O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Os temas, nós que somos praticantes do ofício, já os conhecemos: o tempo e as temporalidades, o arquivo, o estatuto do documento e do testemunho, as biografias, o patrimônio, a memória e os usos do passado. Porém, para quem é leitor(a) de Durval Muniz Albuquerque Júnior, sabe que esse historiador costuma sempre inaugurar um modo outro de pensar e de fazer história. Em O tecelão dos Tempos (novos ensaios de teoria da história), somos interpelados por uma escrita vibrante, erudita, irônica, alegre, debochada e, acima de tudo, proliferante. Não se trata da repetição monótona de velhas tópicas: “trata-se de uma repetição diferencial: as ideias colocadas em novas situações tornam-se outras” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 17).

O livro possui três eixos. No primeiro deles, estão os textos que abordam a escrita da história. No segundo, o autor trata dos diferentes usos do passado. No terceiro, a temática é o ensino de história. Ao todo são catorze capítulos, os quais podem ser lidos em sequência ou de forma aleatória. Quer dizer que o livro é um amontoado de capítulos desconexos? Não. O ponto é que o que unifica todos é o gesto experimental e crítico. O autor ensaia historiografias. O que nos é apresentado é um conjunto de ideias-teste a partir do vocabulário conceitual e das metodologias que compõem o repertório da historiografia. Experimentos que Durval Muniz realiza enquanto historiador de ofício, enquanto professor, enquanto leitor e apreciador da arte histórica. Não foi sem motivo, portanto, que escolheu o estilo ensaístico de exposição. Leia Mais

Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduções | Julio Cesar Magalhães Oliveira

A produção Sociedade e cultura na África romana de Julio Cesar Magalhães de Oliveira, faz parte da coleção Entr(H)istória da editora Intermeios que populariza trabalhos de historiadores do programa de pós-graduação da USP, existente desde a década de 1970. Seguindo o exemplo de outras publicações da coleção, a produção de Oliveira nos brinda com um texto rico em análises profundas e discursos atuais, inovando em sua abordagem do Norte da África numa antiguidade predominantemente romana e com investigação arqueológica necessariamente plural.

A Arqueologia da África Romana teve início em territórios colonizados, usada estritamente para a reafirmação da superioridade européia por meio da identificação dessas nações com o próprio Império Romano. O paradigma da romanização e a visão eurocêntrica da história do continente africano nortearam as investigações arqueológicas e a historiografia até o início dos trabalhos dos historiadores que propunham descolonizar a história do continente africano. A História da Arqueologia desvela um processo de rupturas e transformações que compreendem a construção de uma disciplina como autônoma e influente como conhecimento científico. A historiografia, desde o spatial turn do século XX, reformulou a compreensão que possuía acerca da realidade social, sendo o advento da New Archaeology, ou da arqueologia processual, responsável por desenvolver técnicas de análises propriamente arqueológicas e transformar o lugar da análise sociológica da realidade material. Leia Mais

Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX | José Alves Freitas Neto

Jose Alves de Freitas Neto Foto Diego Nigro Anjo da Historia
José Alves de Freitas Neto | Foto: Diego Nigro/ Anjo da História

O objetivo da presente resenha é abordar e discutir o mais recente livro do historiador José Alves de Freitas Neto, intitulado Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX. Como resultado da tese de livre-docência do autor, a obra se destaca pela originalidade de repensar a dicotomia “civilização e/ou barbárie” utilizando a noção de “vazio”. O século XIX argentino foi marcado pelas tentativas de se constituir um projeto político para a nascente nação. Nesse sentido, para legitimar ou não esses projetos, discursos e ideias eram criados e propagados por diferentes grupos a fim de se afirmarem como representantes do progresso e da prosperidade, isto é, da civilização. A barbárie, por sua vez, simbolizava tudo aquilo – e também todos aqueles – que não contribuíam para o progresso e, por isso, não deveriam sequer existir. O apagamento de culturas era justificado pela necessidade de construir e manter uma suposta civilização. Uma das formas de se divulgar e legitimar os projetos de nação era as letras: como indica Jorge Myers (2008), o romantismo literário do século XIX contribuiu para a transformação do papel dos escritores latino-americanos em intérpretes das sociedades na quais estavam inseridos e profetas das nações emergentes.

Assim sendo, o ponto de partida da análise de Freitas Neto foi o incômodo com essas representações dualistas empregadas e atualizadas nas explicações da história argentina. Os objetivos do livro consistem, portanto, em estudar as obras do escritor Esteban Echeverría (1805-1851) – um dos expoentes da Geração de 1837 –, a circulação da revista La Moda (1837-1838) e questionar o discurso acerca do “vazio”, usado para silenciar projetos e ideais. A obra é formada por quatro capítulos e conta também com um apêndice dos conteúdos publicados em La Moda feito pelo autor. Importante ressaltar que o período estudado compreende os governos de Juan Manoel de Rosas (1829-1952), momento marcado pela perseguição e censura à oposição. Para a Geração de 1837, por exemplo, o rosismo era o representante da barbárie a ser combatida pelos portadores da civilização. Logo, as análises das obras de Esteban Echeverría, bem como o estudo de La Moda, se inserem no contexto dos anos rosistas e revelam como que as ideias de um grupo opositor foram construídas e divulgadas naquele período. Para Freitas Neto, as letras e a política estariam imbricadas de tal forma que a primeira legitimaria no plano das ideias aquilo que viria a acontecer historicamente. Leia Mais

A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955) | Rodlpho Gauthier Cardoso dos Santos

Capa de A construcao da ameaca argentina a oposicao a Peron na imprensa brasileira 1945 1955
Capa de A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955)

Esta resenha se dedica à apresentação e discussão do livro “A construção da ameaça argentina: a oposição a Perón na imprensa brasileira (1945-1955)” de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos. Como resultado da tese de doutoramento do autor, defendida em 2015, a obra se destaca pela proposta original de analisar publicações de periódicos brasileiros que versavam sobre o peronismo, movimento político argentino que chegou à presidência do país em 1946, a partir da ótica opositora, isto é, do antiperonismo. O trabalho do historiador Rodolpho dos Santos insere-se no eixo de pesquisas e publicações brasileiras que investigam o peronismo em suas mais diversas facetas. Entre elas, a formação de quadros antiperonistas em países vizinhos revela o alcance do movimento de Juan Domingo Perón nas discussões políticas internas de outras nações. Nesse caso, o papel dos meios de comunicação na divulgação do antiperonismo brasileiro liga-se, no âmago das discussões sobre a história política renovada, à importância das mídias que, por um lado, exercem influência na sociedade e, por outro, veem-se controladas ou tuteladas pelos poderes públicos e estatais (JEANNENEY, 1996).

As fontes utilizadas pelo autor foram a revista semanal ilustrada “O Cruzeiro” e o diário vespertino “Tribuna da Imprensa”, ambos publicados na cidade do Rio de Janeiro. A revista carioca pertencia ao empresário Assis Chateaubriand, dono dos “Diários Associados”, conglomerado de empresas jornalísticas que chegou a ocupar o posto de maior corporação de imprensa da América Latina. Nos primeiros anos da década de 1940, “O Cruzeiro” enfrentara uma crise que ameaçou o encerramento de suas atividades. As contratações do jornalista David Nasser e do fotógrafo Jean Mazon representaram a renovação necessária para que a revista continuasse sendo impressa. Carlos Lacerda, político brasileiro que era filiado à União Democrática Nacional (UDN), trabalhava no jornal “Correio da Manhã”, no qual assinava uma coluna intitulada “Na tribuna da imprensa”. Após afastar-se do cargo por conta de desentendimentos internos, Lacerda fundou, em setembro de 1949, o diário “Tribuna da Imprensa”. Apesar de não possuir uma tiragem tão alta quanto à da revista ilustrada, o jornal de Lacerda conquistou uma notável influência entre os simpatizantes dos ideais udenistas1. Leia Mais

Impressos subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964 | Maria Luiza Tucci Carneiro

Maria Luiza Tucci Carneiro Imagem Mosaico na TV
Maria Luiza Tucci Carneiro | Imagem: Mosaico na TV

O livro “Impressos Subversivos: arte, cultura e política no Brasil 1924-1964” foi escrito pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e lançado em 2020. A obra, que possui 212 páginas, possui as seguintes seções (todas escritas pela autora): Preâmbulo; introdução; capítulo 1 “Os impressos no mundo da sedição”; capítulo 2 “Na trilha do impresso político”; capítulo 3 “A arte de imprimir e protestar”; capítulo 4 “Artistas de protesto”; capítulo 5 “Panfletos Irreverentes”; Considerações Finais; Fontes; Bibliografia e Iconografia.

A autora fez toda a sua formação em história pela USP, tendo defendido a tese de título “O Anti-semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma geração (1930-1945)” e a tese livre docente “Cidadão do Mundo. O Brasil diante da questão dos judeus refugiados do nazi-fascismo (1933-1950)”. Carneiro atualmente é professora sênior da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Em sua carreira, têm realizado projetos e atividades junto de diferentes instituições, como a Associação Brasileira A Hebraica de São Paulo e o Arquivo do Estado de São Paulo. Sobre este arquivo, a historiadora já havia coordenado, junto de Boris Kossoy, um Projeto Integrado Arquivo/Universidade (PROIN) Leia Mais

Percorrendo o vazio: intelectuais e a construção da Argentina no século XIX | José Alves de Freitas Netos

A história é amplamente conhecida. Durante a ditadura de Rosas, na Argentina, um grupo de jovens intelectuais, de formação liberal, mesclados a uma larga audiência, se reúne numa livraria para discutir literatura e filosofia, e acabam falando sobre a política de seu país e fundando um grupo que ficaria conhecido como a Geração de 1837. Esse salão literário não era o primeiro, nem o único a funcionar em Buenos Aires. Ele seria o embrião de outras organizações intelectuais e políticas platinas e seus principais membros conheceriam o exílio, perseguidos pelo governo que criticavam. Do degredo, escreveram manifestos políticos, poesia e prosa que fundaram longa tradição na Argentina. Essa literatura teria como principal tópica a dualidade que deu subtítulo ao livro de Domingo Sarmiento, “civilização ou barbárie”. O cerne desse argumento seria que os federalistas/rosistas/conservadores defenderiam valores bárbaros, de uma Argentina descentralizada, dividida em facções em constante defesa de interesses regionais, particulares e personalistas. Por oposição, os unitários/liberais defenderiam um país coeso, uniforme, cioso de suas particularidades (como o imenso território “selvagem” que era, ao mesmo tempo, benção e maldição), mas ciente de que deveria integrar a marcha universal da História, alinhando-se à “civilização” de matriz europeia, com ideais republicanos de base liberal. Ao retornarem do desterro, quando da queda do ditador em 1852, assumiram cargos públicos e magistraturas. Sarmiento seria presidente da República. Leia Mais

Sociedade e cultura na África romana: oito ensaios e duas traduçõe | Júlio César Magalhães de Oliveira

Júlio César Magalhães de Oliveira, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), apresenta uma original coletânea de ensaios sobre a sociedade e a cultura na África romana, após sua tese já clássica Potestas populi: participation populaire et action collective dans les villes de l’Afrique romaine tardive (vers 300-430 apr. J.-C.), de 2012, coincidindo com a publicação de Late antiquity: the age of crowds?, um artigo que, apesar de recém-divulgado – 2020 – no periódico Past & Present, já repercute. O aparecimento do volume em português deve ser saudado por permitir o acesso de um público mais amplo ao tema, em particular de estudantes ávidos de leituras recentes, inovadoras e produzidas aqui mesmo, no Brasil. Neste aspecto, convém enfatizar a clareza e a facilidade da leitura, assim como o seu estilo envolvente. Mapas, plantas, imagens de época e fotos completam a preocupação de Oliveira com a fácil compreensão do leitor, assim como o uso de notas de pé de página, que apresentam referências e comentários de aprofundamento, mas podemos ler o texto principal de forma direta para melhor aprendermos os argumentos. Tais recursos incentivam a tão necessária segunda leitura, que possibilita o aproveitamento pleno das informações e discussões trabalhadas pelo autor.

Em termos teóricos ou de perspectiva, são discutidas seis polaridades, que estão disseminadas por todo o volume:

  • Resistência/integração;
  • Estudo da tradição textual/cultura material (Arqueologia);
  • Modelos normativos/teoria pós-colonial (conflitos);
  • Restrição às elites/subalternos vistos de baixo;
  • Historiografia: produção mais antiga/recente;
  • Modelos baseados em dicotomias/ênfase na interação.

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As marcas da pantera: percursos de uma historiadora | Margareth Rago

RAGO Margareth
Margareth Rago | Imagem: Instituto CPFL

RAGO As marcas da panteraAqueles e aquelas que se encontram no campo da história das mulheres e da filosofia da diferença, há muito esperavam por um livro que concentrasse a produção intelectual de Margareth Rago, uma das historiadoras feministas brasileiras mais expressivas na contemporaneidade. Finalmente sua imensa obra foi compilada no livro As Marcas da Pantera: percursos de uma historiadora (2021), uma coletânea de artigos publicados pela autora entre os anos de 1993 e 2020, que tratam sobre diferentes temáticas: teoria da história, gênero, feminismos, anarquismo, sexualidade, subjetividade, arte feminista, neoliberalismo, dentre outras.

Graduada em História pela Universidade de São Paulo, onde também cursou a graduação em Filosofia, Rago é professora titular colaboradora do Departamento de História do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, tendo sido professora-visitante do Connecticut College e da Columbia University, nos Estados Unidos. Publicou livros que trouxeram uma importante contribuição para inúmeros campos de estudos, dentre os quais podemos citar Do Cabaré ao Lar. A utopia da sociedade disciplinar (1985, 2014); Os Prazeres da Noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890–1930 (1991, 2008); Entre a História e a Liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo (2001); e A aventura de contarse: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade (2013). Leia Mais

Regalismo no Brasil Colonial: a coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808 | Leandro Ferreira Lima da Silva

Praca XV RJ
Palace Square, Rio de Janeiro. Ao fundo, a Igreja do Carmo (esquerda) e a Igreja da Ordem Terceira do Carmo (direita) | Imagem: Richard Bate, 1808

SILVA l Regalismo no BrasilO regalismo pombalino e o processo de submissão da Igreja ao Estado no império português foram amplamente reconhecidos pela historiografia luso-brasileira. Entretanto, apenas nas últimas décadas houve tentativas de análise que ultrapassassem as interpretações clássicas que compreendiam a ação regalista da monarquia portuguesa como uma política exclusivamente antijesuítica[2]. As transformações no campo historiográfico e a ampliação da noção de documento (Rousso, 1996), sobretudo após o advento da Nova História Cultural, resultaram em pesquisas inovadoras sobre o período pombalino e, sobretudo, problematizadoras da primazia inaciana. Esta, apesar de ser central na construção da política pombalina, não é suficiente para a compreensão das múltiplas dimensões das ações estatais direcionadas aos religiosos, e das ações do episcopado e de agentes civis em sua aplicação no Reino e no ultramar. Aqui reside a originalidade da obra de Leandro Ferreira Lima da Silva, Regalismo no Brasil Colonial, resultante da sua dissertação de mestrado e vencedora do prêmio de História Social (2013-2014) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo.

Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo, Leandro Ferreira Lima da Silva possui uma trajetória de pesquisa sólida e em ascensão no campo de estudos sobre o regalismo pombalino. Além da obra resenhada, o autor escreveu “À sombra da “última ruína”: regalismo e gestão material na província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro” (Silva, 2013). Atualmente, Silva é doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, no qual continua os estudos sobre os impactos da reforma regalista sobre o clero regular. Leia Mais

Cartografia da promessa. Potosi e o Brasil num continente chamado Peruana

1 Certos livros, passadas décadas de sua publicação, continuam seminais. Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, é um desses casos. O texto de titularidade do historiador é denso, erudito, com uma tese instigante que continua a movimentar a leitura e o debate mesmo 60 e poucos anos depois de seu surgimento.

2 Em Visão, Sérgio Buarque afirma que lhe interessava fazer a “biografia de uma ideia”, de como se forjou uma visão do Brasil como terra edênica. No longo e sinuoso percurso para construir seu argumento, ele advoga que os portugueses, no Brasil, deixaram a maravilha de lado em nome da experiência, da concretude de uma terra sem os achados de riqueza dos vizinhos espanhóis. Por antítese, os espanhóis, pródigos em minas de ouro e prata, abraçaram o discurso do maravilhoso. Ademais, ele constatou que, nos mapas portugueses, o Brasil aparece não como uma separata, mas como um complemento à montanha de prata de Potosí. Leia Mais

Gabo, cronista da América: história, memória e literatura | F. P. G. Vieira

Na noite em que recebeu o prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez quebrou os protocolos ao comparecer à cerimônia vestido com um típico liquiliqui. A dessemelhança no traje, no entanto, representava apenas uma parte da oposição simbólica que ele traçaria na ocasião, por meio de seu discurso. Nele, o escritor destacou a existência de um nós – os latino-americanos, dos quais se colocava como porta-voz – e de um outro, os europeus para quem falava. Na relação que estabelecia entre esses dois mundos, a América Latina aparecia como vítima do saqueio, da violência e das tentativas de interpretação com base em esquemas alheios, das quais resultaria sua persistente solidão.

Essas palavras ecoavam, além de um protesto, uma visão que vinha ganhando força desde os anos 1950, fomentada por uma geração de escritores, para os quais a América Latina deveria ser compreendida como uma unidade com um passado, um presente e um destino comuns. À altura da cerimônia de outorga do Nobel, o continente havia passado, no intervalo de poucas décadas, por mais de uma revolução e assistido a uma sucessão de golpes de Estado. Os olhos da Europa observavam atentos essas convulsões e, diante deles, García Márquez se colocava como intérprete e tradutor dos impasses e sonhos latino-americanos. Leia Mais

Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo – Rio de Janeiro 1750-1808 | Leandro F. L. Silva

Superando a tradicional concentração de estudos nas atividades da Companhia de Jesus, as historiografias portuguesa e brasileira produziram nas últimas décadas uma quantidade significativa de trabalhos sobre a atuação de outras ordens religiosas na Época Moderna.[3] Apesar disso, no que tange ao impacto das medidas adotadas na segunda metade do século XVIII para reforçar a autoridade da Coroa face às corporações regulares, o caso paradigmático da expulsão dos jesuítas dos territórios lusitanos em 1759 continua a ser visto como evento quase exclusivo da prática regalista naquela esfera. Nesse quadro, o trabalho de Leandro Ferreira Lima da Silva oferece novas luzes para a compreensão mais ampla das medidas de controle da Coroa portuguesa sobre as ordens religiosas daquele período. Defendida originalmente em 2013 como Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, a obra foi contemplada em 2016 com o prêmio História Social do referido Programa.

Duas características se destacam na investigação do autor: a abrangência da análise e o caráter minucioso da reconstituição de diferentes contextos que atravessam o período em exame. A consequência é o ambicioso plano da obra, desdobrando-se em quinze capítulos divididos em cinco partes, num total de 556 páginas. A matéria-prima para a análise proveio de diferentes acervos documentais. Devido à perda de grande parte da documentação da antiga Província Carmelitana Fluminense, o autor montou um repertório documental procurando recompor um quebra-cabeça cujas fontes estavam dispersas em arquivos tão distintos e distantes como o Arquivo Central da Província Carmelitana de Santo Elias, em Belo Horizonte; o Arquivo Nacional, o Arquivo Geral da Cidade e o Arquivo da Cúria Metropolitana, no Rio de Janeiro; e diferentes fundos documentais digitalizados do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A impressão que fica é que o autor praticamente esgotou as fontes disponíveis no Brasil, restando por analisar apenas os arquivos europeus.

