Preconceito Linguístico | Marcos Bagno

O mineiro Marcos Bagno, nascido em Cataguases em 21 de agosto de 1961, é professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB), doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), tradutor de clássicos como Sartre, Balzac e Voltaire, dentre outros, e escritor com diversos prêmios e dezenas de livros publicados no campo da sociolinguística e do ensino de português. No campo Linguística, Bagno ganhou notoriedade com a novela sociolinguística A Língua de Eulália, publicada em 1997, apenas dois anos antes da primeira edição do Preconceito Linguístico (1999), que viria a ser um marco para a reformulação de noções de letramento e (re)educação linguística, sobre o qual centra-se este texto.

Na primeira parte do livro, A mitologia do preconceito linguístico, o autor apresenta a primeira parte do subtítulo: o que é. Para isso, percorre as causas e os argumentos da existência do preconceito, sintetizados em oito mitos, que são, muitas vezes, fundamentados no precipitado senso comum e reforçados pela noção fria que separa os usos da língua em “certo” e “errado”. Entretanto, para Bagno (2007), a noção tradicionalista de erro, a nível da idealização, ignora enunciações que são perfeitamente inteligíveis, decodificáveis, interpretáveis e, portanto, aceitáveis, para taxá-las como algo “errado” por não se enquadrarem nas prescrições sacrossantas da gramática normativa. Bagno sintetiza todos esses mitos por meio da retomada do termo criado pelo escritor Nelson Rodrigues: o complexo de vira-lata, o qual se refere à falta de autoestima dos brasileiros, que teria começado com a derrota da Seleção Brasileira na Copa de 1950. Nessa comparação, o linguista afirma que

[…] o preconceito linguístico fica bastante claro numa série de afirmações que já fazem parte da imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e da língua falada por aqui. Outras afirmações são até bem-intencionadas, mas mesmo assim compõem uma espécie de “preconceito positivo”, que também se afasta da realidade (BAGNO, 2007, p. 13).

Em seguida, temos O círculo vicioso do preconceito linguístico, que completa o subtítulo com o como se faz. Assim, configura-se uma extensão do capítulo anterior, no qual os mitos anteriormente analisados são explicados e refutados. O círculo vicioso se forma por três elementos que Bagno denomina como a Santíssima Trindade do preconceito linguístico, ou seja: ensino tradicional, gramática tradicional e livros didáticos. O ciclo é assim feito: a gramática normativa inspira a prática de ensino e, por sua vez, provoca o surgimento da indústria do livro didático, cujos autores recorrem à gramática normativa como fonte de concepções e teorias. A tese, baseada nas consequências cíclicas e, por vezes, contraditórias, que surgem em resposta a estes elementos, contrastadas ao longo do capítulo, demonstra quão prejudicial é a imposição sistemática da gramática e de como essas ações, comuns até mesmo na informalidade do dia a dia, colaboram para a perenidade deste fenômeno sociolinguístico. O ciclo ainda apresenta um quarto elemento, conforme observa o linguista: os comandos paragramaticais. Para ele, esse elemento, por ser definido como os arsenais de livros, manuais de redação e os programas que buscam “propagar e ensinar” a língua, mas que servem apenas para perpetuar as velhas noções de que “brasileiro não sabe português” e de que “português é muito difícil”. O autor também aponta que, embora em passos lentos, existe um questionamento aos preconceitos e que o exercício da tolerância tem tornado o ambiente escolar mais respirável e democrático.

