Palmares, ontem e hoje | Pedro Paulo Funari

Escrito a quatro mãos, o ensaio Palmares, ontem e hoje é mais uma das primorosas narrativas da coleção Descobrindo o Brasil, editada pela Jorge Zahar Ed. Calcado num dos temas mais consagrados da nossa historiografia, o texto de Pedro Paulo Funari e Aline Viera de Carvalho aborda com maestria e originalidade as principais questões que envolvem a saga palmarina desde o período de formação do quilombo até as descobertas mais recentes no campo da arqueologia.

Fugindo das tradicionais e – por que não dizê-lo? – esquemáticas abordagens introdutórias aos episódios marcantes da nossa história, os autores apresentam o quilombo de Palmares como um problema historiográfico, ou seja, um fato histórico que foi e continua sendo constantemente reescrito por historiadores, sociólogos, arqueólogos e antropólogos. Tal honestidade profissional demanda naturalmente um convite ao leitor a compreender os meandros da escrita da história e a produzir suas próprias idéias sobre os fatos tratados. É isso que os autores literalmente fazem ao mostrar como o estudo da história implica na discussão da relação passado e presente, dado que dela resulta o discurso do historiador.

Ao aceitar esse convite, ficamos sabendo que há muitas maneiras de se estudar o passado e que para tal devemos discutir basicamente duas questões: “as fontes históricas de que dispomos e a teorias sociais que podemos agenciar na interpretação delas” (p.10). No caso dos acontecimentos envolvendo o quilombo de Palmares, formado no início do século XVII na Serra da Barriga, em Pernambuco, as principais fontes de estudo são as documentais ou escritas (tais como manuscritos oficiais, impressos, livros, etc.), e materiais ou arqueológicas (a saber, utensílios de cerâmica, edificações, etc). Como veremos, cada uma delas, a seu modo, revela importantes fragmentos que, combinados com as teorias sociais, servem de base para as conclusões ou tese dos autores que analisaram o assunto.

Depois de fazerem ver ao leitor que a história é um discurso sobre o passado e que tal narrativa está pautada nas fontes disponíveis, Funari e Carvalho percorrem as várias interpretações dadas ao quilombo de Palmares, mostrando, em termos práticos, como o presente influi na nossa compreensão do passado e vice-versa.

Logo de início ficamos sabendo que os primeiros estudos sobre o quilombo, feitos em meados do século XIX pelos ilustrados membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, foram marcados pelo silêncio – posto que as elites brasileiras nutriam um enorme pavor de que as pessoas marginalizadas se espelhassem em Palmares e Zumbi, seu maior líder, para subverter a ordem escravista existente. Segundo os autores, a história produzida pelos letrados do IHGB é “uma história que silencia a existência de conflitos no país. Palmares é assim esquecido: forma-se um acervo documental para conhecê-lo, mas não para divulgá-lo” (p.31).

Abolida a escravidão e proclamada a República, a temática palmarina retorna ao cenário intelectual nacional, desta vez para auxiliar na reflexão acerca do “povo brasileiro”. Preocupados em desvendar o funcionamento da cultura brasileira, intelectuais como Nina Rodrigues, Artur Ramos e Edison Carneiro retomam os estudos sobre os quilombos para mostrar que estes simbolizavam a persistência cultural africana no Brasil. Para Rodrigues, por exemplo, o quilombo “seria formado como uma resposta contra-aculturativa dos negros escravos. Ou seja, os negros, envolvidos em uma “cultura branca” existente na sociedade colonial brasileira (representada pelos portugueses e por outros colonos com hábitos europeus), se agrupariam para defender sua “tradição”, simbolizada pelas práticas “originalmente” africanas” (p.35). Aqui, Funari e Carvalho fazem questão de ressaltar que naquele “momento histórico de busca da identidade nacional, ser símbolo da “cultura negra”, não era, necessariamente, encarado como algo a ser comemorado” (p.38), visto que para estes estudiosos tal cultura era tida como “atrasada” e “inferior”.

Abordagens diferentes das anteriores sobre o quilombo dos Palmares só vieram à tona a partir das décadas de 1950 e 1960, época em que a sociedade brasileira começou a enfrentar sérios problemas no tocante à liberdade civil. Com a instituição da ditadura militar e o cerceamento dos direitos civis, Palmares tornou-se um importante símbolo social no Brasil. Segundo Funari e Carvalho, naquele contexto “os autores que o analisaram, com particularidades próprias, discutiam o caráter violento da escravidão, a não-passividade do negro frente à autoridade do senhor de escravo e, principalmente, a rebeldia negra numa sociedade opressora como a existente na sociedade colonial. Essa opressão era uma metáfora para o poder discricionário da ditadura e o quilombo representava a fuga e resistência” (p.40/41). Constituem exemplos desta linha interpretativa os trabalhos de Benjamin Péret, Clóvis Moura, Décio Freitas e Abdias do Nascimento.

A redemocratização do país, em meados da década de 1980, marcou não só a retomada da luta pelos direitos civis e políticos, mas também o alargamento dos horizontes das pesquisas na área social, com a utilização de novas técnicas de investigação. No caso específico de Palmares, merece destaque o crescimento das pesquisas arqueológicas, com os trabalhos do próprio Funari bem como os de Orser, Rowlands e Scott Allen. Conjugados à interpretação da documentação escrita e analisados à luz da antropologia, os achados arqueológicos chamam a atenção para a pluralidade étnica na formação do quilombo e sugerem uma interação bastante expressiva dos quilombolas com a sociedade colonial. Segundo Funari, “Palmares, assim, não estaria isolado da sociedade colonial. Seus moradores não viveram apenas em confronto com o restante da colônia, mas necessariamente, em interação”(p.48). Aliás, é neste sentido – da diversidade e multiplicidade das formações sociais – que caminham as atuais pesquisas sobre o assunto.

Após ficar a par de todo o processo de construção das várias narrativas sobre o quilombo dos Palmares, o leitor é novamente alertado para o fato de que a produção do conhecimento histórico é feita para atender ou responder às inquietações de seu tempo. Assim, chega-se à compreensão de que um fato histórico nunca é esgotado ou explicado em sua plenitude, dado que novas indagações sempre surgirão. A impressão que temos ao término da leitura é de curiosidade, de querer saber mais sobre o tema, de investigar! Nisto nos auxiliam a cronologia dos principais acontecimentos do período e as tradicionais sugestões de leitura.

Leitura agradável e prazerosa, Palmares, ontem e hoje certamente cumpre os objetivos da coleção Descobrindo o Brasil: informar, de forma clara e objetiva, aos que nutrem o gosto pela nossa história.


Resenhista

Ricardo Tadeu Caíres Silva – Mestre em História Social pela UFBA. Professor Colaborador da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí –FAFIPA.


Referências desta Resenha

FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Viera de. Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005. Resenha de: SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Diálogos. Maringá, v.10, n.1, 179-181, 2006. Acessar publicação original [DR]

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