O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento – PERULLO (T-RAA)

PERULLO, Nicola. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento. São Paulo: SESI SP Editora, 2013. 191 p. Resenha de: BENEMANN, Nicole Weber. Estética e experiência do gosto: contribuições para o debate sobre paladar, gastronomia e arte. Tessituras, Pelotas, v.3, n.2, p. 331-338, jul./dez., 2015.

Os questionamentos sobre a alimentação, o paladar e o gosto partem de uma análise dualística de ascendência platônica, que colocam em discussão noções como natureza e cultura, mente e corpo, sujeito e objeto. Essa construção é colocada na centralidade crítica na redação de Nicola Perullo que desenvolve o trabalho teórico através da reflexão filosófica na intenção de estudar o tema da percepção do alimento, através de uma conexão entre estética filosófica moderna e gastronomia, tratada por um viés menos exclusivista e mais flexível das relações humanas, cotidianas e ordinárias. A centralidade dessa abordagem reside na busca pelas respostas aos seguintes questionamentos: como percebemos alimentos e bebidas? Quais são os pressupostos, potencialidades e limites dessas percepções?

Para dar início às considerações sobre a própria estética, é necessário ressaltar que o status teórico do paladar tem sofrido deslocamentos ao longo do tempo. Historicamente, o paladar foi submetido à categoria dos sentidos inferiores, materiais e baixos, junto ao olfato e em contraposição a sentidos superiores, intelectuais e nobres, como visão e audição. Na perspectiva de Platão, a culinária seria comparável à retórica: uma atividade empírica, destinada a seduzir e a satisfazer uma necessidade primária e não atrelada ao conhecimento, já que não tem origem em leis dedutíveis e tampouco pertence ao domínio das artes, por não representar prazer intelectual. Ou seja, os resultados advindos do paladar seriam físicos, efêmeros e não dignos de um homem racional (PERULLO, 2013). De fato, a construção ocidental elevou o status da visão e audição como representantes do saber, da fé e da arte. O tato foi conectado a um sentido ambíguo, capaz de contato e proximidade, mas não capaz de interiorização. Paladar e olfato foram conectados a uma materialidade e a um prazer físico que atravessa o corpo. A pergunta que segue a essa construção é: esse paradigma sensorial foi abandonado na visão contemporânea? Perullo nos brinda com um exemplo na sua narrativa: Ferran Adriá, cozinheiro catalão reconhecido por sua cozinha vanguardista e criativa pautada na desconstrução de texturas e célebre por seu viés artístico, foi criticado por um filósofo em um editorial de um jornal espanhol. O argumento central da crítica estava na construção de que a gastronomia pertence ao universo do artesanato e que deveria ater-se ao efeito de saciar a fome, uma vez que a arte de fato apenas poderia existir depois da função biológica ou para além dela, condensando o argumento do paradigma filosófico antigo. Em resposta, a esta e outras críticas em relação ao seu restaurante e cozinha, Adriá definiu que a escolha de ir a seu restaurante significaria desejar uma experiência sensorial, estética, cultural e artística, colocando sua expressão em equivalência ao investimento na compra de um ingresso para uma peça de teatro, uma roupa de grife ou um jogo de futebol. Como contra argumentação, recebeu de seus críticos a consideração de que seu restaurante não oferece opções mais baratas, como os assentos de um teatro, e que um jantar não tem a durabilidade de uma peça de grife. Esse tipo de posicionamento esclarece três argumentos centrais do discurso da crítica: primeiro, a verdadeira arte diz respeito aos prazeres espirituais e fisiologicamente desinteressados; segundo, a gastronomia não faz parte da verdadeira diversão e cultura, como o teatro; e terceiro, o investimento em roupas seria melhor interpretado por ser um investimento duradouro. Por meio dessa argumentação podemos reconhecer as representações de três objeções em relação à comida, gastronomia e paladar: uma de origem epistemológica, uma de origem estética e uma de ordem ética. Epistemológica porque o paladar não pertence aos sentidos superiores, estética por não se tratar de uma arte “verdadeira” e sim de uma experiência fugaz; e ética por aproximar as pessoas de seus instintos animalescos e da glutonia.

