Preconceito Linguístico | Marcos Bagno

O mineiro Marcos Bagno, nascido em Cataguases em 21 de agosto de 1961, é professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB), doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), tradutor de clássicos como Sartre, Balzac e Voltaire, dentre outros, e escritor com diversos prêmios e dezenas de livros publicados no campo da sociolinguística e do ensino de português. No campo Linguística, Bagno ganhou notoriedade com a novela sociolinguística A Língua de Eulália, publicada em 1997, apenas dois anos antes da primeira edição do Preconceito Linguístico (1999), que viria a ser um marco para a reformulação de noções de letramento e (re)educação linguística, sobre o qual centra-se este texto. Leia Mais

Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo – OLIVEIRA (V)

OLIVEIRA, C. M. R. Metafísica e ética. A filosofia da pessoa em Lima Vaz como resposta ao niilismo contemporâneo. Coleção Estudos Vazianos. São Paulo: Loyola, 2013. 295p. Resenha de: RIBEIRO, Elton Vitoriano. Veritas, Porto Alegre, v. 63, n. 2, p. 814-818, maio-ago. 2018.

O livro Metafísica e ética de Cláudia Oliveira, professora de metafísica da FAJE, é fruto de seu doutorado em filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, Itália). Segundo a própria autora, este livro quer explicitar num grande panorama o percurso de Lima Vaz, na intenção de ser “uma introdução à sua proposta de reler a metafísica de Tomás de Aquino à luz da dialética platônico-hegeliana” (OLIVEIRA,2013,p.22). Este panorama, desenhado pela autora tem dois núcleos de atração, a metafísica e a ética na modernidade. Modernidade que Lima Vaz esforçou-se por compreender seus projetos, caminhos, descaminhos, conquistas e desilusões (OLIVEIRA,2013,p.25). Neste esforço, Lima Vaz fez em sua obra uma grande rememoração percorrendo toda a história da filosofia para pensar filosoficamente a existência humana num mundo. Mundo contemporâneo em contínua, rápida e variada transformação.

A pergunta inicial que guia a autora, em sua reflexão é muito interessante. Lima Vaz, em seu pensamento, distanciando-se da filosofia pós-metafísica, no livro “Introdução à ética filosófica 2” afirma: não há ética sem metafísica. A partir daí a autora se pergunta: existe uma relação necessária entre metafísica e ética? Nos termos da autora: “Se, por um lado, para Lima Vaz não há ética sem metafísica, por outro lado, é possívelafirmar que para ele exista metafísica sem ética?” (OLIVEIRA,2013,p.12). Aqui está, em germe, desenhado todo o percurso do livro que vai se desdobrando e encontrando dificuldades a ser analisadas. A primeira é a seguinte: o que Lima Vaz entende por metafísica? A pergunta pela ética, outro núcleo importante da reflexão foi respondida por Lima Vaz em vários livros e artigos, especialmente nos dois volumes de “Introdução á ética filosófica“. Mas, por outro lado, Lima Vaz nunca escreveu um livro de metafísica. Daí podemos perceber o valor da investigação da autora em resgatar a questão metafísica presente no pensamento de Lima Vaz. Ou, filosoficamente, resgatar a compreensão de Lima Vaz desta experiência de abertura ilimitada ao horizonte transcendente, fundamento e origem de toda experiência que o ser humano faz do próprio ser e do próprio agir.

Segundo a autora, Lima Vaz entende a metafísica num duplo sentido: um estrito e outro amplo (OLIVEIRA,2013,p.13). Em sentido estrito, a metafísica é o discurso que explicita diretamente a experiência do Uno. Em sentido amplo, é todo percurso que parte do múltiplo e se dirige ao Uno. Ora, Lima Vaz inspirado em Tomás de Aquino “estabelece a relação necessária entre a ética entendida como ontologia do agir humano e a metafísica entendida tanto em sentido estrito como em sentido amplo” (OLIVEIRA,2013,p.14). É esta relação que a autora busca elucidar. A elucidação tem como pano de fundo duas questões fundamentais sempre presentes no pensamento de Lima Vaz: (1) o problema do sentido da existência e (2) a pergunta a respeito da orientação ética para as ações humanas.

Este percurso elucidativo da autora, acerca do pensamento de Lima Vaz, tem como horizonte de realização a modernidade e a pós-modernidade. Na modernidade o desafio ao pensamento metafísico se configura na primazia da racionalidade técnico-científica e da exacerbação da subjetividade. Na pós-modernidade, o desafio é o avanço do niilismo ético e metafísico que questiona constantemente todas as tentativas de reflexão e ação. Assim, diante disso, a proposta de Lima Vaz é fazer memória do ser a partir de uma releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino. Didaticamente, a autora divide sua investigação em duas partes com três capítulos cada.

A primeira parte tem por título “Um percurso filosófico: ponto de partida, método e opção teórica”. Nela a autora identifica algumas questões importantes que acompanham a reflexão filosófica de Lima Vaz.

Pensar a existência e o agir humanos a partir da situação história é uma delas. A outra é pensar esta problemática a partir da abertura ilimitada ao horizonte transhistórico da Verdade e do Bem. Por isso, o primeiro desafio da autora é pensar a “Modernidade e o Niilismo” (capítulo 1). Neste capítulo, a reflexão caminha na direção de elucidar a interpretação da modernidade de Lima Vaz. Surge um enigma, o enigma da modernidade que tem que enfrentar a racionalidade moderna e a autonomia da razão técnico-científica, que se apresentam como desafios para o nosso tempo. Diante destes desafios o método filosófico de Lima Vaz é o “Método dialético” (capítulo 2). Segundo a autora, para Lima Vaz a dialética é um caminho de reflexão que parte de aporias concretas. Como método, Lima Vaz é devedor da filosofia de Platão e Hegel. Cada um destes filósofos, analisados pela autora em suas reflexões acerca da dialética filosófica em seus contextos, influencia Lima Vaz. Assim, Lima Vaz constrói seu próprio método buscando também, refletindo sobre os dualismos presentes na história, a unidade de sentido tão importante para a filosofia. Finalmente, no terceiro capítulo, a autora busca explicitar a reconstrução que Lima Vaz faz da metafísica tomista. “A opção por Tomás de Aquino” (capítulo 3) faz este trabalho importante de reler os textos sobre Tomás de Aquino; textos escritos por Lima Vaz e publicados ao longo de sua carreira filosófica. Reler e interpretá-los ajudando o leitor a compreender a importância fundamental da metafísica de Tomás de Aquino no pensamento de Lima Vaz.

Na segunda parte do livro o foco é a “Filosofia realista da pessoa” de Lima Vaz. Segundo a autora, a filosofia da pessoa de Lima Vaz é uma via alternativa ao niilismo pós-moderno, analisado na primeira parte, o qual Lima Vaz se apresenta como um crítico feroz. Esta filosofia da pessoa vaziana se apresenta como uma proposta de releitura dialética da metafísica de Tomás de Aquino inspirada na estrutura triádica da filosofia do espírito de Hegel (OLIVEIRA,2013,p.17). Ora, sendo aristotélico-tomista, esta filosofia tem um tríplice nivelamento: a pessoa humana, a pessoa moral e a pessoa absoluta. “A Pessoa Humana” (capítulo 4) deve ser interpretada filosoficamente a partir da experiência que cada um de nós faz do próprio ser. Nossa experiência, para Lima Vaz, acontece numa síntese dinâmica entre essência e existência. Nesta síntese, a pergunta fundamental que guia a busca de sentido à vida humana é: quem sou eu? Pergunta inalienável e fundamental para o ser humano e que guia também toda reflexão filosófica. Na busca de uma resposta o ser humano se descobre como ser em ato porque “aquilo que ele é por essência deve tornar-se na existência concreta” (OLIVEIRA,2013,p.18). Assim, neste percurso de indagação o ser humano se descobre como um ser paradoxal, um ser histórico. Mas, também, como não poderia ser diferente para a filosofia de Lima Vaz, um ser aberto ao horizonte transcendental da verdade. Os outros dois capítulos são, evidentemente, desdobramentos deste primeiro. “A Pessoa Moral” (capítulo 5) reflete sobre a pessoa a partir da famosa pergunta aristotélica, apropriada por Lima Vaz em sua filosofia: como convém viver? Pergunta ética por excelência ela quer apontar para a busca de significação da pessoa humana como pessoa moral. Pessoa moral que aponta, segundo Lima Vaz, contra muitas correntes filosóficas contemporâneas, para “A Pessoal Absoluta” (capítulo 6). Este sexto capítulo é o mais exigente na leitura, e para bem apreciá-lo em toda a sua potência é exigido profundos conhecimentos de metafísica, especialmente, metafísica tomista. Neste capítulo, no qual a autora demonstra seus profundos e articulados conhecimentos de metafísica, o caminho é lento e, por vezes, penoso. Diga-se de passagem, como deve ser todo caminho profundamente filosófico. A autora faz dialogar com Lima Vaz, para ajudar o leitor na compressão desta “experiência metafísica do ser absoluto que se constitui como condição de possibilidade da experiência do nosso ser como unidade dinâmica de essência e existência” (OLIVEIRA,2013,p.18), autores como J. B. Lotz (Transzendentale Erfahrung), J. Marechal (Le point de départ de la métaphysique) e J. De Finance (Existence et liberte), entre outros. Neste capítulo, Tomás de Aquino, Hegel e Heidegger são referências constantes na elucidação da experiência metafísica do Absoluto seja pela “via compositionis ou descensos“, seja pela “via resolutionis ou ascensus“. Neste percurso a autora conclui que “ao seguir o personalismo cristão, Lima Vaz também defende que o Absoluto real, afirmando em sua pessoalidade, constitui-se como fundamento último da pessoa humana. A experiência metafísica remete, pois, à experiência religiosa da Pessoa Humana” (OLIVEIRA,2013,p.270). Concluindo, para a autora “a experiência ontológica que fazemos do nosso próprio ser e agir nos remete à experiência metafísica como experiência do fundamento” (OLIVEIRA,2013,p.270).

