Por uma nova história da Igreja medieval / Varia História / 2015

O presente dossiê temático está intimamente relacionado às discussões que foram levantadas por ocasião do Congresso Internacional sobre Ordens religiosas na Idade Média: concepções de poder e modelos de sociedade, ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais, entre os dias 26 e 29 de maio de 2014. Reunindo professores medievalistas de dez universidades brasileiras e seis professores / pesquisadores de universidades estrangeiras, bem como grande número de pós-graduandos, o congresso pretendeu apresentar uma análise inovadora do papel social e político das Ordens religiosas no Ocidente medieval, enfatizando os modos de reprodução do político no seio das comunidades urbanas. Tal empreitada manifesta uma mudança significativa no procedimento analítico da história religiosa ou da história medieval tradicional, bastante dependentes de uma argumentação estanque que tende a separar ou a dicotomizar uma sociedade eclesiástica (os clérigos) de uma sociedade secular (os leigos), tomando-as como antípodas de um projeto social que, gradativamente, foi afirmando-se sempre mais laico e, neste sentido, “moderno”. As conclusões do congresso são aqui alargadas para além do espaço social das Ordens religiosas, procurando abarcar o mais possível o lugar da Igreja na cristandade latina, no fim da Idade Média. O tom revisionista continua o mesmo: esperamos realocar as discussões sobre a “religião”, a “igreja” e a “fé”, só para citar três exemplos, no debate mais atualizado da historiografia medievalística que tem conseguido um impressionante grau de respeitabilidade até mesmo em lugares, como Brasil, Argentina, Chile e México, em que tradicionalmente o período medieval não havia ainda despertado interesse a ponto de produzir historiografia, e não mais simplesmente reproduzi-la.

O interesse que moveu a composição deste dossiê está atrelado ao fato de que a historiografia medievalística contemporânea, ainda marcadamente europeia, apresenta-se bastante negligente em reavaliar o lugar da Igreja – e das instituições eclesiais – nas sociedades medievais latinas, mantendo-a, apesar de todo relativismo acadêmico, num posto inquestionável de “instituição dominante” (para usar uma expressão cara a Jérôme Baschet), sem, contudo, submeter este posto ao crivo da crítica com que foram analisadas outras instituições e / ou conceitos, como nação, Estado, povo, império etc. Deste modo, constatamos um desnível epistemológico significativo: historiadores que são profundamente desconstrutivistas, quando se trata de falar de povo ou nação, são marcadamente dogmáticos ao conceber uma “Igreja Medieval”, síntese de uma cultura englobante, universalizante, soberana e monopolizadora. De onde vêm tais ideias? Talvez devêssemos recordar que as recentes nações liberais viveram um conflito, incluindo às vezes lutas reais, para impor uma estrutura política em que “Estado” e “Igreja” fossem instâncias autônomas e autossuficientes. Tais lutas encontraram eco nas universidades, cujos intelectuais produziram discursos historiográficos que ora defenderam e ora combateram o projeto de separação Igreja-Estado. Surge daí uma história política para a qual a Igreja é secundária, e uma história eclesiástica, bastante apologética, para a qual o Estado sempre corrompe a Igreja. Em ambos os casos, a premissa mantém-se a mesma: Igreja e Estado são sempre e inexoravelmente coisas diferentes.

Como já se pode entrever, este raciocínio é de todo estranho ao dito período medieval quando os aspectos políticos e religiosos, bem longe de serem antitéticos, convergiam para um modelo social de Estado místico que, como tal, não se deixava manipular nem por reis supostamente corrompidos pelo mundo, nem por papas sedentos de santidade: papas e reis, condes e frades participavam de uma sociedade mística que incluía, mas não se confundia com a instituição Igreja, ao mesmo tempo em que a política não se esgotava e nem poderia se esgotar naquilo que chamamos Estado. Na Baixa Idade Média, debateu-se a premissa de que a Ecclesia universalis era a continuação e o aperfeiçoamento do imperium Romanorum, e, em virtude desta noção de império (ratione imperii romani) o papa podia, inclusive, reivindicar o fim do domínio muçulmano sobre a Terra Santa porque outrora aquela terra fora conquistada pelo império romano (Hostiensis, Commentaria, Lib. III, tit. xxxiv, cap. viii, n. 26). O interessante do comentário do Hostiensis, a meu ver, não reside tanto na defesa da plenitude do poder papal, mas na ideia de que o império romano persistiu na cristandade latina graças a seu sucessor, o bispo de Roma. E este passado romano, que igualmente misturava sagrado e profano, constituía boa parte da base da identidade político-religiosa das sociedades medievais e não podemos impunemente ler a história medieval à luz das realidades políticas contemporâneas profundamente secularizadas e laicistas.

