Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica | Luiz Bernardo Pericás
Muitos trabalhos sobre o cangaço, principalmente sobre Lampião, já foram publicados. O cangaço serve e serviu de tema para diversas pesquisas acadêmicas ou de intelectuais não vinculados aos centros universitários, cordelistas, romancistas e cineastas. Em 2010 foi publicado o livro “Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica” do historiador Luiz Bernardo Pericás. Apesar de ter uma trajetória de pesquisa aparentemente um pouco distante dos cangaceiros, Pericás foi mais um que se encantou com o tema e realizou uma brilhante pesquisa cujo resultado é o excelente livro citado.
O livro aqui resenhado teve como meta analisar as diversas explicações dadas ao fenômeno do cangaceirismo. Assim, algumas generalizações são desconstruídas rompendo com interpretações românticas, fatalistas e deterministas acerca do tema. Um dos elementos mais importantes do livro (e talvez a contribuição mais positiva) foi o de tirar (ou ao menos contestar) os cangaceiros do enquadramento do banditismo social, defendido por Eric Hobsbawm. Além disso, não podemos deixar de lembrar que Pericás procurou analisar o que foi escrito sobre outros cangaceiros que circularam no sertão nordestino antes de Lampião: Antonio Silvino, Sinhô Pereira, Jesuíno Brilhante e Lucas da Feira.
O primeiro capítulo é dedicado à discussão sobre a teoria do banditismo social. Ele discorda da aplicabilidade do conceito de banditismo social para os casos referentes ao cangaço. O conceito de Hobsbawm de Banditismo Social foi tido como questionável pela falta de base documental para comprovar sua teoria e por tentar universalizar um esquema teórico (PERICÁS, 2010, p. 25). O cangaço não pode ser encarado como uma forma pré-política de protesto social feita de maneira inconsciente (PERICÁS, 2010, p. 187 – 188).
O autor chama atenção para o fato de que poucos líderes de bandos de cangaceiros eram originados das classes mais baixas da sociedade. Muitos chefes de cangaceiros, além de ter origem social privilegiada, preferiam estabelecer relações com as elites locais (PERICÁS, 2010, p. 33 – 35). Lampião foi um exemplo de líder cangaceiro que estabeleceu boas relações com figuras políticas regionais importantes como os coronéis baianos João Gonçalves de Sá e Petronilo de Alcântara Reis, bem como o governador de Sergipe Eronildes de Carvalho (PERICÁS, 2010, p. 35 – 36). Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, também não tinha como objetivo ajudar aos mais necessitados – algo que permitiu a Jesuíno Brilhante ter essa fama atribuída a sua imagem. Ainda assim, era comum a distribuição de esmolas (PERICÁS, 2010, p. 38).
O autor alerta para a importância de analisar o cangaço não só através dos elementos econômicos como também pela influência da cultura endógena e exógena e o ambiente político e institucional (PERICÁS, 2010, p. 30). Ir além dos fatores econômicos permite interpretar a simbologia das punições aos adversários e as relações políticas formadas entre cangaceiros e lideranças regionais.
As punições eram compostas por um grande repertório: açoites, castrações, amputações, marcação no corpo com ferro quente e outras. Segundo Pericás, marcação do corpo de uma vítima com ferro quente significava autoridade sobre o corpo das pessoas marcadas (PERICÁS, 2010, p. 104). Um dos cangaceiros que ganhou fama por isso foi Zé Baiano que ferrava mulheres cujo comportamento não o agradasse. Apesar disso, as mulheres estiveram presente no cangaço, principalmente no período “lampiônico”. Dentro do cangaço elas seguiam as regras rígidas do chefe do bando. As adúlteras muitas vezes eram assassinadas (PERICÁS, 2010, p. 47); e apesar do clima de tensão, elas pouco participavam dos combates, mesmo que carregassem armas (PERICÁS, 2010, p. 47).
Os aspectos militares das volantes1 e dos cangaceiros também foram analisados por Pericás. Graças a perseguição, os cangaceiros não podiam descansar num local sem segurança. Para mantê-los em alerta, eram utilizados rede de espionagem e sistemas de alarme. Segundo Pericás, Lampião utilizava um sistema de alarme semelhante ao utilizado por Lucas da Feira que consistia numa rede com um sino (PERICÁS, 2010, p. 82). Só para informar ao leitor menos íntimo do tema, havia uma diferença de quase 100 anos entre o período de atuação de Lucas da Feira e o período de atuação de Lampião. Sugere-se que isso poderia ser uma prática comum para diversos bandoleiros do sertão.