A conclusão final da autora é de que “toda a filosofia de Lima Vaz deve, pois, ser interpretada a partir do seguinte pressuposto fundamental: ele era um cristão e sua filosofia é uma filosofia cristã. Ela nasce da experiência profunda da abertura radical ao transcendente e pretende ser tematização discursiva dessa experiência radical como resposta ao enigma de um tempo histórico” (OLIVEIRA,2013,p.273). No caso o nosso tempo histórico, onde somos convidados a responder a pergunta fundamental pelo sentido. Pergunta que nos coloca diante da realidade história, diante das aporias do pensamento, diante de nossa própria existência com os outros no mundo. Neste percurso, que parte da experiência ôntica, rumo às experiências ontológica, metafísica e religiosa; somos também nós, convencidos pela filosofia de Lima Vaz que existe uma “íntima ligação não apenas entre ética e metafísica, mas também entre metafísica e ética” (OLIVEIRA,2013,p.279). Portanto, temos aqui uma excelente reflexão filosófica que merece ser lida por todos os que se ocupam com o labor filosófico de alta qualidade em nosso país.

Elton Vitoriano Ribeiro – Professor de Filosofia – FAJE: Faculdade Jesuíta. E-mail: [email protected]

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Platão não estava doente – PERINE (RFA)

PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. São Paulo: Loyola, 2014. Resenha de: VALVERDE, Antonio José Romera. Revista de Filosofia Aurora, v.27, n.41, p.619-627, maio/ago., 2015.

A um tempo em que as publicações na área de Filosofia se multiplicam, merece grande destaque o estudo perspectivo, profundo, maduro, delineado por fina análise prospectiva dos meandros da tradição oral ou tradição indireta da obra de Platão, apresentado no livro Platão não estava doente, de Marcelo Perine.

A grandiosidade da obra é identificada de início pela sutileza do título, ao inverter a conhecida frase de Fédon — “Platão, creio, estava doente” (Fédon 59 B) —, registro da ausência do filósofo no momento das exéquias de Sócrates, tomada no título como metáfora da tradição indireta e como parte da doutrina platônica. Segundo Perine, a frase

traduz uma estratégia de ocultamento, pela qual Platão sinaliza claramente que a sua obra escrita não pretende se apresentar como um conjunto de documentos históricos, testemunho de diálogos efetivamente ocorridos, ao mesmo tempo em que lhe permite fazer do condutor dos diálogos, na maioria deles Sócrates, uma dramatis persona de si mesmo.

Perine esclarece ainda que,

como na tradição direta dos escritos Platão se esconde deliberadamente, mas revela o seu pensamento sob a máscara dos personagens literários que criou, também na tradição indireta o seu pensamento se encontra camuflado, seja pelo caráter alusivo de muitas passagens dos seus escritos, seja pelo testemunho dos seus discípulos imediatos e longínquos.

Vez que na “obra dialógica o nome de Platão aparece apenas três vezes” (p. 11-12).

O livro em pauta é o mais perfeito arremate de “um projeto de pesquisa aprovado pelo CNPq, em 2002, sobre ‘Oralidade e escritura em Platão: o estado atual do debate’”. Árdua pesquisa, disseminada aos poucos de modo regular, durante praticamente dez anos, na forma de artigos publicados em periódicos da área de filosofia, além da participação sistemática de Perine em “fóruns acadêmicos, como os bienais encontros da ANPOF e os Simpósios Interdisciplinares de Estudos Greco-romanos, organizados anualmente na PUC-SP, comunicações e conferências sobre temas e perspectivas da interpretação de Platão segundo os cânones hermenêuticos da Escola Tübingen-Milão” (p. 241). Assim, o livro é a resultante de atilada percepção do problema em pauta, a jogar luzes para além de lugares observados por outros pesquisadores e avançando a linha de pesquisa adiante do que até então se conseguira, ao amalgamar e sintetizar tais avanços. O que valida a antecipação do juízo de reconhecimento do pleno mérito do livro, que veio para se somar de modo muito expressivo à bibliografia de estudos platônicos no Brasil.

Como se estivesse com um pantógrafo em mãos, Perine traça, amplia, reduz, reproduz e analisa, em detalhes, as verossimilhanças e os ocultamentos presentes nos diálogos platônicos contrapostos à parte não escrita da obra de Platão. E muito mais. No mesmo movimento, para assegurar por números de aparecimento de termos singulares da obra platônica, o autor recorre ao Lexicon (RADICE et al., 2003) para contar ao leitor quantas vezes, por exemplo, o termo homologia — e outros tantos significativos — foi escrito por Platão em suas obras. É uma novidade no campo dos estudos filosóficos — ao menos nos nacionais — a superar o modo mais ou menos rotineiro de percorrer conceitos, diga-se, sem medi-los numericamente em sua força persuasiva, ora subjacente ora explícita nos textos autorais.

O acerto de contas entre o desenvolvimento da pesquisa e sua transformação sintética na forma livro alinha e resolve os indícios e a parte documental acerca da tese evocada por Perine, reconhecível pela afirmação de Gadamer: “O problema geral da interpretação platônica, tal como se nos apresenta hoje, funda-se sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão que só conhecemos por uma tradição indireta” (p. 17). A propósito, as referências mais utilizadas por Perine para sustentar sua tese são aquelas retiradas das obras de Reale, Migliori, Szlezák, Gaiser, Krämer, Gadamer e Trabattoni, por ordem de volume de citações, respectivamente, roteirizando a importância dos estudiosos do circuito Tübingen-Milão para a compreensão da tradição indireta de Platão. Além de balizar a argumentação com múltiplas e intensas referências a Aristóteles — desde a descoberta aristotélica da “rememoração, intelecção e reconhecimento” — e, em escala menor, a Diógenes Laércio, dentre outros; de modo a espelhar o que a tradição filosófica antiga constituíra acerca da filosofia platônica. O resultado é o amalgamar, sob fina exposição de aspectos da História da Filosofia Antiga, da contextualização histórico-filosófica pormenorizada do que se desenvolve no livro.

O livro contém doze capítulos, aditados de dois Apêndices e “Conclusão”. Talvez, para melhor orientação na leitura e ambientação para recepção do problema proposto, sob muitos aspectos inovador para parte do público de filosofia, a sugestão deste Leitor é que a leitura se inicie pelo Capítulo Décimo Segundo, intitulado “A recepção da Escola Tübingen-Milão no Brasil”. Após, se retorne aos três primeiros que formam, de certo modo, a estrutura teórica de apresentação da “tradição platônica indireta”, pelas vertentes da “invenção da filosofia”, em Platão, e dos nexos entre “violência e diálogo” desde a persuasão. Em seguida, que se retome os capítulos restantes, os Apêndices e a “Conclusão”.

No Capítulo Primeiro, “A tradição platônica indireta: fonte, problemas e perspectivas”, de par com o fato de a obra escrita de Platão ser a “primeira dos filósofos antigos conservada integralmente”, Perine observa que

Platão elabora a sua filosofia e escreve sua obra no momento em que a transição da cultura oral para a cultura escrita estava praticamente concluída, portanto no momento em que uma nova “forma mental” estava se instalando definitivamente entre os gregos, não só por força da revolução cultural ligada à escrita alfabética, mas também pela revolução filosófica provocada pela atuação de Sócrates e dos sofistas, que levou ao primeiro plano dos interesses uma nova agenda cultural (p. 15-16).

Para explicitar, analisar e inferir as consequências da constatação, Perine demarca a questão da tradição indireta ou doxográfica como o conjunto dos testemunhos que foram transmitidos sobre as exposições orais de Platão, na maioria dos casos no interior da Academia… [pois] Trata-se de um conjunto de notícias que, redigidas inicialmente pelos discípulos de Platão, em seguida foram transmitidas independentemente das suas obras literárias publicadas.

Na sequência evoca a afirmação do platonista contemporâneo, H.-G. Gadamer: “O problema geral da interpretação platônica, tal como se nos apresenta hoje, funda-se sobre a obscura relação existente entre a obra dialógica e a doutrina de Platão que só conhecemos por uma tradição indireta” (p. 16-17). A propósito, do mesmo Gadamer, Perine cita — de passagem — a consideração acerca da tradição indireta: “é de uma magreza verdadeiramente esquelética” (p. 12).

Ainda no Primeiro Capítulo, Perine explora os aspectos relativos ao “contexto antigo da questão” da tradição indireta nas obras escritas de Platão o Fedro e a Carta VII. Porque o “Fedro é unanimemente considerado pelos tubinguenses-milaneses um diálogo-chave para compreender a reserva de Platão relativamente à escrita e, portanto, para explicar a opção de Platão pela oralidade dialética quando estão em questão ‘as coisas de maior valor’”. Porque, também, “no assim chamado excurso filosófico da Carta VII (340 B-345 C) Platão parece retomar algumas questões desenvolvidas no Fedro em relação ao escrito e explica alguns dos seus pontos de modo bastante didático” (p. 18-19). Os passos seguintes cuidam da abordagem do “contexto moderno da questão”, desde os problemas do “paradigma schleiermacheriano” até a “posição de Franco Trabatonni”, concluindo com considerações acerca dos cruciais “problemas de crítica das fontes” (p. 24-32). Nessa parte do livro, como em outras, a capacidade de síntese do Autor e a minúcia de detalhes histórico-filosóficos, perspectivadas a partir do enfoque do problema central, são admiráveis.

No Segundo Capítulo, “Platão e a invenção da filosofia”, após considerações acerca do período histórico, “imediatamente posterior ao período conhecido como Idade do Ferro”, passando pela inevitável informação recente, de 1939, Perine relembra que “desde a Idade do Bronze os gregos dispunham de um sistema silábico de comunicação escrita, fortemente calcado no sistema fenício, conhecido como Linear B”. Se a “fala iletrada favorecera o discurso descritivo da ação; a pós- -letrada alterou o equilíbrio em favor da reflexão”, segundo Havelock, citado pelo autor, e, além de outros fatores culturais, políticos e econômicos, “foi no interior desse clima espiritual que floresceu, primeiramente nas colônias gregas, uma nova forma de pensamento… a da filosofia” (p. 35-37).