A historiografia também recebeu cobertura extensiva no livro. Dialogando com as obras de Evergton Sales Souza e José Pedro Paiva, para mencionar apenas alguns, Leandro Silva se mostra atualizado com relação à produção luso-brasileira sobre as questões da Igreja católica, da Ilustração, da Coroa e da colonização portuguesas no século XVIII. Com base na historiografia, Leandro Silva define o regalismo praticado nos domínios portugueses na segunda metade do século XVIII segundo uma dupla dimensão: a subordinação da Igreja e do clero aos poderes temporais da Coroa, “erradicando privilégios e imunidades”; e a manutenção do catolicismo como religião oficial do Estado, livrando-se, não obstante, das pressões da Santa Sé (p. 27). O tema da reforma regalista na Província do Carmo do Rio de Janeiro não é novo na historiografia. Inaugurado por Francisco Benedetti Filho, foi continuado por Sandra Rita Molina, cuja leitura o rigoroso escrutínio do autor deixou escapar.[4] As questões da administração dos bens da Província, da limitação do quantitativo de religiosos e do relaxamento moral dos carmelitas atravessam as três investigações sobre o tema. Mais recentemente, outro trabalho de Sandra Molina estendeu a análise dos referidos pontos até o final do período imperial, mostrando a continuidade da política regalista do Império do Brasil em relação às medidas adotadas anteriormente pela Coroa portuguesa.[5]

O diálogo com a historiografia internacional é relativamente pequeno na obra de Leandro Silva. Em que pese a lembrança do importante livro coletivo organizado por Ulrich Lehner e Michael Print, como também do já clássico estudo de Samuel Miller, o trabalho carece de referências mais amplas sobre o impacto de medidas de teor regalista que, adotadas por diferentes monarquias europeias na segunda metade do Setecentos, tiveram consequências diretas sobre as atividades das ordens religiosas em seus territórios.[6] Por fim, não existe a tentativa de efetuar um balanço historiográfico das mudanças estimuladas pelas reformas bourbônicas no campo da administração eclesiástica dos domínios hispano-americanos, cujo exame comparativo poderia constituir uma frutífera via de análise para o autor.Mesmo assim, o trabalho possui abrangência e profundidade incomuns para um projeto desenvolvido no âmbito do Mestrado. É o momento de se retomar essa dupla característica, aproximando-se agora do objeto. Trata-se de uma pesquisa que tem como objetivo assinalar os efeitos de diferentes medidas regalistas tomadas pela Coroa portuguesa com relação à Província do Carmo do Rio de Janeiro. Fundada em 1720, a Província do Carmo do Rio de Janeiro constituía desde 1595 uma vice-província que se encontrava até então dependente da Província de Portugal. A fundação fluminense abrangia os conventos do Rio de Janeiro, do Espírito Santo, de Angra dos Reis, de Santos, de São Paulo e de Mogi das Cruzes, bem como o hospício de Itu. Em informação remetida à Corte em 1763, o bispo do Rio de Janeiro denunciava que a própria fundação da Província ocorrera “com o dinheiro angariado através de negociações nas Minas e em outras regiões do Brasil”, com cujos recursos fr. Francisco da Purificação, o primeiro provincial, “soube merecer o agrado dos religiosos de Roma, onde tudo se compra” (p. 146, grifos do autor).

O recorte necessariamente monográfico da pesquisa não impede comparações com outros contextos. O autor traz à análise a recepção de medidas de teor análogo ocorridas nas províncias do Carmo da Bahia e na reformada de Pernambuco. Paralelamente, no que tange à capitania do Rio de Janeiro, o autor discute seu tema à luz de outros quadros, como as medidas de reforma empreendidas pela Coroa junto aos frades capuchos da Província Franciscana da Imaculada Conceição e o papel de carmelitas e franciscanos no mencionado território após o afastamento dos missionários jesuítas. A primeira parte da obra, abrangendo um único capítulo intitulado “A mentalidade regalista setecentista e o clero regular no Império Português”, anuncia o caráter amplo da abordagem do autor. Nessa parte, busca em textos basilares da Ilustração portuguesa, como o Testamento político de D. Luís da Cunha, um conjunto de argumentos que depois seriam postos em prática, ao longo dos reinados de D. José I e de D. Maria I, para o controle das corporações regulares. No discurso dos estrangeirados, a ênfase recai sobre o acúmulo de bens efetuado pelas ordens religiosas, quase sempre pela via de legados testamentários; o ingresso muito numeroso de noviços nas fundações conventuais; a ociosidade dos religiosos; as isenções relativas aos poderes seculares; e a falta de observância das regras. No processo da reforma dos frades carmelitas do Rio de Janeiro, tais pontos reapareceram com força nas ações das autoridades da Província.

A fina reconstituição dos contextos representa o que há de mais valioso no trabalho de Leandro Silva. A segunda parte, a maior da obra e que abrange seis capítulos, intitula-se “A Província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro e o ‘tímido’ regalismo pombalino (1750-1778)”. Na verdade, o material tratado no capítulo é mais amplo do que o indicado no recorte cronológico. O autor examina inicialmente a sublevação ocorrida no Convento do Carmo do Rio de Janeiro em 1743, quando lutas de facções davam o tom da administração da Província, dividindo ocupantes dos cargos em dois grupos opostos: os “filhos do Rio”, que abrangiam os religiosos naturais da referida capitania, e os “filhos de fora”, que, em sua maior parte, agrupavam os religiosos nascidos em Portugal e nas demais capitanias da Colônia (p. 106). Ao longo da segunda parte, o autor desenvolve um argumento muito convincente. Apesar da existência de sérios conflitos na Ordem, e da edição de numerosas medidas que, idealizadas por Sebastião José de Carvalho e Melo na década de 1760, destinavam-se a limitar a entrada de noviços e a diminuir o volume dos bens que ingressavam nas corporações regulares, ao longo do reinado de D. José I as diferentes autoridades coloniais não tomaram medidas rígidas de controle sobre os frades carmelitas do Rio de Janeiro. No contexto em pauta, os poderes coloniais sediados na capitania encontravam-se inteiramente envolvidos nas disputas de limites com a Espanha na região sul da Colônia, que foram apenas solucionados com o Tratado de Santo Ildefonso, em 1777.

A terceira parte da obra abrange dois capítulos. Conforme o seu argumento principal, “se o consulado pombalino deu embasamento teórico às políticas regalistas e aos poderes dos bispos na Igreja nacional e frente à Santa Sé, no reinado mariano a Coroa aprofundou essas posições”. (p. 378). Seguindo, assim, as tendências da historiografia mais recente, o autor não identificou mudanças significativas na política regalista após a saída do Marquês de Pombal, em 1777. Além disso, as autoridades coloniais encontravam-se na ocasião já desembaraçadas dos problemas nas fronteiras do sul. Após a suspensão das eleições da Província em 1783, o vice-rei do Estado do Brasil apresentou à rainha D. Maria I um dossiê, “para fazer conceito do miserável estado em que se acha uma Corporação Religiosa que só serve de descrédito à Religião e de peso e mau exemplo ao Estado” (p. 259). No documento, que pautou os rumos da reforma que seria iniciada dois anos depois, acusa-se uma sucessiva quebra das regras religiosas e dos fundamentos da economia da Província: religiosos adquiriam em Roma ou em Lisboa privilégios honoríficos, afastando-se dos atos litúrgicos e do trabalho em comum; possuíam grande número de escravos pessoais para lhes servir, em contrariedade aos votos de pobreza; e tinham até concubinas, por vezes estabelecidas publicamente em residências próximas às sedes dos conventos, contrariando os votos de castidade. O vasto patrimônio imobiliário da Província, constituído por dezenas de moradias urbanas e fazendas, era mal administrado, chegando ao ponto de não produzir alimento suficiente para os próprios religiosos.

A quarta parte da obra estende-se por cinco capítulos. Após o envio da denúncia do vice-rei à Corte, D. José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco, o bispo do Rio de Janeiro, foi nomedo como visitador e reformador da Província do Carmo. A atuação reformadora deste se direcionou principalmente a combater as irregularidades já apontadas pelo vice-rei. Suas ações visaram aprimorar o rendimento econômico das fazendas dos conventos, combater a concessão de distinções pessoais de caráter honorífico e regulamentar as atividades da comunidade, obrigando os frades à celebração dos atos litúrgicos e à assistência no refeitório coletivo. Além da intervenção direta de poderes externos à Ordem, a reforma na Província do Carmo do Rio de Janeiro se distinguiu por sua longa duração se comparada a iniciativas semelhantes introduzidas em outras ordens regulares. Após a resistência dos religiosos, e em aliança com poderes locais, como a Câmara do Rio de Janeiro, a reforma foi encerrada em 1800. A atuação do bispo promoveu um verdadeiro expurgo nos quadros da Província. Seu quadro de religiosos passou de 180 para 47 entre 1780 e 1799.Da perspectiva metodológica, a obra leva em conta que as inúmeras cartas produzidas pelos agentes administrativos envolvidos na reforma da Província Carmelita Fluminense – tais como o bispo do Rio de Janeiro, o vice-rei, os frades representantes da Província, o Senado da Câmara e o Conselho Ultramarino – podem ser vistas simultaneamente como instrumento de dominação da Coroa e como veículo “de negociação de súditos instalados nos mais longínquos pontos do ultramar” (p. 47). Recentemente, essa linha de estudos se revelou importante para um expressivo conjunto de historiadores, que sistematizou o funcionamento dos canais de comunicação política que uniam os diferentes poderes em funcionamento na monarquia portuguesa, nos dois lados do Atlântico.[7]

Introduzida na América Portuguesa em 1580 para cuidar da catequização do gentio e atender demandas espirituais dos colonos moradores na capitania de Pernambuco8, a Ordem do Carmo estabelecida no Rio de Janeiro não foi mais considerada capaz de realizar aquelas tarefas na segunda metade do século XVIII. Analisando os avanços e recuos das iniciativas de reforma, as relações estabelecidas entre os agentes seculares e eclesiásticos, bem como as bases teológicas e canônicas que fundamentaram a iniciativa da Coroa, a obra de Leandro Silva merece figurar ao lado de outras que constituem pontos de partida obrigatórios para o tema, como o clássico trabalho de Caio César Boschi, ou a recente coletânea organizada por Francisco Falcon e Cláudia Rodrigues.9

Notas

3. Com relação à América Portuguesa, a título ilustrativo: AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grão-Pará e no Maranhão: missão e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa: Universidade Católica Portuguesa, 2005; SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para além do claustro: uma história social da inserção beneditina na América portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niterói: Eduff, 2014.

4. BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Província Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Província Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertação (Mestrado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

5. MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradição: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Esta obra foi resenhada por BARBI, Rafael José. Catolicismo, escravidão e a resistência ao Império: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

6. LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010; MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universitá Gregoriana Editrice, 1978; BEALES, Derek. Prosperity and Plun der. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

7. FRAGOSO, João; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Um Reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

8. HONOR, André Cabral. Envio dos carmelitas à América portuguesa em 1580: a carta de Frei João Cayado como diretriz de atuação. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

9. BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; FALCON, Francisco; RODRIGUES, Cláudia (Orgs.). A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

Referências

AMORIM, Maria Adelina. Os franciscanos no Grao-Para e no Maranhao: missao e cultura na primeira metade de Seiscentos. Lisboa: Centro de Estudos de Historia Religiosa: Universidade Catolica Portuguesa, 2005.

BARBI, Rafael Jose. Catolicismo, escravidao e a resistência ao Imperio: Um outro olhar. Almanack, n. 15, 2017, pp. 366-370.

BEALES, Derek. Prosperity and Plunder. European Catholic Monasteries in the Age of Revolution, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

BENEDETTI FILHO, Francisco. A reforma da Provincia Carmelitana Fluminense (1785-1800). 1990. 190f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 1990.

BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder: irmandades leigas e politica colonizadora em Minas Gerais. Sao Paulo: Atica, 1986.

FALCON, Francisco; RODRIGUES, Claudia (Orgs.). A “epoca pombalina” no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: FGV: Faperj, 2015.

FRAGOSO, Joao; MONTEIRO, Nuno Goncalo. Um Reino e suas republicas no Atlântico: comunicacoes politicas entre Portugal, Brasil e Angola nos seculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2017.

HONOR, Andre Cabral. Envio dos carmelitas a America portuguesa em 1580: a carta de Frei Joao Cayado como diretriz de atuacao. Tempo, v. 20, 2014, p. 1-19.

LEHNER, Ulrich L.; PRINT, Michael (Dir.). A Companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010.

MILLER, Samuel J. Portugal and Rome (c. 1748-1830). An Aspect of the Catholic Enlightenment. Roma: Universita Gregoriana Editrice, 1978.

MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradicao: a Ordem do Carmo e os escravos da Santa contra o Imperio do Brasil (1850-1889). Jundiai: Paco Editorial, 2016.

MOLINA, Sandra Rita. (Des)obediência, barganha e confronto: a luta da Provincia Carmelita Fluminense pela sobrevivência (1780-1836). 1998. 338f. Dissertacao (Mestrado em Historia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

SOUZA, Jorge Victor de Araujo. Para alem do claustro: uma historia social da insercao beneditina na America portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Niteroi: Eduff, 2014.

William de Souza Martins – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Professor Associado da Área de História Moderna do Instituto de História da UFRJ, onde atualmente ocupa a função de vice-diretor. Membro permanente do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, atuando como editor associado da Topoi: Revista de História. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (2001) com a tese Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700 – 1822), que foi publicada em 2009 pela Edusp. Participa dos grupos de pesquisa Ecclesia (UNIRIO), ART (Antigo Regime nos Trópícos – UFRJ) e Sacralidades (UFRJ).


SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil colonial: a Coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Intermeios/USP; Brasília: CAPES, 2018. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Monarquia portuguesa e política regalista: ordens religiosas no final do setecentos. Almanack, Guarulhos, n.25, 2020. Acessar publicação original [DR]

O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura | Elizabeth Cancelli

Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).

Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder. Leia Mais

Rock cá/ rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985 | Paulo Gustavo da Encarnação

Bichos escrotos saiam dos esgotos

Bichos escrotos venham enfeitar […]

Bichos, saiam dos lixos

Baratas me deixem ver suas patas

Ratos entrem nos sapatos

Do cidadão civilizado

(TITÃS, 1986).

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da Nação

(LEGIÃO URBANA, 1987)

O primeiro fragmento citado compõe a letra da música “Bichos escrotos”, do álbum Cabeça Dinossauro da banda Titãs. Ainda que apresentada em shows desde o começo da década de 1980, a música foi gravada apenas em 1986. O motivo: a censura imposta no regime militar. Já o segundo excerto compõe o disco Que país é este, da banda Legião Urbana. Lançado no álbum de 1987, a música, igualmente intitulada “Que país é este”, rapidamente se transformou num hit da banda e embalou gerações. Ambas foram oficialmente lançadas nos anos iniciais do processo de redemocratização do Brasil. Contêm críticas profundas ao período e aos fundamentos da Nova República, denominação cunhada para tratar do período iniciado com o fim da ditadura militar (FERREIRA; DELGADO, 2018).

Elas foram (e são) entoadas por jovens de diferentes gerações como canções de protesto e contestação à ordem política vigente e à estrutura social. Embora trintonas, são extremamente atuais para pensarmos o cenário político brasileiro, as relações entre Executivo e Legislativo e, principalmente, as práticas políticas adotadas. Afinal, atualmente ainda sobram “bichos escrotos” que desrespeitam a Constituição, mas, apesar da dura realidade enfrentada pelo cidadão brasileiro, entoam fábulas encantadoras sobre o “futuro da Nação”.

Não obstante, as canções também possibilitam aprofundar a discussão acerca das complexas relações entre história, rock, mídia e política. E suscitam outras importantes indagações, tais como: O que é rock? É um gênero nacional ou estrangeiro? É popular ou elitista? É música de caráter alienante ou música de protesto? É expressão de posturas progressistas ou conservadoras? Como é comumente classificado por agentes do campo midiático?

Esses são alguns dos problemas argutamente debatidos pelo trabalho recém-publicado por Paulo Gustavo da Encarnação, doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e com estágio pós-doutoral realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fruto da sua tese de doutorado, sob a orientação do professor doutor Áureo Busetto, e com estágio de pesquisa em Portugal, o historiador publicou o livro intitulado Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa (1970-1985).

A obra apresentada se inscreve no horizonte da chamada “história política renovada”, que, como formulado por René Rémond (1996), concebe a amplitude dos objetos enfocados pela história política. Toma o rock como objeto com potencial para o conhecimento de práticas políticas diversas e múltiplas dimensões da identidade coletiva — perspectiva que possibilita adentramos “terrenos que, mesmo aparentemente apresentados como paisagens desérticas e estéreis, são searas para serem trilhadas pelo historiador do contemporâneo” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32). O autor do livro observa a “relação rock/política como resultado de um feixe de relações sociais, cujos subsídios principais podem ser percebidos em discursos, nos comportamentos e, inclusive, nas aparentes ausências de elementos e ingredientes da política” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32).

Com tais preocupações, Paulo Gustavo da Encarnação procura demonstrar as proximidades entre o rock brasileiro e o lusitano entre as décadas de 1970 e 1980. Aponta semelhanças entre os países; por exemplo, os períodos de ditadura. Mas também cuida das particularidades. Munido de uma perspectiva comparativa, afasta-se de visões totalizantes, hegemônicas e uniformes para pensar os agentes e expedientes dos universos roqueiros brasileiro e português. Como bem lembrou Marc Bloch sobre o trabalho do historiador (2001, p. 112), “no final das contas, a crítica do testemunho apóia- se numa instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante, do Uno e do Múltiplo”.

Assim, o livro busca refletir comparativamente acerca das características do rock lusitano e do brasileiro. Para tanto, leva em conta parâmetros linguístico-poéticos e musicais na análise de canções com críticas sociais e políticas. Procura demonstrar como o gênero foi classificado, respectivamente, por agentes brasileiros e portugueses, ocupando-se especialmente das definições e dos estereótipos formulados pelos integrantes do universo midiático, assim como da constituição e atuação da crítica musical veiculada em cadernos jornalísticos específicos e/ou em revistas especializadas. Portanto, historiciza o rock e o modo como o gênero foi tomado pela imprensa nos universos brasileiro e português.

Com relação à imprensa, concebe as diferentes e, por vezes, antagônicas facetas que conferem existência a uma empresa midiática. Compreende o estatuto das suas fontes e explica, detalhadamente, os passos trilhados para a realização do estudo. Apresenta, por exemplo, o modo como constituiu quadros temáticos para realização da pesquisa documental e para o trabalho com a bibliografia — expediente que possibilitou estruturar uma narrativa fluente e pouco afeita apenas à exposição cronológica e linear dos fatos.

Com base nos dados obtidos em pesquisa documental de fôlego e a partir da consulta crítica e assertiva à ampla e diversificada bibliografia, o pesquisador expõe consistente tese sobre o tema:

O rock produzido em língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, desde os anos 1950 vinha num processo de nacionalização que culminaria, a partir da década de 1970 e, com especial destaque, para os anos 1980, no denominado rock nacional. […] defendemos a tese de que o rock produzido durante o período de 1970-1985 expressou e lançou mensagens musicais e críticas políticas. Ele se tornou, por conseguinte, um catalisador e um difusor de anseios e visões de mundo de uma parcela da juventude que não estava disposta a ver suas expectativas com relação à vida cultural e à política encerradas nas dicotomias: nacional/ estrangeiro, popular/elitista, capitalismo/socialismo (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 25).

Além de fértil e sólida tese, o leitor terá a oportunidade de conhecer o trabalho de um pesquisador incansável que minerou e lapidou dados e elementos históricos. Ademais, o livro de Paulo Gustavo da Encarnação é leitura obrigatória para pesquisadores que apreciam a constituição de séries no trabalho de pesquisa documental, a organização do material e sua exposição numa narrativa envolvente, sem, contudo, renunciar ao enfretamento de densas e qualificadas questões teórico-metodológicas. Ao longo dos quatro capítulos, o leitor terá a chance de conhecer a história do rock e, também, uma potente análise sobre as relações desse gênero musical com a mídia e a política no Brasil e em Portugal.

Se, por um lado, o trabalho de Paulo Gustavo nos ensina sobre um objeto específico e a operação do historiador num recorte temporal definido, comparando práticas em dois espaços distintos, por outro lado, chama atenção para a importância de entendermos o universo político para além das leituras simplistas sustentadas por visões duais e dicotômicas de mundo. Essa não seria, aliás, uma necessidade da nossa frágil democracia? Que a leitura de Rock cá, rock lá fomente a reflexão e o debate. E que os leitores experimentem mais do que visões binárias e esquemáticas de mundo. Afinal, como o autor colocou, o rock “é uma miscelânea de difícil definição”, mas como “posicionamentos que buscam criticar os pilares da sociedade”, expressando, “muitas vezes, elementos, mensagens e linguagem contestadoras” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 267-8).

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2018.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves (Org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016 – Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. v. 5.

LEGIÃO URBANA. Que país é este. In: LEGIÃO URBANA. Que país é este. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 áudio (2 min. 57).

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

TITÃS. Bichos escrotos. In: TITÃS. Cabeça Dinossauro. Rio de Janeiro: Warner, 1986. 1 áudio (3 min. 17).