Para facilitar a movimentação dentro do sertão e desarticular a perseguição, Lampião tinha como estratégia a divisão do bando em subgrupos. Outra prática de cangaceiros anteriores à Lampião, que também foi utilizada por ele, foi a de andar em fila indiana com um cangaceiro ao fundo apagando as pegadas ou todos usando o calçado ao contrário, algo que pode ter sido utilizado por João Calangro no século XIX. (PERICÁS, 2010, p. 83).
A polícia passou a estar mais articulada para a perseguição aos cangaceiros a partir da década de 1930 através da obtenção de novos aparelhos como armas novas e o rádio (PERICÁS, 2010, p. 92). As volantes chegaram até a utilizar uniforme semelhante ao dos cangaceiros o que permitia melhor circulação na caatinga e até mesmo para espionar e obter informações de possíveis coiteiros. (PERICÁS, 2010, p. 90). É importante ressaltar que a roupa dos cangaceiros era semelhante a dos vaqueiros o que permitia entrar protegidamente na vegetação espinhosa da caatinga. A corrupção também se fazia presente para alguns policiais deste período, afinal muitos cangaceiros conseguiam as armas através dos próprios soldados que as vendiam (PERICÁS, 2010, p. 93).
Sobre a prática da decapitação, Pericás nos explica que teriam três motivos: 1) desprezo e humilhação do inimigo; 2) “Se os preceitos do cristianismo defendem a inviolabilidade e indivisibilidade do corpo, a decapitação seria uma forma de tirar esse “privilégio” dos bandidos.” (PERICÁS, 2010, p. 92); 3) a dificuldade de carregar o corpo e a necessidade de provar a morte do bandoleiro (PERICÁS, 2010, p. 92 – 93). Não devemos esquecer a famosa fotografia das 11 cabeças dos cangaceiros mortos em angicos no combate em que tombaram Lampião e Maria Bonita. Infelizmente, essa importante fotografia não está no “Caderno de imagens” do livro, que contem16 páginas com imagens referentes ao cangaço. Lá consta uma foto com as cabeças de Serra Branca, Eleonora e Ameaça, todos três do subgrupo de Lampião chefiado por Moita Brava (PERICÁS, 2010, p. 72). Talvez, a ausência da fotografia das 11 cabeças seja uma importante falha num livro sobre o cangaço que destina uma seção exclusiva para imagens referente ao tema.
Num livro que propõe analisar as múltiplas facetas que envolvem o cangaço um tema não poderia faltar: as secas e as crises econômicas. Pericás dedica um capítulo para analisar a relação do cangaceirismo com os períodos de seca e das crises econômicas. Vários estudos sobre o cangaço acabam relacionando a seca e as crises econômicas com o banditismo, contudo Pericás relativizou o cangaço como efeito da seca e das crises econômicas. Para ele, as “crises” não explicam o grande crescimento do cangaceirismo no final do século XIX e XX (PERICÁS, 2010, p. 135). As secas, por sua vez, provocavam um grande número de migrantes para regiões menos afetadas e até mesmo incrementavam os índices de pilhagens, porém o cangaço não foi a principal opção dos sertanejos (PERICÁS, 2010, p. 141). Pericás, não vê relação na formação dos bandos de Lampião e Corisco com a ocorrência de secas (PERICÁS, 2010, p. 144) e ainda alerta afirmando que “as áreas mais pobres não interessavam tanto aos bandoleiros, por motivos óbvios, a não ser que servissem para descanso ou refúgio.” (PERICÁS, 2010, p. 149). Portanto, as secas e as crises econômicas não eram as responsáveis, ou ao menos as principais responsáveis, pela formação de bandos de cangaceiros.
