Pensar a educação na História: intelectuais, práticas e discursos | Temporalidades | 2019

Um “falso problema, de uma questão circular”! Nesses termos que o pesquisador português Antonio Nóvoa, ainda no final da década de 1990, procurava se desembaraçar de um conjunto de questões aludidas como polêmicas no bojo de investimentos de avaliação que eram produzidos sobre o acúmulo de pesquisas em História da Educação, uma área de estudos então em expansão (CAMBI, 1999, p. 12). O ponto central da pretensa controvérsia estava em delimitar se as pesquisas histórico educacionais correspondiam a um dos domínios da História ou se estabeleceriam uma das especializações das Ciências da Educação; e, consequentemente, se a tarefa de investigar a historicidade dos fenômenos educativos caberia aos historiadores profissionais ou aos pesquisadores em Educação. Aquele era um momento sensível para a área. O acúmulo de um processo de renovação teórico-metodológico, possível pela intensificação do contato e dos esforços de assimilação dos movimentos de renovação historiográfica, aportaram contribuições que permitiram deslocamentos nas definições da especificidade e pertinência da História da Educação, e que, por consequência, impactaram nas expectativas em relação ao conhecimento e as respostas que era capaz de produzir. (NUNES e CARVALHO, 2005)

Passadas duas décadas parece positivo vislumbrar que aquelas questões perderam força. O fato de que uma revista de História, como a Temporalidades, organize um dossiê para a divulgação de pesquisas histórico educacionais parece um indicador auspicioso. Especialmente pela espécie de articulação que o título “Pensar a educação na História” sugere em relação a esses dois conceitos, que ademais aponta para a acomodação de um estatuto epistemológico para a História da Educação. Os enunciados, práticas e processos educativos constituem fenômeno cultural indissociável de toda organização social em qualquer tempo e em qualquer espaço. De modo que compreender as formas, os modos e as implicações sob as quais os processos e práticas educativos estavam presentes nas sociedades e contextos que nos antecederam é fundamental para que possamos enfrentar, na sua complexidade, as perguntas que lançamos ao passado. Do mesmo modo, interrogar os nuances de contingência histórica do fenômeno educativo, investido das ferramentas e do rigor metodológico da pesquisa historiográfica, é fundamental para o avanço e amadurecimento do pensamento educacional.

A respeito do que Michel de Certeau caracterizava como “lugar social” (CERTEAU, 1982), de onde uma comunidade acadêmica aglutinada em torno de uma disciplina nutre o conjunto de regras, valores e procedimentos partilhados e praticados, à História da Educação parece mais adequada uma posição de ‘entre lugar’, isto é, a capacidade de ser simultaneamente pesquisa histórica e pesquisa educacional. Desse ‘entre lugar’ decorre seus compromissos teóricos, éticos, políticos e sociais, que, por sua vez se desdobram na definição dos seus objetos, dos seus problemas e das suas abordagens.

O conjunto de artigos reunidos no presente dossiê constituem um significativo indicador do quadro atual das pesquisas em História da Educação, bem como das suas possibilidades e potencialidades analíticas, que resultaram, por certo, do seu processo de renovação. A começar pelo esgarçamento da identidade do pesquisador histórico educacional. Os propositores dos textos aqui reunidos vêm, majoritariamente, dos programas de formação e pesquisa em História, mas também dos programas em Educação e do conjunto das Ciências Sociais. Aliás, o crescente interesse dos historiadores pelo objeto educacional foi um fator decisivo para que a História da Educação se desembaraçasse de uma série de condicionantes que se prendiam às suas raízes como disciplina escolar, para que pudesse se reconhecer como disciplina científica, como uma especialidade da pesquisa histórica. (NUNES e CARVALHO, 2005, p. 20)

Outra característica do atual cenário das pesquisas em História da Educação bastante evidenciada no presente dossiê é a diversidade de temas, problemas e objetos de pesquisa. É evidente que esse processo remete aos processos de renovação dos procedimentos de investigação protagonizado pelos historiadores. No entanto, de um ponto de vista disciplinar da historiografia da educação, suas implicações foram fundamentais para que se pudesse superar a centralidades até então ocupada pelas ideias pedagógicas e a estruturação dos sistemas formais de ensino, nomeadamente sob a forma escolar e a partir da perspectiva oficial de sucessão das reformas educacionais. A presença e a atuação de intelectuais, as redes de sociabilidade, as histórias de vida, e o modo como esses dados se combinam e | ou atravessam projetos político-educacionais, constituem temas destacados no conjunto de artigos que o leitor encontrará nas páginas seguintes. Eles resultam de modos criativos de interrogar objetos educacionais a partir da combinação de abordagens diversas tais como a História Política, a História Cultural, a História Intelectual ou dos Intelectuais, as abordagens biográficas.