Na contribuição de Perullo, muitos desses aspectos de marginalidade teórica se devem à concretude do paladar por tratar-se de uma atividade cotidiana e repetitiva e a sua fugacidade, efemeridade e caráter individual. Na visão do autor, essa marginalidade teórica com peso histórico deve ser assumida e compreendida, a fim de traçar um panorama crítico e um ponto de partida da reflexão sobre o tema, em que a culinária e a gastronomia compõem um “espaço ativo onde a filosofia, as ciências humanas, as artes e as ciências da natureza possam refletir sobre o seu tempo” (PERULLO, 2013, p. 39). De certa forma, a gastronomia desempenha hoje o papel que o cinema desempenhou em outras épocas, servindo como centro do debate para ajudar a redefinir as fronteiras do que compreendemos como arte. Esta construção menos dura e contemporânea toma forma com as concepções da estética moderna conhecida como a ciência do conhecimento sensível, da estética da relação e no conceito de performance que redefinem como espaço legítimo a sensibilidade, não limitando o intelecto à razão.

Pensar a experiência alimentar a partir desse novo posicionamento significa tomar como ponto de partida a ideia de uma oportunidade sensível ligada à própria natureza em que é constituída, a partir de um contato direto do sujeito com o objeto. Isso significa considerar a proposta de complexidade do fenômeno, gerada através de uma relação perceptiva e de um modo de reinterpretar as experiências do paladar. O paladar de acordo com essa abordagem não pode ser analisado um único sentido, uma vez que este processo se desenvolve com a participação do olfato e da atuação cerebral, que é também sensível aos estímulos físicos e a outros agentes influenciadores como a cultura e o contexto, por exemplo. Desse modo, podemos dizer que o paladar, bem como sua experiência, compõe um sistema perceptivo complexo, não sendo meramente mecânico ou instintivo, mas sim, um entrelaçamento de corpo e mente com o meio ambiente. Dadas às circunstâncias nas quais se desenvolve tal percepção, é necessária a compreensão do fenômeno do paladar através de uma dimensão qualitativa, em que se relaciona com a narração da experiência pessoal com as noções de valor do paladar. A experiência gustativa que ocorre e se desenvolve em diferentes contextos, entendidos aqui como um conjunto de conexões em um cenário de sentidos, não abriga regras de como apreciar e desfrutar o alimento. Almoçar em um restaurante renomado é muito diferente de fazer uma refeição na beira da estrada em uma longa viagem, mas não podemos afirmar que o prazer só pode ser encontrado no primeiro ou que a experiência do paladar apenas acontece no segundo momento, tampouco que esses momentos são construídos a partir de uma necessidade puramente biológica ou fisiológica. A saciedade, a companhia, a circunstância, a negação (sei que o sabor não é bom, mas tenho fome e como), o prazer refinado e outros aspectos têm influência direta sobre a experiência do paladar e isso é o ponto de partida da complexidade utilizada como referência nessa construção teórica.

Ou seja, para Perullo, refletir sobre o paladar significa refletir no paladar, sobre o “como fazer” experiência e “como viver” essa experiência, significa também tentar compreender uma relação corpo a corpo, entre sujeito e objeto, na qual o objeto é consumido com a finalidade de “transformar” o sujeito. Para conformar uma teoria estética do paladar é preciso compreender uma relação e uma implicação que tenta superar oposições rígidas, estáticas e dualísticas. Tratar do paladar significa, então, estar às margens da teoria da estética e construir uma teoria das margens ao tratá-lo sob uma ótica de continuidade e de interação na relação entre natureza e cultura. Prazer, conhecimento, necessidade, desejo, nutrição e gosto formam um único todo na experiência estética do paladar.

Nesse contexto de atravessamento entre natureza e cultura, comer é uma atividade social em que a natureza comparece e o paladar se apresenta como uma habilidade capaz de gerar prazer e conhecimento, através de uma característica endocorpórea atrelada a um cenário de sentido, a um saber perceptivo intrinsecamente relacionado ao corpo, que deve ser observado, refletido, introspectado, expresso, compartilhado e conceitualizado para dar conta de todas as suas possibilidades. A estética do paladar, em suma, é uma estética relacional.

No livro, O gosto como experiência, Nicola Perullo divide seu trabalho em quatro grandes temas para discutir a problemática do paladar. O primeiro deles é dedicado ao prazer. Neste desdobramento teórico, os enfoques das contribuições da discussão acontecem sobre os modos de acesso à experiência gustativa. De imediato, fica evidente que estes modos de acesso, o saber e o prazer, não são separados de forma rígida e tampouco estática e que “a relação estética enquanto prazer provoca, portanto, a receptividade plástica da percepção e abre à memória, à inteligência, à consciência e à linguagem” (PERULLO, 2013, p. 51).