Outro tema abordado é o suposto encontro de Lampião com Luis Carlos Prestes. Pericás reservou um capítulo para estudar esses possíveis encontros e os eventos envolvendo o cangaço e a perseguição a Prestes. Aproveitando a aproximação, Pericás ampliou a discussão do capítulo para as possíveis relações do cangaço com o movimento operário e como os comunistas contemporâneos à Lampião analisavam a atuação dos cangaceiros. É possível afirmar que assim Pericás estava tirando o cangaço, ou ao menos Lampião, do enquadramento teórico do banditismo social de Eric Hobsbawm.
Não escapou à análise de Pericás o debate sobre o arcaico e o moderno no cangaço. Ao contrário do que já foi defendido de que em geral os cangaceiros eram contra tudo que fosse “moderno” no sertão, Pericás aponta várias evidências ao contrário dessa suposta aversão. O autor lembra-se da importância do lunarismo no sertão e de traços míticos – religiosos presentes no cangaço. Alguns símbolos medievais e religiosos podiam ser encontrados nas vestimentas dos cangaceiros: “O uso de vários símbolos medievais e religiosos nos chapéus dos cangaceiros, como a flor-de-lis e a estrela de Salomão, por exemplo, são indicativos de que havia uma forte permanência cultural incrustada no imaginário local.” (PERICÁS, 2010, p. 166).
Luiz Bernardo Pericás informa que havia a prática de benzer as armas de cangaceiros e jagunços (Ibid, p. 169). O apelo místico para garantir a proteção de bandoleiros do sertão não era uma exclusividade de cangaceiros do período republicano: o Chefe de Polícia da província da Bahia em 1852, João Maurício Wanderley, denunciava que os importadores de armas do sertão estão encomendando-as com o sinal da cruz e a palavra “Deus”. Estas armas seriam usadas pelos “Valentões”: “(…) chegando a imprudencia dos importadores a ponto de encommendarem armas com cruzes e palavras Deos para desafiarem a ignorancia supersticioza a compra-las e faserem dellas o uso q(ue) costumão dar-lhes os alcunhados valentões.” (APEB, Seção Provincial e Colonial, Maço: 5709) O misticismo envolvia até o imaginário popular sobre alguns cangaceiros; era o caso de Antonio Silvino que muitos acreditavam que tivesse poderes sobrenaturais. (PERICÁS, 2010, p. 170).
Para tratar das doenças, os cangaceiros apelavam para as plantas para curar de algum mal que se passava (Ibid, p. 174), mas isso não quer dizer que eles nunca procurassem um médico. Certa vez ao encontrar um médico recém formado na estrada, Lampião tratou de obrigá-lo a acompanhar o bando por alguns dias. No final, ele teria garantido ao jovem médico que não teria outro doutor na região além dele. Dessa forma, o médico teria o monopólio dos atendimentos e formaria sua própria clientela (PERICÁS, 2010, p. 173 – 174).
Pericás notou uma relação paradoxal entre a modernidade e o arcaísmo na vida dos cangaceiros (PERICÁS, 2010, p. 176). Ao mesmo tempo em que eles tinham alguns elementos considerados arcaicos nas suas práticas cotidiana, eles também assimilaram muito do que era considerado moderno. A influência da “modernidade” chegou até aos apelidos de alguns cangaceiros como eram os casos de Moderno, Zepelim, Elétrico, Avião e Piloto (Ibid, p. 178). Apesar de algumas informações nos levarem a concluir que as relações com as mulheres eram pautados em valores conservadores, Pericás nos chama atenção para uma contradição em relação às mulheres que eram integrantes do bando:
Os cangaceiros também eram “modernos” em sua relação com as mulheres. Afinal de contas, viviam, muitas vezes, em regime de concubinato, sem serem casados pela Igreja católica, o que era algo malvisto pela sociedade tradicional. Estar junto de suas companheiras, portanto, era mais importante do que constituir laços de matrimônio “oficiais” ou religiosos, ainda que alguns bandoleiros procurassem se casar na Igreja (PERICÁS, 2010, p. 178).