Nessa direção está estruturado o artigo “Sociabilidades, espaço público e formação do povo em Minas Gerais no período regencial (1831 – 1840)”, de Marcilaine Soares Inácio e Luciano Mendes de Faria Filho. Explorando o modo como a relação entre a política e a educação impactavam a definição de espaço público, os pesquisadores analisam como a organização de associações públicas, as sociedades políticas, literárias e filantrópicas que tiveram lugar em Minas no período regencial, participaram como instâncias de gestação de projetos de organização da sociedade, e previam expectativas em relação à formação do povo. Também mobilizando categorias centrais ligadas à organização da sociedade brasileira e do seu espaço público, tais como progresso, civilização, modernidade e democracia, o artigo de Bárbara Braga Penido Lima investiga as trajetórias intelectual e política de Affonso Penna a fim der compreender como uma determinada cultura política mobilizou o tema educacional, sobretudo sob a perspectiva da educação profissional, mirando uma redefinição das relações sociais com o trabalho.

Cabe destacar que os avanços protagonizados no interior das abordagens historiográficas – da História Intelectual, da História Política, da História Cultural, da História Social – permitiu o avanço da compreensão diacrônica sobre as configurações que os fenômenos educacionais assumem em cada momento histórico. Uma de suas expressões mais notáveis é o modo como as investigações em História da Educação puderam se descolar da exclusividade das proeminentes autoridades políticas, dos intelectuais de renome, dos reformadores, e ao lado deles passaram a se ocupar de personagens até então invisíveis como professores, mulheres, negros, em abordagens capazes de apurar consequências dessas atuações para a compreensão da relações que se organizam entre a sociedade e os processos educacionais que ela mantem. Isso pode ser apurado no artigo de Marcelo Luiz da Costa, “Educação Libertária no Brasil: reflexão política e pedagógica em textos e registros do início do século XX”, que procura apurar a produção e circulação de expectativas educacionais no pensamento libertário no Brasil, a partir da análise de escritos de militantes e educadores anarquistas, postos em circulação nas décadas iniciais do século XX.

O trabalho de Marcelo Costa permite apurar a dinâmica de circulação de diferentes projetos educacionais, chamando atenção para a proposição de finalidades que, se não encontraram rebatimentos nas políticas públicas para a educação no país, apontam para o jogo político e as estruturas de poder envolvidos no acolhimento de determinadas demandas educacionais em detrimento de outras ligadas às expectativas de uma diversidade de grupos sociais. Esses, tal como em outras demandas fundamentais, também em relação às pautas educacionais, encontravam obstáculos para se afirmarem no espaço público possível a partir da qualidade e alcance do princípio democrático no país.

O tema das inovações educacionais também comparece no artigo de Danilo Araujo Moreira, “Um mestre sem discípulos: Claude-Henri Gorceix, sua atuação educacional e a relação com a constituição do ensino público em Minas Gerais”. No respectivo trabalho, Danilo Moreira enfrenta questões afeitas à organização do ensino secundário a partir da atuação educacional do professor, cientista e engenheiro francês, Claude Gorceix em Minas Gerais, o que lhe permite defrontar-se com um conjunto de ideias e sentimentos de onde se produziria a noção de direito à educação no país e suas vinculações com a noção de democracia. Já o artigo “‘Distinta e competente educadora”: educação, cidadania e raça na trajetória de uma intelectual negra”, de Jonatas Roque Ribeiro, põem em perspectiva a trajetória da educadora negra, Áurea Gregorina Bicalho. A partir da perspectiva da abordagem biográfica, o pesquisador tensiona o modo como as noções de raça e cidadania encontram o tema educacional, atravessando temas e interpretações consagradas em relação às reformas educacionais do início do século XX.