Edvaldo Correa Sotana – Mestre e doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: [email protected]


ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2018. Resenha de: SOTANA, Edvaldo Correa. Rock, mídia e política: história numa perspectiva comparada. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 225-228, jul./dez., 2020.

Acessar publicação original [DR]

Viagens e relatos: representações e materialidade nos périplos de latino-americanos pela Europa e Estados Unidos no século XIX | Stella Maris Scatena Franco

Por uma série de motivos, os livros de viagem têm despertado, ao longo do tempo, considerável interesse e conquistado gerações de ávidos leitores, estando como que inscritos na cultura ocidental. É extensa a lista de autores que marcaram época com seus relatos e ainda hoje são objeto da atenção de leitores e estudiosos, tais como Heródoto (séc. V a.C.), Marco Polo (1254-1324), Américo Vespúcio (1454-1512) ou Alexander von Humboldt (1769-1859). De formatos variados e natureza essencialmente híbrida, as obras que contêm relatos dos sucessos e desventuras dos viajantes por povos e culturas estranhos despertaram tamanho interesse basicamente por duas razões – especialmente nos últimos 500 anos: a) primeiramente, tendiam a satisfazer a curiosidade do público leitor europeu a respeito dos outros – fossem eles asiáticos, árabes, africanos ou nativos americanos – em meio à expansão comercial/colonial dos tempos modernos, por vezes afigurando-se como únicas formas de informação em um mundo sem cinema, rádio, televisão ou internet; b) segundo, tendem a abrir – em menor ou maior grau – uma porta para a intimidade do autor/viajante, revelando aspectos da sua subjetividade difíceis de se captar em obras diversas, de cunho ensaístico – e por isso ainda fazem sucesso nos dias atuais, ao lado dos diários pessoais e das autobiografias, propriamente ditas. Leia Mais

O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p. Resenha de: SOUZA, Vitória Diniz de. A História como tecido e o historiador como tecelão das temporalidades. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.508-514, jan./jun., 2020.

A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos que marcam a tradição historiográfica.

O “Prefácio” é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma “constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.

Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em si mesma. Na primeira parte, “A escrita da história”, inicia a discussão sobre o trabalho do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o lugar do arquivo e sobre a prática historiadora – da análise documental ao seu processo de escrita. Enquanto isso, em “Usos do passado”, propõe reflexões sobre passado, memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também, conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação deles. Na terceira parte do livro, “O ensino de história”, centraliza as discussões acerca da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.

Dando início, no capítulo que dá nome ao livro, “O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades”, defende as razões para que o trabalho do profissional da história seja considerado como de um artesão, pois  […]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).

As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também, oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua escrita que, muitas vezes, se vê enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).

Em seguida, no capítulo “O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história”, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível, das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa maneira, com o pudor que cerca a historiografia.

As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo que em “A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas na prática da pesquisa histórica”, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade, mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber, de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64). Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o racional, mas também, o emocional, o artístico.

A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo “Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico”, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história. Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.

A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e suspeição do outro”, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade de formas de pensar a um só conceito, em um só esquema explicativo, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes. Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma diversidade de perspectivas, métodos e teorias divergentes entre si que se aproximam menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir em inimigo todos aqueles de quem discordava.

A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, “As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado”, no qual o autor faz referência a literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago.

Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, “A necessária presença do outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e comemoração”, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais há um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, “Entregar (entregar-se ao) o passado de corpo e língua: reflexões em torno do ofício do historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira, recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação, da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo conhecimento histórico e possam aprender com ele.

Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no capítulo “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história”, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas, sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, “Por um ensino que deforme: o futuro da prática docente no campo da história”, o autor provoca o leitor/professor a desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise” enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).

No último capítulo, “De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história”, tece críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que já foi dito, mas que seja inventiva, ousada, evitando assim, certo dogmatismo.

Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a melhor produção desse historiador até o momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado, publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por ele na introdução.

Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos, citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes. Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.

De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo, compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive, cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto, fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir história.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019.

CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Vitória Diniz de Souza – Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: [email protected].

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Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX) – WISSENBACH (PH)

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX). São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018, 256 p. Resenha de: PERES, Elena Pajaro. Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado coração no Brasil da Primeira República. Projeto História, São Paulo, v.67, pp. 439-446, Jan.-Abr., 2020.

Em 1929 o imigrante italiano José Zarelli, depois de muito trabalhar em São Paulo como vendedor, comprou uma pequena propriedade rural nos arredores da cidade. Foi nesse pedaço de terra que resolveu recuperar uma antiga habilidade que trouxera da Europa: esculpir imagens de madeira inspiradas em figuras do mundo camponês. Com o tempo foi acrescentando a essas imagens atributos de matriz africana sobre os quais tomou conhecimento no Brasil. Essa modificação de sua arte levou Zarelli a ganhar fama como escultor feiticeiro. Suas criações, após os devidos rituais de consagração, passaram a ser consideradas objetos sagrados, ou, como seria mais apropriado denominá-las, ínqueces,

e começaram a integrar altares religiosos, tornando-se, o próprio artesão, um rezador.

Essa significativa história, narrada por Oswaldo Xidieh em artigo de 1944, foi retomada pela historiadora Cristina Wissenbach em seu livro Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), publicado em 2018 pela editora Intermeios, para nos introduzir de maneira exemplar no universo das interconexões entre o catolicismo de base popular, imbricado de práticas camponesas muitas vezes consideradas heréticas na Europa, as religiões de matrizes africanas e os saberes milenares dos povos indígenas. A partir daí, capítulo a capítulo, o leitor vai conhecendo como se deu historicamente esse entrecruzamento cultural recriador de formas de expressividade artística e religiosa.

Essa configuração cultural multifacetada vem sendo nas últimas décadas recuperada por estudos acadêmicos – como os da própria professora Wissenbach, do historiador Robert Slenes e do antropólogo estadunidense James Lorand Matory, entre outros – que têm demonstrado como elementos provenientes de diferentes tradições entrechocaram-se no Brasil, levando ao surgimento de novas e intrincadas práticas culturais.

O livro de Wissenbach traz à luz os quatro capítulos revisados da tese de doutoramento Ritos de Magia e Sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil (1890/1940), apresentada ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1997. No processo de revisão dos capítulos, a pesquisadora incorporou sua experiência como professora de História da África na Universidade de São Paulo, ampliando diálogos e abrindo suas reflexões para novos horizontes, como ela mesma afirmou em um dos eventos de lançamento ocorrido no Centro Cultural São Paulo. Seguindo os mais recentes debates na área, Wissenbach atualizou bibliografia e conceitos, enfatizando pontos antes apenas mencionados em sua tese. Dessa forma utilizou o conceito de pós-emancipação no lugar de pós-abolição, práticas religiosas no lugar de magia, vida cotidiana em vez de sobrevivência. Acrescentou ainda o conceito de errância, que antes não estava explicitado no título ou definido teoricamente.

As memórias, as crônicas, os relatos de viagem e de expedições foram algumas das fontes utilizadas na pesquisa. Contudo, foi na documentação criminal e nas notícias impressas nos jornais que a historiadora descobriu o elo para se aproximar das vivências concretas das populações que se encontravam em trânsito e que, num período conturbado da passagem do século, nos primeiros anos da República brasileira, experimentavam novas formas de estar no mundo. Ao revelar a luta do poder instituído para tentar disciplinar essas populações e suas manifestações culturais e religiosas, a documentação policial também revela, mesmo que parcialmente, as táticas utilizadas pelos mais pobres para se desvencilhar desse poder. A autora explica como esses registros, pelo seu próprio caráter fragmentário, permitem a compreensão de práticas que também se davam fragmentariamente, permeadas pelo improviso e pelo aproveitamento das brechas. Práticas que assumiam formas fugidías para garantir a permanência e liberdade de expressão em um meio dominado cada vez mais pelo pensamento racial e evolucionista.

Assim, dialogando com as fontes, tendo como fio teórico condutor de seu método o perspectivismo e a hermenêutica, que alerta para a historicidade do próprio conhecimento histórico, Wissenbach mergulha e faz o leitor mergulhar no mundo das religiosidades populares, um mundo que não se atrela ao poder oficial e desafia constantemente as religiões institucionalizadas.

No primeiro capítulo – Ritos e crenças de homens livres no pós-emancipação – a autora revela, a partir de uma extensa pesquisa bibliográfica e de fontes, como a população economicamente pobre criou padrões de organização de moradia, trabalho e convivência, colocando em circulação ideias, práticas e mercadorias nos momentos das festas religiosas, dos encontros e das feiras. Quando movimentamos as páginas, seguindo os rastros deixados no texto, podemos acompanhar a versatilidade desses grupos na busca de um melhor terreno para plantio e caça, no trabalho de construção e reconstrução da moradia, na decisão de abandonar os poucos bens materiais que não seriam úteis ou que não poderiam ser carregados durante a mudança de um território a outro. Práticas essas sempre vistas com reprovação pelos detentores das terras e do poder, que pretendiam aprisionar essas populações pelo trabalho, quando necessário, ou, quando eram vistas como dispensáveis, eliminá-las ou isolá-las em alguma área em que permanecessem segregadas.

O estudo mostra como esses grupos sociais criaram vínculos com a natureza, realizando todas as tarefas em seu tempo certo. Era na mata que encontravam parte importante de sua alimentação, ervas medicinais e seu mundo espiritual. Tudo o que era considerado sinal de atraso pelo pensamento modernizador que adveio com a República adquire uma outra roupagem quando se busca, como fez Wissenbach, uma aproximação compreensiva dos valores e meios de vida dessas populações. Eram grupos que viviam dispersos, mas evitavam o isolamento por meio de uma hierarquia social bem configurada em um mundo paralelo ao poder oficial e por ele incompreendido. Nesse grupo se destacam os africanos e afro-brasileiros a quem a autora dedicou grande parte do estudo publicado nesse livro.

Importantes discussões são apresentadas nesse primeiro capítulo, incorporando novas abordagens sobre as manifestações culturais especialmente dos povos provenientes da África centro-ocidental, que, segundo reforçam pesquisas atuais, foram os grupos majoritários trazidos ao Brasil no século XIX pelos traficantes de escravizados.

No segundo capítulo – Dissonâncias sociais da cidade moderna – vislumbra-se como as expressões de cultura e religiosidade presentes no interior do país começam a se reconfigurar a partir do movimento dessas populações em direção às áreas urbanas, promovendo a ressocialização das camadas populares em novos espaços. Discursos políticos, médicos e higienistas, que acompanharam e legitimaram a chamada modernidade, passaram a considerar as práticas religiosas desses grupos como sinais de incultura, atraso e ignorância. A história de Canudos e seu crescimento demográfico explosivo em torno das pregações do beato é recuperada pela autora como uma referência importante para se compreender processos semelhantes que ocorriam nas cidades brasileiras. Essas práticas começaram a ser cada vez mais notadas, anotadas e perseguidas. Nesse cenário aparecem novamente com destaque os contingentes de africanos e afro-brasileiros que, nas cidades conturbadas por um processo de urbanização abrupta, dividiram o espaço com imigrantes pobres de diferentes nacionalidades. Sabe-se que essa convivência foi muitas vezes tensa e conflituosa, mas, como esse e outros estudos demonstram, também foi marcada pelo compartilhamento de tradições.

No capítulo 3 – Religiosidade e magia nas primeiras décadas do século XX – a autora leva o leitor pelos meandros da escrita de cronistas e romancistas, que descreveram as práticas religiosas, especialmente aquelas que se davam nas casas de homens negros e mulheres negras. Essas descrições em sua maioria traziam toques de exotismo, demonstrando a tentativa de distanciamento dos autores em relação àquela população encantada por feitiços, magia e tudo aquilo que pertencia ao mundo do secreto e do oculto. As camadas remediadas e as mais ricas temiam aqueles “cultos misteriosos”, reservados aos iniciados, e preferiam se aproximar do espiritualismo de base francesa ou americana, mais atrelado à ciência e às supostas comprovações.

Nesse terceiro capítulo acompanha-se ainda a história de como o espiritismo se disseminou rapidamente também entre as camadas mais pobres da população, combinado com as crenças de ascendência europeia e às religiões afro-brasileiras.

O ritmo da narrativa se intensifica até atingir o capítulo 4 – Espaços sociais das crenças religiosas na urbanização de São Paulo – onde se vê como o discurso que representa o medo pela perda de controle sobre esses grupos espiritualizados foi muito forte em São Paulo entre 1890 e 1900, período em que a população da cidade cresceu em 268%. Esse medo acompanhou de perto a disseminação de práticas religiosas diversas por todo espaço urbano.

Particularmente nesse capítulo final pode ser feita uma ponte entre esse estudo e as mais recentes concepções dos estudos africanos, que demonstram como a incorporação de novas crenças e sua recriação era uma prática comum na África central. Pesquisas de historiadores africanistas como Linda Heywood e John Thornton apontam enfaticamente na direção de que novos elementos sempre foram apreendidos e transformados quando considerados benéficos ou úteis à cosmologia dos povos africanos. A convivência no Brasil com curandeiros, pitonisas e adivinhos provenientes das mais variadas nacionalidades, como demonstra Wissenbach, ampliou ainda mais essa prática. Essa “mistura”, da qual nos fala a autora, permeava o extrato social e cultural onde essas populações viviam, nas pequenas casas de cômodos, nos quintais coletivos, no compartilhamento de atividades informais. Aos poucos as práticas chamadas de curandeirismo irmanaram-se aos novos campos da ciência, como a homeopatia.

Na conclusão Wissenbach mostra como as práticas religiosas populares eram mais perseguidas e, ao mesmo tempo, mais temidas, quando eram empreitadas por homens negros, os chamados mestres cumbas ou feiticeiros. Foi contra eles que a repressão policial agiu de forma mais intensa até seu ponto máximo nos anos de 1930. Mesmo temidos, eram eles que lançavam uma fagulha de esperança para aqueles que não tinham a quem recorrer ou que não acreditavam em qualquer ajuda que pudesse vir do poder estabelecido. Da mesma forma, segmentos negros da população eram perseguidos quando fundavam agremiações religiosas, como igrejas reformadas, grêmios de ocultismo e centros espíritas.

Nos processos criminais, analisados pela historiadora, um ponto chamou sua atenção de forma impactante, a presentificação das narrativas a partir do final do século XIX. Desapareceram os detalhes da vida pregressa, da África ancestral, que podiam ser encontrados nos depoimentos de escravizados e libertos. A cidade em processo de modernização parecia reservar espaço apenas para o novo. Essa importante reflexão da autora nos leva a indagar se a memória de fato fora perdida ou começara a ser acobertada como tática de proteção num momento de perigo, em que as perseguições a tudo que remetesse à África haviam se intensificado.

E aqui podemos voltar ao início do livro, quando, citando Xidieh, Wissenbach ressalta que há um momento certo para a narração, que não é o momento da noite ou do dia, mas é o momento social em que elas se justificam e funcionam. É preciso concordar que essa pesquisa, que demorou um longo tempo para ser publicada, chegou num momento preciso de narração, num tempo necessário, permitindo a lembrança e o estudo crítico de práticas que fogem das imposições oficiais e se afirmam em sua diversidade, em profunda conexão com o contexto histórico das camadas populares, seus conflitos e compartilhamentos. Nesse sentido o livro atende a um público amplo, formado não apenas por historiadores, estudiosos das religiões, da história urbana e do cotidiano, mas também por todos os interessados nos assuntos relativos à diversidade, ao direito de expressão, às dissonâncias culturais, ao compartilhamento e tensão entre tradições. O trabalho de Cristina Wissenbach é profícuo em ampliar caminhos de pesquisa e discussão.

Elena Pajaro Peres – Doutora e mestre em História pela FFLCH-USP. Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Visiting Scholar no African American Studies Program da Boston University (2013-2014). É pesquisadora no grupo Trilhas e circuitos do riso no espaço público brasileiro (1880-1960)-DH-USP/CNPq.

Foucault: saber, verdade e política | Thiago Fortes Ribas

Professor do departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Thiago Fortes Ribas apresenta em seu livro uma reflexão derivada de sua tese doutoral, intitulada Saber, verdade e política no pensamento de Michel Foucault, concluída no ano de 2016 junto à Universidade Federal do Paraná, sob a orientação do Prof. Dr. André de Macedo Duarte. O problema abordado por Thiago Ribas em seu trabalho toca no cerne de um lugar comum que se constituiu a respeito dos textos de Foucault: trata-se da perspectiva que somente reconhece a emergência de uma concepção política específica em seus trabalhos desenvolvidos a partir de 1970, quando a ênfase à questão das relações de poder, e o exercício microfísico deste em determinadas instituições, vêm à tona em investigações elaboradas a partir do método genealógico – de alegada inspiração nietzscheana. Desse modo, nos trabalhos desenvolvidos por Foucault na década de 1960 – cuja tônica perfaz uma investigação dedicada à dimensão histórica que envolve a constituição dos saberes –, a política seria um tema pouco ou nada desenvolvido, relegada a ângulo obtuso no conjunto de suas preocupações ou, ainda, subjugada pela preferência a uma reflexão supostamente restrita a um âmbito epistemológico. Leia Mais

Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950-1974) | Lia Laranjeira

Nos últimos anos (ou mesmo décadas), diversos são os historiadores, artistas, cientistas sociais e juristas que vêm interrogando os limites de uma história oficial centrada unicamente na atuação da Frente de Libertação Moçambicana e no consequente acesso ao poder político e econômico de que, aparentemente, desfrutam os que comungam desta narrativa.655 Na literatura, nomes como João Paulo Borges Coelho e Ungulani Ba Ka Khosa (mas não só), ao incluírem em suas obras personagens e acontecimentos reais e fictícios, fontes históricas diversas e memórias de gente comum, tanto rediscutem a história oficial quanto oferecem um novo caminho interpretativo sobre a vasta experiência histórica moçambicana. Em Memórias Silenciadas (Khosa, 2013), por exemplo, o personagem Antônio resume o poder estabelecido no pós-independência a “um grande campo de tênis privado onde os pequenos donos se limitam a estender a rede a seu bel prazer em locais que acham seus, por direito adquirido nas matas de libertação. Um direito circunscrito à pequena elite” (Khosa, 2013, p. 101).

Na cena musical, destaca-se a atuação de figuras como o rapper Mano Azagaia, cuja canção As mentiras da verdade tece provocações acerca do passado recente ao entoar “Que a revolução não foi feita só com canções e vivas; Houve traição, tortura e versões escondidas”.656 Além desses, filmes como Virgem Margarida (2012), de Licínio Azevedo, rememoram uma das feridas mal cicatrizadas do pós-independência moçambicano: os campos de reeducação. No campo jurídico, não se pode esquecer da atuação do constitucionalista franco-moçambicano Gilles Gistac, assassinado em 2015 após indicar que não haveria impedimentos constitucionais para a governança nas províncias de forma autônoma ao governo central, conforme reivindicara o partido Renamo. Leia Mais

Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 | Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro

Em junho de 1917, em contexto de formação de uma cultura operária no Brasil, uma greve geral foi deflagrada, convocada e liderada principalmente por trabalhadores. O movimento paralisou, de início, a cidade de São Paulo, logo se espalhando para diversas cidades brasileiras e tornando-se, assim, o maior movimento paredista da história brasileira até aquele momento. Em 2017, no centenário da Greve, os historiadores e professores do curso de História da Universidade Federal do Paraná Clóvis Gruner e Luiz Carlos Ribeiro organizaram uma coletânea de textos escritos por diversos historiadores e sociólogos estudiosos de temas como os Mundos do Trabalho e os movimentos operários e anarquistas. Publicado em 2019 e subdividido em três partes, Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917 busca explorar a experiência, as lutas e as utopias pretéritas e posteriores à Greve de 1917.

A primeira parte do livro, intitulada “Greves”, é focada diretamente nos movimentos paredistas de julho e agosto de 1917. No capítulo inicial, Christina Lopreato parte da noção, antes consolidada na historiografia, a respeito do caráter espontâneo e explosivo do movimento para explorar justamente o contrário. Em trabalho de doutorado prévio à publicação do capítulo, a autora estudara o tema e o caráter especialmente anarquista dos movimentos, que, no lugar de espontâneos e sem organização, são demonstrados enquanto planejados e frutos do intenso trabalho de duas décadas de ação direta, trabalho de base e encorajamento de autonomia e de identidade de classe no movimento operário.