Porém, quem são os agentes dessa nova forma de pensamento — a filosófica? No item “Sábios, cientistas ou filósofos?”, Perine responde de modo a elucidar o lugar e o papel de cada um desses atores na construção da filosofia. No item “Os logoi sokratikoi”, analisa a importância de Sócrates para a “vida filosófica” e a “filosofia”, pois “a ideia de filosofia que se poderia depreender da atuação de Sócrates não era, em primeiro lugar, a de um saber ou de um conjunto de conhecimentos, mas de um estilo de vida”. Tal sentido foi traduzido na frase pronunciada perante o tribunal que o condenaria: “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Para concluir que de “todos os socráticos, o maior foi Platão, a ponto de relegar todos os outros ao título genérico de ‘socráticos menores’” (p. 37-48).Contudo, o mais decisivo no Capítulo em questão é a compreensão dos logoi sokratikoi elevados ao status de filosóficos. Passagem de um tipo de sabedoria ao status de filosofia.

O Terceiro Capítulo, “Persuasão, violência e diálogo”, opera como um fechamento da sustentação teórica do livro. Capítulo denso e intrincado que explora os temas nomeados com elegância e fundamentação filosófica elevada, a partir do “campo semântico de peitho”, termo registrado, segundo o Lexicon, em 584 oportunidades na obra de Platão (p. 57), migrando para o complexo problema do diálogo como forma de superação da persuasão. A tríade temática completa-se com o tema da violência, que tal qual a personagem homônima da tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo — personagem muda —, praticamente não se manifesta ou é tematizado ipsis litteris, porém subjaz eloquente em seu arrebatador silêncio, como o subtexto necessário à urdidura e à trama do Capítulo. Lembro que o tema da violência é caro ao Autor, vez que sua tese doutoral defendida na Gregoriana, em 1986, cuidou dos nexos e disparidades entre Filosofia e violência, a partir da filosofia de Eric Weil (cf. PERINE, 2013).

O texto escrito sob o gênero resenha deve, em geral, mais insinuar que mostrar todo o conteúdo da obra resenhada, de modo a seduzir pelo convencimento os futuros leitores ao exercício da boa leitura. Assim, abrevio a apresentação, lembrando que é na sequência dos capítulos quarto ao décimo primeiro que se encontra o núcleo duro da tese defendida no livro. Através desses, o Autor percorre criticamente os aspectos fundantes da tese em curso e sua explicitação por meio de argumentos construídos com toda solidez conceitual necessária. São os seguintes os títulos dos capítulos — do Quarto ao Décimo Primeiro: “O Fedro: um convite à vida filosófica”; “Tempo e ação no Político”; “Medida, paixões e dialética no Político”; “O filósofo, a política e a cidade segundo a natureza”; “O Filebo e as doutrinas não escritas”; “Gadamer e a Escola Tübingen-Milão”; “Quem são os inimigos de Filebo?” e “Fedro e Protarco e o filosofar dialético” (p. 75-231).

Contudo, merece destaque especial o Capítulo Nono, que engastalha-se ao capítulo anterior do livro, “O Filebo e as doutrinas não escritas”, para tratar com muita propriedade da importância de Gadamer e dos fundadores da Escola de Tübingen no desenvolvimento dos estudos da tradição indireta de Platão, desde o fato singular de serem amigos em comum, “Werner Jaeger, Julius Stenzel, e, particularmente, o grande filólogo Wolfgang Schädewalt”, professor em Tübingen entre 1950 e 1958, “que pode ser considerado o mentor dos principais expoentes da Escola” (p. 173), passando pela análise de minúcias da Carta VII, da dialética não escrita de Platão e da jornada do diálogo da Escola de Tübingen-Milão, realizada “trinta anos depois do colóquio organizado por Gadamer para discutir as teses da Escola de Tübingen”, cuja jornada de abertura coube a Thomas Szlezák. Porém, o capítulo encerra-se com uma interrogação relevante para o contexto dos estudos da tradição indireta. Perine questiona se ao “final das contas, Gadamer aderiu ou não ao novo paradigma hermenêutico da Escola de Tübingen-Milão?” (p. 187). Afirma em seguida que a “resposta é mais complexa do que parece”, remetendo à afirmação do próprio Gadamer supracitada, para assegurar que aquela afirmação “não pode ser tomada como uma adesão às teses da Escola”, vez que Gadamer escreveu em outra passagem:

mesmo quando se trata de doutrinas como a dos números ideais, das quais tomamos conhecimento apenas mediante a tradição indireta, deve-se manter firme que, pelas razões metodológicas adotadas, a via régia da compreensão de Platão é a que passa pelos diálogos (p. 187).

— Eis, por certo, uma ótima questão destinada aos estudiosos da obra de Platão pela vertente da tradição indireta.

Se é válido o testemunho, registro que a primeira vez que assisti a uma apresentação do Prof. Perine acerca da tradição oral em Platão foi durante a aula ministrada por ele como parte das exigências para ascensão na carreira docente à categoria de Professor Associado do Departamento de Filosofia da PUC-SP, na tarde do dia vinte e nove de junho de 2001. Na oportunidade, Prof. Perine leu e comentou quarenta páginas acerca da tradição indireta de Platão, sob ávido interesse da banca examinadora, da plateia e de familiares presentes. Certamente, a apresentação consistia em resultados iniciais da pesquisa levada a termo e transformada em livro. Por certo, também, o texto lido foi assimilado ao livro, sem identificação direta em nota de rodapé, como é caso do registro de alguns dos capítulos, anteriormente publicados em revistas científicas.

Destaque-se também a rica e atualíssima “Bibliografia”, de par com o “Índice Remissivo de Autores Antigos Citados” e o “Índice de Nomes e Autores – Com Exceção de Sócrates e de Platão”. Além das oportuníssimas e fecundas notas de rodapé. Tal padrão editorial poderia ser adotado para edições de livros de Filosofia, a superar o modelo de edições comerciais tão em voga nos dias atuais.

Importante observar que, na obra em pauta, Perine, mesmo inovando e ampliando a compreensão do problema da tradição indireta de Platão, guia-se basilarmente pela ótica do eixo Tübingen-Milão. Pois não cede em momento algum à possibilidade de outras interpretações, mesmo que de passagem, como a apresentada por Foucault (2010, p.223-234) na “Aula de 16 de fevereiro de 1983. Segunda hora”, acerca da “recusa platônica da escrita”.

Parafraseando o título de um livro em homenagem ao poeta Drummond, esta resenha poderia intitular-se “Platão rima TübingenMilão-São Paulo”. A um modo justo de inserir a cidade de São Paulo no eixo Tübingen-Milão. Afinal, tem sido na cidade de São Paulo que floresce o estudo da tradição oral do Filósofo grego, estudada e analisada, em detalhe, pelo Prof.

Perine. Contudo, o registro final da leitura da obra aponta para a trama mais que ao desenlace, pois, como quer Lima Vaz, a “bibliografia platônica é um campo sem fim justamente porque o texto de Platão e tudo o que nos foi legado em seu nome forma um tesouro inesgotável… Mas muitas (riquezas) ficam por descobrir” (p. 239-240).

Será muito oportuna, para compreensão estendida do livro, — a leitura da “Entrevista. Marcelo Perine”, cedida a Antonio Gonçalves Filho, publicada no “Caderno Cultura do Estadão” (PERINE, 2014b). Ainda acerca de Platão não estava doente, ver também a entrevista do Prof. Perine à TV PUC (PERINE, 2014c).

Referências

FOUCAULT, M. O Governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982- 1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

PERINE, M. Filosofia e violência: sentido e intenção na filosofia de Eric Weil. 2. ed. revista e atualizada. São Paulo: Loyola, 2013.

PERINE, Marcelo. Platão não estava doente. São Paulo: Loyola, 2014a. (Estudos Platônicos).

PERINE, M. ‘Platão não estava doente’ usa personagens para revelar pensamento camuflado. Estadão, 13 jun. 2014b. Entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/ literatura,platao-nao-estava-doente-usa-personagens-para-revelar-pensamento-camuflado,1511490. Acesso em: 15 jan. 2015.

PERINE, M. Lançamento do livro “Platão Não Estava Doente”. TV PUC, 5 set. 2014c. Entrevista. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=A_ IKmibkuoQ>. Acesso em: 15 jan. 2015.

RADICE, R. et al. Lexicon. Milano: Biblia, 2003.

Antonio José Romera Valverde – Doutor em Educação. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Fundação Getúlio Vargas (FGV), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Brentano e sua escola – PORTA (RFA)

PORTA, M. A. G. (Org.). Brentano e sua escola. São Paulo: Loyola, 2014. Resenha de: VALLE Bortolo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.39, p.-899-903, jul./dez, 2014.

Certas atividades de rotina em filosofia terminam por criar “zonas de conforto”. Nestas, filósofos e suas filosofias são localizados, classificados e seu alcance é delimitado; nelas, ainda, o movimento inerente à obra é retido e a originalidade, estancada. O conjunto filosófico entra, assim, para a galeria de instâncias adormecidas à espera de um movimento, deslocado no tempo, que o situe em suas potencialidades de origem.

A atividade confortável, costumeira em filosofia, classificou Franz Brentano e sua obra como motivadores da fenomenologia husserliana, como fontes da analítica heideggeriana, bem como responsáveis pela introdução da noção medieval de intencionalidade no século XX ou, ainda, como o discípulo fecundo de Aristóteles.

O trabalho sobre Franz Brentano e sua escola, organizado por Porta, compõe um esforço que recupera, devolvendo o movimento, a um dos filósofos mais fecundos do XIX. A obra, nada rotineira, é resultado da investigação de cinco pesquisadores e, certamente, rompe a área do simples lugar comum. Intenta situar, devolvendo ao autor do projeto de uma Psychologie vom empirischen Standpunkt seu lugar fundamental nas origens da filosofia contemporânea. Busca reforçar e dar sentido à convicção de que “Brentano é uma peça decisiva na virada que se opera no pensamento filosófico da segunda metade do século XIX da qual somos ainda herdeiros e continuadores”.

