Para Um Novo Conceito de Idade Média | Jacques Le Goff

LE GOFF, Jacques. Para Um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Valle. Varia História, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 144-146, jun., 1986.

O trabalho de Jacques Le Goff, cuja edição original apareceu em 1979 com o título Pour Un Outre Moyen Ager é expressiva contribuição ao estudo da Idade Média. O livro reúne vários artigos do Autor sobre o tempo, o trabalho e a cultura no ocidente, merecendo, portanto, a atenção daqueles que se interessam pelo assunto.

Em oposição à idéia dos humanistas do Renascimento, Jacques Le Goff não vê na Idade Média um vazio no fluxo do tempo, e sim um período de grande impulso criador. Para ele,, como de resto para os que têm noção desta época, o medievo é idade seminal, fase de gestação da sociedade moderna e civilização ainda viva “pelo que criou de essencial nas nossas estruturas sociais e mentais”.

O Autor se deixa seduzir por uma lenda dourada da Idade Média. Sua Idade Média é outra – uma Idade Média total, profunda. que abarca a história do quotidiano, nos seus hábitos e suas crenças, nos seus comportamentos e suas mentalidades. Essa longa Idade Média, que nos permite conhecer melhor nossas origens, nossa modernidade, nossa imperiosa necessidade de compreender a evolução e a mudança.

Um novo conceito de Idade Média procura resgatar nossas raízes, criticando com lucidez quadro extremamente amplo e complexo: realidades penosas- a fome, a peste, a miséria, .o domínio dos poderosos, a exploração dos fracos; e criações com que ainda hoje convivemos- a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho, a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e, finalmente, a revolução.

A primeira parte- “Tempo e Trabalho” -começa por examinar as Idades Médias de Michelet e o afastamento da maior parte dos medievalistas atuais do conceito sombrio que faz do perlodo medieval época de superstição, obscurantismo e horror. Segue-se amplo estudo elos diferentes tempos em que se arrasta a atividade humana: o tempo da Igreja, o tempo do mercador, o tempo do trabalho. Jacques Le Goff sublinha o conflito que consolida em plena idade Média entre o tempo da Igreja e o tempo do mercador, como um dos mais significativos acontecimentos da história mental desses séculos, quando se elabora a ideologia do mundo moderno. É metódico o· tratamento da sociedade dividida em três ordens – oratores, bellatores e laboratores -, esquema tripartido que àtendia às aspirações de certos meios leigos e eclesiásticos de consolidar a formação de monarquias nacionais. A sociedade trifuncional promoveu a consagração ideológica do trabalhador agrícola, que se afirma na atividade econômica, em valorização ambígua, porque a exaltação de seu trabalho visa especialmente a aumentar o rendimento e a docilidade dos trabalhadores. Essa valorização, porém. reflete a pressão da massa trabalhadora sobre a mentalidade da época. Examina, por fim, o camponês (agrícola),~ personagem praticamente ausente da  literatura da alta Idade Média, cuja ideologia não favoreceu o trabalho humilde. O camponês é então considerado um monstro, tido pelas camadas mais altas da sociedade como um objeto e um perigo. Tornado vilão, permanecerá na literatura como viciado, iletrado e perigoso.

A segunda parte – “Trabalho e Sistema de Valores”- ocupa-se basicamente da vida universitária medieval. Enfatiza as dificuldades de subsistência dos mestres e as obrigações pecuniárias a que estavam sujeitos os estudantes em Pádua. no século XV. Diferentemente do mundo moderno, que estabelece nítida distinção entre o domínio religioso e o domínio laico, o pensamento no ocidente medieval é informado pela religião e ordenado para fins religiosos. Vale lembrar que durante quase toda a Idade Média a instrução é privilégio da Igreja. Clericus equivale, a litteratus. isto é, o que conhece, o que sabe o latim, instrumento essencial do saber; laicus, ao contrário, significa litteratus o que não tem instrução, o ignorante. Assim. no universo medieval, dominado pelo primado da religião, a lgreja é a detentora da cultura. Para abordar o difícil problema da tomada de consciência,. pela universidade medieval, de sua especificidade, o autor recorreu a obras e depoimentos de personagens do centro universitário de Paris. Le Goff procura uma formulação intelectual do papel do universitário em relação às demais classes sociais. Registrem-se três momentos: o do mister escolar, de ‘ onde sairão Universidades e universitários; o do grande conflito doutrinário do século XIII, que revela o alto grau de consciência de si mesmos da parte d’os universitários parisienses; por último,. o da imagem que dela própria tinha a Universidade no despertar do século XV. Da análise infere-se que os fundamentos da especificidade universitária, que se define de Abelardo a Siger de Brabante, desapareceram ou foram solapados. Embora aberta a todas as classes, a Universidade formava uma elite e constituía, pela mentalidade e pela função, uma casta. O autor estuda ainda as relações entre as Universidades e os poderes públicos durante a Idade Média e o Renascimento, examinando-as como corporações, como centros de formação profissional, como grupo econômico de consumidores, como grupo sócio-demográfico, como corpo prestigiante e como meio social. Além do erudito, o trablaho é rico de informações. Esta parte tem a valorizá-la referência bibliográfica especifica e apêndices organizados para a orientação de pesquisadores.

O objeto da terceira parte- “Cultura Erudita e Cultura Popular”- é o das-relações entre a cultura clerical e folclore. A recusa dessa cultura popular pela cultura eclesiástica manifesta-se através de luta multiforme, a começar pela destruição· de templos e ídolos, e pela proscrição de temas propriamente folclóricos. Assume forma mais decisiva e importante ao desfigurar os traços populares, que são alterados em sua essência pela introdução de elementos cristãos. Estabelece-se, pois, um fosso, entre os dois níveis de cultura, uma antinomia entre o ambíguo e equivoco da cultura folclórica e o “racionalismo”‘ da cultura eclesiástica. Não deve ficar sem registro o cuidadoso tratamento dado a lendas medievais, especialmente a do dragão de S. Marcelo e da Mel usina, em que são discutidos hipóteses e problemas de interpretação.

“Para uma Antropologia Histórica” é a última parte do livro. Aqui Jacques Le Goff, um dos mestres da História Nova, lança-se à reconstituição de uma antropologia histórica do Ocidente pré-industrial e a contribuição de alguns ele· mentes para um estudo do imaginário· medieval. Sua análise do ritual simbólico da vassalagem aborda aspecto importante de uma instituição básica da sociedade feudal. Retoma estudos de Marc Bloch, Ganshof e outros para analisar a tipologia dos elementos simbólicos no ritual vassálico: a palavra, o gesto, os objetos. Segundo o Autor, o conjunto de ritos e gestos simbólicos da vassalagem, mais que um cerimonial, constituem um sistema. Ao lado de hipóteses e proposições, Le Goff formula problemas importantes e sugere soluções. Também esta parte é enriquecida com apêndices permenorizados.

O texto de Jacques Le Goff resulta de pesquisa erudita e fornece subsídios ao estudo e compreensão de questões relevantes da Idade Média. E obra importante que exige reflexão.

Daniel Valle Ribeiro – Professor Titular do Departamento de História da FAFICH/UFMG.

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[DR]

 

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