Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX | José Alves de Freitas Netos

A história é amplamente conhecida. Durante a ditadura de Rosas, na Argentina, um grupo de jovens intelectuais, de formação liberal, mesclados a uma larga audiência, se reúne numa livraria para discutir literatura e filosofia, e acabam falando sobre a política de seu país e fundando um grupo que ficaria conhecido como a Geração de 1837. Esse salão literário não era o primeiro, nem o único a funcionar em Buenos Aires. Ele seria o embrião de outras organizações intelectuais e políticas platinas e seus principais membros conheceriam o exílio, perseguidos pelo governo que criticavam. Do degredo, escreveram manifestos políticos, poesia e prosa que fundaram longa tradição na Argentina. Essa literatura teria como principal tópica a dualidade que deu subtítulo ao livro de Domingo Sarmiento, “civilização ou barbárie”. O cerne desse argumento seria que os federalistas/rosistas/conservadores defenderiam valores bárbaros, de uma Argentina descentralizada, dividida em facções em constante defesa de interesses regionais, particulares e personalistas. Por oposição, os unitários/liberais defenderiam um país coeso, uniforme, cioso de suas particularidades (como o imenso território “selvagem” que era, ao mesmo tempo, benção e maldição), mas ciente de que deveria integrar a marcha universal da História, alinhando-se à “civilização” de matriz europeia, com ideais republicanos de base liberal. Ao retornarem do desterro, quando da queda do ditador em 1852, assumiram cargos públicos e magistraturas. Sarmiento seria presidente da República.

José Alves de Freitas Neto retoma essa história contada tantas vezes em seu novo livro, Percorrendo o vazio, para buscar um novo olhar sobre ela, matizando abordagens clássicas, cristalizadas. Há duas considerações iniciais a se fazer sobre essa empolgante publicação. Uma é que esse parece um traço do historiador Freitas Neto: retomar temas clássicos, sobre os quais, aparentemente, nada mais pode ser dito de novo, e, com sutileza, engenhosidade e argúcia enxergar um novo ângulo, fazer uma instigante questão nunca posta. Seu livro anterior (FREITAS NETO, 2003), fruto de sua tese de doutorado, envolveu uma leitura inovadora de Bartolomé de Las Casas, o dominicano sobre o qual rios de tinta foram escritos. Agora, sua tese de livre docência fez o mesmo com a Geração de 1837, mais especificamente analisando um de seus lumiares (Esteban Echeverría) e uma fonte marginalizada: o periódico La Moda. A segunda consideração inicial é de que talvez a um leitor menos familiarizado com o debate argentino sobre seu século XIX, o tema pareça fechado, sem novidades, mas, pelo contrário, Freitas Neto, ao demonstrar imensa erudição, faz desfilar uma pletora de autores, uma meticulosa revisão historiográfica que situa seu próprio livro numa esteira de renovação da história Argentina, ao lado de nomes como Patricia Funes, Fabio Wassermann, Jorge Myers e muitos outros. Isso é feito sem desmerecer as gerações anteriores, que compuseram trabalhos interessantíssimos desde os anos 1960, como Tulio Halperín Donghi, Beatriz Sarlo, José C. Chiaramonte ou Maria Lígia Coelho Prado.

O professor da Unicamp, em especial na introdução (“Revisitando 1837”) e no capítulo 1 (“Tramas do vazio: referências para um percurso analítico”), revisita a história da historiografia sobre o tema nos últimos sessenta anos. Ficamos sabendo (ou para aqueles que já sabem, fica o benefício de um esforço de síntese sem precedentes em língua portuguesa) que já faz mais de uma década que muitos matizes sobre a ínclita geração platina de intelectuais e políticos começaram a ser revistos e problematizados. Um grupo que outrora fora visto como uno, coeso e crítico do rosismo, na verdade era plural, tinha vários dissensos internos e, especialmente no salão literário de 1837, foi composto também por simpatizantes ou críticos menos ferrenhos de Rosas (como o próprio livreiro Sastre, proprietário da livraria que era sede dos encontros). Também há que se pensar que a própria figura de Rosas (bem como os governos de Rivadavia, de Sarmiento e de Mitre) passou por grande revisão, que buscou entendê-lo para além do olhar de seus críticos, a partir de suas políticas, sua capilaridade e suas alianças que, ao fim e ao cabo, de fato foram capazes de manter províncias platinas unidas por longo tempo. Novas luzes foram igualmente jogadas sobre a dicotomia-chave da Argentina: civilização e barbárie. E é justamente nesse ponto que o livro aqui resenhado se insere e amplia o debate.

