Os destinos das democracias nas imagens | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2020

Com recuos e progressos, reconhecemos que a história da democracia é a história da inclusão de mais sujeitos, daí que o ideal seja a realização da universalidade concreta dos projetos de emancipação.

DUNKER, 2020, p. 117.

As democracias, em âmbito global, têm sido achacadas neste início do século XXI, especialmente nesta década que agora se encerra. Não que ela não tenha passado por crises anteriores. Uma questão que se coloque, talvez, é a que, tendo sido brutalmente alvejada anteriormente, nós, como coletividade, tivéssemos aprendido alguma lição e nos tornamos capazes de afastar outros ataques a ela. Esse foi um pensamento enganoso, caso tenha de fato existido. Não há que se falar em democracia ideal, mas em democracias possíveis, seus limites e os modos de ampliação de sua efetividade. Christian Dunker, no ensaio “Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático”, citado acima e presente na obra Democracia em risco?, publicada pela Companhia das Letras em 2019, indica seu ponto ideal, expressado na inclusão e na emancipação.

Mas, as democracias contemporâneas têm estado, por vezes, “em vertigem”. Se tomarmos o modelo iluminista de democracia e tentarmos aplicá-lo na análise das atuais experiências é possível que haja larga inadequação. Qual será a elasticidade do conceito? É provável que seja aquela dada pela materialidade da experiência histórica da democracia ou pela capacidade de imaginá-la, o que nos leva ao seu aspecto inclusivo. Por isso, o presente dossiê trata das democracias, ou seja, das experiências sociais experimentadas, materializadas, utópicas e distópicas, de organização social e dos modos de convivência coletiva na contemporaneidade. A produção imagética e a leitura de imagens neste mesmo momento histórico têm sido estruturantes das sociedades, considerando sua existência nacional, fronteiriça, diaspórica e global. As imagens também têm sido utilizadas para forjar as democracias, em medida parecida de seu uso para ataca-las. O dito “uma imagem vale mais que mil palavras” tem sido apropriado em sua literalidade para usos políticos e representacionais, dotando-as de um valor, por vezes, excessivo, e, em outras, minando seu possível valor. As imagens participam, assim, das disputas da democracia, em cada experiência dela sobre a qual pudermos nos debruçar e observar.

As disputas de narrativas desde fins do século XX e nestas duas décadas do século XXI passam diretamente pela elaboração, circulação e consumo de imagens. Somos levados de modo imperativo às leituras de mundo mediadas pelas imagens, sejam elas estáticas, em movimento, acompanhadas ou não de sons, de textos escritos, físicas ou virtuais. Deste modo, consideramos incontornáveis as reflexões sobre as experiências e os destinos das democracias atravessadas e construídas pelas imagens, seja na representação do que foram, na materialização do são, nas práticas que levam ao seu devir, considerando os modos de visibilidade e descontinuidade imagética, e as variadas maneiras de lidar com os aspectos oblíquos da realidade nos quais as imagens têm caráter operatório. As imagens se constituem como modos de ser, processos mentais, suportes de ação, formas de representação, uma categoria de partilha do sensível, modos de sentir e apresentar (RANCIÉRE, 2012).

E vivemos um período de franca disputa nos modos de ser, pensar e atuar no mundo, constituindo-o. Se, desde os anos finais do século XX, já se ouvia falar em “crise da democracia”, nos primeiros anos do novo século democracias relativamente jovens, como a brasileira, têm sido testadas por discursos negacionistas, como aquele que relativiza as ações dos ditadores que governaram o país a partir de 1964, ou, até mesmo negam que tenha havido um golpe de estado naquele ano. A letalidade policial evidencia que nossa sociedade tem naturalizado a violência, especialmente aquela exercida pelo Estado e, assim, o absurdo número de crianças e jovens, especialmente negros, mortos pelas polícias nas periferias dos grandes centros urbanos causa pouca comoção no espaço além daquele no qual tais sujeitos viviam. Não são crianças ou jovens mortos nos condomínios de luxo, mas nas comunidades nas quais a parcela mais pobre e mais preta da sociedade brasileira vive. A letalidade do Estado brasileiro tem um viés classista, racista, etário e de gênero. Ao mesmo tempo, as redes virtuais têm sido também maculadas pelo ódio e pelo chamamento à violência. Quando, quase uma década atrás, Manuel Castells publicou sua obra Redes de indignação e esperança, apontou para uma importante confluência: as informações circulando nas redes virtuais levando à ocupação da trama das ruas nas cidades, e, por conseguinte, mudando os rumos numa série de países. As mesmas redes virtuais têm sido usadas, especialmente a partir de 2016, com a vitória de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América, para produção e difusão de fake news, para circulação de imagens e ideias racistas, sexistas, misóginas, lgbtfóbicas.