No capítulo “O cangaço entre o arcaico e o moderno”, Pericás não considera o sertão como um lugar distante e isolado. Um dos sintomas do quanto o sertão estava integrado com outras regiões é a presença de revistas e jornais das capitais que circulavam em diversas partes de seu território (Ibid, p. 180). A “modernidade” se manifestava na aquisição de armas mais novas tanto por parte dos cangaceiros como pelas volantes. Até os planos de destruição do cangaço caminhavam na contramão do que fosse considerado arcaico, afinal um plano chegou a ser elaborado para destruir o cangaço com o que havia de mais “moderno”: a artilharia aérea (PERICÁS, 2010, p. 184). Tal plano não ganhou fôlego, porém outro aspecto considerado “moderno” colaborou com o fim do cangaço: as vias férreas. Diversos foram os ataques de Antonio Silvino e Lampião às ferrovias em épocas distintas. Para Luiz Bernardo Pericás, as ferrovias também contribuíram para a derrocada do cangaço, porém não se deve atribuir o papel central a elas (PERICÁS, 2010, p. 183).
Pericás considera a ordem social sertaneja “tradicional” sendo a do mando dos coronéis. Os cangaceiros não lutaram contra esta ordem, mas se integraram a ela:
O que se pode afirmar é que os cangaceiros não lutavam, deliberadamente, para a manutenção ou para a mudança de nenhuma ordem política. Eles lutavam, isso sim, para defender seus próprios interesses. Os argumentos, portanto, nos parecem equivocados, pelo menos nesse caso específico. (PERICÁS, 2010, p. 187).
Nas conclusões, Pericás volta a contestar o cangaço dentro do quadro do banditismo social:
O fato de os cangaceiros não optarem por seguir uma via revolucionária ou conservadora e institucional, não significa que não tivessem consciência política, mesmo que intuitiva. Aqueles que dizem o contrário tendem a transformar os bandoleiros quase em adultos infantilizados, que agiam sem nenhuma noção do que se passava à sua volta. Na realidade, eles sabiam muito bem qual era a configuração de forças no Sertão, quais eram os seus principais atores e quais as instituições que existiam em sua época. E fizeram sua escolha. (PERICÁS, 2010, p. 187 – 188)
Para o autor a tipologia do banditismo social seria inexata e para estudar o cangaço:
O ideal é que a interpretação social de eventos históricos (e entre eles, de fenômenos de delitos) requeira uma análise factual e empírica, e não que esta seja baseada em uma abordagem teórica geral. Essas condutas devem ser estudadas dentro de seus contextos sociais e culturais particulares, ainda que possam ser “comparadas” com contextos similares mais amplos, na tentativa de encontrar pontos em comum entre experiências distintas. (PERICÁS, 2010, p. 189)
Pericás conclui que os cangaceiros reproduziam as relações de dominação e que o “cangaço (…) era (em especial nos anos 1930) uma combinação de família com comunidade sertaneja, emprego e organização militar.” (PERICÁS, 2010, p. 188). Sobre os principais aspectos para o fim do cangaço, ele aponta incompatibilidade do Estado Novo aceitar os cangaceiros, já que eles representavam para as lideranças políticas nacionais como o que havia de mais arcaico no Brasil daquele período (PERICÁS, 2010, p. 193).
Diante de várias obras produzidas acerca do cangaço e de Lampião, escrever algo novo sobre este tema é uma tarefa árdua. Este desafio foi encarado e vencido por Luiz Bernardo Pericás que escreveu um livro em que o cangaço foi analisado a partir de diversos ângulos. Os referenciais dos cangaceiros foram estudados dentro do processo histórico e não como fenômenos isolados num sertão que integrado com outras regiões. O cangaço foi descrito sem o peso romântico de outras descrições de alguns pesquisadores, romancistas e cineastas.
O livro é recomendado para os pesquisadores de temas como o sertão e o banditismo. Com um texto extremamente simples e leve, o livro permite que o autor possa atingir um público muito mais amplo do que os historiadores, antropólogos e sociólogos.
Nota
1 Forças policiais que perseguiam os cangaceiros.
Referências
APEB. Seção Provincial e colonial. Série: Polícia: Registro de Correspondência Expedida (1851 – 1852). Maço 5709.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010. 319 p.
Resenhista
Rafael Sancho Carvalho da Silva – Graduação em Licenciatura em História pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL – BA), Especialista em História Social e Econômica do Brasil pela Faculdade São Bento – BA e Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), E-mail: rsanchosilva@gmail.com
Referências desta Resenha
PERICÁS, Luiz Bernardo. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: SILVA, Rafael Sancho Carvalho da. História Revista. Goiânia, v.17, n.2, p.227-233, jul./dez.2012. Acessar publicação original [DR]