Freitas Neto nos propõe que antes mesmo de sugerirem a dicotomia clássica, os textos daqueles intelectuais já estavam eivados de uma tópica anterior: a do vazio. Um sentimento de incompletude, de deserto, de nada, de falta. Justamente nesse vácuo, nesse não-lugar, instalou-se a polarização civilização e barbárie, já como uma forma de reelaboração do sentimento do vazio e uma tentativa literário-política de preenchê-lo:

Na Buenos Aires de 1837-1838, aflorava a ideia de incompletude, e o vazio, tal como proponho, era um dispositivo interpretativo, que pode ser aplicado à cidade e ao campo. […] Era um sentimento que perpassava as letras, os periódicos e as discussões públicas e, logicamente, não possuía uma única forma de apreensão ou compreensão (FREITAS NETO, 2021, p. 40).

Dito de outra forma, intelectuais, ao pensarem o porvir do país que habitavam, pressupuseram essa sensação de incompletude, de vazio como uma forma de compreender, a partir de um ambiente citadino, todas as mazelas que os cercavam. Desse não-lugar, propuseram, então, chaves interpretativas como a civilização ou barbárie.

O autor não pretende substituir uma tópica por outra como fundante da Argentina, mas sim mostrar que é necessário voltar aos clássicos e lê-los tentando fugir das amarras pré-concebidas que acabam por eclipsar, obscurecer tantas outras lógicas constitutivas do raciocínio das fontes primárias. O único argumento de Freitas Neto que mereceria uma crítica ou aprofundamento é que vazio (bem como a ideia de civilização e barbárie) seria um lugar discursivo ligado à noção espacial mais do que a uma dimensão temporal. Ainda no primeiro capítulo, Freitas Neto escreve que havia uma “ausência de um passado, digno de ser incorporado à tradição” (2021, p. 36) e que, ao negarem um passado ao solo pátrio, aqueles jovens intelectuais rompiam com uma das principais características do romantismo europeu: o resgate/invenção de antigas tradições nacionais, de apego a lógicas nostálgicas de decodificação do mundo. Se a Argentina não tinha passado a ser emulado como matriz de seu futuro, restava o vazio, o lugar em que a ausência do tempo seria preenchida pela abundância de lugar (o “deserto”). Embora interessante e capaz de explicar parte dos textos analisados, fica patente em muitos outros documentos citados que aqueles autores, Echeverría não era exceção, falavam, sim, com imensa nostalgia de um passado argentino. Não um passado secular ou milenar, de raízes profundas, mas um passado mais recente. Esse passado de poucas décadas era fundacional, mítico, e teria se “desviado” por inúmeras razões, culminando na “aberração” rosista: era o maio de 1810, nome que o grupo passa a utilizar para descrever a si mesmo a partir de 1838. É claro que outros países americanos recriaram passados mais profundos para si, como o caso mexicano; ainda assim, o peso da revolução de independência enchia aqueles argentinos de uma nostalgia do que não viveram, mas que idealizaram como momento fundacional pátrio. Mesmo que eu possa oferecer essa crítica, ela nem de longe invalida a tese do vazio, que, pelo contrário, mostra-se como um marco com o qual futuros trabalhos terão que dialogar.

O capítulo 2 (“Uma rede de intelectuais: o salão literário e a geração de 1837”) refaz a primeira reunião do salão literário, as discussões que dali emergiram e seus principais textos e postulantes. Esse trecho do livro tem tudo para se tornar um desses trabalhos que frequentarão programas de disciplina de História da América em nosso país, pois, para além da instigante tese do vazio, descreve deliciosamente o funcionamento das reuniões da geração de 1837, sua composição, dissensos, consensos e os legados. O terceiro capítulo (“Echeverría: entre letras, políticas e repertórios sobre o vazio”) faz um mergulho na obra e nos principais debates sobre Echeverría e amplia argumentos que Freitas Neto tem defendido nos últimos anos. Ao revisitarmos textos como La cautiva e El matadero, somos levados pelo historiador à crítica do escritor ao deserto e sua barbárie (indígena), a necessidade da civilização, mas vemos como ela não estaria necessariamente plasmada em Buenos Aires. Muito pelo contrário: era na capital, habitada por gente de variada tez, vivendo com reminiscências coloniais (como o apego à religiosidade), que uma parte do vazio se conformaria em barbárie. Aquela turba multiétnica, pouco ou nada inclinada à civilização e suas luzes, capaz de perseguir um boi da mesma forma que perseguia unitaristas, constituiria parte considerável da rede de apoio a Rosas. O ditador, Echeverría acreditava, sustentava-se no vazio que ajudava a preservar: ao não propor nada, realizava a inércia e trazia parte do deserto (e de seu barbarismo) para a urbe.