Apresentada em oito capítulos e desenvolvendo temática variada, a obra mantém um eixo estrutural. Cada autor comunga da convicção de que o lugar ocupado por Franz Brentano, na segunda metade do século XIX, intensifica-se como reação ao idealismo alemão, e que tal reação tem características de “filosofia científica” ao ressaltar o vínculo positivo desta com a ciência, demandando não só o estabelecimento de um objeto como também de um método próprio para a filosofia. Além disso, os autores compartilham da ideia de que o “método psicológico” levado a termo por Brentano resiste à acusação — muito comum, também entre seus seguidores mais próximos — de psicologismo, uma vez que a filosofia entendida como ciência, utilizando do método psicológico, não se resume à mera descrição dos eventos psíquicos.

A partir de uma Apresentação que situa o autor e sua escola, Mario Ariel Gonzalez Porta é o autor de outros três capítulos. Primeiro, em “Franz Brentano: equivocidade do ser e objeto intencional”, é realizado um esforço para a recuperação da correta compreensão da teoria da intencionalidade, que só pode expressar suas potencialidades no entrelaçamento com outras teorias. Porta se propõe a “reintroduzir o texto de Brentano sobre a intencionalidade no seu contexto sistemático e genético-evolutivo para, desse modo, possibilitar uma interpretação do status ontológico do objeto ‘intencional’”. Convicto da consciência de Brentano de que só é possível fazer filosofia em diálogo com os clássicos, o pesquisador retoma o lugar de Aristóteles na obra do referido autor, no que se refere à questão ontológica e ao tema da equivocidade do ser.

Posteriormente, em “Uma análise do opúsculo de Kasimir Twardowski ‘Inhalt und Gegenstand’ na perspectiva de sua significação para a escola de Brentano”, Mario Porta mostra a importância decisiva do opúsculo de Twardowski para o desenvolvimento da escola de Brentano, ao reformular a teoria brentaniana dos fenômenos psíquicos a partir da distinção entre conteúdo (Inhalt) e objeto (Gegenstand). Nesse trabalho, o pesquisador busca superar uma histórica unilateralidade nas considerações do texto em referência, ao dar destaque àqueles aspectos que não receberam a merecida atenção por parte dos estudiosos. Finalmente, em “Horror Subjectivi: a polêmica entre Kerry e Frege em torno do método psicológico”, Mario Porta revisita o contexto do confronto entre Frege e Kerry. Partindo do fato de que, no conjunto dos estudiosos de Frege, o nome de Kerry só é referido como o obscuro autor com o qual Frege se defronta em seu texto Sobre conceito e objeto, o estudo visa recuperar o contexto da discussão com Kerry como uma instância decisiva nos enfrentamentos de Frege contra o psicologismo.

Em um capitulo intitulado “Brentano e a questão do ser”, Alberto Marcos Onate expõe resultados de sua pesquisa sobre a presença de Aristóteles no pensamento de Brentano. Onate recorda que o texto de Brentano Sobre o significado do ente em Aristóteles, publicado em 1862, constitui motivo suficiente para que se colham os indicativos do reconhecimento de Edmund Husserl sobre a obra de seu mestre, fato referido, anos mais tarde, por Martin Heidegger. É evidente a influência do modo como Brentano recolhe Aristóteles sobre Husserl e Heidegger. Nas palavras do próprio pesquisador, no estudo não são elaboradas uma defesa ou uma crítica da leitura brentaniana diante de outros comentários sobre o pensador grego. São realizadas, tão somente, uma exposição e uma avaliação do quanto ainda é relevante, filosoficamente, a apropriação das questões ontológicas de Aristóteles. Esclarece Alberto Onate que seu objetivo não é tomar posição sobre se a leitura que Brentano faz de Aristóteles é correta ou incorreta, simplificada ou profunda, sistemática ou assistemática, enquanto exercício exegético. Afirma que não lhe interessa, stricto sensu, Brentano enquanto intérprete fiel ou infiel da ontologia aristotélica, mas sim Brentano elaborador de seu próprio pensamento a partir de uma Auseinandersetzung com a ontologia de Aristóteles.

Ernesto Maria Giusti, outro autor na obra, em seu capítulo “Notas sobre a doutrina de todos e partes nas lições sobre psicologia descritiva de Brentano: psicologia e unidade da ciência”, debruça-se sobre a questão da mereologia. O autor desenvolve o termo na perspectiva de que este é empregado corretamente para definir aquela parte da filosofia que trata das relações entre todos e suas partes. O fato de muitos considerarem a filosofia de Brentano como sendo essencialmente uma ontologia justificaria sua ausência no cenário filosófico do século XX, principalmente tendo em vista a instância antimetafísica típica do Círculo de Viena. No entanto, Giusti esclarece que, com a segunda geração dos filósofos analíticos, principalmente com W. O. V. Quine, dentre outros, a ontologia retoma seu lugar como disciplina filosófica. É nesse contexto que a doutrina brentaniana de todos e partes volta a ser uma teoria na ordem do dia. O autor alerta, no entanto, que ela ainda é pouco conhecida e os comentadores hesitam quanto ao local de sua classificação. O autor se propõe, assim, a fazer uma breve apresentação da mereologia brentaniana e, a partir dela, esboçar apontamentos para possíveis interpretações de seu papel no conjunto da filosofia de Brentano.

“‘Abschied vom immanenten objekt’: concepções de intencionalidade na escola de Brentano” é o título das reflexões de Dario Teixeira. Partindo de uma nota de Brentano, de 1895, onde se lê: “minha escola distingue [da psicologia genética] uma psicognose… que expõe o conjunto completo dos componentes psíquicos últimos a partir de cuja combinação se obtém a totalidade dos fenômenos psíquicos”, Teixeira busca enfatizar o modo como Brentano destaca seu método e seu programa de trabalho como elemento unificador daqueles que se guiam por sua orientação. O que é pretendido por ocasião da distinção entre a disciplina, comumente chamada de psicologia descritiva, nas preleções de Brentano do fim da década de 1880, em relação a uma psicologia genética, diz respeito a seu caráter não explicativo — causal. Refere-se, antes, ao modo analítico-descritivo de identificar, com base nos dados da percepção interna, os elementos caracterizadores dos fenômenos de consciência geral. Assim, demonstra o autor que ser um membro da escola de Brentano seria, sobretudo, praticar com rigor científico o esclarecimento analítico-descritivo dos fenômenos de consciência e, de saída, do próprio fenômeno de ser consciente, que marca o campo genérico da psicologia.

Em outros dois capítulos, intitulados “Sobre os objetos intencionais” e “Análise intencional e semântica do conteúdo judicável”, respectivamente, Celso Reni Braida busca, no primeiro, apresentar e discutir o conceito de objeto intencional na medida em que a noção é utilizada também para explicitar o significado de expressões linguísticas. O autor considera que o problema de fundo pode ser identificado como sendo a delimitação da objetividade de frases que expressam julgamentos e proposições. Alerta, ainda, que a função teórica do conceito de objeto intencional, enquanto parte de uma teoria da expressão na escola de Brentano, sobretudo na análise do uso de expressões designadoras, como no caso dos nomes próprios e comuns, têm sido questionadas pelas soluções alternativas de Bolzano e Frege. No segundo, por sua vez, Braida se detém no problema da fundamentação das ciências do espirito e das ciências formais, legado por Kant. Indica que esse particular foi enfrentado e solucionado de diferentes maneiras no século XIX. Busca esclarecer que os procedimentos de análise intencional-fenomenológica e de análise lógico-semântica têm seu cerne na ideia de que é possível garantir a objetividade de enunciados e juízos que ultrapassam os limites impostos pela analítica kantiana. Para isso, detalha o fato de que, no referente ao ponto de partida, Brentano e Frege inovam ao tomar a atividade de enunciar e julgar enunciados como verdadeiros ou falsos como o que tem de ser explanado. A ideia é explicitar o que está envolvido na atividade de julgar, afirmar e negar pensamentos.

A leitura desta obra, em suas partes constitutivas, está bem longe de criar zonas de conforto. O alcance de cada um dos textos nos permite presenciar não só os movimentos internos e, por assim dizer, suas consequências imanentes, mas, sobretudo, os vínculos externos que fazem do pensamento do mestre alemão uma condição necessária para o desenvolvimento posterior da filosofia no século XX. A obra, definitivamente, não é um manual de noções elementares para notícias preliminares em aulas de filosofia. Seu conteúdo, de larga amplitude, permite que se coloque Franz Brentano em seu lugar de destaque como um dos iniciadores da filosofia do século XX.

Bortolo Valle – Doutor em Comunicação e Semiótica (PUCSP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Professor titular do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) e da Faculdade Vicentina de Filosofia (FAVI), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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O pensamento antropológico de Wittgenstein – PERUZZO JÚNIOR (RFA)

GEBAUER, Gunter. O pensamento antropológico de Wittgenstein. São Paulo: Loyola, 2013. Resenha de: PERUZZO JÚNIOR Léo; BORGES. Valdir. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.26, n.38, p.435-439, jan./jun., 2014.

Voltado para uma concepção antropológica sobre a obra de WiĴgenstein, Gunter Gebauer, professor de Filosofia e Sociologia do Esporte na Universidade Livre de Berlim desde 1978, apresenta como tese de sua obra, O pensamento antropológico de WiĴ genstein, aquilo que teria destruído a teoria da afiguração do Tractatus. Gebauer toma como ponto de partida a intitulada “virada antropológica” de WiĴ genstein, que teria ocorrido entre 1929 e 1931. Além de um projeto audacioso sobre os limites da linguagem, o filósofo vienense mostraria um estilo novo de pensar presente no próprio estilo de escrita pois, em WiĴgenstein, “vida e filosofia são como a frente e o verso de suas folhas manuscritas, recto e verso. A reflexão filosófica é parte de sua vida” (GEBAUER, 2013, p.14).