Além disso, em 1917 não havia partido ou sindicato para representar os interesses dos trabalhadores, que se mobilizaram em cerca de 100 mil nas ruas de São Paulo para reivindicar melhores condições. Nessa ocasião, o sapateiro José Ineguez Martinez morreu baleado em confronto com forças policiais. O que seguiu foi aquilo que a autora chamou de vida no movimento, o qual acompanhou o cortejo fúnebre do jovem e aproveitou o momento para reivindicar liberdade pelos grevistas presos e protestar contra a violência policial. Segundo Lopreato, demonstrar solidariedade significava aderir ao movimento; daí o título e subtítulo de seu capítulo, “A greve geral anarquista de 1917: militância anarquista e redes de solidariedade”. Por fim, a autora expõe a expulsão das principais lideranças estrangeiras de forma inconstitucional e explora o legado da Greve e as rupturas e continuidades nas estratégias de auto-organização, observadas até 2017.

Já em “Greve geral 1917: organização e luta operária em Curitiba”, Luiz Carlos Ribeiro analisa, a partir de fontes historiográficas, quantitativas e de periódicos da época, o movimento grevista em Curitiba. Com alinhamento teórico marxista, o autor trabalha com os conceitos de classe e de lutas sociais para expor as condições e as práticas dos trabalhadores naquele contexto, investigando a tensão entre as classes no conflito e chegando à conclusão de que a luta se fez na negociação de interesses.

O historiador expõe uma clara participação de diferentes setores das elites, seja por motivos de ordem positivista, para imbuir o espírito civilizatório nas classes pobres, ou porque temiam sua influência e auto-organização. Embora não se deva supervalorizar o papel dessas elites, deve-se ressaltar que as vozes conservadoras tiveram papel político importante nas reivindicações por liberdade de presos e deportados em 1917. Segundo Ribeiro, é uma armadilha dizer que um ou outro grupo liderou os movimentos paredistas e resumi-los a ele. No fim das contas, houve interferência da elite e, igualmente, autonomia dos setores operários – que escolhiam ora se opor, ora não, à participação dos primeiros, já que essa era também uma forma de obter conquistas. Assim, aos poucos, o autor demonstra o esgotamento dos espaços políticos do anarquismo, que deram lugar a propostas socialistas de organização centralizada e apoio na política, enquanto do outro lado o Estado acumulava cada vez mais prerrogativas de controle social. Paradoxalmente, ele argumenta, o anarquismo fora forte enquanto predominava o modelo liberal e individualista de governo. A crise do liberalismo, para Luiz Carlos Ribeiro, foi também a do anarquismo.

A segunda parte do livro tem como objetivo tratar das experiências de grupos específicos na Greve de 1917: as mulheres, a população negra, e as crianças. Em “Silenciosas ou insurgentes? Mulheres trabalhadoras no contexto da Greve de 1917 em Curitiba”, a historiadora Roseli Boschilia procura refletir acerca do silêncio das e sobre as mulheres trabalhadoras no contexto da Greve em Curitiba. No Brasil, a mão de obra feminina esteve presente nas fábricas desde a industrialização no século XIX, um período de escassez de força laboral que abriu espaço para mulheres no ambiente fabril. Para muitas delas, o trabalho era como uma fase transitória entre o fim da escolaridade e o início do casamento, ingressando nele por volta dos 14 anos de idade e saindo aos 24.

As trabalhadoras exerciam diversas funções, geralmente as que exigissem delicadeza e atenção, nas seções de embalagem e acabamento, porém recebiam a metade do salário dos homens. Utilizando como fonte histórica jornais do período, Boschilia afirma que são raros, mas não inexistentes, os vestígios sobre a participação ou ausência das mulheres durante a Greve, destacando a crônica de Gastão Faria, publicada no Diário da Tarde. Nela, o autor narra que as telefonistas não iriam aderir à Greve pois ganhavam muito pouco e se parassem de trabalhar passariam necessidades. Dentre as pautas defendidas pelo comando de greve estava a proibição do ingresso de moças com menos de 21 anos no mercado de trabalho, sendo essa uma clara estratégia de retirá-las desse espaço. A autora finaliza seu texto questionando se o comportamento de pouca aderência ao movimento grevista pelas mulheres não foi uma forma de resistência ao poder masculino, uma vez que suas pautas eram desfavoráveis a elas.

Em “Os trabalhadores têm cor: militância operária na Curitiba do pós-abolição”, as pesquisadoras Joseli Maria Nunes Mendonça e Pamela Beltramin Fabris procuram problematizar a História do Trabalho em Curitiba do final do século XIX e início do XX, abarcando a perspectiva de raça e das experiências da escravidão. Para isso, criticam a interpretação da História do Trabalho no Brasil feita aos moldes europeus, que minimiza e desconsidera a pluralidade de experiências de trabalho e militância vivenciadas em regiões além de São Paulo e por trabalhadores que fugiam ao padrão do homem adulto, branco, predominantemente imigrante, em ambiente fabril, que se organizava em sindicatos e manifestava suas demandas por meio de greves.

Assim, as autoras destacam a importância das sociedades mutualistas do século XIX, ligadas principalmente à luta dos trabalhadores negros, como a Sociedade Protetora dos Operários e o Clube 13 de Maio. Ao trazer à tona esse associativismo, que tinha como objetivo ressignificar a presença negra na cidade a partir de experiências e expectativas dos seus próprios membros, as autoras concluem que, apesar do ocultamento da cor nos registros e interpretações historiográficas a respeito do trabalho na Primeira República, essas organizações mostram que muitos trabalhadores em Curitiba tinham cor, e ela não era branca.

Já em “Lutas sociais, trabalho infantojuvenil e direitos (Brasil, 1889-1927)”, a historiadora e docente da Universidade do Estado de Santa Catarina, Silvia Maria Fávero Arend, busca tratar a respeito da conquista dos direitos sociais na área trabalhista pelas pessoas consideradas menores de idade. Sua análise, que abarca o início da República até o ano de 1917, é centrada na legislação federal do período e nos recenseamentos populacionais de 1920 e 1940.

A questão do trabalho infantojuvenil era pauta do movimento grevista de 1917, que tinha entre as suas demandas a proibição tanto do trabalho noturno para menores de 18 anos, como do trabalho nas fábricas e oficinas para os/as menores de 14 anos. Assim, a autora faz um histórico das legislações que buscavam proteger e regulamentar o trabalho dos indivíduos menores de idade, e conclui que a legislação brasileira procurou garantir minimamente os direitos sociais para eles, porém encontrou entraves na cultura autoritária dos patrões, nas condições de pobreza dos responsáveis e na ausência de instituições estatais que aplicassem a lei.

A última parte do livro contém contribuições de quatro autores que enfocam em seus escritos principalmente as utopias e os ideais anarquistas, disseminados através de escritos e experiências. Em “Folletos anarquistas en papel veneciano”, o sociólogo argentino Christian Ferrer pauta-se em um conjunto de 14 publicações, dentre elas impressos espanhóis e argentinos de 1895 e 1896 agregados em uma brochura. Ferrer narra o conteúdo de tais livretos de forma descontínua, dividindo seu trabalho em seções. Essas expõem, para além dos ideais libertários percebidos nos escritos em questão, as relações políticas e sociais entre os escritores e seus jornais, os autores expoentes do anarquismo e suas trajetórias de vida, bem como destacam o contexto de escrita, editoração e a circulação, inclusive internacional, das obras e dos autores analisados por ele.

Ademais de levantar as ideias anarquistas presentes nesses materiais, também são apontadas as características da escrita anarquista, como o uso de pseudônimos pelos contribuintes e a importância dos impressos em seu ideal revolucionário. Ao dar enfoque ao escrito Um Episódio de Amor na Colônia Socialista Cecília, de Giovanni Rossi, que foi publicado na Argentina com cerca de 3 mil cópias, o autor expõe as tensões e contraposições entre os ideais libertários concernentes ao amor e a experiência empírica ocorrida na Colônia Cecília. Além disso, aponta para a recuperação da memória dessas experiências através de canções, peças de teatro, documentários e filmes. Aborda-se a obra memorialística de 1979 de Zélia Gattai e de seu marido Jorge Amado, autor do romance Dona Flor e seus dois maridos, que, de acordo com Ferrer, foi baseado na experiência da família de colonos anarquistas de sua esposa.

Já em “Cenas do agir anárquico”, o sociólogo Nildo Avelino defende, através de uma análise comparativa entre as greves de 1917 e 1918 e os movimentos de 2013 no Brasil, que há uma regularidade na atuação dos sujeitos desses confrontos. A performance de todos eles contribui com a ação coletiva por meio da horizontalidade, da organização anti-hierárquica por redes ou ligas e da ação direta, a última sendo um traço característico do “agir anárquico” dessas três insurreições. Baseando-se em anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon, Émile Pouget, Piotr Alexeyevich Kropotkin e Fernand Pelloutier, o autor compreende a horizontalidade empregada nesses movimentos como alicerçada em um pensamento anarquista para se evitar a concentração do poder político. De maneira análoga, entende que a negação do princípio da legalidade – materializada pela rejeição da representação na Greve de 1917 e pela aversão às instituições nas manifestações de 2013 – foi o elemento original desses fenômenos históricos. Esses acontecimentos, segundo o autor, levaram à transformação da subjetividade desses indivíduos e de sua capacidade política, proporcionando a eles uma energia revolucionária.

Em “Um Snob anarquista: O maximalismo libertário de Lima Barreto” o historiador Clóvis Gruner aborda o modo como as críticas à República se desenvolveram para além da imprensa libertária. Isso porque caracteriza a produção ficcional de Barreto como uma literatura militante que nutre aproximações com os ideais do movimento anarquista, uma vez que estabelece críticas em sua obra à burguesia, ao Estado republicano e às desigualdades e violências perpetradas por ele. Gruner demonstra que a aproximação de Lima Barreto com as ideias libertárias não se estende à atuação militante, mas centra-se na produção intelectual, sendo esta entendida também como engajada, pois apresenta um cenário de denúncia indignada ao seu presente.

Entretanto, ele aponta que tal postura não é meramente uma resignação do autor frente à sua contemporaneidade, mas uma crítica à pretensa modernidade, que mascara uma tradição política autoritária e excludente. Gruner demonstra como Barreto compreende os acontecimentos do seu período, inclusive as greves de 1917 e 1918, por meio de críticas ao poder estatal, à polícia e à imprensa, buscando, assim, construir uma sociedade mais igualitária ao se basear na intervenção da realidade que sua escrita poderia produzir.

Em “Utopía, técnica e historia: tiempo y espacio de la división social del trabajo”, o sociólogo chileno Jorge Pavez Ojeda faz uma crítica à modernidade e às divisões do trabalho em diálogo com a teoria marxista. Quebrando as linhas temporais e espaciais, o autor parte da realidade material do Chile para expandir a reflexão a respeito da experiência operária pretérita, presente e futura, indicando como principal desafio para os movimentos que buscam a unidade, caso da Greve geral, a existência de um lumpemproletariado. Esse, ele explica, seria caracterizado por um forte apego às afinidades, em lugar das outrora importantes identidades. Em outras palavras, são pessoas integrantes da classe proletária que não se veem enquanto parte de um sistema estrutural e que, pelo contrário, pautam suas ações pelos processos políticos. Por isso, citando Fanon, aponta que sua existência contribui para a auto-organização social. De forma análoga, elas podem, como fizeram no Chile, participar de movimentos fura-greve e contribuir para a desestruturação dos movimentos militantes.

Antes de chegar a isso, Ojeda traça um longo contexto do capitalismo no Chile e estende o padrão de atuação para outras regiões colonizadas. Partindo de diferentes utopias, encontra um elemento comum: um movimento teleológico da história orientado a um futuro. Essa ideia foi questionada pelo citado Walter Benjamin, para quem o progresso histórico só deixava ruínas para trás e cuja concepção de história universal do progresso é essencialmente de uma história de catástrofes. Para o chileno, enquanto a espacialidade utópica orientou teleologicamente o processo histórico moderno, é a dimensão temporal da utopia, chamada de ucronia, que constitui o lugar onde pode-se pensar a emancipação, agora como redenção à razão instrumental moderna.

Tendo em vista a pluralidade das discussões, abordagens e visões da Greve de 1917, é evidente que a obra resenhada é de alto valor epistemológico não apenas para a História, mas para as Ciências Humanas em geral. Ao mobilizar discussões teóricas importantes e distintas entre si, o volume consegue ainda sim ser coeso e intertextual no que tange à Greve de 1917, à sua historiografia, à teoria e ao trabalho com fontes. As contribuições abordam esse fenômeno histórico apresentando recortes, interpretações e sujeitos distintos, além de ampliarem as possibilidades de trabalho com o tema. Por agregar ao seu conjunto textos de historiadores e sociólogos, alguns deles estrangeiros, a obra apresenta novas abordagens e análises, ao mesmo tempo em que estabelece diálogos com a produção de países que passaram e passam por processos históricos semelhantes aos brasileiros, o que a enriquece ainda mais. Em suma, para além da contribuição elucidada acima, os debates – que englobam estudos comparativos com outras temporalidades e movimentos insurrecionais – enriquecem o campo de pesquisa dos movimentos paredistas e as amplas possibilidades de explorá-lo.

Referência

GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. 194p.

Cassiana Sare Maciel – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3210157518477759.

Kauana Silva de Rezende – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2018 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2149264497539586.

Mariana Mehl Gralak – Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná. Atuou como bolsista do grupo PET História UFPR de 2016 a 2020. E-mail para contato: [email protected] . Endereço para o Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1555033953635717


GRUNER, Clóvis; RIBEIRO, Luiz Carlos (Org.). Utopias e experiências operárias: ecos da greve de 1917. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MACIEL, Cassiana Sare; REZENDE, Kauana Silva de; GRALAK, Mariana Mehl. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.2, p.104-114, 2019. Acessar publicação original [DR]

Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos | Marcos Napolitano

Os estudos mais recentes do historiador Marcos Napolitano, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo (USP), têm se tornado indispensáveis para aqueles que pretendem alçar voo em pesquisas sobre o processo de militarização da ditadura brasileira. Nos últimos anos, o autor vem se dedicando a um balanço histórico do regime militar no Brasil e aprofundando o debate sobre os deslocamentos de sentido das diferentes memórias produzidas e cultivadas sobre o período autoritário.[2] Tal esforço ficou evidente com o livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, lançado em 2014, exatamente 50 anos após o golpe de 1964.[3]

No entanto, Coração Civil vem coroar anos do trabalho que o autor vem realizando, pelo menos desde o doutorado, no campo da cultura de oposição à ditadura por meio da MPB, do cinema e do teatro. Nesse sentido, o livro retoma questões levantadas pelo próprio Napolitano na sua tese, publicada em livro em 2001,[4] e se une ao Brasilidade Revolucionária do sociólogo Marcelo Ridenti,[5] no intento de elaborar reflexões relevantes para a compreensão da resistência cultural no Brasil.

Logo de início, Napolitano busca reposicionar a cultura no campo de oposição e resistência ao regime militar brasileiro, principalmente após o AI-5, quando ela parece simplesmente ser colocada para escanteio. Assim, o autor se propõe a identificar o quanto os dilemas vividos no seio das diferentes oposições culturais traduziam as contradições e desafios da própria resistência política. Para isso, são apresentados quatro grandes grupos de atores na arena político-cultural: os liberais, os comunistas do PCB, os grupos contraculturais e a “nova esquerda”, surgida nos anos 1970. A partir da separação didática desses quatro grupos, Napolitano procura apontar convergências e divergências, que ajudem a explicar porque prevaleceu na memória social uma imagem de resistência cultural de consenso entre as mais diferentes tendências artísticas, sob uma percepção pouco aberta às clivagens da vida cultural que pulsava no coração civil das oposições ao regime.

Valendo-se das tipificações apresentadas por Roderick Kedward[6] para caracterizar as ações e movimentos de resistência, Napolitano procura entender quais valores marcaram a resistência ao regime militar brasileiro, qual o papel dos mediadores e das instituições na afirmação das resistências ao regime e quais os resultados, sobretudo no plano cultural e estético, do culto à inversão de valores defendidos pela direita militar encastelada no Estado pós1964. (p. 32)

Com esse aporte teórico, o autor procura complexificar o debate sobre as dinâmicas de apoio e resistência à ditadura, que nos últimos anos acabaram gastando muita tinta com um binarismo, que por vezes, não serve à análise histórica. Desta forma, a organização dos capítulos segue uma lógica cronológica, mas também teórica, que pretende dar conta das várias facetas da vida cultural sob a tutela autoritária, assumindo um caráter ensaístico com vistas a suscitar menos conclusões e mais reflexões.

O livro está dividido em nove capítulos: o primeiro apresenta os diferentes atores culturais e suas estratégias elaboradas ao longo do regime; o segundo detalha as ações e debates artístico-culturais da oposição, especialmente o campo teatral, formuladas entre o golpe e o AI-5; o terceiro aponta os impasses de cada grande grupo de oposição no baile das cinco artes (com destaque para o cinema, a música popular e o teatro); o quarto discute as lutas culturais entre os comunistas e os contraculturais a partir da ideia de vazio cultural que surge no início dos anos 1970; o quinto problematiza as políticas culturais de oposição assimiladas pelo Estado e o jogo de acomodações costurado pelos comunistas no contexto de abertura do regime; o sexto analisa o debate sobre as “patrulhas ideológicas” que ganhou capas e manchetes de jornais, revendo o papel do artista-intelectual e esgaçando qualquer possibilidade de aproximação entre a velha e a nova esquerda já no contexto da luta pela anistia e da “invenção de honras e futuros”;[7] o sétimo se debruça sobre as novas perspectivas culturais e políticas propostas pela “nova esquerda” sintetizada na proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, ao final dos anos 1970; o oitavo faz um balanço dos diferentes caminhos que a cultura segue durante o processo de redemocratização e por fim, o nono dedica um precioso espaço de reflexão para as “batalhas de memória” no seio da resistência cultural.

Para a historiografia da cultura brasileira que tem se estabelecido nos últimos dez anos, talvez os três primeiros capítulos não suscitem grandes questões, embora o exame do conceito de resistência seja fundamental para o início de qualquer debate no campo das oposições ao regime militar brasileiro. Ainda assim, a análise dos diferentes níveis de consciência em torno da ideia de resistência político-cultural, desde posições ideológicas estratégicas e doutrinárias até posições táticas e conjunturais, continuam tendo o seu valor na discussão a respeito da complexidade de ações e posições assumidas pelos resistentes. As lutas culturais entre comunistas e contraculturais, analisadas no quarto capítulo, ganha ainda mais corpo com o questionamento da cultura nacional-popular pela vanguarda e pela cultura popular da “nova esquerda”, demonstrando o quanto o processo de esfacelamento do nacional-popular se confunde com a própria história da resistência cultural no Brasil.

Por outro lado, os grandes problemas se situam a partir do quinto capítulo quando o debate a respeito das tensões e negociações do regime e o campo cultural, envolve o Estado, o mercado e os produtores culturais de esquerda, juntos em nome da necessidade da defesa de uma “cultura nacional” e da valorização do “produto brasileiro” (p. 234). Nesse campo minado para o debate em que os extremos (controle e cooptação) aparecem como os atalhos muito tentadores, Napolitano, mais uma vez, opta por conferir maior complexidade a esse debate indagando por que a pretensa “hegemonia” da cultura de oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesia e da classe média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a ditadura”. (p. 235)

Questões como essa não são fáceis de serem respondidas e, nem mesmo o próprio autor busca respondê-las de forma definitiva, mas aponta caminhos interessantes para se pensar saídas para esses problemas ao analisar com mais vagar os interesses de cada grupo e os seus impasses, sem perder de vista o fato de que, apesar da especificidade das relações do regime brasileiro e a cultura de oposição, ainda se vivia sob o arbítrio e o terrorismo de Estado.

O quadro de confusão sintetizado pela polêmica das “patrulhas ideológicas” abordada no sexto capítulo, lança luzes sobre o quanto o campo cultural ainda estava associado ao campo político no contexto de abertura e de crise profunda da arte engajada e do frentismo como estratégia de oposição ao regime. Enquanto apontavam-se patrulheiros e assumiam-se patrulhados, o mercado ganhava cada vez mais força, tanto à direita quanto à esquerda. Talvez a reflexão mais instigante – e necessária – de todo o livro esteja exatamente na identificação das políticas culturais da “nova esquerda”. Muitas lacunas permanecem. Napolitano consegue traçar em linhas gerais as diferenças entre a proposta de cultura popular da “nova esquerda” e a velha estratégia de frentismo cultural da “velha esquerda” e as disputas entre os intelectuais que acabam migrando do PCB para o PT nascente. No entanto, existe a necessidade de reflexões mais aprofundadas sobre o processo de formulação da chamada cultura popular da  “nova esquerda”, que não se inicia nos anos 1970, mas já corre nas margens do cotidiano antes mesmo do golpe de 1964.

