Pequeno dicionário de grandes personagens históricos | Karl Schurster e José Maria Gomes Souza Neto
Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)
Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).
Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).
A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).
No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.
Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).
Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?
Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.
Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.
Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.
O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.
Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.
Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.
O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).
Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).
Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).
A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)
Referências
BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).
__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.
CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-
DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.
FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.
LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I
Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br
SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]