O tensionamento tem sido realizado. A busca por representatividade é um elemento importante da política contemporânea. O feminismo negro tem se apresentado como o principal artífice deste embate, apontando para dois aspectos: uma experiência mais inclusiva e efetiva de democracia que demanda a participação ativa e propositiva das mulheres (cisgêneras e transgêneras); a transformação democrática pressupõe um reposicionamento do mundo europeu no globo e a participação dos povos que foram colonizados, o que implica diretamente na ruptura com as várias formas de racismo que têm estruturado nossas sociedades. Um terceiro aspecto que podemos acrescentar é aquele dos limites do neoliberalismo e a necessidade de abandonarmos, como sociedade global, a leniência em relação à miserabilidade e à pobreza. A imagem de um urubu à espreita de uma criança morrendo de fome não pode mais ser consumida com tolerância internacional. É preciso nos juntarmos a Ailton Krenak (2020) e nos perguntarmos, “somos mesmo uma humanidade?”.

É nesses termos que a Rede de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo, por meio de suas pesquisadoras e de seus pesquisadores, apresenta o dossiê: Os destinos das democracias nas imagens, que é composto de dezenove artigos que se acercam da problemática expressa no título. Em LEVANTES: UMA PAIXÃO LATINO-AMERICANA o filósofo suíço Emmanuel Alloa constrói um pensamento imagético sobre os levantes, sobretudo na América Latina, a partir dos debates em torno do direito ao olhar. Em A ERA DAS SUBLEVAÇÕES POPULARES CHEGOU… o francês Michel Maffesoli, por sua vez, debate as revoltas contemporâneas como elemento importante na construção da representatividade política e apresenta uma reflexão contundente sobre as manifestações populares na França, conhecidas como Movimento dos gilets jaunes ocorridas entre outubro de 2018 e março de 2020. Petar Bojanić, em PRIMEIRA CENA DE CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL: INCORPORATIO BABILÔNICO, trata da recorrência da incorporação da imagem da Babilônia em diferentes momentos da história da Europa. Miloš Ćipranić, em SOBRE O ATO DE (DES)ENGAJAMENTO NAS ARTES VISUAIS: DESDE OS DESASTRES DA GUERRA AOS NOSSOS TEMPOS, se encarrega de refletir sobre os aspectos fenomenológicos do (des)engajamento pictórico nos diferentes extratos de tempo; o autor mostra que a consideração fenomenológica da relação entre as expressões verbais e não verbais no que diz respeito à questão do (des)engajamento se baseia principalmente no discurso antitético, repleto de figuras de contraste. Encerrando esse primeiro bloco de textos, Alexandre Fernandes Correa, em IMAGENS E MEMÓRIAS: BATALHAS E GUERRAS SEMIÓTICAS NA CENA DOS MONUMENTOS HISTÓRICOS, apresenta uma reflexão elaborada a partir da articulação entre os conceitos de máquina de guerra semiótica, batalha das imagens e guerra das imagens, trazendo à baila a noção de memórias enxertadas, a fim de compreender a lógica das ressurgências imagéticas no espaço sociopolítico.

Zélia Lopes da Silva, em A DEMOCRACIA CASTIGADA – BRASIL, MOSTRA A TUA CARA…¸ aborda os problemas da cultura política brasileira desdobrados do golpe de 2016. Assim, a autora delineia as características desse processo que atingiu o país e que tem provocado certa instabilidade política. Para tanto, Lopes utiliza as fontes que foram produzidas pelos jornalistas independentes, pelos caricaturistas e pelos próprios protagonistas envolvidos nos acontecimentos. Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher, em ENTRE JOGOS DE PODER E PERSUASÃO IMAGENS: MODOS DE VER A HISTÓRIA POLÍTICA NO BRASIL, analisam três imagens fotográficas de figuras presidenciais com ideais políticos e partidos distintos, a partir da ideia de que os três últimos presidentes brasileiros, em momentos de crise de seus governos, fizeram uso da mesma narrativa imagética para reafirmar a sua condição de poder. Daniel Ivori de Matos, em A DOUTRINA BUSH E A “DEFESA” DA DEMOCRACIA NO CINEMA PÓS-11 DE SETEMBRO, trata de debater alguns dos filmes que estavam alinhados à Doutrina Bush e à defesa da democracia durante o governo de George W. Bush, sobretudo a partir dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, nos EUA. No artigo DE UMA LUTA SINGULAR À UMA CAUSA EXEMPLAR: OS ATAQUES CONTRA ESTÁTUAS E REFERÊNCIAS MEMORIAIS, NA ESTEIRA DA MORTE DE GEORGE FLOYD João Paulo Rodrigues se dedica a analisar as disputas de memória que se puseram em marcha diante de atos contra monumentos e referências memoriais, em diversos países, que se sucedeu às imagens agônicas da morte do cidadão negro estadunidense George Floyd, sobretudo contra as referências imagéticas que se espalham pelas paisagens de diversos países pelo mundo. Edvaldo Correa Sotana, em DA TELINHA ÀS PÁGINAS IMPRESSAS: DEMOCRACIA, DEBATE ELEITORAL TELEVISIVO E AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 1989, discute as relações entre mídia, política e democracia na história do Brasil Republicano, a partir das primeiras eleições presidenciais diretas após a ditadura militar brasileira. André Carvalho, em IMAGENS AMEAÇADORAS: “THE MACHINE STOPS” E A ECONOMIA DA ATENÇÃO, toma o conto de ficção científica publicado em 1909 por E. M. Forster como objeto, considerando as relações entre literatura, filosofia e movimentos conservadores na elaboração da noção de imagens ameaçadoras como reação às transformações da indústria cultural massiva ao longo do século XX.