Por fim, o debate sobre a memória da resistência cultural ainda muito impregnado de certa hegemonia aliancista, aglutinando liberais e comunistas sob uma mesma resistência democrática, continua a suscitar reflexões sobre a real existência de uma hegemonia cultural de esquerda, bem como os seus limites e seus legados. Se não responde essas questões diretamente, Marcos Napolitano oferece um importante ponto de partida para quem deseja entrar no campo de batalha das memórias de resistência cultural, a partir da desmistificação de algumas percepções cristalizadas na memória social do período.

Napolitano questiona a ideia de que a arte engajada tinha uma hegemonia limitada a pequenos grupos de consumo, restrita a classe média brasileira, historicamente conservadora. O autor não entende que a dimensão quantitativa seja suficiente para pensar o alcance da cultura de esquerda e rejeita certa concepção que parece confundir maioria com hegemonia, sem atentar para o fato de que as bases sociais radicalmente democráticas não permitiram que a revolução cantada nas músicas ganhasse as ruas.

O autor também rejeita a ideia de que a massificação da cultura, via mercado, seja responsável por um suposto esvaziamento da crítica ao regime e que os artistas de esquerda possam a ser enquadrados em meros produtos de entretenimento a partir dos anos 1970. Napolitano prefere apostar nas complexas interações entre a produção cultural de esquerda, mercado e militância para evitar que se esqueça da dinâmica dos militares em busca de uma classe média crítica ao regime e o maniqueísmo que resiste em considerar a televisão, por exemplo, como espaço exclusivo de alienação e transmissão de lixo cultural.

Napolitano também relativiza a ideia de que o regime autoritário brasileiro tenha sido capaz de interromper os batimentos do coração civil da vida cultural. Em que pese a força do tripé repressivo, o Estado militarizado também buscou desenvolver uma política cultural proativa, aproximando-se e afastando-se dos artistas de esquerda. O autor, principalmente no quinto capítulo, demonstra como o mecenato oficial e a repressão conviveram de maneira tensa e contraditória, mobilizando diferentes grupos e interesses dos militares, dos empresários liberais e dos artistas de esquerda.

Enfim, Napolitano procura reconciliar uma dicotomia, há muito difundida e adotada ainda nos debates historiográficos, que opõe o nacional-popular e a vanguarda cosmopolita como inimigos eternos. O autor consegue demarcar de forma brilhante um campo comum de debate entre as duas correntes, para além das visões opostas sobre o papel do intelectual e da arte. Napolitano conclama os historiadores a adentrarem por um portal de mistérios ainda desconhecido das relações entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira, deixando de lado  as acusações mútuas e as simplificações elaboradas por ambas as correntes, há, sem dúvida, um tesouro perdido a ser encontrado.

Porém, ainda há mais um tesouro por encontrar. A memória da nova esquerda ainda carece de um mapa mais detalhado que aponte para a origem das suas derrotas. Talvez o processo que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 sirva como um bom estímulo ao evidenciar as consequências das estratégias de acomodação adotadas pelos governos petistas e a combinação explosiva entre uma crise econômica, a ascensão rápida e marcante das direitas, a campanha anticorrupção da Operação Lava-jato, o declínio do projeto petista/lulista, abandonado pelas elites econômicas que o haviam apoiado, além da manipulação das informações orquestrada pela grande mídia.[8] Por ora, devemos celebrar a importância do trabalho de Marcos Napolitano ao pavimentar caminhos já percorridos até aqui e apontar belíssimos horizontes de pesquisa. Coração Civil preenche com maestria a necessidade de um grande trabalho sobre a resistência cultural ao regime militar brasileiro. Cabe aos próximos estudos, trabalhar para que esse coração continue batendo.

Notas

2. Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

3. NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

4. NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp. 2001.

5. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

6. KEDWARD, Roderik. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”. In: GUILLON, Jean Marie et LABORIE, Pierre (eds.). Memoire et Historie: La Résistance. Toulouse: Éditions Privat, 1995, pp. 109-120.

7. ROLLEMBERG, Denise. “História, memória e verdade: em busca do universo dos homens”. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson Luís de Almeida; TELES, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 7.

8. Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília A.N.. (Org.). O Brasil Republicano 5. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, v., p. 415-445.

Mathews Nunes Mathias1 –  Graduando em Licenciatura em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected]


NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos. São Paulo: Intermeios, 2017. Resenha de: MATHIAS, Mathews Nunes. Resistência cultural sob arbítrio: a busca por um tesouro perdido? Cantareira. Niterói, n.30, p.145-149, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos – JUNQUEIRA (AN)

JUNQUEIRA, Mary Anne. Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos. São Paulo: Intermeios, 2015.  Resenha de: SANTOS JÚNIOR, Valdir Donizete dos. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, p. 369-375, jul. 2018.

Em tempos de globalização, quando, com raríssimas exceções, as mais diversas partes do mundo, das mais cosmopolitas às mais recônditas, se veem conectadas e interligadas pelas tecnologias de ponta nas comunicações e nos transportes, a primeira metade do século XIX apresenta-se como uma época ambígua: tão distante e, ao mesmo tempo, tão próxima de nós, de nossas vivências, do que somos e do que pensamos.

Distante, pois a correspondência epistolar, os diários manus­critos e as longas viagens a vapor parecem estar há anos-luz das comunicações informatizadas, dos aparelhos eletrônicos de última geração e das rápidas viagens aéreas que cortam os céus e mobilizam pessoas em todos os continentes. Próxima, uma vez que o período entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do século XIX marca o advento de um momento histórico do qual ainda, de certa forma, fazemos parte. Durante esses anos, as então recentes inovações da indústria, especialmente o advento da energia a vapor, facilitaram o trânsito em águas até então desconhecidas pelo Oci­dente e encurtaram as distâncias entre as várias partes do planeta.

A tais transformações técnicas somava-se o racionalismo ilustrado tão exaltado pelo liberalismo do século XIX, que buscou esqua-drinhar, classificar e catalogar tudo o que de novo fosse encontrado pelas potências ocidentais, construindo um conjunto de saberes que ditava hierarquias e incitava desejos imperiais. Tratava-se de um novo capítulo – um dos mais importantes – do processo de interligação de toda a superfície do globo terrestre, que se iniciara com as navegações ibéricas do século XV e que no século XIX vivenciava seu auge.

É sobre esse contexto de intensas transformações econô-micas, sociais, culturais, políticas e tecnológicas que evidenciavam o avanço do capitalismo e da modernidade, ainda marcadamente ocidentais e, em grande medida europeus, que se debruça Velas ao mar: U.S. Exploring Expedition (1838-1842), a viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos, o instigante e fundamental trabalho da historiadora brasileira Mary Anne Junqueira. Resultado de sua Tese de Livre-Docência em História dos Estados Unidos, defendida em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, esse livro apresenta ao público brasileiro, alicerçando-se em sólida pesquisa acadêmica, a U.S. Exploring Expedition, primeira viagem científica de circum- -navegação do globo promovida pelos Estados Unidos. Executada pela Marinha norte-americana (U.S. Navy) entre 1838 e 1842, a missão foi comandada pelo genioso e polêmico capitão Charles Wilkes (1798-1877), autor dos cinco volumes da narrativa de viagem que serve como fio condutor do trabalho.

Trilhando as intersecções entre o mundo das viagens, a dis­cussão científica e os interesses geopolíticos em jogo na primeira metade do Oitocentos, Velas ao mar apresenta, de início, uma dupla importância ao pesquisador dedicado à História das Américas, espe­cialmente aos que se debruçam sobre o século XIX, qual seja, sua densa reflexão teórico-metodológica e sua originalidade temática.

Acerca do primeiro aspecto, Junqueira, estudiosa de temáticas e autores da chamada teoria pós-colonial, dialoga com referências importantes dessa seara, como Dipesh Chacrabarty, Mary Louise Pratt e o fundamental Edward Said. Discute com Chacrabarty, por exemplo, a necessidade de tirar a Europa do “centro” das análises   acadêmicas; com Pratt, a existência de trocas, mesmo que assimé­tricas, entre colonizadores e colonizados nas chamadas “zonas de contato”; e com Said, a construção de saberes e conhecimentos como fatores de afirmação e dominação imperial. Merece destaque especial sua leitura do historiador argentino radicado nos Estados Unidos, também interlocutor da teoria pós-colonial, Ricardo Salvatore, referência básica que se evidencia nas linhas e entrelinhas dos três primeiros capítulos de Velas ao mar. Discutindo a constituição de “lugares de saber”, Junqueira defende, acompanhando Salvatore, a existência de uma tensão latente entre a circulação transnacional de conhecimentos científicos, intelectuais ou técnicos e o processo de afirmação dos Estados nacionais no século XIX. Dito de outra maneira, a perspectiva transnacional, atualmente em voga na histo-riografia, nem sempre supera, mas frequentemente convive com o paradigma nacional.

Ainda em termos teórico-metodológicos, a autora reserva o quarto capítulo de seu trabalho exclusivamente a uma reflexão sobre a utilização dos relatos de viagem como fonte para o historiador. Para além de um mero balanço historiográfico, Junqueira aponta para a variedade desses textos e alerta para os cuidados que o pesqui-sador deve ter ao trabalhar com esse material. De acordo com a estudiosa, é preciso estar atento ao local de onde fala o viajante, ao seu universo cultural, ao período em que escreveu seu texto em relação ao período em que o publicou, à forma que escolheu para elaborá-lo (narrativa, carta, memória, diário etc.) e ao público que buscou cativar. Além dessas indicações metodológicas, a autora trava diálogo com a crítica literária, concebendo uma instigante reflexão sobre os relatos de viagem como um “gênero híbrido”. Partindo dessa premissa, entende esse documento como sendo essencialmente múltiplo, capaz de ser lido de distintas maneiras por pessoas e em tempos diversos, e cujas vozes, estilos e formas evidenciam grande polissemia.

A respeito de sua originalidade temática, Velas ao mar des­taca-se em alguns aspectos. Primeiramente, a U.S. Exploring Expe­dition, curiosamente, não é, como destaca a autora, a despeito de sua importância na História dos Estados Unidos, uma expedição que tenha sido alvo de maciços estudos, especialmente de pesquisas acadêmicas de fôlego. Velas ao mar é, portanto, o primeiro trabalho sobre essa desconhecida empreitada nos marcos da investigação historiográfica brasileira1.

Em termos estruturais, o livro de Mary Anne Junqueira é composto por duas partes. Os três capítulos que formam a primeira seção do trabalho (“Em nome da ciência: para compreender a U.S. Exploring Expedition”) preparam o terreno para a análise propria­mente dita da fonte. Inicialmente, insere a expedição comandada por Charles Wilkes em um contexto mais amplo das viagens de circum-navegação levadas a cabo por diversos países entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do XIX. Com o aprimoramento das técnicas de navegação e a crescente importância do Oceano Pacífico e dos grandes contingentes populacionais asiáticos para o comércio internacional, conhecer e mapear os mares era de suma importância para a obtenção de vantagens econômicas e geopolíticas. Nesse sentido, os Estados Unidos colocavam-se, ao se lançarem nessa empresa, em compasso e, ao mesmo tempo, em competição com países como a Inglaterra, a França e a também emergente Rússia, como pretendentes ao poder que o conhecimento sobre o mundo poderia propiciar.  Junqueira discute ainda, nos dois capítulos seguintes, dialo­gando com a História das Ciências e dos saberes científicos, como a expedição se circunscreveu em um quadro mais geral de definição de padrões internacionais acerca da navegação no globo terrestre. Nesse sentido, a autora nos mostra, seguindo Salvatore, que, na ten­são entre a circulação transnacional e os interesses especificamente nacionais, uma vasta gama de conhecimentos, como as longitudes da Terra, as coordenadas geográficas e o mapeamento náutico, entendidos atualmente por muitos como dados puramente técnicos, foram fruto de intensa disputa geopolítica, da qual os norte-ameri­canos se mostravam bastante propensos a participar. Constituiu-se, dessa maneira, nos marcos da primeira metade do século XIX, um quadro em que os Estados Unidos – que buscavam seu lugar no mundo – estabeleceram uma relação ambígua em relação à Europa, oscilando entre a admiração e a concorrência.

A seção final do trabalho (Cultura imperial: as Américas na narrativa de viagem de U.S. Exploring Expedition), composta por quatro capítulos, debruça-se mais especificamente sobre o mundo dos relatos de viagem: refletindo teórica e metodologicamente sobre esse tipo de fonte (capítulo 4), analisando de maneira mais detida a narrativa escrita pelo capitão da U.S. Exploring Expedition, Charles Wilkes, (capítulos 5 e 6) e cotejando, ao lado deste, relatos deixados por dois outros membros da tripulação da expedição, o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds (capítulo 7).

Sobre os cinco volumes da narrativa de Wilkes, a historiadora destaca sua inserção em um conjunto maior de textos que formam o relato oficial da viagem, composto originalmente por vinte e três tomos que versam sobre assuntos diversos, como etnologia, filologia, meteorologia, botânica, hidrografia, os aspectos mais diversos da zoologia e a temática das “raças do homem”. Junqueira ressalta os embates e as tensões expostas no processo de escrita desse docu­mento oficial, já que por seu caráter polêmico e por ter sido acusado de cometer diversos excessos ao longo da viagem, Charles Wilkes não era considerado por muitos a pessoa mais indicada para esse encargo. Como se evidencia pela leitura do trabalho, não somente o capitão foi o autor da descrição da viagem, como também a usou para se defender de seus críticos.

Velas ao mar reserva um de seus capítulos para uma análise sobre como Wilkes descreveu as Américas. Para tanto, a autora realiza um instigante debate sobre a questão da raça no relato e principalmente sobre a maneira como o capitão norte-americano concebia a ideia de “raça anglo-saxônica”. Inserida em uma reflexão alicerçada em uma bibliografia em língua inglesa especializada no tema, Junqueira discute a construção de uma retórica que concebe a superioridade civilizacional desse grupo formado por britânicos e norte-americanos em relação aos demais povos do planeta. Balizado por esse discurso, Wilkes afirmava a inferioridade dos povos que na América haviam sido colonizados por espanhóis e portugueses. O capitão não se utilizava para se referir a estes últimos, como era de se esperar, de expressões relacionadas à ideia de “latinidade”, como América Latina ou raças latinas, pois se o “anglo-saxonismo” da América do Norte já estava consolidado na época da expedição, o mesmo não se pode dizer da reinvindicação da “latinidade” por parte dos ibero-americanos, que somente iria se estabelecer de fato na retórica do continente a partir da década de 1850.  Mary Anne Junqueira encerra seu trabalho analisando, ao lado das narrativas de Wilkes, outros dois relatos produzidos por membros da expedição do U.S. Exploring Expedition: o marinheiro Charles Erskine e o aspirante a oficial William Reynolds. Para além de considerações sobre as relações pessoais e hierárquicas, bem como os costumes e as práticas cotidianas de tais viagens, é possível afirmar que a principal contribuição desse capítulo para o conjunto do trabalho seja a constatação de que a cultura imperial presente nas ideias norte-americanas já na primeira metade do século XIX não era privilégio de suas elites, mas era compartilhada pelas diversas classes sociais. A despeito das desavenças que esses dois outros personagens pudessem ter tido com Wilkes durante a viagem, não divergiam de seu capitão em um aspecto: a concepção da superioridade dos anglo-saxões em relação aos demais povos do continente americano.

Finalmente, é preciso mais uma vez destacar que Velas ao mar representa uma importante contribuição não somente para aqueles que estudam os relatos de viagem e a história das Américas no século XIX, mas para todos que desejam ter acesso a um trabalho de pesquisa sólida e reflexão acadêmica densa. Enfim, Mary Anne Junqueira oferece novamente elementos para o conhecimento da História dos Estados Unidos no Brasil, demonstrando que, já em seu processo de formação nacional na primeira metade do Oitocentos, os norte-americanos ambicionavam um lugar de destaque entre as nações mais poderosas do mundo e enunciavam precocemente uma retórica imperial que, como se sabe, tem justificado, desde meados do século XIX, a presença dos Estados Unidos em diversas regiões do globo, não necessariamente de modo cordial e pacífico.374  Valdir Donizete dos Santos Junior .

Valdir Donizete dos Santos Junior  – Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (Campus Jacareí) e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: [email protected].

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) | Alain El Youssef

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) é resultado da dissertação de mestrado de Alain El Youssef, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. Na obra, o autor analisa como a temática do tráfico negreiro foi abordada nos periódicos do Rio de Janeiro desde o ano de 1822, marco da proclamação da independência do Brasil, até a década de 1850, quando houve a aprovação da Lei Eusébio de Queirós e o tráfico no Império brasileiro foi legalmente abolido. Ao eleger o tráfico negreiro e a escravidão nos periódicos como seu objeto de estudo, Youssef se contrapõe a autores da historiografia brasileira que postularam a ausência de debates relativos a esses temas na imprensa do Rio de Janeiro até a década de 1870 [1]. A obra é, portanto, historiograficamente, uma afirmação desta presença.

Além de constatar essa existência, o autor procura demonstrar como diferentes grupos políticos se utilizaram da imprensa, desde o Primeiro Reinado, como estratégia e instrumento para a formação de uma “opinião pública” sobre questões, entre outras matérias, relativas ao fim do tráfico negreiro para o Império do Brasil. Segundo Youssef, essa estratégia tinha como intuito “preparar o terreno” para a discussão pública de determinados temas que estavam ou entrariam em voga no parlamento imperial. Por outro lado, o autor busca evidenciar como esses mesmos grupos políticos recorriam ao argumento da “opinião pública” para legitimar suas pautas.

Neste sentido, são importantes para a construção do argumento de Youssef as categorias de espaço público e opinião pública, adotadas a partir das perspectivas de François-Xavier Guerra [2] e Marco Morel [3]. Aqui, a imprensa é vista como um espaço público na medida em que se constituía como um lugar no qual ocorriam interações de diversas naturezas entre agentes históricos. Por sua vez, a opinião pública é “tratada como um conceito que os coevos dos séculos XVIII e XIX utilizavam para legitimar suas práticas políticas, principalmente aquelas que visavam influir a administração pública” (p. 30).

Embora a imprensa não seja apresentada na obra enquanto uma espécie de partido propriamente dito, menos ainda nos termos empregados no século XXI, Youssef procura chamar a atenção dos leitores para a importância que os periódicos, muito dos quais explicitamente partidários, tiveram na propagação dos ideais de moderados, exaltados e restauradores, luzias e saquaremas, liberais e conservadores, na complexa conjuntura política imperial. No que se refere ao tráfico negreiro em específico, o autor procura demonstrar como a imprensa teve um papel de suma importância na consolidação da política do contrabando negreiro no Brasil, empreendida pelos conservadores.

Segundo o autor, com o avanço do regresso, os conservadores passaram a fazer uma intensa campanha de defesa da reabertura do comércio negreiro em periódicos, tanto apresentando as vantagens econômicas da continuidade do negócio como publicizando as propostas de reabertura do tráfico transatlântico apresentadas ao parlamento brasileiro. Assim, para Youssef, a imprensa funcionou como uma espécie de elo de comunicação entre os políticos e proprietários de escravos interessados na continuidade do comércio negreiro, dando uma poderosa contribuição ao fortalecimento do contrabando e, consequentemente, ao aumento das cifras relacionadas a essa atividade.

Sobre a política do contrabando negreiro, é explícito o diálogo de Alain El Youssef com a leitura feita sobre o fim do tráfico por Tâmis Parron em suas produções recentes. Em certa medida, o livro de Youssef é complementar à dissertação de mestrado de Parron, reformulada em livro com o título A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865) [4] em 2011. Ambos buscam analisar o fim do contrabando negreiro através da história política, a partir das perspectivas de segunda escravidão de Dale Tomich [5], e de economia-mundo/sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein [6], e procuram entender como os debates e interesses político-econômicos em torno da (des)continuidade do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil estavam inseridos dentro de um contexto maior de transformações socioeconômicas mundiais no período. Partindo de tantos pontos em comum, é principalmente nas fontes que Youssef e Parron tomam caminhos diferentes. Enquanto os discursos parlamentares são os principais documentos históricos empregados na análise da narrativa de Parron, Youssef constrói sua narrativa a partir dos periódicos cariocas – o que confere complementaridade às duas obras.