Finalmente, o livro chega ao seu auge, com a análise do periódico La Moda, editado por Juan Bautista Alberdi e Juan María Gutiérrez, no capítulo 4 (“Entre frivolidades, vazios, saberes e a busca de simpatias políticas em La Moda [1837-1838]”). O jornal circulou por pouco mais de um ano, de forma ininterrupta, e se propôs a educar os corpos, as maneiras e costumes, hábitos e opiniões político-literárias, moldar gostos estéticos e criar uma moda argentina, que padeceria da uniformidade de códigos e gestos de etiqueta social para que o país se tornasse uma civilização. Esse capítulo é, antes de tudo, novidade do começo ao fim, pois revela uma fonte pouco estudada, de raro acesso e que abarca questões centrais por meio daquilo que parece acessório à tradição historiográfica sobre o período. La Moda se propunha como um jornal de amenidades, “frivolidades”, mas, ao mesmo tempo, buscava a propedêutica nacional mirando um público feminino e juvenil. Tal público-alvo é analisado por Freitas Neto, na esteira das propostas de Francine Masiello e Hernán Pas, como uma forma pedagógica de dialogar com uma representação de sujeitos excluídos pelo rosismo. Isso é, de fato, plausível, mas o historiador poderia também ter considerado que, na tradição dos frades mendicantes que ele outrora estudou, era necessário educar os jovens porque eles constituiriam os adultos de amanhã. Mais que corrigir adultos que se comportavam pouco melhor do que no conto El matadero, era mais fácil moldar o jovem que comporia a elite argentina das décadas seguintes. Nesse sentido, La moda (e Freitas Neto tem a perspicácia de perceber isso nessa fonte negligenciada), por meio de suas frivolidades, na verdade queria ser um potente catecismo cívico. Algo similar pode ser pensado sobre a vontade do periódico de atingir as mulheres como público-alvo. Por mais “progressistas” que seus autores fossem, a ideia rousseauniana de que a mulher era a rainha do lar, logo com uma função maternal de criar e educar o futuro cidadão, não poderia ser desprezada. Mulheres ilustradas, fortes e decididas formariam melhores cidadãos. Por isso, educá-las, civilizá-las por meio do jornal, era decididamente necessário. Ao menos como intenção, lembra o autor do livro: controlar a recepção de qualquer texto ou achar que a intenção manifesta de um autor ou documento é sua interpretação canônica seria erro crasso. Não à toa, muitos dos assuntos que o jornal se propusera a abordar, bem como a própria moda que lhe dava título, por não serem de domínio de seus anônimos escritores e de seus poucos editores, sequer se tornaram constantes no impresso.

A conclusão do livro é mais que um fechamento com reforço das ideias antes expostas. É mais um chamado, como La Moda o foi em seu tempo e contexto, um convite aos jovens estudiosos de história para que retomassem o século XIX como mote de suas pesquisas. Freitas Neto busca analisar, a partir de um diálogo travado na ANPHLAC de 2016 (em mesa redonda com Maria Elisa Noronha de Sá e Maria Ligia Coelho Prado), o lugar do século XIX nas pesquisas e o porquê de ele ter minguado nos últimos anos, cedendo lugar a uma concentração (necessária, claro) de atenção ao século XX e à história recente. Seu principal argumento é que as críticas, que vieram desde certas historiografias (de marxistas até a decolonial), mostram o período como o da concepção liberal, pináculo do imperialismo, entre outros. Isso teria afastado novos pesquisadores. Uma pena, certamente. Pois, como o livro aqui resenhado mostra, o século XIX tem muito ainda o que nos mostrar, temas com os quais dialogar. Quer discussão mais atual do que pensar a ideia de homens fortes capazes de liderar uma nação? Ou se o povo é educado ou bárbaro demais para votar? Adivinhem quando essas discussões foram incendiadas.

Referência

FREITAS NETO, José Alves de. Bartolomé de las Casas: narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. São Paulo: Annablume, 2003.


Resenhista

Luiz Estevam de Oliveira Fernandes – Doutor em História Cultural e Professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected] ORCID: 0000-0001-6230-3558


Referências desta Resenha

FREITAS NETO, José Alves de. Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX. São Paulo: Intermeios, 2021. Resenha de: FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Argentina: um país erguido no vazio. Revista Eletrônica da ANPHLAC, v. 22, n. 33, p. 359-364, jan./Jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

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