O negro e o legado da escravidão | Outras Fronteiras | 2014

A escravidão foi uma forma de trabalho forçado que existiu em diversas sociedades, em diferentes tempos, sendo que no Brasil teve início com a chegada dos portugueses e durou por mais de três séculos. No regime escravista um grupo de homens, ou uma sociedade, assumem direitos de propriedade sobre outros homens, condição imposta por meio da força e mantida através da violência. Os escravizados são tratados como mercadoria, na medida em que são comprados, vendidos, alugados, usados para empréstimo e penhorados.

A partir do século XVI, após o fracasso no processo de escravização de nativos, os portugueses decidiram pela introdução, em maior volume, de trabalhadores escravizados africanos no Brasil. O tráfico de africanos transformou-se no mais lucrativo negócio do Atlântico Sul, atividade que foi proibida em 1850, mas que perdurou por algum tempo depois, proporcionando grandes fortunas aos traficantes. Estima-se que 4,5 milhões de africanos foram traficados para o Brasil.

Desde que desembarcaram os primeiros cativos africanos no Brasil, estabeleceu-se a luta entre duas classes distintas e antagônicas – escravistas x trabalhadores escravizados. Os trabalhadores escravizados sempre negaram a escravidão e lutaram incessantemente contra a apropriação da sua força de trabalho pelos escravizadores. As reações à escravidão materializaram-se nas ações de fugas, na formação de quilombos, através do desamor ao trabalho, com suicídios, assassinatos de senhores e feitores, sabotagem de máquinas e ferramentas.

As fugas foram constantes. Estima-se que 6% do total de cativos ausentava-se do trabalho, fato que revela o quanto foi degradante a escravidão no Brasil. Fugia-se por diversos motivos: maus tratos, violência, excesso de trabalho, sobretudo, o cativo fugia pela vontade de libertar a força de trabalho apropriada pelo escravista. Das fugas vieram os quilombos, enclaves de liberdade dentro da ordem escravista. Local onde o ex-cativo passava a ter domínio sobre sua força de trabalho, podendo utilizá-la para seu benefício ou vendê-la a outrem.

O quilombo se fez presente em todas as regiões onde houve escravidão e representou ponto de atração para outros cativos. Quando havia um quilombo próximo às unidades escravistas, os cativos ficavam mais propensos à fuga. Os senhores organizavam expedições para atacar os quilombos e reconduzi-los à escravidão, visto que o fenômeno era uma afronta ao sistema vigente na época. No quilombo, o ex-cativo mostrou-se exímio trabalhador, ou seja, não era por ser negro que ele trabalhava menos, mas por ser escravo.

A escravidão deixou marcas ruins na sociedade brasileira. O racismo, a situação social do negro contemporâneo são exemplos de que a escravidão foi maligna para a nossa nação. As relações trabalhistas contemporâneas ainda refletem as relações do período escravista, basta ver que a empregada doméstica conquistou status de trabalhadora somente em 2012. Até então, era tratada como se fosse uma serviçal do período colonial.

O racismo no Brasil tem suas origens na escravidão. As consequências deste mal são extremamente prejudiciais às vítimas, sobretudo, aos afrodescendentes que ainda estão em processo de formação da sua identidade. O racismo é proibido por lei, mas continua a existir, sobretudo, o racismo velado, quando a discriminação ocorre sutilmente. Sob pretexto de que vivemos em uma democracia racial, a discriminação acontece diariamente, em todos os lugares, nas escolas, no local de trabalho, nos clubes sociais e outros.

A situação social do negro também é preocupante. O negro ocupa os postos de trabalho menos valorizados, poucos negros frequentam a universidade, a mulher negra recebe menos do que a mulher branca na mesma função, as crianças negras abandonam a escola precocemente e reprovam mais, os jovens negros são maioria entre as pessoas assassinadas. Os negros são maioria nas favelas, habitam casas que não têm rede de esgoto instalada, as ruas não são calçadas, não há segurança. Em todos os índices que medem o desenvolvimento social, os negros estão entre os mais desfavorecidos. Com base nestes fatos, podemos afirmar que as consequências do período escravista ainda se fazem presentes.

A Revista Discente Outras Fronteiras, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, em seu segundo número, apresenta o dossiê temático “O negro e o legado da escravidão” com sete artigos escritos por pesquisadores de diferentes instituições, que apresentam inovações em suas pesquisas.