O terceiro momento do dossiê é aberto pelo artigo A COMUNIDADE UNIVERSAL: AS METAMORFOSES DO HUMANO EM MARIA GABRIELA LLANSOL, de Maria João Cantinho, que analisa as imagens produzidas pela escritora portuguesa que borram os limites entre a filosofia e a literatura. Aguinaldo Rodrigues Gomes e Flávio Vilas-Bôas Trovão, em O VOO DO BACURAU: CINEMA, NECROPOLÍTICA E [CONTRA]VIOLÊNCIA, produzem uma análise histórica e crítica do filme brasileiro Bacurau (2019), escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que articula uma visão cinematográfica da história do país, problematizando tanto os dilemas enfrentados atualmente quanto o passado de resistência de grupos historicamente marcados pela diferença, a partir de costumes e tradições, no enfrentamento à necropolítica contemporânea. Rafael Morato Zanatto, em PAULO EMÍLIO E A FISIONOMIA HISTÓRICA DO CINEMA BRASILEIRO: CARNAVAL, FUTEBOL E OUTROS RITUAIS POPULARES, nos apresenta como um intelectual constrói imagens pensando uma espécie de fisionomia do país, via crítica e história do cinema, sobretudo pela atenção dada às performances culturais brasileiras (carnaval, futebol, etc.). Sergio Pujol, em DE LA VANGUARDIA ARTÍSTICA A LA MÚSICA POPULAR: JORGE DE LA VEGA Y LA NUEVA CANCIÓN ARGENTINA, analisa a vida e a obra do artista plástico e compositor argentino Jorge de la Vega, com vistas a compreender o zeitgeist da década de 1960 – uma cultura pautada na transgressão. Marcos Antonio de Menezes, em IMAGENS MILITANTES: REPRESENTAÇÕES DA REVOLUÇÃO FRANCESA NA PINTURA DE JACQUESLOUIS DAVID, se vale das imagens pictóricas de Jacques-Louis David (1748-1825) como fonte histórica e, a partir da análise de um conjunto delas, lê algumas representações da Revolução Francesa de 1789 e as possibilidades democráticas e revolucionárias que delas emanam.

O último bloco deste dossiê se acerca dos debates democráticos a partir de questões pujantes nos anos finais da década de 1980 e início da subsequente: a redemocratização e política de transição, a epidemia do HIV/AIDS e a questão da infância (estatuto da criança e do adolescente); esses três aspectos ainda reverberam em nossos dias e nos exigem maior atenção. No artigo A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA EM IMAGENS: O FILME THE BRAZILIAN CONNECTION… DE HELENA SOLBERG (1982), Alcilene Cavalcante aborda o documentário de 1982 para esquadrinhar as principais tensões do período em questão, registradas em imagens e nos depoimentos desse emblemático filme da última transição política brasileira. Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Robson Pereira da Silva, em “E OS VÍRUS CONTINUAM…”: OS DESAFIOS DA CIÊNCIA E DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO ENFRENTAMENTO DO HIV/AIDS, A PARTIR DE AND THE BAND PLAYED ON (1993), buscam compreender a recorrência de imagens acerca dos desafios da ciência e dos movimentos sociais no enfrentamento de epidemias nos últimos 40 anos, notadamente daqueles ligados ao vírus HIV, causador da Aids, por meio da análise do filme And the band played on (1993), produzido pela rede de TV HBO e dirigido por Roger Spottiswoode. Por fim, Carmem Lúcia Sussel Mariano, no artigo DEMOCRACIA PARA QUEM? USOS E ABUSOS DA IMAGEM DE CRIANÇAS E JOVENS NA MÍDIA NOTICIOSA, aborda os estudos em âmbito internacional e nacional sobre as retóricas e imagens presentes na visibilidade midiática de problemáticas associadas à infância e à juventude, evidenciando que crianças e adolescentes adentram na mídia noticiosa de um ponto de vista negativo, com preferência por enfoques sensacionalistas, revestindo-os de interesse noticioso quando associados ao desvio, à sexualidade e à violência.

Em suma, o dossiê Os destinos das democracias nas imagens intenta pensar as audiovisualidades, as linguagens e as intermídias integradas às experiências e às possibilidades pelas quais são constituídas as democracias, da práxis, e também do devir. Prezada Leitora e Prezado Leitor, tenham uma boa leitura!


Organizadores

Marcos Antonio de Menezes – Professor associado da Universidade Federal de Jataí (UFJ); professor do Programa de Pós-graduação em História (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Miguel Rodrigues de Sousa Neto – Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Aquidauana.

Robson Pereira da Silva – Pós-doutorando em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM.


Referências desta apresentação

MENEZES, Marcos Antonio de; SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 17, n. 2, p.1-7 Jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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