Marcos Bagno, na terceira parte do livro, A desconstrução do preconceito linguístico, questiona como romper o preconceito linguístico e constrói o capítulo por meio de sugestões de procedimentos que podem desconstruir a mitologia criada em torno da língua idealizada, tendo como cerne o princípio excludente que rege a norma culta. Justificando que a massiva e obscura norma culta e, por consequência, o preconceito linguístico só existem e resistem por questões de ordem política, econômica e sociocultural. Tal preciosismo linguístico parece esquecer-se de que toda língua é mutável e que se adapta ao longo do tempo de acordo com ações e necessidades dos falantes, incorporando as expressões populares e as variações linguísticas como, por exemplo, as gírias, os regionalismos e os dialetos. O linguista brasileiro apresenta seis tópicos para essa desconstrução: (a) mudança de atitude: que passa pela elevação do grau da autoestima linguística e recusa de argumentos que menosprezam o saber linguístico dos donos da língua; (b) o que é ensinar português: em uma intertextualidade com o Raul Seixas, Bagno afirma ser vital questionar as “velhas opiniões formadas”, buscando métodos modernos e realmente pedagógicos de ensino; (c) o que é erro?: passa também pela crítica à polarização do “certo” e “errado” e culmina no reconhecimento necessário do erro como uma tentativa de acerto; (d) então vale tudo?: antecipando-se à principal crítica à sua obra, Bagno enfatiza a necessidade de encontrar o ponto de equilíbrio entre dois eixos: o da adequação e o da aceitabilidade linguística; (e) paranoia ortográfica: o autor postula que deve-se priorizar o conteúdo linguístico em detrimento ao “erro”; e fechando os tópicos, tem-se o (f) subvertendo o preconceito linguístico: que só se fará a partir do reconhecimento da existência e pertinência do preconceito linguístico e da consciência de que não é possível estancá-lo de uma só vez, uma vez que a subversão inicia-se com pequenos atos.

Soma-se a esses o quarto capítulo, O preconceito contra a linguística e os linguistas, que versa a respeito da resistência dos gramáticos contra os linguistas, colocando em voga o estado estanque da Gramática Tradicional

que deixou de ser apenas uma tentativa de explicação filosófica para os fenômenos da linguagem humana e foi transformada em mais um dos muitos elementos de dominação de uma parcela da sociedade sobre as demais (BAGNO, 2007, p. 149).

Em uma refinada metáfora, Marcos Bagno (2007, p. 10), elucida da seguinte forma as diferenças estruturais entre a língua e a gramática normativa:

Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem para a gramática normativa. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua.

Uma das contribuições do livro está em quando se chama a atenção, mediante uma riqueza de explicações, para este outro tipo de preconceito. Em geral, o preconceito linguístico é um fenômeno que passa despercebido ou é ignorado, em virtude do não reconhecimento de diferenças linguísticas, as quais não podem ser classificadas como melhor ou pior, existentes dentro de um mesmo idioma. Um segundo ponto positivo está no fato do livro apresentar uma linguagem acessível a qualquer leitor, tornando possível a popularização do estudo aos mais diversos donos/falantes da língua. A relevância do livro se sustenta, ainda, na lacuna que havia na literatura a respeito desse tema e pela inexistência, até então, de uma abordagem acadêmica do preconceito linguístico. Uma terceira contribuição reside na evidenciação da cisão que há entre os estudiosos de português, isto é, a coexistência conflituosa entre os que prestigiam o normativismo e aqueles que, por sua vez, afirmam que a língua é algo mais amplo do que a dita norma culta.

Bagno sai em defesa das vítimas do preconceito linguístico, através da argumentação contra toda forma de exclusão social por meio da linguagem, enfatizando a necessidade da valorização de todos os múltiplos modos de falar. Dada a contemporaneidade e a urgência da discussão a respeito desse tema, incorporando as discussões e as propostas da linguística e da educação, Preconceito Linguístico é recomendado sobretudo aos pesquisadores na área de Linguagens e para professores e estudantes do curso de Letras e de Pedagogia. A recomendação também se estende, considerando sua linguagem simples, fluida e a sua abordagem didática, a todos os donos da língua desejosos de uma educação linguística que se oponha às concepções tradicionalistas e preconceituosas sustentadas por alguns gramáticos e por uma parcela da sociedade.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 49. ed. São Paulo, SP: Loyola, 2007.


Resenhista

Gabriel Amorim-Braga – Graduando em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 49. ed. São Paulo, SP: Loyola, 2007. Resenha de: AMORIM-BRAGA, Gabriel. Um rio caudaloso, longo e largo: a língua segundo Marcos Bagno. Resenhando. Alfenas, v.3, n.3, 2021. Acessar publicação original [DR]

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