Rafael Domingos Oliveira contribuiu com “A criança negra escravizada no Brasil: aproximações teóricas, tramas historiográficas”, no qual faz uma aproximação teórica a um debate historiográfico específico. Este artigo propõe algumas reflexões sobre a constituição da infância como tema histórico, a partir da confluência dos estudos realizados na França e Inglaterra ao longo do século XX, relacionados à historiografia da escravidão no Brasil, condicionando as problemáticas e os sujeitos a serem considerados temas de pesquisa. Neste caso, destaca-se a criança negra escravizada, menos evidenciando o debate historiográfico per se e mais trilhando o caminho que lhe possibilita constituir-se como problema histórico.

Carolina Akie Ochiai Seixas Lima, autora de “A trajetória da profissionalização do negro em Mato Grosso (séc. XIX a XXI)”, versa sobre a trajetória da profissionalização do trabalhador negro, no Estado de Mato Grosso, entre os séculos XIX a XXI. A autora instiga a pensar nas questões que cercam as categorias de “classe e raça” e discriminação racial.

Mauro Henrique Miranda de Alcântara escreveu “As Falas do Trono entre o ritual e o discurso: analisando a Lei do Ventre Livre pelo discurso de D. Pedro II (1867- 1872)”, no qual aborda os discursos pronunciados por D. Pedro II, nas “Falas do Trono” em torno da aprovação da Lei do Ventre Livre de 1871. Segundo o autor, essas “Falas” representaram um importante ritual durante todo o período imperial. Ou seja, nelas, podem-se verificar os discursos do Império em relação ao fim da escravidão. Para Mauro Henrique Miranda de Alcântara várias foram justificativas para se aprovar uma legislação emancipadora entre 1867 e 1871, e observar a importância deste ritual e os valores projetados nestes discursos.

Marcus Vinícius da Costa, escreveu “Caminhos da liberdade: fuga de escravos na fronteira Brasil-Argentina”, no qual aborda a formação da fronteira Brasil-Argentina na região oeste do Rio Grande do Sul e o fenômeno da fuga de escravos por esta fronteira tendo como foco principal as cidades gêmeas de São Borja, Rio Grande do Sul, Brasil e Santo Tomé, Província de Corrientes, Argentina. Este artigo insere-se nas discussões levantadas pela história social da escravidão, em especial no que trata da fuga de escravos pela fronteira do Brasil com a Argentina.

Leandro Antonio Guirro apresenta o artigo “Como se não tivesse acabado: A herança escravista e a inserção do negro no mercado de trabalho assalariado em São Paulo e Campinas (1923-1931)”. O referido artigo tem como base referenciais escritos nos jornais Getulino e Progresso, dois exemplares da chamada imprensa negra, que circularam respectivamente nas cidades de Campinas e São Paulo entre 1923 e 1931. O foco principal das discussões tratadas concentra-se nas possíveis influências causadas pela escravidão na inserção do negro no mercado de trabalho assalariado e a concorrência ocasionada pela mão de obra europeia proveniente das políticas de imigração fomentadas no período.

Rodrigo Pereira, em “Do mar aos axés: o uso dos moluscos nas religiões afro-brasileiras como exemplo da diáspora negra”, escreve sobre o uso dos moluscos que compõem o candomblé para compreender como os negros/escravos, introduziram o uso de diversas espécies deste filo no Brasil como uma expressão da diáspora ocorrida. Conforme Pereira, esta constatação leva a afirmar que a ação resultou tanto numa “diáspora animal”, como numa bio invasão. Assim, torna-se possível compreender os usos que estes animais possuem para o culto ao longo de sua trajetória e também verificar como os afrodescendentes e adeptos desta religião conseguiram perpetuar suas tradições quanto ao uso dos moluscos.

Matheus Carletti Xavier, autor de “O legado da escravidão e os usos do passado sobre Abraham Lincoln”, argumenta que após a emancipação nos Estados Unidos, os negros juntamente com a Agência de Libertos tiveram um papel importante para o início da ampliação da cidadania. Além disso, o autor busca pensar sobre algumas memórias sobre Abraham Lincoln no que se diz respeito, principalmente, à abolição da escravidão.

Sem dúvida, são sete artigos instigantes pela qualidade das pesquisas realizadas. Estamos diante de pesquisadores que buscaram outros temas ainda não muito comuns na historiografia brasileira, tendo como pano de fundo o período escravista. Estes estudos são importantes e esclarecedores, visto que são descobertos documentos ainda não analisados e, estas pesquisas, abrem possibilidades para novas investigações. Boa leitura!

Salvador – BA

03/12/2014


Organizador

Adelmir Fiabani – Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

FIABANI, Adelmir. Apresentação. Outras Fronteiras. Cuiabá, v. 1, n. 2, p.1-3, jul./dez. 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

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