Neste dossiê, as discussões relativas ao papado couberam a Leandro Duarte Rust, com seu artigo “Inventando Gregório VII”. O autor reavalia a historiografia política e eclesiástica das últimas dez décadas, a qual concebe Gregório VII e, a partir dele, o poder pontifício como dotado de uma lógica interna coerente, programática e estatizante, cuja ascensão irrefragável levou de roldão a todos os sistemas políticos ocidentais, antecipando, no século XI, a política moderna de centralização, controle e, quem sabe, de supressão da anarquia feudal. A análise de Rust, contrariando a tradicional historiografia, nos põe diante de um papado gregoriano igualmente envolvido nas malhas dos poderes senhoriais, baseado na sacralidade dos laços de dependência; um papado destituído de uma ação política ou eclesiástica coerente, marcada por idas e vindas à mercê de interesses regionais, sem garantia alguma de que, pela sua autoridade, nasceria uma ordem política e social reformada e reformadora capaz de superar a dependência da Igreja em relação ao Estado.

Com o artigo de Eleonora Lombardo, abre-se uma perspectiva de análise das relações sociais e eclesiásticas que tem nos textos de sermões um impressionante acervo documental. A autora nos apresenta Sovramonte de Varese, um frade talvez pouco conhecido por nós, mas que, em seu tempo (séc. XIII), era um dos grandes pregadores urbanos, em cujos discursos podemos captar o vivo da oratória sacra que, misturada àquela política, das assembleias cívicas, fizeram a história da Itália comunal. Partindo de dois temas específicos, a usura e a heresia, Lombardo discute as relações entre o sermão pregado e aquele escrito (posteriormente), o público ouvinte e o público leitor, a sociedade e o pregador: a palavra e a ação. Numa cidade comunal, a pregação constituía, sem dúvida, um dos mais eficientes motores da atividade política e esta aparente contradição, atualmente, tem sido a marca inovadora dos estudos sobre as comunas, como mostram os artigos de Paolo Evangelisti e Pietro Delcorno.

Evangelisti, tomando a pregação de Bernardino de Siena e comparando-a com as obras de Francisco Eiximenis, discute a validade cívica de termos que, à primeira vista, soariam completamente religiosos, sem nenhum interesse para os debates públicos das assembleias comunais. Ao definir, por exemplo, a caridade, o autor nos mostra que Bernardino de Siena construía uma pedagogia política que foi aproveitada pelas instâncias citadinas na regulação do bem comum, do mercado e, por conseguinte, do dinheiro e das trocas, o que nos obriga a ver que o sermão não só não era apenas um discurso religioso, mas que o ambiente cívico de uma comuna, apesar de ser regido por leigos, não era secularizado, uma vez que o sermão constituía um grande canal de educação para a vida na cidade e os valores republicanos.

Pietro Delcorno, de alguma forma, corrobora a reflexão de Evangelisti, trazendo ao debate a ação do pregador Miguel de Acqui e a instituição do Monte de Piedade de Verona. O autor também nos brinda com a primeira edição do incunábulo vaticano referente a Miguel de Acqui e ao Monte de Piedade que é uma instituição de empréstimo sem juros ou a juros moderados, criada pelos frades Menores Observantes no séc. XV e que, de maneira muito concreta, incidiu não só no dinamismo econômico das cidades italianas do fim da Idade Média, como ofereceu um canal de inclusão social e participação através da religiosidade penitencial que marcava tanto a vida de ordens rigoristas, como a dos Menores Observantes, como também das próprias cidades-república que se entendiam como “cidades de Deus”, para aproveitar o título da instigante obra de Augustin Thompson sobre as comunas italianas.

Com estes quatro artigos, estou certo de que damos um passo muito importante nos debates sobre as imbricações do religioso e do político no período medieval reavaliando, de um lado, as cisuras impostas pela historiografia pós-iluminista e, de outro, evitando que se olhe para o período com as marcas obsessivas de um sagrado folclórico, extraordinário e maravilhoso, propalado pela história das mentalidades. O crescente público brasileiro interessado em história medieval terá aqui um bom material de reflexão e aprendizado.

André Luis Pereira Miatello – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]


MIATELLO, André Luis Pereira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.55, jan. / abr., 2015. Acessar publicação original [DR]

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