Por pensar seu objeto a partir de uma perspectiva ampliada, Youssef procura entender a imprensa (assim como o tráfico negreiro) dentro das transformações ocorridas no mercado e na sociedade mundial no período. Dessa maneira, o autor busca demonstrar como a expansão do capitalismo, a queda de monarquias absolutistas, as revoluções de independência no Novo Mundo e a reconfiguração das áreas fornecedoras de importantes commodities para o mercado mundial, entre outros fatores, também contribuíram para a difusão de novas (ou modernas) formas de sociabilidades, que passam a conviver com as do Antigo Regime. No caso da imprensa, essas transformações teriam oportunizado a proliferação de impressos, a abolição/diminuição da censura, o surgimento de espaços de leitura e sociabilização das ideias presentes nestes impressos, e, como consequência, possibilitado a emissão de julgamentos por parte do público aos acontecimentos a ele contemporâneos.

Em termos de leitura histórica, outra produção historiográfica cuja influência sobre o livro de Youssef é notável é O Tempo Saquarema, de Ilmar Mattos [7]. Obra de referência sobre a história do Brasil Império, publicada pela primeira vez em fins da década de 1980, O Tempo Saquarema aborda elementos centrais contidos no livro de Youssef, como a relação entre expansão cafeeira, formação de projeto político imperial centralizador, continuidade do tráfico negreiro e o papel político-econômico britânico neste contexto. No entanto, Youssef distancia-se de Mattos em dois aspectos centrais do seu trabalho, a imprensa e a pressão inglesa. Enquanto Mattos, na perspectiva gramsciana, entende como secundário o papel da imprensa e das organizações civis consideradas privadas na construção da coalização entre proprietários do centro-sul e o grupo conservador na política imperial, Youssef apresenta a imprensa como tendo um papel central neste processo. Segundo o autor, a imprensa foi uma das principais responsáveis para que essa aliança, assim como a política do contrabando negreiro, tenha alcançado êxito.

Sobre o papel britânico nesse contexto, enquanto para Mattos os interesses internos da classe dirigente são vistos como predominantes, embora a pressão externa não seja ignorada, Youssef atribui protagonismo à pressão externa sobre as decisões relativas ao tráfico negreiro adotadas pelo governo imperial. Para o autor, a intensificação da pressão britânica pelo fim do comércio negreiro para o Brasil em meados da década de 1840 – e, inclusive, a iminência de um conflito armado entre as duas nações – por exemplo, não deixou alternativas aos Saquaremas senão a defesa do fim do contrabando. O grupo retornaria aos periódicos para preparar o terreno, desta vez para a abolição do tráfico.

A respeito disso, observa-se que Youssef também se distancia de recentes produções historiográficas brasileiras sobre o fim do tráfico negreiro que, embora não desprezem a importância que a pressão britânica teve sobre os rumos tomados por esta atividade, têm repensado como outros fatores influenciaram o fim do comércio proibido de escravos [8]. O autor procura demonstrar que fatores como o haitianismo, para citar um dos aspectos apontados recentemente pela historiografia, que também é mencionado pelo autor, não teve grande peso sobre o fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil. Youssef avalia que o haitianismo foi utilizado na imprensa do Rio de Janeiro muito mais como argumento retórico do que como um temor real.

Na obra de Alain El Youssef, a imprensa é, ao mesmo tempo, fonte e objeto histórico, informações que o autor deixa explícitas já no princípio da obra. Sobre isso, nota-se que, ao adotar a imprensa também como objeto, o autor consegue ir além do texto publicado. Investigando, por exemplo, as vinculações partidárias dos editores dos periódicos que consultou, é capaz de acessar alguns dos interesses existentes por trás das notícias veiculadas. Assim, o autor não deixa de chamar atenção para o modo como parte da historiografia brasileira tem utilizado a imprensa. Ao analisar os periódicos pontualmente, muitas vezes sem levar em consideração as vinculações das publicações, a historiografia acaba por reproduzir um discurso enviesado. Neste sentido, chama a atenção para a necessidade de se observar o enviesamento existente nas publicações.

Ao fazer a leitura deste livro no ano de 2018, período indubitavelmente conturbado da política brasileira, não poderia deixar de mencionar a atualidade da obra. Através do livro de Youssef verificamos como o argumento político da “opinião pública” e a construção politicamente enviesada da “opinião pública” pela imprensa têm sido empregados ao longo do tempo para conformar os rumos da história do Brasil.

Notas

1. Cf. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SOUZA, Christiane Laidler de. Mentalidade escravista e abolicionismo entre os letrados da Corte (1808-1850). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

2. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

3. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.

4. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

5. Cf. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

6. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1. Idem. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979. Idem. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

7. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.

8. Dentre as produções que repensaram o papel da pressão britânica destacamos os estudos de Sidney Chalhoub, Flávio Gomes, João José Reis, Jaime Rodrigues e Robert Slenes. Cf.: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, ed. rev. e ampl., 1ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. SLENES, Robert. “Malungu, Ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, 1992.

Referências

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeiros; Fapesp, 2016.

Silvana Andrade dos Santos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Doutoranda, PPGH-UFF, bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]


YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2016. Resenha de: SANTOS, Silvana Andrade dos. Imprensa como partido: “opinião pública” e tráfico negreiro em periódicos cariocas. Almanack, Guarulhos, n.19, p. 331-337, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina – TVARDOVSKAS (HU)

TVARDOVSKAS, L.S. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015. 488 p. Resenha de: RIBEIRO JÚNIOR, Benedito Inácio. História, gênero e feminismo: arte e práticas de liberdade no Brasil e na Argentina. História Unisinos 22(2):320-325, Maio/Agosto 2018.

Com mais de dez artigos publicados versando sobre os temas feminismo, gênero, arte e história, Luana Saturnino Tvardovskas traz a público os frutos colhidos na sua pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, sob a orientação de Margareth Rago.2 A obra, intensa nas reflexões e no peso, contempla a produção artística das brasileiras Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado e das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino. Atravessando e historiando os caminhos de “[…] verdades cáusticas, de saberes menosprezados e de vozes inauditas” (Tvardovskas, 2015, p. 430) de tais artistas, a historiadora costura perspectivas historiográficas sobre mulheres, gênero e feminismos aos conceitos e práticas políticas e de pensamento de intelectuais como Michel Foucault, Judith Butler, Rosi Braidotti, André Malraux, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Margareth Rago, Norma Telles, Suely Rolnik, Tânia Navarro-Swain, Nelly Richard e Leonor Arfuch. O que garante a qualidade dessa urdidura é um apurado trabalho de análise das obras e das trajetórias das artistas e uma escrita politizada, afetada e afetuosa.

Comprometida com o assunto – arte, história e feminismo –e com a orientação de Rago desde a graduação, Tvardovskas privilegiou pensar estilísticas da existência e produções artísticas a partir do ferramental teórico-político- -metodológico feminista em sua trajetória como historiadora. Sua dissertação de mestrado é exemplo disso: defendida em 2008, Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó, ela analisa instalações, performances e objetos artisticamente construídos com o objetivo que questionar verdades instituídas em relação à sexualidade, ao corpo feminino e à subjetividade (Tvardovskas, 2008).

Voltando à obra, esta foi defendida como tese de doutorado em 2013 e revista para ser publicada como livro em 2015. O livro foi dividido em cinco capítulos e em duas partes. Junto com a introdução, o primeiro capítulo –“Um museu imaginário feminista: histórias da arte e feminismos, diálogos possíveis” – está separado das duas partes do livro. A primeira parte – intitulada Brasil– contém os capítulos 2 e 3. No primeiro deles, “De ousadias discretas e manobras radicais: mulheres artistas no Brasil”, a reflexão sobre a produção de mulheres na arte brasileira a partir de 1970 e do movimento feminista toma lugar, ao mesmo tempo que a temática de gênero é discutida em relação aos contextos curatoriais e aos estudos acadêmicos. Já o terceiro capítulo, que recebeu o nome de “Potência desconstrutiva: Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado”, é escrito a partir do estudo das produções e trajetórias artísticas das três brasileiras investigadas por Tvardovskas. Argentina, como é denominada a segunda parte do livro, é composta pelos quarto e quinto capítulos, respectivamente intitulados “Cuerpos aflictos: arte e gênero na Argentina contemporânea” e “Memórias insatisfeitas: Silvia Gai, Claudia Contrerase Nicola Costantino”. Assim, a segunda parte da obra obedece à organização feita pela autora na sua primeira parte, pois os capítulos são organizados com o intuito de evidenciar as discussões sobre as artes e os feminismos nos seus contextos nacionais e, em seguida, verticalizar a análise abordando as artistas separadamente. O primeiro deles relaciona os temas da arte, política e gênero na Argentina contemporânea, trazendo reflexões acerca do período ditatorial e de abertura política e sobre a crítica de arte no país. No seu quinto e último capítulo, a obra interpreta as imagens plásticas produzidas por Gai, Contreras e Costantino.

No início do seu primeiro capítulo, Tvardovskas esclarece que seu trabalho buscará uma conjunção entre crítica cultural e História para abordar as poéticas visuais das artistas que são seu objeto de estudo. O intuito da autora é problematizar a partir de um olhar feminista essas estéticas femininas, partindo da hipótese de que tais produções “[…] anunciam novas possibilidades de intervenções na cultura”, e, inspirada em Walter Benjamim, questiona se elas podem ser “[…] compreendidas como espaços de resistência ao empobrecimento ético, político e subjetivo atual” (Tvardovskas, 2015, p. 37).

Nessa esteira, a autora vai situando os seus referenciais para a discussão de suas artistas-objeto: chama para a conversa Michel Foucault e Judith Butler para questionar a naturalidade dos corpos, percebendo-os a partir daí como produtos de discursos sobre o sexo. Interessa-se pelo conceito foucaultiano de parrhesia, que seria uma experiência antiga greco-romana construída a partir do cuidado de si e dos outros, buscando a afirmação de uma existência bela, libertária e ética. Desse modo, a opressão feminina vivenciada em seus corpos, a negação de seus desejos e a renúncia de si seriam terrenos de desconstrução de mulheres artistas que buscam em suas próprias vidas a matéria de seu trabalho. Logo, a autora situa as produções das seis artistas analisadas nessa convergência teórico-política.

Ainda no primeiro capítulo, preocupa-se em pensar a crítica feminista sobre as artes visuais, pontuando as concepções de arte e história da arte no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Assim, Tvardovskas evidencia as condições históricas que excluíram as mulheres da história da arte ocidental. A partir de autoras como Griselda Pollock, Linda Nochlin, Rozsika Parker, Whitney Chadwick, para citar apenas algumas, a autora expõe que nos séculos XVIII e XIX as mulheres foram impedidas de pintar os gêneros tidos como maiores, entre eles os nus, sendo-lhes permitido apenas o estudo da natureza morta, do retrato e da paisagem. Também a ordem burguesa, no mesmo período, afastou ainda mais o conceito de artista da identidade das mulheres, com a redução delas ao papel reprodutivo e ao lar. No século XX, as concepções de originalidade e genialidade foram quase sempre atribuídas aos homens, assim como as mulheres foram banidas da história do modernismo. Embasada por reflexões que desconstroem as bases da História da Arte, bem como da própria disciplina histórica, Tvardovskas aponta para a compreensão da História que não se vê mais como discurso neutro ou universal como importante passo para a compreensão das mulheres, artistas ou não, como sujeitos históricos, concluindo que “[…] a história enquanto enunciado verdadeiro e absoluto não serve ao feminismo” (Tvardovskas, 2015, p. 61). O primeiro capítulo se encerra com uma crítica à pretensão de compreender uma periodização para a crítica de arte feminista latino-americana que coincida com a efervescência desses temas na Europa e nos Estados Unidos, iniciada a partir dos anos 1970. Os regimes ditatoriais que se deram no nosso continente na segunda metade do século XX ritmaram de outro modo o movimento feminista e seus efeitos no campo artístico, e, de acordo com a autora, apenas depois dos momentos de abertura política o feminismo impactou de forma mais efetiva a indústria cultural e as artes em geral. Por esse desenvolvimento mais tardio, Tvardovskas afirma que não houve no Brasil uma revisão dos cânones artísticos ou uma rememoração de nomes de mulheres em outros períodos históricos, como ocorreu nos países de língua inglesa. Assim, a partir de uma vontade de evidenciar perspectivas feministas e seus locais na arte latino-americana, Tvardovskas inicia suas análises.

O segundo capítulo se encarrega da discussão sobre as mulheres na arte brasileira e também introduz pequenas biografias de Ana Miguel, Rosana Paulino e Cristina Salgado, bem como apresenta seus estilos e materiais de trabalho. Insere, dessa forma, a produção e carreiras das três artistas na fase de abertura do regime militar, na década de 1980, caracterizada pela euforia por novas possibilidades artísticas e políticas. A história política do Brasil, do movimento feminista, das artistas-objeto e de outros artistas brasileiros é enfocada no estudo, gerando um panorama crítico das condições históricas que caracterizaram a arte e os trabalhos de Miguel, Paulino e Salgado. Com o fim da ditadura, Tvardovskas percebe como os movimentos sociais foram fortalecidos e, dentre eles, o feminismo. Isso levou as mulheres a se imporem mais abertamente como sujeitos políticos e atuarem criticamente em áreas como produção cultural, academia e no poder legislativo, repensando a cidadania, os corpos, o gênero, a sexualidade feminina e seus papéis de mães, esposas e filhas. Os anos 90 vão se caracterizar, então, por uma maior interação das obras de mulheres na desconstrução do imaginário misógino brasileiro, resultado do fim dos governos autoritários e da visibilidade conquistada pelos movimentos feministas.

Duas informações são importantes para entender o engajamento necessário às artistas mulheres para fazer arte no Brasil. Primeira: a entrada das mulheres nas instituições de educação artística no Brasil enfrentou grandes dificuldades, percebidas pela autora até finais do século XIX, já que apenas em 1892 foi concedido o acesso às mulheres ao ensino superior, como na Academia Nacional de Belas Artes. Outra informação buscada por Tvardovskas é a questão de grandes nomes femininos do modernismo brasileiro. Amparada nos resultados de sua própria dissertação e nas pesquisas de Marilda Ionta, a autora entende que o grande reconhecimento de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti estabelece a importância das mulheres na arte nacional e, ao mesmo tempo, sugere-se que não haveria distinções entre homens e mulheres nesse campo: “Criou-se a representação na mídia e na historiografia de que a presença dessas duas artistas confirmava que no Brasil não existiam problemas de gênero no território artístico” (Tvardovskas, 2015, p. 96).

Na seção final do capítulo 2, a autora dá visibilidade à maneira pela qual a discussão de gênero veio tomando lugar nas artes visuais brasileiras, percorrendo catálogos de exposições, obras analisadas, exposições organizadas com o intuito de divulgar a arte de mulheres no país, concluindo que tais discussões serviram para deslocar conceitos e valores, questionando as naturalizações que envolvem a arte brasileira, as mulheres e a domesticidade. Tvardovskas conclui que a arte contemporânea abriu espaços de liberdade e de questionamento de normas e, por isso, pode ser compreendida pela ideia foucaultiana de estética da existência.

Ao iniciar o terceiro capítulo, Tvardovskas esclarece que fará uma leitura feminista das produções dessas autoras – que nem sempre entendem suas obras ou a si mesmas como feministas –, conjugando autobiografia e política para compreender seu objeto de pesquisa. Desse modo, as três artistas brasileiras e seus trabalhos são percebidos desde suas questões cotidianas e “marcas vividas”, mesclando aspectos culturais e sociais para a “[…] busca de caminhos diferenciados para a constituição das subjetividades na atualidade” (Tvardovskas, 2015, p. 114).

Em decorrência disso, nas narrativas pós-estruturalistas e feministas, como defende a obra, autorretrato foge às narrativas tradicionais de uma constituição de um eu verdadeiro. No caso das artistas mulheres, o uso de temas e materiais íntimos, cotidianos e domésticos serviria, segundo suas perspectivas de gênero, para negociar, reagir e inverter os ditames da feminilidade “[…] e da identidade ‘Mulher’, constituindo imagens muito surpreendentes de si mesmas” (Tvardovskas, 2015, p. 11). Não seria a autobiografia individualista, branca, ocidental, masculina e universal, mas, em nome da pluralidade, apostas na ressignificação e intensificação das experiências vividas.

Assim, obras como a instalação My bed, da inglesa Tracey Emin, trazem uma interrogação sobre os limites entre público e privado, na qual a cama, objeto íntimo, pode despertar questionamentos sobre a vida em sociedade. Salgado, Paulino e Miguel seriam exemplos dessa arte que conjuga elementos autobiográficos, íntimos e privados ao mundo político e público. Rosana Paulino3 tematizará em suas obras as questões de gênero e etnicidade: questiona modelos de comportamento e corpo a ela destinados historicamente, “[…] marcando sua arte com ‘traços de revolta’” (Tvardovskas, 2015, p. 139). Uma das obras analisadas em Dramatização dos corpos é a impactante Bastidores (2013), em que seis fotos de mulheres negras são expostas em bastidores de costura com suas bocas, testas, olhos ou gargantas costurados grosseiramente com linha escura.

Paulino, em entrevista colhida por Tvardovskas, afirma que a obra reúne memórias familiares aos problemas coletivos. A historiadora entende que do espaço íntimo de Paulino emerge uma crítica atroz à sexualização e silenciamento das mulheres negras, mas também conexões com o passado escravista brasileiro. Nessa esteira, sendo mulher negra, tendo passado pela experiência ainda na infância da pobreza, do racismo e do sexismo, Paulino se vale dessas experiências subjetivas em grande parte do seu trabalho: ressignificando práticas cotidianas femininas como o costurar, o tecer, o bordar, gera posicionamentos e reflexões sobre as práticas violentas que caminham juntas às vivências femininas e negras. Guiada por Deleuze e Guattari, a autora vê nessa artista e suas criações espaços abertos a devires e desterritorializações identitárias sobre as mulheres; e, inspirada em Foucault, lê as mesmas imagens como a “coragem da verdade”, numa implicação ética na qual Paulino fala francamente da escravidão.

Em Ana Miguel4 é possível ver as associações do feminino com aranhas e fiandeiras, bem como personagens de contos de fadas como Rapunzel. Recorrendo aos materiais e às técnicas comumente ligados ao feminino, como a linha, a cama e o crochê, Ana Miguel gera afeto e incômodo na sua obra I love you. A descrição e as camadas de sentido que recobrem a obra são pensadas por Tvardovskas a partir de referências clássicas, como o mito de Aracne, da influência do pensamento psicanalítico na obra de Miguel e as questões envolvendo o corpo feminino. A autora percebe que a sua instalação Um livro para Rapunzel (2003), assim como suas teias de crochê, caracterizam-se como modos de deslocar naturalizações sobre o feminino. A infância é pensada também, ao lado da instalação supracitada, com a exposição Pensando a pequena sereia, “a matéria é o que deseja minha alma” (1990), como lugar de repensar a subjetivação das meninas.

Por fim, Miguel tem seu trabalho Ninhohumano (2008) estudado por Tvardovskas: trata-se de uma intervenção urbana feita em conjunto com Claudia Herz, na qual as duas habitam por dias uma árvore no aterro do Flamengo (RJ). Para Tvardovskas, a intervenção força os limites entre o jardim público e o espaço privado da casa: desloca as divisões estabelecidas entre público e privado, entre locais habitáveis e não habitáveis. Assim, Miguel revela uma multiplicidade de sentidos sobre o humano, o feminino e a infância, repensando o corpo e o desejo para uma “potência feminina criativa”.

A última brasileira abordada no livro é Cristina Salgado.5 Esta se volta para o corpo feminino com a intenção de romper com significados cristalizados por meio de torções, fraturas, rompimentos, dobras e incisões, representando esculturas de corpos impossíveis e problematizando a questão da nudez (Tvardovskas, 2015). Também envolvida em temáticas que cruzam estética e psicanálise, os corpos esculpidos por Salgado são plasmados às paredes e objetos de decoração, com inchaços e torções se fazendo evidentes. De acordo com Tvardovskas, a estratégia já vinha sendo usada por outras artistas surrealistas como crítica à domesticidade feminina.