O prazer desnudo, descrito no capítulo do prazer como um dos primeiros acessos à experiência do paladar, se refere a uma experiência perceptiva movida por impulsos e necessidades não conscientes, de um prazer naturalizado e mimético comumente relacionado ao paladar infantil como uma forma de atuação da natureza na cultura. O paladar adulto, por sua vez, estaria mais intimamente relacionado aos aspectos culturais do indivíduo, mas impossibilitado de dissociar-se da dimensão vital e corpórea do paladar. Nesse aspecto “a cultura acompanha o prazer, o responsabiliza, desenvolvendo-o ao compartilhamento e à linguagem pública” (PERULLO, 2013, p. 103).

Para a gastronomia, o prazer e o apetite, apresentados como elementos intimamente relacionados, desmistificam a noção de um conceito promovido puramente por uma fantasia, desejo, criatividade ou por um aspecto nutricional. Desse modo, a construção do argumento para o discurso sobre o prazer é sempre relacional e situado na interação entre natureza e cultura.

O saber, por sua vez, apresentado no segundo capítulo, está relacionado a uma construção de identidade, estilo e a uma apreciação qualitativa e valorativa da experiência. A percepção, nesse entendimento, é orientada de forma consciente em busca de um prazer intensificado e está relacionada com os modos com que o indivíduo se reconhece e avalia os outros, como o exótico e o pertencimento, por exemplo. De modo geral, o saber se liga ao modo com que o indivíduo se comporta em relação ao objeto e aos acessos básicos que são acionados através do paladar por meio do conhecimento e da cultura.

O saber do paladar também pode ser entendido como uma forma de educação que busca ensinar uma linguagem capaz de expressar uma apreciação racional do que é ingerido. Normalmente, esse é um processo gradual que atua na dimensão dos aspectos perceptíveis e mensuráveis, capazes de esclarecer os esqueletos dos processos de qualidade. Contudo, o processo de valoração da qualidade é socialmente compartilhado e intimamente vivenciado. Assim, a volúpia de um impulso vital na relação estética é uma percepção especializada que perpassa a apreciação cultural (PERULLO, 2013). Os dois significados coexistem no espaço do paladar como experiência.

O terceiro capítulo traz considerações sobre a indiferença, que conceitualmente não está atrelada ao desgosto, nem à abstenção, tampouco à aversão ou à patologia. A indiferença é entendida como uma distração, uma falta de atenção ao fluxo da experiência perceptiva na qual não conjectura uma experiência estética e opera em uma falta de potência do sentir. A indiferença pode ainda estar relacionada a uma experiência arrebatadora do prazer que transcende a experiência do paladar. Perullo reforça ainda a importância do neutro na experiência, como o ato de beber água, que representa uma percepção de introjeção e não de um prazer culturalmente elaborado ou estético.

A sabedoria, tratada como último tópico na abordagem do autor, é entendida como a capacidade de reconhecer e compreender a partir de uma percepção estética a emergência, a pertinência e a concomitância dos acessos de saber, prazer e indiferença. Desse modo, a experiência alimentar acontece desfrutando ou conhecendo, sentindo prazeres instantâneos ou intelectuais. O paladar pode ser prazer quando desfrutado, conhecimento quando conhecido e neutro quando a relação gustativa se retrai. A sabedoria, por sua vez, é o controle e a capacidade de regulação desses dispositivos, acionados na relação do objeto com o ambiente.

A contribuição da obra O gosto como experiência está em tentar encontrar um meio de definir a complexidade do fenômeno do paladar através do aspecto estético. Compreender a percepção gustativa significa aceitar a complexidade do fenômeno que é cultural e biológico, individual e coletivo, efêmero e durável, além de construído em um cenário de mistura de forças heterogêneas. Tratar do gosto como experiência estética significa tratar de seus componentes e acessos disponíveis através de um processo de absorção e assimilação durante a experiência alimentar.

Referências

PERULLO, Nicola. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento. São Paulo: SESI SP Editora, 2013.

Nicole Weber Benemann – Professora de Gastronomia da Universidade Federal de Pelotas; Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected] .

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