O texto de Gebauer, com dinamismo filosófico, pretende perpassar a obra de WiĴgenstein em seu conjunto, desde a perspectiva da linguagem envolta na práxis do referido filósofo, passando pela concepção de mundo até voltar-se ao pensamento antropológico presente nas entrelinhas dos manuscritos wiĴgensteinianos. Podemos captar o pensamento antropológico de WiĴgenstein ao tentar captar os gestos como o uso do corpo, o método da operacionalização do emprego da linguagem como expressão do corpo entendida pela coletividade como uma aprender a fazer no cotidiano da vida. Além disso, a corporeidade presencializa o ser humano, especialmente naquilo que tange às suas relações essenciais, dentre as quais estão os gestos e os símbolos. O ser humano, além de ser um ser de relações, é um ser simbólico, ou seja, de uma realidade conhecida, imanente, chega a uma realidade transcendente, desconhecida. E transcendência e relação são as duas categorias fundamentais do ser humano que, juntamente às suas estruturas fundamentais — corpo, alma e espírito —, constituem a totalidade de sua dimensão antropológica. Nesse sentido, Gebauer é enfático ao provocar o leitor agregando uma nova compreensão gramatical que subjaz aos gestos, buscando elucidar o mostrar wiĴgensteiniano. Sobrepõem-se aos gestos uma verdadeira gramática corporal que ultrapassa a teoria figurativa do Tractatus, uma vez que WiĴgenstein não busca mais uma forma geral da proposição. Na filosofia tardia, o autor vienense se remete à busca da contextualização dos gestos no espaço coletivo dos jogos de linguagem, perfazendo um itinerário filosófico que abre espaço para a hermenêutica expressa nos gestos linguísticos.

Desta forma, o autor tenta decifrar as intenções e perspectivas subjacentes aos jogos de linguagem, elucidando, assim, a gramática dos referidos jogos. Nesses jogos, existe uma intenção peculiar e uma produtividade da ação linguística, tornando necessário o aparecimento do eu cognoscente como limite do mundo. Esse elemento que já havia sido enunciado no Tractatus, agora, é explicado especialmente nas Investigações Filosóficas. “O posicionamento de WiĴgenstein a partir de Investigações corresponde a uma simplificação e esclarecimento dos emaranhados filosóficos, partindo da análise da linguagem ordinária, que passa a ser vista independente de uma estrutura apenas de cunho sintático e semântico” (PERUZZO Jr., 2011, p.49). Por isso, a linguagem não é um modelo uniforme como expressa Agostinho, mas está aberta para a produtividade que aparece a partir das relações humanas vividas ou experienciadas na conexão com o mundo. É nele que se dá a concordância entre os diversos jogadores que se dispõem a praticar o jogo. Mas, como esses jogadores mantêm concordância entre si? Tal pergunta pode ser respondida porque, segundo Gebauer, WiĴgenstein apela para a necessidade de autorreferencialidade advinda do papel das regras. Elas são responsáveis por orientar o comportamento e garantir a normatividade do discurso de nossa gramática superficial e profunda.

Segundo Gebauer (2013, p.171),

no jogo de linguagem, aos jogadores são atribuídos dois tipos de posições. Há o eu, que inicia um jogo e define qual jogo é jogado: quais são seu tema e sua estrutura. Em relação a ele, os cojogadores, se encontram no papel da pessoa abordada, você, que recebe as contribuições do eu, responde, comenta e eventualmente as corrige. […] O modelo de jogo de WiĴgenstein delineia a distribuição das posições do jogo como um processo dinâmico; cada cojogador pode, por princípio, assumir o papel do fazedor do jogo. Contanto que o jogo seja igualitário […].

Ou seja, no jogo de linguagem, além de haver autocomprometimento e autorrelação, há um comprometimento coletivo e um processo de inter-relação entre os participantes.

Cada participante do jogo de linguagem o interliga à sua vida, que como causador do jogo, pode exigir a cooperação dos demais cojogadores. Por isso, traz em si a responsabilidade e a corresponsabilidade no uso e na alteração das regras durante o jogo. Nesse sentido, Gebauer resgata que a dimensão da linguagem é pensada por WiĴgenstein como um sistema complexo assentado sobre uma série de outras práticas. É necessário salientarmos que, assim como na metáfora das ferramentas, uma das principais fontes da falta de compreensão, segundo Wittgenstein, é ver toda uma mitologia embutida na linguagem (WITTGENSTEIN, 1996, § 422-426, 2012, § 90).

Nessa corresponsabilidade, na qual interagem os diversos jogadores, deve-se considerar os problemas éticos. Segundo Gebauer, eles foram excluídos da filosofia por WiĴgenstein, pois não podem ser ditos ou discutidos por meio da própria filosofia. “No entanto com duas exceções: Conferência sobre Ética e as últimas reflexões na segunda parte das Investigações Filosóficas” (GEBAUER, 2013, p.172). A inspiração de Gebauer para esse tipo de argumento pode ser considerada uma leitura um pouco leviana do Tractatus e, com isso, uma interpretação cientificista dos tipos de proposições realmente dotadas de valor. Uma dedicada atenção para esse aspecto permite não reduzir a filosofia de WiĴgenstein a certos antagonismos ou jargões neopositivistas já cunhados na história da filosofia.

O discurso do mundo é sempre o discurso de uma vontade ética, nem sempre perscrutável. Essa é a tese, por exemplo, que subjaz ao trabalho Ética e Lógica no Tractatus de Wittgenstein (BORGES, 2008, 13-15, 44-52), que propõe uma conciliação entre a análise lógica e o projeto ético de WiĴgenstein. Para esclarecermos tal questão, precisamos considerar a Conferência sobre ética, de 1929, na qual WiĴgenstein expõe suas principais ideias sobre aquilo que a ética não é:

Meu único propósito, e creio que o de todos aqueles que trataram alguma vez de escrever ou falar de ética ou religião, é arremeter contra os limites da linguagem. Este arremeter contra as paredes de nossa gaiola é perfeita e absolutamente desesperador. A ética, na medida em que surge do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência (WITTGENSTEIN, 1989, p.43).

A admissão de um olhar sobre a ética, nas Investigações, mostra que os jogos de linguagem acontecem no cotidiano da vida, onde se determinam as regras em que jogadores e cojogadores participam de um acontecimento, no qual os desconcertos e os desassossegos provocam fortes sensações e reações de comportamento. Nessa práxis, não se pode passar sem a reflexão ética, pois o jogo exige corresponsabilidade dos envolvidos. Sendo assim, é no contexto de comprometimento e autorrelação que a filosofia pode levantar exigências éticas. É com o que concorda Gebauer:

A expressão linguística de sua autorrelação é o lugar em que a filosofia pode levantar exigências éticas […]. Inúmeras observações do WiĴgenstein da última fase criativa tratam de uma eticalização do falar de si mesmo. Uma atitude ética exigida onde há de fora um ponto cego para a compreensão do jogo de linguagem. Quem toma a liberdade com essa situação comporta-se, segundo o julgamento de WiĴgenstein, desonestamente e, com isso, é eticamente reprovável (GEBAUER, 2013, p.173).

Cremos que ao reafirmar a dimensão da ética, inerente ao ser humano no que tange às suas interações e inter-relações, Gebauer está apontando para um comprometimento com o desenvolvimento de uma nova leitura sobre o pensamento de WiĴgenstein. Por isso, a dedicação dispensada por Gebauer ao tema, especialmente nos últimos dois capítulos de sua obra, é reveladora. Longe de retornar a lugares comuns, seus aportes inscrevem uma novidade substancial à temática wiĴgensteiniana.

Referências

GEBAUER, G. O pensamento antropológico de WiĴgenstein. São Paulo: Loyola, 2013.

BORGES, v.Ética e lógica no Tractatus de Wittgenstein. Curitiba: Vicentina, 2008.

PERUZZO Jr., L. WiĴgenstein: o interior numa concepção pragmática. Curitiba: CRV, 2011.

WITTGENSTEIN, L. Conferencia sobre ética. Trad. Fina Burulés. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1989. (Pensamiento contemporâneo).

WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Vozes, 1996.

WITTGENSTEIN, L. Da certeza. Lisboa: Edições 70, 2012.

Léo Peruzzo Júnior – Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e do Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

Valdir Borges – Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: [email protected]

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Pólis e nómos: o problema da lei no pensamento grego – OLIVEIRA (RA)

OLIVEIRA, R. R. Pólis e nómos: o problema da lei no pensamento grego. São Paulo: Loyola, 2013. Resenha de: TABONE, Danilo Andrade. Revista Archai, Brasília, n.12, p.197-200, jan., 2014.

A obra do filósofo Dr. Richard Romeiro Oliveira objetiva explicitamente, através de “reflexões de  caráter jurídico e ético nas obras de variados autores”(p. 9), fornecer “um panorama dos principais momentos que marcaram o desenvolvimento [da]  reflexão legal na Hélade. Trata-se, pois, de tentar acompanhar o nascimento e as principais transformações ou vicissitudes do pensamento jurídico no mundo grego “(p. 13, grifo meu). Desde o título se estabelece a proposta de pensar a relação entre a noção de nómos (lei) e a emergência da pólis. Este tema mais amplo é tratado no primeiro capítulo,  ‘A formação da pólis e a descoberta da lei escrita’, onde, em uma abordagem chamada de “histórico-genética”, o autor percorre o desenvolvimento das concepções legais desde o período micênico até a época clássica, relacionando-as com a origem da  pólis e o desenvolvimento da democracia em Atenas.

Os dois capítulos seguintes tratam mais especificamente das especulações filosóficas a respeito da lei no curso do séc. V a.C.: no capítulo 2, ‘A  oposição sofística physis x nómos e a desconstrução filosófica da ideia de lei’, aborda a oposição entre esses dois conceitos no pensamento sofista, que  passa a questionar a soberania do nómos como era até então entendida pelos pré-socráticos, a qual  passa a ser vista como mera criação humana. capítulo 3 ‘Lei e racionalidade em Platão’, trata da questão no pensamento político de Platão, onde o tema aparece como uma resposta que se contrapõe à relativização defendida pelos sofistas.

