intitulado “Fora” era publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã. O golpe civil-militar efetivava-se no país, sem que a ordem de resistência, esperada por muitos, fosse dada pelo Presidente João Goulart.

O personagem, centro da crise instaurada a partir da renúncia de Jânio Quadros, do qual fora vice-presidente, sofreu, a partir de então, como toda a sociedade brasileira, as conseqüências do golpe civil-militar desencadeado contra o seu governo, amargando o exílio no qual morreu em dezembro de 1976. A partir do golpe, sofreria também constante julgamento de aliados, colaboradores e adversários dos mais diversos lugares sociais e políticos. Leia Mais

Escrita de si/ escrita da História | Ângela de Castro Gomes

Organizada por Ângela de Castro Gomes, chega-nos uma significativa contribuição ao debate teórico-metodológico referente à “escrita de si”. Embora sempre tenham sido usados como fontes pelos historiadores, o conjunto de fontes documentais composto por diários, correspondências, biografias e autobiografias, apenas recentemente passaram a ser considerados fontes privilegiadas de análise e objetos da pesquisa histórica. Resultado das transformações na prática historiográfica vindas da consolidação da chamada História Cultural, segundo a organizadora também social e política, que estabeleceu novos recortes e temáticas, bem como objetos, metodologias e fontes ao trabalho do historiador.

Visto que ainda são poucos os estudos voltados a uma reflexão sistemática sobre esse tipo de texto na área da história, a coletânea composta por dezesseis artigos não se apresenta como uma obra definitiva. Mas sim, como uma amostra expressiva das diversas possibilidades e limites do trabalho historiográfico que se utiliza desse conjunto de documentos seja como fonte, seja como objeto de pesquisa. “Exercícios de análise” demarcados pelo debate das relações ente história e memória, pela questão da temporalidade e pelo enfretamento da questão da dimensão subjetiva dessa documentação, onde se estabelecem procedimentos metodológicos de críticas as fontes históricas que descartam “a priori qualquer possibilidade de se saber “o que realmente aconteceu” ou, a “verdade dos fatos”. Leia Mais

História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade – REIS (VH)

REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. 3ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Resenha de: DILMANN, Mauro. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 567-571, jul./dez., 2006.

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado A especificidade lógica da história, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia.  Para o Veyne de O Inventário das diferenças, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Nota

1 Resenha publicada originalmente na revista eletrônica CANTAREIRAS, da Universidade Federal Fluminense.

Mauro Dilmann 1 – Mestrando em História UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, RS. E-mail:  [email protected]

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João Goulart: entre a memória e a história | Marieta de Moraes Ferreira

FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Resenha de: MONTENEGRO, Antônio Torres. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.24, n.1, p. 313-317, jan./jun. 2006.

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História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade | José Carlos Reis

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado “A especificidade lógica da história”, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia. Para o Veyne de “O Inventário das diferenças”, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Mauro Dilmann – Mestrando em História pela Unisinos/RS.


REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Resenha de: DILMANN, Mauro. Cantareira. Niterói, n.9, 2005. Acessar publicação original [DR]

Arquivos permanentes. Tratamento documental | Heloisa Liberalli Belloto

BELLOTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes. Tratamento documental. Segunda edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Dimensões. Vitória, n.17, p.247-247, 2005. Acesso apenas pelo link original [DR]

João do Rio.  A cidade e o poeta | Antonio Edmilson Martins Rodrigues

RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. João do Rio.  A cidade e o poeta.  O olhar de flanêur na Belle Époque Tropical. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. Resenha de: LESSA, Mônica Leite. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.2, n.2, p. 193-195, 2004.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Capanema: o ministro e seu ministério | Angela de Castro Gomes

Entre as personagens políticas do primeiro governo Getúlio Vargas, e mais especificamente do Estado Novo, o ministro da Educação e Saúde entre 1934 e 1945, Gustavo Capanema, é uma figura central na definição ideológica e nas políticas públicas implementadas. Seu ministério tinha, entre outras atribuições, a de formular um projeto cívico-pedagógico para engendrar um “novo homem brasileiro”. A reforma do Estado, da sociedade e do homem eram projetos que deveriam caminhar juntos. Educação, saúde e cultura eram pilares para a execução deste ideário. As interpretações mais difundidas sobre as idéias e ações de Capanema têm se apoiado em imagens cuja força, enquanto ícones de uma época, sobrepõem-se às tentativas de uma análise mais apurada. Dois podem ser os fatores determinantes destas interpretações.

Em primeiro lugar, Capanema foi político e intelectual dos mais complexos e de difícil apreensão, mesmo no contexto do ideário conservador. Ele mantinha uma teia de relações pessoais e de colaboradores, que incluía intelectuais de esquerda em pleno Estado Novo. Desta colaboração resultou a obra maior, segundo o ministro, que foi o edifício sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, considerado um emblema da arquitetura modernista no país. A convivência entre a ditadura e o modernismo tem permanecido sob uma áurea quase enigmática. Leia Mais