Em sua instalação Grande nua na poltrona vermelha, composta em 2009 e com direta associação com Grande nu no sofá vermelho (1929), de Pablo Picasso, o corpo de uma mulher se derrama pelo espaço, excedendo as proporções humanas, mas rostos, mãos e pés dão caráter humano ao emaranhado de dobras e torções. O nu para a artista mulher torna-se uma presença e uma ausência que, nas palavras de Tvardovskas, significa o corpo nu feminino sempre em evidência em obras de arte, mas criadas e vistas por olhares masculinos. Ao contrário, Salgado o deforma e o recria: a sua mulher nua se derrama aspirando buscar outras formas de entender o feminino, o corpo, a arte e as próprias maneiras de conceber nosso olhar sobre o mundo, inventando o feminino como dobras não localizáveis, numa leitura deleuziana.

A segunda parte da obra se inicia no quarto capítulo, que tem como objetivo entender as nuances das relações entre arte e gênero na Argentina contemporânea. Como fez ao tratar do Brasil, a obra pensa a história política recente naquele país como terreno fértil para as artes em geral: a violência, a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos vividos no período ditatorial (1966-1973) fazem surgir um luto simbólico nas expressões estéticas, e as artistas argentinas analisadas não escapam a essa problemática. Traçando um panorama da história da arte argentina, Tvardovskas aponta para as omissões das quais as artistas mulheres foram vítimas. Assim como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, artistas mulheres que atingiram certo reconhecimento na Argentina, como Lola Mora e Marta Minujín, têm suas trajetórias usadas para mascarar o silenciamento das poéticas visuais femininas e a inexistência de interesse sobre as obras das demais artistas.

Tvardovskas afirma que em meados da década de 1980 tem-se a inserção de prismas de gênero na arte argentina: depois da ditadura, numa realidade econômica e social deteriorada, a cena underground refletiu acerca dos corpos e suas sexualidades “fora da ordem”. Já em 1986, a exposição Mitominas I acolhe obras de mulheres que se perguntavam acerca dos mitos que as construíam enquanto mulheres, e, dois anos depois, a exposição Mitominas II. Los limites de la sangre fará alusão à violência política na Argentina, à AIDS e à violência de gênero.

Para pensar as relações entre arte e gênero na Argentina, a historiadora relembra os parâmetros que consideraram certas manifestações artísticas como “arte política” na década de 1960: em confronto com a ditadura, artistas se dedicavam a tecer críticas ao poder e às estruturas macropolíticas. A partir dos anos 80, Tvardovskas reconhece um fortalecimento e maior visibilidade dos movimentos sociais, mas o foco da crítica dos artistas não é mais somente o estado. Assim, artistas militantes que discutiam os novos impasses sociais, diferentes dos anos 60, foram tachados de despolitizados e frívolos, pois baseariam seus trabalhos em temas muito subjetivos, como o corpo e a sexualidade. Por isso, suas obras acabaram sendo pejorativamente denominadas de “arte rosa”, “arte light” e “arte gay”.

Por seu turno, o último capítulo de Dramatização dos corpos coloca os trabalhos das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino sob a perspectiva dos estudos feministas. Tvardovskas encontra como eixo tematizador dos trabalhos dessas artistas as questões relacionadas ao corpo, grande sensibilidade e uma crítica forte à história do seu país. Assim, as três artistas-objeto enfatizam em suas criações a memória como prática ativa no presente e lugar de reflexão política. Silvia Gai6 começa seus trabalhos com técnicas têxteis em meados dos anos 90, tecendo órgãos humanos em crochês de formato tridimensional, aplicando-lhes um banho de água e açúcar que lhes garante uma estrutura firme, como se vê na sua série de órgãos Donaciones, de 1997. Esses trabalhos levam à reflexão sobre a enfermidade e a fragilidade dos corpos: pequenos tumores, más-formações e lacerações se alastram por seus trabalhos. As reflexões acerca do HIV, que preocupou a argentina desde os anos 80, da mesma maneira emergem em suas obras. Também há trabalhos da artista que se dão em almofadas e aventais, objetos do uso cotidiano e doméstico. Tvardovskas os entende por uma perspectiva feminista, pois Silvia Gai “[…] explicita os enunciados sociais que tradicionalmente restringem as mulheres à domesticidade, em nome de uma suposta ‘ordem biológica’” (Tvardovskas, 2015, p. 320). É possível ver a criação de corpos sensíveis à percepção, de uma maneira muito diferente daquela expressa pelos invasivos discursos médicos e cirúrgicos. As linhas e redes formadas pelos seus trabalhos igualmente aludem às interpretações feministas, podendo sugerir a criação cultural de órgãos, tecidos e corpos.

Já Claudia Contreras7 usa materiais e técnicas de criação muitas vezes tachadas como menores e atribuídas às mulheres, confrontando acidamente a história do último século, em especial os genocídios e a ditadura em seu país. Os problemas que inundam a Argentina na década de 1990, como as mazelas do neoliberalismo e o empobrecimento massivo da população, suscitam na arte de Contreras questões a serem tratadas, bem como os desaparecimentos políticos da ditadura militar, numa tentativa de reconstruir o passado de forma crítica, questionando discursos oficiais e os problemas da memória e do esquecimento. Em reconstruções do mapa argentino, ela expõe corpos atacados e agredidos, como nas obras Argentina Corazóne Columna vertebral, ambas de 1994-1995. Já a série Cita envenenada (2001), “[…] remete à prisão de militantes políticos pela polícia, por meio do descobrimento de esconderijos e encontros marcados, associada, portanto, à traição” (Tvardovskas, 2015, p. 375). Nesse sentido, Contreras utiliza um objeto cotidiano, banal, como uma xícara, e nele expõe dentes humanos, estabelecendo uma relação entre os micropodores que perpassam nossos cotidianos e revelam violências e impactos sobre nossos corpos. Os trabalhos que nem sempre se mostram como críticas feministas – como, à primeira vista, pode parecer Cita envenenada – podem ser lidos numa perspectiva feminista, uma vez que, para Tvardovskas, conceitos como corpo, desejo, cotidiano e poder são postulados pelas discussões de mulheres interessadas na transformação da realidade social e cultural.

Nicola Costantino8 encerra as análises de Dramatização dos corpos, mostrando o olhar ácido sobre a cultura argentina e as convenções de moda, do feminino e da maternidade presente nos trabalhos dessa artista. Assim como Contreras e Gai, Costantino é entendida por Tvardovskas como uma daquelas artistas que utilizam a água como elemento sofredor e matéria de desespero, o que pode ser visto na obra Ofelia, Muertede Nicola Nº II.9 A maternidade, a cozinha, o envelhecimento e a beleza feminina são constantemente questionados pelas corrosivas obras de Nicola Costantino, o que fica claro nos seus trabalhos de inkjetprint, como nas impactantes Nicola costurera (2008), Madonna (2007) e Savon de corps (2003). Em Nicola Alada, de 2010, a imagem de si é usada para refletir acerca do corpo, o imaginário sobre a mulher e a violência histórica. Seu autorretrato como Vênus na frente de uma enorme carcaça bovina pendurada causa uma mordaz contradição entre o ideal da imagem feminina e a violência causada ao olhar espectador pela carne animal exposta. O corpo animal entrecruzado ao corpo de Vênus nos faz perceber, segundo Tvardovskas, o sofrimento possível em um corpo, em especial o das mulheres.

Passando à conclusão, Tvardovskas entende as obras das seis artistas estudadas como práticas fluidas e em constante reelaboração e como exercícios de reconstrução de si e da cultura no seu entorno: as produções de Salgado, Paulino, Miguel, Gai, Contreras e Costantino ampliam nossas formas de perceber o feminino e as ex não hierárquicas e não binárias. A autobiografia, o corpo, o espaço privado se constituem como espaços possíveis de repensar a memória e com potência criativa e libertária. Não há um sentido feminista essencial, pretendido pelas autoras ou fixo na análise de Tvardovskas; muito pelo contrário, a autora deixa explícita a intenção de lançar um olhar histórico e feminista sobre as obras estudadas. Durante toda a sua análise, por meio da crítica de suas fontes, das obras e das mulheres estudadas, reescreve um passado sobre a arte muitas vezes negligenciado, afirmando abertamente a sua leitura sobre elas: “Não se trata, assim, de uma simples invenção de sentidos inexistentes, mas de uma lente necessária para um olhar social que parece não conseguir enxergar com acuidade seus contínuos processos de apagamento das diferenças” (Tvardovskas, 2015, p. 380). Uma leitura mais que necessária nos tristes tempos vivenciados pela cultura e arte brasileiras, quando se olha, por exemplo, para as recentes polêmicas acerca do cancelamento da exposição QueerMuseu (Folha de S. Paulo, 2017) e em torno da performance La bête, acusada de pedofilia (Carta Capital, 2017). Dramatização dos corpos se torna leitura obrigatória num ambiente em que a arte que discute gênero, cultura LGBT, o corpo e o desejo é cada vez mais vítima de discursos censores e intolerantes.

Referências

CARTA CAPITAL. 2017. Museu de SP é acusado de pedofilia e rebate: performance não tem conteúdo erótico. Disponível em: https:// www.cartacapital.com.br/sociedade/museu-de-sp-e-acusado-de- -pedofilia-e-rebate-performance-nao-tem-conteudo-erotico. 29 set. Acesso em: 31/10/2017.

FOLHA DE S. PAULO.2017. Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto- mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada. shtml. 10 fev. Acesso em: 31/10/2017.

TVARDOVSKAS, L.S. 2008. Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. Campinas, SP. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 223 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2013. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina. Campinas, SP. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas, 370 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2017. Currículo da Plataforma Lattes. Brasília. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. do?id=K4594129J5. Acesso em: 09/05/2017.

Notas

2 Esses dados foram consultados no Currículo Lattes de Luana Saturnino Tvardvoskas. Ver na lista de referências Tvardovskas (2017).

3 Nascida em 1967, é gravadora e especialista em gravura pelo London Print Studio e possui doutorado em Artes Plásticas pela ECA/USP. Todas as informações biográficas das artistas foram encontradas na própria obra de Luana Tvardovskas (2015).

4 Nascida em 1962, gravadora e escultora, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) e Filosofia Contemporânea e Antropologia na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Brasília.

5 Pintora, desenhista e escultora. Nasceu em 1957, estudou desenho, pintura e litografia na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde se tornou professora. É doutora em Linguagens Visuais pela UFRJ e professora da UERJ e da PUC-RJ.

6 Nascida em Buenos Aires em 1959, é uma escultora que trabalha com crochês e bordados, dialogando com práticas têxteis.

7 Nasceu em 1956, também em Buenos Aires. Trabalha com colagem, costura, paródia, desenhos, pinturas, bordados, objetos, fotografias e animação digital. Estudou na Escuela Nacional de Bellas Artes de Quilmes, na Escuela Nacional de Bellas Artes Manuel Belgrano e na Escuela Superior de Bellas Artes Ernesto de la Cárcova. Também estudou em Madri.

8 Nascida em Rosário, em 1964, tem sido bastante comentada no circuito latino-americano contemporâneo, trabalhando com autorretratos, esculturas, embalsamamento de animais, imitações de pele humana, performances, vídeos e instalações. Formou-se na Escola de Artes Plásticas da Universidad de Rosario e embalsamamento e mumificação de animais no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Rosario.

9 A água possui esse lugar na produção dessas três artistas e no imaginário argentino contemporâneo pelas memórias da ditadura militar, já que eram comuns os voos nos quais militares jogavam militantes políticos no mar e no Río de la Plata.

Benedito Inácio Ribeiro Junior – Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis. Professor Assistente I na Faculdade de Administração de Santa Cruz do Rio Pardo da Organização Aparecido Pimentel de Educação e Cultura. Praça Dr. Pedro Cesar Sampaio, 31, Centro, 198000-000, Santa Cruz do Rio Pardo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana | Alexandre Almeida Marcussi

Logo no início da leitura, percebi que o livro tratava de uma problemática que eu já havia muitas vezes incluído em cursos e que adoraria ter dedicado maior atenção em alguma publicação. A simpatia foi quase imediata pela iniciativa de um jovem historiador em seu trabalho de Mestrado. Leitura mais do que recomendada a todos que se dedicam ao estudo das culturas africanas na diáspora. Leia Mais

Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana – MARCUSSI (RTA)

MARCUSSI, Alexandre Almeida. Diagonais do afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2016. 258p. Resenha de: PINHEIRO, Bruno. Caminhos e descaminhos do pensamento cultural na historiografia da diáspora africana. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.22, p.487-493, set./dez., 2017.

O livro Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana, de 2016, é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2010 por Alexandre Almeida Marcussi, hoje professor de História da África na Universidade Federal de Minas Gerais. Nessa pesquisa, ele toma como objeto de análise os modelos interpretativos da Antropologia Cultural acerca do contato entre diferentes populações que se tornaram definidores dos debates sobre a ideia de cultura afro-americana na historiografia da diáspora. Nos quatro capítulos, Marcussi realiza, a partir de uma seleção de textos-chave publicados ao longo do século XX, uma genealogia dos conceitos popularizados nessa literatura, localizando os processos de continuidade e descontinuidade de suas operações lógicas e as contradições em seus usos.

No primeiro capítulo, As armadilhas da cultura, são apresentados os enunciados propostos por Franz Boas que permitiram a formação de uma concepção culturalista de intercâmbio cultural. É também avaliada a reelaboração desses argumentos nos estudos afro-americanos de Melville J. Herskovits, a partir da análise do ensaio O mito do passado negro (1941), e os limites de seus pressupostos, evidenciados a partir de seus debates com o sociólogo negro Edward Franklin Frazier. Para tal fim, Marcussi parte de um esquema produzido por Boas acerca das relações de contato nas quais elementos da cultura nativa passariam por processos simultâneos de permanência e mudança. Nessa relação, seria estável o “espírito” de cada povo, ideia associada a um sentido indivisível e imanente às culturas. Essa noção, frente à experiência histórica de cada contato, definiria o que seria passível de ser transformado, mediando a operação entendida por Boas como aculturação. Essa postura, ao mesmo tempo essencialista e historicizante, se apresenta na leitura de Marcussi como um importante alicerce das interpretações da cultura afro-americana, de modo que sua longa permanência se configura como um problema central do livro.

Na busca por entender os usos dos termos boasianos no estabelecimento dos Estudos Afro-Americanos, Marcussi analisa o livro O mito do passado negro de Herskovits. Esse texto foi uma resposta direta à ideologia dominante no debate acadêmico norte-americano daquele período, que sugeria que os negros dos Estados Unidos haviam abandonado sua herança cultural africana e se tornado, assim, sujeitos sem passado. O autor refuta essa hipótese, produzindo uma escala das diferentes relações das culturas afro-americanas com sua herança cultural, cujas balizas seriam a aculturação e a africanização. Um dado fundamental para classificar uma comunidade nessa gradação seria o contato entre negros e brancos em seu interior, de modo que, quanto mais concentrados os indivíduos de ascendência africana, mais africanizada seria a comunidade. Enquanto essa razão numérica era produzida por circunstâncias históricas, as transformações determinadas pelo “espírito” ocorreriam ora na “aparência exterior” de sua manifestação, ora em suas “qualidades imanentes”. Marcussi entende esse esquema como uma reelaboração daquele produzido por Boas, sendo que, em Herskovits, permanência e mudança poderiam ser entendidas como imbricadas em um mesmo processo cultural, compondo formas intermediárias de aculturação.

A ideologia que O mito do passado negro buscava desarticular tinha adesão de intelectuais negros norte-americanos em sua época, sendo utilizada como forma de defesa frente a retórica ainda popular do evolucionismo, que associava esse passado à ideia de barbárie. Marcussi identifica o problema da assimilação das populações negras à sociedade estadunidense como questão central da disputa entre Frazier e Herskovits na década de 1940. Ao localizar as culturas afro-americanas como autóctones, resultantes da total desagregação das formas básicas de organização social reconhecidas pelas populações escravizadas, Frazier as opõe à ideia herskovitsiana de que um “espírito” africano guiaria as ações das comunidades negras americanas. A concepção culturalista de Herskovits, levada a seu limite, permitiria interpretar as ações dessas populações como guiadas por valores estranhos à cultura euroamericana, inviabilizando qualquer debate sobre integração.

Em seu segundo capítulo, Ambiguidades da crioulização, Marcussi avança três décadas para, a partir do ensaio O nascimento da cultura afro-americana (1973) dos antropólogos Sidney Mintz e Richard Price, analisar a incorporação do conceito de crioulização à tradição boasiana. Em sua retórica culturalista, a crioulização assume o lugar que era ocupado pela ideia de aculturação, ainda que ela não seja uma categoria expressa textualmente, apresentando-se apenas como uma operação lógica. Na medida em que, numa primeira leitura, essa substituição sugira uma descontinuidade, Marcussi a entende como uma tentativa de resolver determinadas limitações e contradições presentes nessa vertente teórica. Desse modo, os conceitos herskovitsianos são rearranjados, numa perspectiva a partir da qual as culturas afro-americanas possam ser entendidas como, simultaneamente, africanas e americanas, ainda que, em seu “espírito”, se mantenham essencialmente associadas à primeira filiação.

Na interpretação das culturas afro-americanas de Mintz e Price, sobrepoem-se dois modelos apresentados como complementares: o argumento demográfico, de origem culturalista, e o sociorrelacional, de matriz sociológica. No primeiro, os autores retomam a leitura de Herskovits sobre a proporção entre negros e brancos na determinação do nível de aculturação de uma comunidade, deslocando o foco para o grau de concentração de sujeitos de cada grupo étnico africano. No segundo, os autores propõem que os contextos institucionais, sejam eles sociais, políticos ou de parentesco, devam ser tomados como modeladores dos processos culturais. A presença dos conceitos culturalistas e sociológicos produz contradições internas no texto que são assumidas por Mintz e Price como necessárias frente à natureza dinâmica dos fenômenos culturais. Esse fato é identificado por Marcussi como um dos motivos centrais das polêmicas em torno da publicação.

No terceiro capítulo, O retorno à cultura, o autor trata da recepção de O nascimento da cultura afro-americana na historiografia da diáspora africana produzida a partir da década de 1980. Nas críticas realizadas a Mintz e Price por pesquisadores como John Thornthon (1992), Douglas Chambers (2001), Paul Lovejoy e David Trotman (2002) e James Sweet (2003), Marcussi evidencia um padrão no qual a interlocução é realizada a partir do vocabulário culturalista, ao passo que o argumento sociológico é minimizado ou desconsiderado. O antagonismo desses autores revela-se especialmente na ênfase dada aos processos de continuidade e descontinuidade no interior das culturas afro-americanas. Enquanto os dois antropólogos ressaltavam a criatividade dos africanos da diáspora em reinventar seus universos simbólicos em ambientes adversos, seus críticos valorizavam os modos de resistência que levaram os sujeitos à manutenção de suas culturas. Essas diferentes posturas são assinaladas por Marcussi como diretamente ligadas às filiações de cada um com os debates públicos em torno do racismo e dos movimentos negros. Em um texto publicado em 1999, Price respondeu a muitas das polêmicas geradas pelo ensaio de 1973, privilegiando a retórica culturalista. Marcussi interpreta essa como uma tendência da historiografia da diáspora africana, ressaltando o predomínio de concepções essencialistas de cultura em sua literatura recente.

No último capítulo, Afeto e ambivalência, Marcussi recua no tempo e retoma duas publicações de matriz boasiana, Contraponto cubano do tabaco e do açúcar (1940) de Fernando Ortiz e Casa grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre. Neles, ele evidencia os usos da retórica culturalista pelos dois autores, e, a partir da aproximação com textos ligados ao pensamento pós-colonial, sintetiza soluções para as contradições dessa tradição teórica presentes nos estudos sobre a diáspora. Do primeiro, Marcussi examina o conceito de transculturação, proposto como alternativo a aculturação. Ela se diferencia ao prever, nas relações de contato, transformações nos dois sentidos, que Ortiz exemplifica numa narrativa pouco ortodoxa sobre a introdução do tabaco na Europa. Para o autor cubano, os sentidos da planta, ligados num primeiro momento à religiosidade ameríndia, teriam sido reimaginados frente ao julgo eclesiástico e, em seguida, ao desejo de intelectuais humanistas em transgredir a ordem cristã. Para Marcussi, a transculturação de Ortiz é guiada por relações de afeto identificadas como desejo e tentação. Ao abordar Casa Grande & Senzala, o argumento da mestiçagem realizado por Freyre é apresentado a partir da posição central assumida pelas relações sociais no interior do latifúndio escravista, que aproximariam os elementos antagônicos do Brasil colonial de modo que os potenciais conflitos originados pelas relações de desigualdade étnico-racial seriam apaziguados. No cerne dessa interpretação, estaria o intercurso sexual entre homens brancos e mulheres indígenas e negras, realizado muitas vezes de modo forçado. Esse seria definidor de uma estrutura de afetos que aproximam prazer e violência.