A partir do título temos uma questão que é de ordem histórica/cultural: a emergência da pólis e da noção de nómos. Mas ao reduzir o fenômeno pensamento unicamente àquele presente no discurso filosófico, pretendendo, por exemplo, que uma “crise [da] tradição legalista e nomotética [surja] a partir da ascensão do convencionalismo sofístico”(p. 13), o autor se afasta de uma concepção de pólis como fenômeno cultural mais amplo. O pensamento no  mundo grego Antigo não se resumia à Filosofia;  redução que é estruturada e por conseguinte acaba estruturando uma série de equívocos sobre as culturas gregas Antigas. Esta resenha, por isso, assumirá uma posição crítica com relação aos conceitos adotados tanto para pólis quanto para nómos.

A abordagem “histórico-genética”adotada  pelo autor no primeiro capítulo, acaba por redundar em uma evolução de tipo teleológico, culminando em uma secularização/racionalização do pensamento grego na Atenas democrática do séc. V a.C. Baseado em Jean-Pierre Vernant (1970), o autor  percebe uma pólis aberta a racionalização, com a transformação de um “saber secreto de tipo místico”de época micênica/homérica 1, onde o “direito”estava subordinado ao poder do basileús/ ánax, em um corpo de verdades divulgadas, que passam a ser escritas, constituindo um “direito positivo”.

Isto traz alguns problemas que dizem respeito à natureza da pólis. Como falar em ‘secularização’ em Estados que não tem cleros, mas religiões  próprias, que sorteiam seus magistrados (cargos  que são também religiosos), onde procedimento e penalidade, inclusive o julgamento e a condenação por homicídio, são governados pelo medo do miásma – e não por se conceberem ‘direitos humanos’ – que lapidam anualmente um pharmakós, que processam por impiedade? (DELCOURT, 1964). Em outras palavras, póleis enquanto comunidades que se definem pela participação comum de seus membros no culto. E ao falar na emergência de um “espaço público” como prova de uma “nova forma de sociabilidade”, secularizada (p. 17ss), mas desconsiderando a  evidência da Arqueologia, o autor se priva de reconhecer a importância das áreas sacras na divisão do território público das  póleis. Vale lembrar que  na ágora de Atenas estavam as estátuas dos heróis epônimos, o altar de Zeus Agoraios, dos Doze Deuses, de Ares, entre outros monumentos sacros que também dominavam a paisagem ao redor, como o Hefesteion e o próprio complexo da acrópole, o que mostra a inconsistência da tese que procura ver a pólis como um mundo secularizado.

Segundo ponto. Nesta imagem de uma pólis secularizada surge o nómos enquanto norma humana em oposição ao thémis / thesmós como norma de origem divina; fenômeno que se relaciona com a origem de uma pólis entendida como uma “comunidade  citadina e urbana”(p. 31), onde há descentralização e coletivização do poder. Em outras palavras, é afirmado que o surgimento do “direito positivo”se relaciona com a emergência da democracia em  Atenas, entendida como uma “forma superior de  organização do poder”(p. 41).

Para Oliveira, o elemento gerador de “mudanças no paradigma legalista”(p. 64)  rumo à  “secularização da lei”foi o surgimento do debate no contexto democrático, quando o nómos teria passado a ser entendido como “mero decreto humano”. O autor busca sinais dessa mudança de paradigma no discurso trágico. Em sua análise da  Antígona de Sófocles, a presença de um conflito entre dois princípios de justiça (ambos nomeados como nómos) – o direito dos homens (encarnado em Creonte, o rei de Tebas) e o direito dos deuses e sua Justiça (encarnado em Antígona) – é visto como evidência para alegar a secularização da noção de lei. Mas  em uma análise mais cuidadosa, onde se considere a tragédia sofocleana em seu contexto, entende-se que o embate acontece entre uma lei ancestral/ divina e a lei de Creonte, que aparece virtualmente como tirano (aparecem os termos basileús, ánax e estratego), este sim, para os atenienses, em conflito com as leis divinas. No diálogo entre Creonte e seu filho Hemon, este questiona o decreto do pai afirmando que a “cidade de Tebas”com ele não  concordava, [ οὕ φησι Θέβης τῆσδ` ὁμόπτολις λεώς ] (Soph. Ant. 732), ao que o rei questiona se a cidade deve dizê-lo como agir [ πόλις γἁρ ἡμῖν ἁμὲ χρὴ τάσσειν ἐρεῖ;] (Soph. Ant. 733). Então Hemon lhe responde que “não há cidade que seja de um só”(Soph. Ant. 738-739). Vale lembrar o coro no início da peça, que ao exaltar os feitos humanos, cita as “leis da cidade”, ἀστυνόμους (Soph. Ant. 355), a mesma cidade que Creonte não quis ouvir. No final da tragédia descobrimos que os tebanos  haviam reconhecido a importância de se observar  as leis dos deuses, e que foi Creonte, governando sozinho, que não a reconheceu.

Do ponto de vista do ateniense Sófocles está em questão a lei do tirano como um governante  injusto e peremptório, apresentando a tirania como um regime nocivo, onde inexiste o debate de ideias, critério tido como essencial para se chegar às leis justas. Mas esta noção não dá conta do fenômeno no “pensamento grego”como um todo, primeiro ao desconsiderar que a pólis nunca deixou de ser um mundo essencialmente agrário – e que a urbanização de Atenas esteve longe de ser a regra para as demais póleis, o que não as impediu de terem leis escritas (nómoi) votadas em Assembléias (como as póleis e os éthne da Beócia ou da Arcádia, onde a fundação de Megalópolis para servir de centro da Federação foi um fenômeno relativamente tardio, na metade do séc. IV a.C.); também desconsidera o fato de  muitas póleis nunca terem experimentado o regime democrático: Cirene, no norte da África, sempre  foi uma monarquia; e diversas  póleis  viveram sob  regimes oligárquicos, aristocráticos ou em tiranias durante grande parte de sua história, muitas das  quais contando com a aprovação de contingentes  expressivos da população – caso da aclamação  popular de Hieron de Siracusa (Diodoro 11.26.5-6; 67.2.3; HIRATA, 2010, p. 27) – o que leva a crer  que os gregos viam vantagens também neste tipo de governo e que a sua condenação fosse parte de um discurso construído por pensadores atenienses de época clássica (LEWIS, 2006). Assim, não é  possível definir a pólis ou o surgimento de um  “direito positivo”exclusivamente pela existência  de participação política (democracia).

É notável, com isto, que não havia unidade substancial na experiência jurídica do mundo grego, mas sim diversidade local – sobre o que Finley (1989) chamou atenção em um ensaio paradigmático – o que, então, não permite que se fale em  direito grego, ao modo como é possível falar em  um direito romano, e o que a citação do De Legibus de Cícero na epígrafe do livro erroneamente sugere.

De toda forma, estudiosos da lei na Grécia  Antiga como Barbara Agnastou-Canas (2001) e  Ilias Arnatoglou (2003) têm ressaltado o caráter  sagrado dos nómoi também em póleis democráticas, onde se acreditava que as leis eram inspiradas pelos deuses através  do debate público – o debate se  apresenta como elemento de sacralização da lei e não de secularização. Assim como a sua inscrição, o que Rosalind Thomas (1995) reconhece como uma busca por monumentalidade e proteção divina, na medida em que se acreditava que o ato de inscrever as leis em uma pedra as faria desfrutar da mesma respeitabilidade que as normas consuetudinárias,  que não eram questionadas.

O nómos possuía um caráter de permanência, de substância da norma. Em Atenas, ao seu lado, surge outro termo no período Clássico, o psefisma (decreto), para se referir a medidas circunstanciais e provisórias, mas que não poderiam ir contra o estabelecido nos nómoi (AGNASTOU-CANAS, 2001, p. 105). A distinção era formal e consistia na diferença em seus respectivos modos de elaboração, assim como nos procedimentos utilizados para controlar sua conformidade com a nomima (conjunto de leis ou costumes) que formava a  politéia  (constituição), a ordem jurídica  da cidade (sobre esta discussão, cf. HANSEN, 1978, p. 315-330), instituída desde as reformas de Drácon, Sólon e Clístenes – que inclusive eram tidos como  homens excepcionais (heróis) e cujas leis, conhecidas como thesmoi, estavam acima da mera criação humana (cf. MOSSÉ, 1979). São conhecidos outros casos de leis que buscavam assegurar a permanência da ordem jurídica, evitando a promulgação de leis conflitantes e a subversão da  politéia, como a de Zaleucos em  Locres Epizefiri (Estrabão. 6.1.8), de c. 663 a.C., ou outra em Elis (Nomina I, 108) do séc. VI a.C. Esta permanência do nómos estava imbuída por uma ideia de sacralidade: a nomina garantia a estabilidade da politéia, reflexo da ordem cósmica, a qual uma vez ameaçada poderia redundar em desequilíbrio, hýbris – que engendra “homens fortes”, caminho para a tirania (Teógnis 43-44) – ou uma stásis (51-52), entendida como “caos”(Políbio 4.21.4; 21.11), no sentido  de ‘ausência’ de possibilidade de civilização, que  é justamente o que os  thésmoi  preservam, “o que  está fixado”. Em certo sentido, o nómos garante as condições para que o thésmos / thémis seja observado, sendo possível a vida civilizada – ao mesmo tempo urbana e agrária.

Uma das raízes dessa concepção da pólis e da lei provém das fontes consideradas pelo autor. Tal estudo não pode desconsiderar a evidência literária, mas muito menos a da Epigrafia, testemunho privilegiado – e sem intermediários – que fornece nomes de comunidades cívicas e étnicas, textos integrais de decretos, tratados e regulações sobre instituições e festas religiosas, e que permite a consideração  dos usos, dos significados e das “transformações  ou vicissitudes do pensamento jurídico”em uma  relação direta com a realidade das  póleis. A obra  falha, assim, pela ausência de erudição documental e filológica, assim como hermenêutica.