O tema das reformas educacionais também é o mote do artigo de Amanda Teixeira da Silva, “A Escola Nova no interior do Ceará: desafios enfrentados pela reforma de Lourenço Filho na cidade de Sobral”. Intentando situar o modo como os aspectos centrais alçados como finalidades na reforma liderada por Lourenço Filho encontravam acolhimento e rebatimentos em condições objetivas de uma realidade do interior cearense, o trabalho se liga à série de investimentos que interrogam esse aspecto tão marcante do imaginário educacional no Brasil a partir de abordagens capazes de desvelar seus nuances e idiossincrasias. Como resultado desse tipo de investimento, podemos indicar o fato de que tem amadurecido a percepção do aspecto polissêmico e plural que recobre não só o tema da Escola Nova, mas também outras passagens destacadas na historiografia educacional. Com efeito, a motivação de produzir interpretações menos estereotipadas impulsiona à realização de investigações interessadas em compreender o modo como ideias, textos, políticas e reformas educacionais interagiam com condições sociais muito particulares, nomeadamente quando se trata de realidades que escapam às generalizações produzidas a partir do olhar direcionando aos principais centros culturais do país.

Por certo, o conjunto desses aspectos revelam um resultado que, ao mesmo tempo, ajudaram a produzir. Qual seja, um deslocamento na percepção do fenômeno educacional. A disciplina histórica sem dúvida desempenhou um papel importante no movimento de apreensão do fenômeno educacional de modo mais complexo e multifacetado. A recepção de contribuições historiográficas como, à título de exemplo, a História da Leitura ou dos movimentos de formação de movimentos de trabalhadores, ajudaram a reconhecer formas e processos educativos que escapam às categoriais mais formalistas até então predominantes na História da Educação, especialmente afeitos aos sistemas escolares. Esse resultado se liga à proliferação de objetos de estudo que vão desde uma variedade de aspectos que permitem compreender as instituições educativas, mas que também investem sobre processos educativos que passam ao largo das formas institucionalizadas, como os níveis de letramento e alfabetização, a circulação de impressos, as práticas emanadas ou que atravessam grêmios, sindicados, as práticas de socialização que se realizam em lugares tão diversificados como clubes, ruas, bares. Enfim, lugares diversos em que se pode apurar algum tipo de mobilização da cultura ligado a processos formativos.

Nesse sentido o presente dossiê também é representativo, pois que traz à lume um conjunto de investigações sobre objetos que extrapolam os limites escolares e | ou que mantêm com ela diferentes modos de relacionamento. Como o artigo de Luiza Nascimento de Oliveira da Silva, “Práticas e discursos: ensino da arquitetura militar e o governo do Rio de Janeiro (1700 – 1750), no qual a autora investiga o ensino de um saber muito especializado, aquele partilhado pelos engenheiros militares envolvidos na construção de estratégias arquiteturais de defesa no Rio de Janeiro, explorando o modo como o tema se conectava com as políticas de defesa daquele território portuário.

Na mesma direção pode ser colocado o artigo de Anna Karolina Vilela Siqueira, “Seminário de Mariana: formação católica e formação sacerdotal (1820 – 1835)”, que combina ferramentas das abordagens sobre história das instituições educativas com perspectivas biográficas para compreender como os processos educacionais que se passavam no Seminário de Mariana se articulavam com um projeto mais amplo de reforma moral-religiosa. Esse movimento permite à pesquisadora interrogar de que modo a temática educacional se combinava com a vida religiosa em Minas, e como esse complexo servia como uma força cultural sobre a regulação dos costumes e comportamentos daquela sociedade.

O artigo de Luísa Pádua Zanon, “A estruturação das aulas particulares: perspectivas e vislumbres das práticas educativas e seus lugares sociais em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX”, se insere no feixe de estudos que, voltando seu olhar para o Brasil Colonial, tenta compreender as especificidades das práticas educativas que tinham lugar naquela sociedade. Podemos incluir esse trabalho em uma série de investimentos de pesquisa que procuram superar os vícios de anacronismo que resultam do olhar para formas e práticas educativas anteriores aos sistemas modernos de escolarização, a partir de categorias forjadas da lógica desses próprios sistemas. Pondo em destaque a problemática das fontes para a produção de uma historiografia sobre os processos educativos no período colonial, esse movimento permite à pesquisadora captar o aspecto difuso e plural da educação nesse período, que se expressa, por exemplo, na coexistência de aulas particulares e aulas régias.

Finalmente, cabe destacar o modo como o conjunto de artigos aqui reunidos põem em evidência as relações entre a política e a educação, ou dito de outro modo, o componente político do objeto educacional. Desde que a História da Educação se desprende das narrativas generalistas e formalizadas, assume para si a responsabilidade de colocar diante dos seus objetos históricos as questões que se nos apresentam como latentes a pressionar e atravessar o tema educacional, tal como nos deparamos atualmente. Remeto, por exemplo, a necessidade de compreender historicamente as diferentes trajetórias educacionais oportunizadas no tecido da nossa sociedade; como puderam ser estruturados os desníveis em relação à circulação e o acesso a bens e produtos culturais; ou como se conecta às diferentes formas de violências simbólicas | culturais, como aquelas afeitas às questões étnicas ou de gênero, entre outras.