A partir do debate sobre os afetos em Ortiz e Freyre, Marcussi realiza aproximações improváveis com outros textos de autores ligados ao pensamento pós-colonial. Ao desejo violento descrito por Freyre, Marcussi aproxima as estruturas afetivas delineadas por Franz Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952), no qual são descritas as violências decorrentes das hierarquias raciais socialmente naturalizadas, presentes em relações interpessoais. Apesar de os dois autores assumirem atitudes diametralmente opostas frente ao fenômeno – Freyre o interpretando como a pedra de toque de um projeto nacional, e Fanon como um obstáculo para a emancipação de negros e brancos – ambos operam uma transposição dessa relação do foro íntimo ao plano da política. Marcussi associa essa lógica, entendida como metonímia de uma relação histórica de interdependência entre Europa e África, à análise dos processos coloniais realizada por Homi Bhabha em O Lugar da Cultura (1994). Em Bhabha, a cultura nesses contextos resultaria em um espaço comum em que as partes se redefiniriam mutuamente e constantemente, invalidando a ideia essencialista de cultura presente na tradição boasiana. Marcussi finaliza o capítulo conectando as pontas entre esses autores utilizando o trabalho de Robert Young, Desejo Colonial (1995). Young localiza nos debates públicos acerca das empreitadas coloniais europeias da segunda metade do século XIX uma centralidade dos atos sexuais compulsórios como mediadores de sua efetivação, prática defendida por Joseph Arthur de Gobineau, um dos principais teóricos do racialismo, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853). Desse modo, Marcussi insere ao debate das trocas culturais as especificidades próprias à condição de colonialidade.

Ao concentrar-se nas operações lógicas presentes nos textos, localizando-as apenas pontualmente acerca de seus contextos de produção e circulação, a análise de Marcussi é por vezes lacunar. Esse tipo de aproximação traria contribuições para se entenderem as assimetrias em relação aos contextos institucionais em que as publicações analisadas foram lidas, desvendando particularidades da produção de conhecimento sobre a diáspora africana. Apesar disso, Diagonais do Afeto: teorias do intercâmbio cultural nos estudos da diáspora africana apresenta uma leitura bastante acurada da orientação culturalista nos estudos sobre o tema. Ao propor uma integração do pensamento pós-colonial a essas interpretações, ele apresenta um deslocamento salutar para as práticas historiográficas associadas às populações negras e as relações raciais.

Bruno Pinheiro – Doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Brasil. E-mail: [email protected].

Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (RHH)

Dei um pulo na cidade.

Iaiá, minha preta, se eu sei não iria.

Só vi sacanagem, só vi covardia.

Não sei como pode alguém lá viver.

Quando vi o salário Que o pobre operário Sustenta a família Fiquei assustado, Iaiá, minha filha, Montei no cavalo e voltei pra você.

Quando eu contar, Iaiá Serginho Meriti/Beto Sem Braço A prática docente e a de pesquisa acadêmica encontram, entre muitas proximidades, a comum dificuldade em agregar elementos, documentos e fontes que permitam oferecer uma leitura do passado capaz de estimular interpretações de experiências e expectativas de sujeitos geralmente esquecidos, silenciados na memória oficial e no relato historiográfico predominante. O objetivo de narrar uma “história de baixo para cima”, embora estimule o fazer historiográfico desde a primeira metade do século XX, ainda exige muito esforço, criatividade e perspicácia para que se identifique o eco de vozes então abafadas pelo discurso hegemônico. O esforço em captar a repercussão das palavras de grupos dissonantes em um contexto autoritário e comumente identificado como onipotente, o Estado Novo Varguista, é o que move o historiador Adalberto Paranhos nesta nova obra, produção cara a iniciados nos estudos do período e, por sua linguagem acessível, também a demais interessados. Leia Mais

Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos | Mary Anne Junqueira

O livro de Mary Anne Junqueira, produto de sua tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade de São Paulo, é um relato expressivo da U.S. Exploring Expedition (1838-1842) chefiada pelo capitão Charles Wilkes da Marinha norte-americana. Segundo a autora, esta viagem teve pouca repercussão nos anos subsequentes, fato que talvez explique a razão da restrita historiografia sobre esta empreitada. O motivo desse “esquecimento” poderia estar no caráter explosivo e violento de Wilkes para com sua tripulação, que teve que encarar uma corte marcial quando voltou aos Estados Unidos. Só a narrativa dos acontecimentos ligados aquela expedição vale a leitura do livro de Mary Anne Junqueira. Cabe registrar o ótimo capítulo que explora a vida dos marinheiros a bordo, ricamente ilustrado, dando voz a um setor comumente negligenciado pelas narrativas históricas. Leia Mais

Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.

Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.

A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).

No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.

A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.

O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.

A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.

O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.

O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.

A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.

O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).

Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.

Renan Giménez Azevedo

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Velas ao Mar. U.S. Exploring Expedition (1838-1842) | Mary Anne Junqueira

Abarcar a complexidade analítica de uma viagem de circum-navegação no século XIX é um esforço monumental. Mary Anne Junqueira o empreendeu e foi muito bem-sucedida. Sua obra dá conta dos múltiplos aspectos envolvidos na jornada marítima de quatro anos, seis veleiros e 346 homens comandados pelo capitão Charles Wilkes. A viagem frutificou em um relatório de 23 volumes (cinco dos quais concentraram as narrativas do capitão), material que serviu como fonte para a pesquisa histórica.

Para além da grande dimensão da expedição, os interesses com que percorreu o globo foram variados e abrangeram os de investigação científica (em diversos ramos da ciência tais como a biologia e a cartografia), geopolíticos, simbólicos e estratégicos, que foram examinados com perspicácia pela autora. O trabalho, ademais, veio suprir uma lacuna historiográfica a respeito da U.S. Exploring Expedition, ausente mesmo da literatura estadunidense. Leia Mais

Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica | Ronaldo Amaral

O livro Santos imaginários, santos reais. A literatura hagiográfica como fonte histórica que aqui nos propomos a resenhar levanta problemáticas que concernem a relação entre hagiografia como fonte histórica e o Imaginário. O autor almeja no âmbito das manifestações maravilhosas do imaginário a mesma relevância histórica nas esferas referentes às expressões sociais, econômicas e políticas. À vista disso, Ronaldo Amaral nos propõe reflexões acerca das relações entre a História, a Literatura e o Imaginário, cuidando em seu livro de reafirmar a importância das hagiografias para que possamos vislumbra-las à luz do passado tardo-antigo e medieval, bem como mostrar alguns caminhos para que os historiadores possam recair sobre elas seus olhares e se atentar às riquezas socioculturais que esses escritos compartilham acerca de um imaginário, que bem nos conta o autor, é sempre coletivo.

Portanto, na introdução e no capítulo um intitulado A hagiografia como fonte histórica. O imaginário relegado nos é apresentada, e somos levados a entender, as discussões teóricas no campo da história e do imaginário onde ele se torna, por excelência, em ferramenta teórico-metodológico para análise da História. Os embates que concernem ao uso da literatura, em especifico a literatura sagrada, como fonte histórica foram propiciados pela descoberta de novos métodos e teorias, nesse sentido seria uma heresia não mencionarmos a importância dos bolandistas, que por sua vez, compilavam erudições críticas de textos dedicados a santos, mesmo que naquela instância almejavam dados concretos que afirmassem uma existência real. Amaral também trata neste capítulo a importância de Hippolyte Delehaye ao ampliar os métodos bolandistas em que impunham problemas ao histórico da vida dos santos e buscava fatos verdadeiramente históricos, ou seja, para além do “fictício”. Todavia, já teria esse autor chamado a atenção para a hagiografia como fonte histórica, mesmo que seus métodos o levassem para um viés positivista em almejar a verdade objetiva, por consequência, separando o histórico do imaginário, o que Amaral em seu livro não propõe a separação da vida sociomaterial do imaginário. No entanto, é impreterível analisarmos as inovações de Delehaye a sua época, possibilitando assim entender à hagiografia como fonte histórica.

Ainda neste capítulo o autor trata que a partir do imaginário surgem hábitos, costumes e comportamentos capazes de apresentar a razão humana para o homem medieval onde suas bases fundantes estão arraigadas nas sensibilidades, nas estruturas do pensamento simbólico e analógico ao invés de pensamentos idiossincráticos forjados. Nesse sentido, nos é apresentado críticas por parte do autor aos métodos de tratamento dos santos de existência literária como não históricos. No que tange ao refutamento dos santos criados pelo imaginário dos hagiográficos o autor rebate isso afirmando que todo santo fictício é um santo por excelência, pois cumpre sua razão a ausência que viria a responder, assim sendo, muitas vezes os santos são personagens ideais no caráter personificado da santidade e que os hagiógrafos não puderam lhe escolher, foram assim, impostos por suas circunstâncias espaço-temporais próprias buscando atender as necessidades materiais e mentais de seu período histórico. Desta forma, fica evidente para o autor que sua historicidade concreta pouco importa, mas sim os atributos supra-humanos do santo.

No capítulo dois A emergência do imaginário nas fontes hagiográficas o autor menciona a hagiografia como texto literário capaz de interessar ao historiador por lhe oferecer uma fonte ordenada, cujo estudo linguístico facilita o trabalho que contempla seu contexto dentro do fenômeno histórico. Amaral, tanto neste capítulo como em outros, irá inaugurar um debate historiográfico onde contrapõe historiadores que afirmam o sincero não ser histórico, mas sim o verdadeiro ser histórico. Nessa acepção o autor levará algumas páginas discutindo o que seria a verdade, sobretudo a verdade histórica, e defende que a “realidade” apresentada pelas hagiografias não devem ser julgadas por métodos, mas sim serem entendidas na categoria do verossímil ao invés do sincero e verdadeiro. Assim sendo, por tratar a hagiografia de uma história sagrada seu teor de verdade também não deve ser buscado nas circunstancias e ideários no lugar daquele que fala, senão no lugar do qual se fala. Como afirmação de seus entendimentos o autor nos diz que as realidades fundadas em imagens e situações maravilhosas concebidas pelo imaginário são uma realidade tão verdadeira como a histórica.

Amaral continua por acentuar que à hagiografia interessa ao historiador enquanto o ajude na compreensão da vida social de sua época, embora sempre esteja atrelada a um processo histórico mais amplo, visto que a hagiografia é sempre um “recriar”, no entanto, devem ser vistas para além das estruturas econômicas e políticas, ou seja, deve ser concebida pelo imaginário. No discorrer do capítulo encontramos novas críticas, tanto benévolas como nefastas, a renomados historiadores, como Peter Brown e Santiago Castellanos a exemplo, sendo este último mais questionado, pois é partidário que a hagiografia não atende ao caráter de documento histórico, mas, apenas, pode ser tratada como fonte marginal e ser “desmentida” a partir de documentos ditos “oficiais”. Para isso, o autor nos ensinou que o que se almeja nas hagiografias é uma realidade menos precisa do que a dos documentos oficiais, visto que é menos carregada de ideologias do que tais documentos. Por meio dessas considerações o autor entende que a hagiografia é uma realidade construída e constitutiva por seus autores, uma vez que o autor é sempre o porta-voz de seu meio, concretizando assim a função do imaginário coletivo e dos ideais da comunidade. Após direcionar seus entendimentos, Amaral defende que o imaginário é um modo de apresentar a História.

No capítulo Hagiografia, biografia e história o autor irá questionar em conjunto com Jacques Le Goff, Loriga, Schwob, Pierre Bourdieu e outros autores a realização das biografias antes da modernidade, pois essas não são capazes de apresentar significações históricas gerais no que concerne uma vida individual, nesse viés, o autor nos propõe utilizarmos para investigar o período medieval não a biografia, mas sim intentos biográficos. Assim, no que diz respeito ao “processo biográfico” da vitae dos santos, esse se ocupa mais com as pródigas realizações sagradas do que com o teor laico e a exatidão espaço-temporal, no entanto, Amaral não despreza que as vitae tragam informações de uma existência mais factível dos santos, porém toda informação “factível” nas hagiografias está mergulhada no imaginário, em circunstâncias fundamentadas e objetivadas no fabuloso, milagres, aparições demoníacas, curas e lugares estão ligadas por uma função simbólica que se remete mais a uma realidade transcendente do que factível. É ressaltado por Amaral que a inconsistência histórica acerca do personagem hagiográfico, quando se deseja a biografia, não está na fonte mesma, mas sim na abordagem do historiador, desta forma, a hagiografia trata de homens que deixam de sê-lo ao se tornarem, por sua escrita, santos, ou nas palavras do autor:

“O hagiógrafo cria o santo e para tanto recria sua personalidade histórica, ou seja, aquela, talvez a única, dada a conhecer pela história; assim, haverá na hagiografia sobretudo um santo e, portanto, um homem cuja história ficará, em grande medida, identificada mais com uma existência fabulosa que eminentemente profana” (p.75).

Seguindo esse pensamento, nos é apresentado uma crítica do autor acerca da pretensão da hagiografia como biografia, pois entende que seria algo faltoso, visto que é inviável “resgatar” uma personalidade histórica factível e dá-la a conhecer posteriormente, mesmo munido de fontes. É muito latente no livro a questão de quando nos referimos a vida dos santos devemos nos ater mais ao espírito do discurso do que em sua letra, pois é neste que se emerge significados mais precisos da escrita e é ainda mais arraigado quando investigado pela ótica do imaginário.

O autor utiliza esse capítulo terceiro para assentar seu modus cogitare em que à hagiografia é constituída por verdade, sinceridade e realidade, isso porque, suas narrações se assentam em tempos, lugares e acontecimentos que antes de tudo são representações, portanto, as hagiografias são constituídas de lugares e situações ideais apresentadas por signos de transcendência, estruturas simbólicas e espaços do mítico e não por meros dados factíveis e positivos. Outro ponto fulcral tratado neste livro é quando o hagiógrafo é hagiografado, ou seja, quando descreve a si mesmo, para isso o autor traz exemplos de Valério do Bierzo, monge eremita que atribuía a si virtudes das vidas de outros padres do deserto. Para Amaral, esses eremitas mostravam tanta admiração por aqueles santos de sua mesma profissão monástica que imitá-los seria algo grandioso. Há também que se considerar a apropriação literária no âmbito hagiográfico na Idade Média, que seria mais do que uma subtração de textos e palavras das fontes, seria o que o autor chama de “aggiornamento” com adequações do lido e apropriado pelo autor vivido.

Referente ao capítulo quatro A natureza do tempo e do espaço na hagiografia, é explicitado a percepção do tempo e espaço profano/sagrado no imaginário de monges primitivos onde as noções de espaço geográfico – deserto, árido ou floresta – é mais do que um lugar, é um não lugar, isto é, um lugar que rompe com lugares humanos e seu próprio mundo temporal. Desta forma, os lugares assentados nas hagiografias sempre se remetem a imagens de caráter divino transcendental do que propriamente em espaços geográficos materiais. Portanto, o autor vislumbra que os lugares mais importantes nas hagiografias são os lugares da santidade, os lugares se tornavam santos pela presença do santo propriamente dito que não carregava consigo pecados e por essa sua santidade tornava os lugares sagrados. Nesse intento, somos levados a entender que os lugares apresentados pelas hagiografias são mais do que descrições de lugares concretos passam a ser símbolos que revertem significantes profanos os tornando sagrados com efetiva participação dos santos, como os desertos.

Nos é apresentado ainda neste capítulo o quão os espaços geográficos de desconhecimento dos homens medievais eram concebidos por uma dimensão mítica e fabulosa, com isso, o autor quer ressaltar em sua obra que o espaço era pensado mais em totalidade do que parcialidade. Amaral diz ser “auspicioso” buscar nas hagiografias um estrito espaço geográfico exato, visto que na Antiguidade Cristã os espaços serviam para separar o eremita da sociedade, portanto essa cisão de espaços dentro das hagiografias é interpretada como uma cisão para com a realidade cósmica. Nesse sentido, Amaral defende neste capítulo que os santos conseguem romper com o tempo ordinário ao se transportar miraculosamente no tempo e no espaço presenciando assim lugares distintos e longínquos em tempo curto. Desta forma, cabe ao escritor da vida do santo solitário demonstrar o lugar que ele não está, ou seja, extramundano, longe da sociedade e do pecado. O autor encerra este capítulo com a reflexão em que a vida e feitos de santos se desenvolvem em uma temporalidade da santidade, e não obedecem uma dinâmica aberta, portanto, os santos estão acima e além do espaço mundano.

No que concerne ao quinto e último capítulo Hagiografia: a tradição da escrita, a escrita da tradição, o autor nos coloca como latente a perícia que historiador tem para fazer emergir de um texto uma realidade, todavia, isso é possibilitado, e Amaral defende essa possibilidade, por meio de uma interpretação hermenêutica dos textos onde se objetiva atingir e extrair o espírito do texto, ou seja, a “vivência subjetiva do autor” que corresponderia ao seu meio sociocultural e mental. Nesse sentido, entendemos que para compreensão de um texto ou uma fonte deve-se levar em consideração todas as suas possibilidades de interpretação, ou seja, a intenção do leitor, a do próprio texto e a do autor. Outro pródigo ponto do capítulo são os apontamentos acerca da dificuldade de apreender o fato histórico em si, ou seja, compreende-lo em sua essência, pois cada apreensão, seja do leitor ou do autor, deforma-o, modela-o. Em consonância a isso é discorrido pelo autor que a realidade hagiográfica tem menos uma visão positiva e materialista da história, pois não almeja suas análises dos fenômenos religiosos por meio historicista, mas sim por meio de seus símbolos, metáforas, alegorias e outros meios que constituem a linguagem religiosa.

Ainda no que diz respeito a este capítulo quinto nos é explicitado que todo santo recriado por uma nova hagiografia, antes mesmo disso, já era um santo consagrado pela tradição, todavia ao ser recriado ganha um novo corpo individual e social ao se inserir em um outro homem histórico e o hagiógrafo fica responsável por inseri-lo em um novo espaço-temporal. Esse processo, segundo o autor, se desemboca por um produto da imaginação que busca alicerçar insuficiências mundanas do presente. Esse modelo de santidade que se almeja é sempre uma construção baseada no coletivo, pois a imaginação é o ato de um ser social e obedece a esquemas de reorganização que são comuns a um grupo. O autor enfatiza que o imaginário gesta as hagiografias e exerce sobre elas um poder de realização, o poder da retomada. Amaral nos conta que todo modelo de santidade, seja qual for, partirá de Cristo, dessa forma a fonte de seu trabalho será as Sagradas Escrituras, portanto, ressalta que na Antiguidade Cristã havia interesses ideológicos, e que os seus contemporâneos leram as Sagradas Escrituras impelidos pelos acontecimentos da época, sobretudo em visões de mundo que estavam permeadas pelo maligno e influídas pela filosofia antiga – neoplatônica e escatológica.

Levando-se em conta o que foi observado, podemos entender o quão profícuo é considerar o imaginário como pedra angular de um entendimento mais pleno acerca da Antiguidade Cristã, visto que o imaginário é interdisciplinar e compreende a vida humana em seu sentido mais amplo e profundo, pois tece seu entendimento no simbólico. Portanto, essa obra de Ronaldo Amaral enalteceu as considerações, maneiras de pensar, críticas e novas caminhos para pesquisas no campo da História. Nesse sentido, sua obra torna-se por si só uma ferramenta teórica aos interessados em vislumbrar as razões sensíveis dos homens nas hagiografias, sobretudo vistas à luz do imaginário.

José Walter Cracco Junior – Graduando do curso de História da UFMS-CPTL, bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID).


AMARAL, Ronaldo. Santos imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013. Resenha de: CRACCO JUNIOR, José Walter. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.129-138, 2016. Acessar publicação original [DR]

A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.

Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.

Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.

Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.

Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).

Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.

O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.

Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).

As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.

No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.

Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.

Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.

Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.

É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.

Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).

Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).

No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).

O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.

A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.

Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.

Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.

Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.

No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).

Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.

Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.

Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.

Notas

  1. ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
  2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
  3. O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
  4. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
  5. Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
  6. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
  7. LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
  8. Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. [email protected].


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].