Desde a renovação dos estudos sobre a lei por Louis Gernet (1968), o enfoque antropológico, do que a análise semântica dos textos e dos termos foi um método profícuo, possibilitou perceber a relação entre lei e poder como exercido no interior da sociedade. Por outro lado, não é mais possível que este enfoque desfaça a História (suspendendo o tempo) e se feche em uma cidade (Atenas), excluindo os  conflitos políticos no interior das póleis. É necessário, assim, pôr de lado a oposição existente entre pólis como ‘comunidade’ ou como ‘Estado’ (koinónia ou politéia), em um enfoque antropológico que também considere o político, entendido não enquanto práticas específicas, mas como domínio difuso nas demais instituições sociais, incluso religiosas.

Nota

  1. Ao reconhecer um fundo micênico nos poemas homéricos, o autor confunde esse passado com o “mundo homérico”, eximindo-se, por isso, de recorrer a fontes de época micênica, e de perceber que o mundo onde emergem as póleis nos séculos IX-VIII a.C., e que se reflete nos épicos, corresponde a outra realidade que não a micênica.

Referências

ANAGNASTOU-CANAS, B. (2001) Le droit grec: de la  cité classique à l’Egypte hellénistique et romaine.  École Pratique des Hautes Études. Section des Sciences  Historiques et Philologiques, Ano 15.

ARNATOGLOU, I. (2003) Leis da Grécia Antiga. São Paulo, Odysseus.

DELCOURT, M. (1964) Vernant (J.-P.), Les origines de la pensée grecque.  Revue Belge de Philologie et d’Histoire, v. 42, n.2.

FINLEY, M. (1989) O problema da unidade do direito grego. In. Uso e abuso da história. São Paulo, Martins Fontes.

GERNET, L. (1968) Droit et prédroit, Droit et ville dans  l’antiquité grecque. In. Anthropologie de la Grèce Antique. Paris, François Maspero.

HANSEN, M. H. (1978) Nomos and Psephisma in Fourth- Century Athens. GRBS, v. 19.

HANSEN, M. H. (1993) The Ancient Greek City-State.

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LEWIS, S. (2006) Ancient Tyranny. Edimburgo, Edimburgh University Press.

MOSSÉ, C. (1979) Comment s’élabore un mythe politique: Solon, “père foundateur”de la démocratie athénienne.  Annales ESC, v. 34, n. 3.

MURRAY, O. (1992) Cités des raison. In. Simon Price (ed.). La Cité grecque d’Homère à Alexandre. Paris, La Découverte.

POLIGNAC, F. (1997) Anthropologie du politique en Grèce ancienne. Annales ESC.

THOMAS, R. (1995) Writing in stone? Liberty, equality,  orality and codification of Law.  Bulletin of the Institute  of Classical Studies, v. 40, n. 1.

VAN EFFENTERRE, H.; DEMARGNE, J. (1937) Recherches à Dréros, II Les inscriptions archaïques. BCH, v. 61.

VERNANT, J-P. (1970) Origens do pensamento grego. Rio de Janeiro, Difel.

Danilo Andrade Tabone – Mestre em Arqueologia, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.

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Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias – BAERTSCHI (C)

BAERTSCHI, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias. Trad. Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2009. Resenha de: WEBBER, Marcos André. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 163-166, maio/ago, 2013.

Bernard Baertschi é professor e pesquisador no Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Ao lado da pesquisa sobre a filosofia francesa dos séculos XVIII e XIX, Baertschi possui muitos livros e artigos publicados com o foco voltado ao pensamento ético, especialmente no que se refere aos fundamentos da ética, à ética das biotecnologias e à neuroética.

Atualmente, é titular da disciplina de Bioética no Instituto de Ética Biomédica e do Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Leia Mais

Os Pré-Socráticos – CASERTANO (RA)

CASERTANO, G. Os Pré-Socráticos. Trad. de Maria da Graça Gomes de Pina. Col. “Sabedoria Antiga”. São Paulo: Loyola, 2011. Resenha de: PEIXOTO, Miriam C. D. Revista Archai, Brasília, n.7, p.145-149, jul., 2011.

Em um prefácio escrito para o livro de I.Pozzoni, I Milesi. Filosofia tra oriente e occidente, Giovanni Casertano propõe uma reflexão que seria, a nosso ver, um preâmbulo para o seu próprio livro obre os Pré-Socráticos:

Lembro-me que quando comecei a estudar os Pré- Socráticos alguém me disse: «Ah! Quer dizer que você se ocupa do nada.”A tirada era significativa de muitas coisas; mas, para o que aqui nos interessa, ela sintetizava um modo de ver os estudos de filosofia antiga bastante sintomático. Com efeito, como todos sabem, não possuímos nenhuma obra daqueles que são designados Pré-Socráticos. Até mesmo a denominação Pré-Socráticos foi posta em duvida, mostrando-se a inadequação seja de um ponto de vista histórico (alguns Pré-Socráticos são com efeito contemporâneos de Sócrates, e alguns também de Platão), seja de um ponto de vista teorético (não é possível falar dos Pré-Socráticos como de uma categoria filosófica porque, se assim fosse, ela cobriria aspectos e doutrinas muito diferentes entre els). Mas, se falar dos Pré-Socráticos significa falar do nada, este nada, como demonstram pelo menos os estudos dos últimos cinqüenta anos, revelou-se muito substancioso.

Quando lemos o seu livro, damo-nos conta, de fato, quão substanciosa permanece ainda a pesquisa sobre os primeiros filósofos e o quanto ainda há por ser dito sobre o que pensavam. Examinemos os delineamentos que constituem, a nosso ver, a singularidade da sua “leitura”dos Pré-Socráticos e são o seu cavalo de batalha nos confrontos com os testemunhos e fragmentos que são os porta-vozes das suas opiniões e doutrinas.

Os Pré-Socráticos  nos apresenta, em forma de ensaio, um panorama da filosofia denominada Pré-Socrática compreendendo os problemas de ordem metodológica e hermenêutica, pondo em evidencia os temas e as teses mais importantes entre aqueles de que se ocuparam os filósofos anteriores a Platão em suas investigações. Este período da historia da filosofia cuja denominação foi fixada em conseqüência do emprego do termo Vorsokratiker por Hermann Diels na sua coletânea de testemunhos e fragmentos destes filósofos, mostra-se cada vez mais importante quando se percebe a sua significativa contribuição para a compreensão das filosofias de Platão e de Aristóteles. Todavia é preciso esclarecer os limites do termo para entender o caráter das informações que nos fornece sobre esta geração de filósofos. Casertano, como o fazem hoje os estudiosos mais cuidadosos em suas interpretações deste período da história da filosofia (temos em mente, por exemplo, os recentes volumes publicados ou organizados por A. Laks, entre outros), serve-se ainda do termo, como ele próprio diz, “por comodidade”, e nos recorda – são as suas palavras – que

… se é preciso conservar o adjetivo pré-socrático, ele não pode indicar uma ou mais características comuns à “filosofia”de um certo período, mas indicar apenas que um certo pensador viveu  grosso modo antes de Sócrates. (…) a novidade da atmosfera cultural que se começou a criar na Grécia e nas colônias gregas entre os séculos VI e V a.C. não pode ser determinada com base naquilo que ela “ainda não é”, isto é, a filosofia de Sócrates, e de Platão que fala de Sócrates, mas, pelo contrario, com base naquilo que ela “já não é”, ou seja, em relação às culturas anteriores à grega e à própria cultura grega antes do século VI. (p. 24-25).

Vale notar que o autor prefere falar de “filósofos pré-socráticos”que de uma “filosofia pré-socrática”, consciente da inexistência de um fundo homogêneo do qual emergiriam as suas doutrinas.

Consciente dos problemas inerentes em uma empresa desta natureza, Casertano inicia o seu livro por um exame do que ele denomina o “paradoxo da pesquisa histórica”, isto é, o desafio que representa o desejo de compreender o passado mesmo sendo homens do presente. Vejamos o que ele diz a esse respeito:

Por um lado, isto é, se queremos compreender uma forma cultural do passado, e a mentalidade própria dos homens que a produziram, não podemos atribuir àquele passado e àqueles homens esquemas e atitudes mentais próprias aos homens de hoje. Mas, por outro lado, não podemos tampouco espoliarmo- nos de todo da nossa cultura e da nossa mentalidade de homens de hoje no momento em que realizamos uma pesquisa histórica sobre uma época passada, porque qualquer que seja a investigação que desenvolvemos seremos sempre nós, hoje, a realizá- la, nós com os nossos problemas, os nossos interesses, a nossa cultura. (p. 14).

De fato, o ato de individuar temas e problemas, de selecionar as fontes a privilegiar, testemunhos e fragmentos, traz em si um elemento subjetivo que além disso determina nossas escolhas. O elenco dos Pré-Socráticos que figuram em seu livro corresponde a uma orientação que tem por escopo apresentar a emergência dos problemas que segundo o autor constituem os delineamentos mais significativos do seu pensamento. Mesmo se eles são reunidos com respeito a estes temas e problemas, não permanecem isolados juntos aos seus próximos, mas são confrontados aqui e ali para ressaltar o diálogo entre as idéias e doutrinas e tornar evidente a natureza processual do pensamento que vai de um a outro filósofo. De Epimênides aos Milésios, passando pelos Pitagóricos, pela poesia filosófica de Parmênides e dos demais eleatas, Heráclito, Empédocles, os primeiros filósofos de Atenas, isso é Anaxágoras, Diógenes de Apolônia e Protágoras, até os atomistas. Casertano insere um capítulo sobre a medicina e a matemática dos séculos V e IV que em muito concorre para a inteligibilidade do percurso proposto. Vemos aparecer, um após outro, os principais problemas dos quais se ocuparam filósofos e homens de ciência e que podem ser reunidos sob a égide daquele problema no qual todos os demais encontram a sua origem: aquele da descoberta de um cosmo eterno, sem nascimento nem morte, diferente mas não estranho ao mundo fenomênico dos nascimentos e da mortes, em outras palavras, como escreve Casertano, “uma realidade única imutável, no interior da qual se desenrolam as vicissitudes das coisas que vêm a ser e que mudam”, “uma única realidade que, para ser compreendida, deve ser estudada e pensada a partir de dois pontos de vista: aquele da totalidade e da unicidade, e aquele da particularidade e da multiplicidade”(p. 84).