Nesse sentido, chamo atenção para o artigo de Beatriz Castro Miranda, “Gênero e sexualidade na pesquisa em Educação: reflexos na atual conjuntura sociopolítica brasileira”, que põe em perspectiva o modo como categorias transdisciplinares como gênero e sexualidade têm afetado o pensamento educacional. Seu trabalho expõe a necessidade de investir na compreensão histórica dessas interações, exatamente para que se possa fazer avançar o pensamento educacional.

Por em perspectiva histórica determinadas categorias fundamentais para a compreensão política da sociedade brasileira, a partir das suas relações com o tema educacional, é também o mote do artigo de Pedro Henrique da Silva Paes, “Humanismo, Estado e Nacionalismo: o lugar da Escola Nova na formação do ‘novo homem’ brasileiro”. Em trabalho que também procura interrogar o movimento da Escola Nova no Brasil de outros ângulos, o autor procura captar a contingência histórica de categorias como ‘nacionalismo’ e ‘autoritarismo’, na sua relação com a estruturação do debate político-educacional no país.

Se bem extrapole o contexto brasileiro, o artigo de Gabriel Felipe Silva Bem, “Educação e racismo: projetos educacionais no contexto colonial do século XIX”, também se articula no desafio de surpreender historicamente uma categoria como ‘raça’, tão impactante para o nosso contexto, explorando suas conexões com o tema educacional. Mobilizando recursos da História Intelectual o autor interroga a atuação de quatro intelectuais portugueses, a respeito do modo como mobilizavam teorias raciais em circulação na Europa do século XIX para propor projetos educativos para territórios coloniais africanos.

Finalmente, cabe por ênfase na contribuição que a História da Educação tem a prestar ao pensamento educacional, seja na testagem histórica de categoriais ou conceitos que organizam esse pensamento, seja alimentando o potencial heurístico dessas categorias e conceitos, ou ainda compartilhando ferramentas de análise com as teorias educacionais. Nesse sentido destaco a presença nesse dossiê de dois artigos que, embora não se caracterizem como pesquisas historiográficas, expõem a pertinência da interação História e Educação.

O primeiro deles é o artigo de Franciel Coelho Luz de Amorim, Thainá Christine da Conceição Peixoto e Maria Jorge dos Santos Leite, “A ‘teoria da complexidade’ de Edgard Morin e suas implicações às políticas educacionais do Estado brasileiro para a educação do campo”. Os autores põem em questão os fundamentos conceituais da respectiva perspectiva teórica, tais como complexidade e transdisciplinaridade, e convidam a refletir sobre suas implicações sobre a produção de políticas educacionais no Brasil, especialmente a partir da perspectiva do direito de acesso à educação de qualidade. É um convite a interrogar historicamente não só esse marco teórico específico, mas também outros que despontam no cenário do pensamento educacional revestidos do sentido de novidade, a fim de evitar os perigos das modas acadêmicas.

Por fim, o artigo de Tatiane Vargas Margraf, “História intelectual e mediadores culturais: o caso dos professores da educação básica”, propõe-se a testar chaves teóricas alimentadas no interior da disciplina histórica, tal como a noção de intelectuais mediadores, para iluminar a reflexão sobre o fazer educacional. Dessa perspectiva a autora lança a questão sobre o potencial de reflexão em se tomar os professores da educação básica como intelectuais mediadores, lançando mão do conceito de mediação cultural da história intelectual.

Esse dossiê se inscreve no conjunto de empreendimentos que têm ajudado a produzir uma sensibilidade teórica para o problema da historicidade do objeto educacional. Representa uma amostra significativa em relação ao que tem produzido e a potência analítica da História da Educação. Desejo ao leitor da Temporalidades que possam tirar o máximo proveito dos textos aqui reunidos.

Referências

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

NUNES, Clarice e CARVALHO, Marta M. C. de. Historiografia da educação e fontes. In: GONDRA, J. G. (orgs.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

Sidmar dos Santos Meurer – Professor do Setor de Educação UFPR Núcleo de Pesquisa sobre a Educação dos Sentidos e das Sensibilidades – NUPES | UFMG. E-mail: [email protected]


MEURER, Sidmar dos Santos. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.11, n.2, maio | ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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