Ao longo de seu livro, Casertano deixa aparecer os diversos matizes desta enquête, identifica os núcleos problemáticos e as linhas de reflexão comuns, mostrando como emergem, no seu interior, os outros problemas que configuram horizontes de investigação: a alma, o conhecimento, a linguagem e a ética, diferentes campos de manifestação dos basilares problemas da unidade e da multiplicidade, da identidade e da diferença, do visível e do invisível. Neste fundo emergiu a reflexão sobre o corpo e sobre a alma, sobre o conhecimento sensível e o intelectivo, nos  quais  estes  aparentes  opostos  são considerados  em  sua  imediaticidade  e contigüidade.

Enfatiza-se, a cada vez, o caráter de ruptura, particularmente no campo das certezas, seja no que concerne a continuidade com relação à tradiçao mito-poética grega, seja no que concerne aos aspectos da cultura precedente. Em suma, na sua crítica aos estudiosos que afirmam uma radical contraposição ou a mecânica passagem de uma mentalidade a outra, Casertano adverte:

…é importante não formar uma idéia simplista da passagem de uma época e uma cultura afilosóficas ou pré-filosóficas a uma época e uma cultura em que a filosofia nasce e floresce: ou seja, não se forme a idéia de um “salto”ou de um só “passo crucial”no nascimento daquele tipo de pensamento e de mentalidade que chamamos filosóficos, nem se forme a idéia de um progresso continuo e pacífico de uma mentalidade “alógica”e “irracional”a uma nova mentalidade “lógica”e “racional”. (p. 21-22).

Na reconstrução das doutrinas dos Pré- Socráticos, evidencia-se os aspectos inovadores que caracteriza cada um deles em sua singularidade e, em particular, apresenta-se os elementos que permitem ver a emergência de uma indagação sobre o próprio método de pesquisa e atesta a sua crescente consciência de sua necessidade para se alcançar uma autentica compreensão do macrocosmo e dos seus microcosmos.

A título de exemplo, gostaria de assinalar alguns dos momentos de sua interpretação que incitam a pensar e a repensar os lugares comuns que entrevemos nas diversas empresas de interpretação dos Pré-Socráticos.

No quarto capítulo, intitulado “A poesia filosófica do VI e V século”, ao apresentar a cosmologia de Xenófanes, Casertano defende que encontra-se ali o que poderia ser considerado a idéia-chave para entender o cenário no qual se desenrola a investigação dos primeiros filósofos, a qual se traduz na identificação dos dois planos da realidade cósmica: aquele do que vemos, domínio dos fenômenos, que no movimento dos seus elementos fundamentais encontram-se presos no céu do compor-se e decompor-se, e aquele dos elementos constitutivos, eternos, que não conhecem nem nascimento nem destruição. Este duplo aspecto da realidade concerne o conjunto dos Pré-Socráticos.

A propósito de Parmênides, Casertano observa que o programa do saber revelado pela deusa abraça “todo o campo do saber humano, quer o que a deusa chama de verdade, quer o que chama de experiências”, e acrescenta que “o fato de que das experiências não se possa obter uma pistis alethes, isto é, uma crença, uma certeza verdadeira, não significa que elas não tenham nenhum valor, mas apenas que elas têm um valor diferente das primeiras…”(p. 86). Parmênides é apresentado como o inventor de um método de pesquisa – posição esta que já havia defendido o autor em seu  Parmenide il método la scienza l’esperienza  (Nápoles, 1989) – cujo pressuposto teorético consiste em reconhecer que “as leis que governam a realidade governam também o pensamento que reflete sobre a realidade”(p. 85), o que se pode concluir, segundo ele, da interpretação do fragmento 3: “de fato é a mesma coisa pensar e ser”(DK 22 B 3). Como conseqüência sustenta a tese que Parmênides “concebe fisicamente aquilo que é ”, isto é, o “to eòn “não seria outra coisa que “o cosmo entendido na sua totalidade”, o cosmo inteiro, uno-todo dos Pré-Socráticos, eterno, fora do tempo, que não nasce e não morre, imóvel; e “ta eònta ”, “as coisas que são”, as coisas que nascem e morrem, as coisas que se movem, que mudam, isto é a multiplicidade dos fenômenos. Casertano nega assim a existência de duas realidades distintas, afirmando não haver uma

contraposição  entre realidade e não-realidade, entre um “ser”metafisicamente pensado e um “aparecer”que é condenado, mas antes uma distinção entre o discurso que se deve fazer sobre a realidade como uno-todo e o que se deve fazer sobre a realidade como multiplicidade de fenômenos. (p. 86).

A novidade de Parmênides comporta, segundo Casertano, um duplo aspecto: 1/ se “estabelece claramente estas afirmações como conseqüência de dois  métodos diversos de ler a mesma realidade”; 2/ se “justifica logicamente as suas afirmações fazendo referencia ao ‘princípio de não contradiçao’ que depois será teorizado por Aristóteles.”

Quanto aos Pitagóricos, Casertano começa por distinguir, seguindo os passos de Aristóteles, os “primeiros Pitagóricos”e os “segundos Pitagóricos”. Esta distinção constitui uma premissa importante para a interpretação dos Pitagóricos Pré-Socráticos, sobre os quais, segundo o autor, “há pouca história e muitas lendas”. Com base nas concepções comuns aos outros Pré-Socráticos, Casertano se recusa a atribuir aos primeiros Pitagóricos a doutrina da metensomatose, considerando não encontrar ainda formulada uma nítida distinção entre alma e corpo, para o que se apóia nos testemunhos de Platão e de Aristóteles sobre os Pitagóricos nos quais não se faz nenhuma referencia a uma doutrina semelhante. A sua perspectiva aproxima ainda mais os primeiros Pitagóricos dos outros Pré- Socráticos.

No campo das reflexões comuns, Casertano aproxima Pitagóricos e Heráclito em torno da doutrina dos contrários: “O tema da discórdia e da disputa se conjuga com aquele Pitagórico da harmonia-tensão dos opostos.”Um outro ponto de contato entre Heráclito e os primeiros Pitagóricos concerne a interação alma-corpo. Ele o aproxima, ainda, de Parmênides, para fazer de sua enquete a primeira reflexão grega sobre o problema da linguagem e do conflito no “nomear”dos homens. No âmbito da reflexão sobre o problema da linguagem, e em estreita conexão com o problema da possibilidade de um conhecimento verdadeiro, muitas são as perspectivas presentes nos testemunhos, e não somente no que se refere aos sofistas.

Um outro aspecto característico da interpretação de Casertano, consiste em seu esforço em evidenciar o nexo estreito que liga cosmologia e antropologia. Seguindo a via de uma espécie de historia natural se faz derivar dos mesmos princípios cosmológicos uma explicação da vida dos organismos singulares inscritos em um processo de evolução no qual pretendem compreender ao mesmo tempo a vida humana individual e coletiva. Este filão, que começa com Anaximandro, encontra a sua formulação mais complexa em Demócrito e Protágoras. Entre outras coisas, eles se interrogam sobre a geração dos viventes, sobre os papéis respectivos do macho e da fêmea, avançando hipóteses até mesmo no terreno da embriologia.

Com o capitulo sobre os filósofos de Abdera chegamos ao fim deste longo e denso percurso, e reencontramos em seu pensamento não apenas os diversos temas e problemas já presentes nas enquetes dos seus predecessores, e com novas formulações, mas também outros ainda não considerados. De fato, nenhum outro mais que Demócrito diversificou suas vias de enquete. No terreno da física, Casertano reconhece a herança eleata, segundo ele “um modelo ao qual o pensador cientifico não podia mais renunciar”. Tornara-se imperativo encontrar hipóteses aptas a explicar a realidade, escreve o autor, “que mesmo sendo logicamente – racionalmene – corretas e coerentes, oferecessem ao mesmo tempo uma valida justificação de todos os fenômenos particulares, e principalmente do homem, da sua historia, da sua vida”(p. 185). E assim é introduzida a noção de átomo, o qual considera uma solução para o problema levantado na escola eleática: “Todos os corpos dos quais temos experiência são divisíveis, mas para explicar esta sua divisibilidade e as qualidades diversas que eles assumem e as transformações às quais estão sujeitos, é preciso admitir que todos são constituídos por elementos indivisíveis.”(p. 185). Entram em cena os átomos! Ainda uma vez, Casertano encontra ocasião para estabelecer conexões entre as diferentes doutrinas, e o seu esforço para resolver os problemas enfrentados pelos  seus  autores.  Além  de  uma  rica apresentação e discussão dos testemunhos sobre a física dos atomos, nós encontramos no capitulo em que se ocupa dos atomistas, uma exposição acerca de sua historia natural, de sua reflexão sobre o conhecimento e sobre a educação, para alcançar, como conseqüência natural do percurso feito, a um exame dos testemunhos que tratam dos diversos temas presentes em sua reflexão ética: a felicidade, o prazer, o belo, a amizade e a vida política.

Este ensaio, cuja tradução em língua portuguesa inaugura a coleção “Sabedoria Antiga”das Edições Loyola, não é somente mais uma apresentação geral dos filósofos Pré-Socráticos, embora seja também esta a sua finalidade. Se o volume pode ser considerado uma apresentação de conjunto para quem quer conhecer este capitulo da historia da filosofia, é também verdade que ele constitui uma sedutora provocação que nos convida a revisitar estes filósofos, a recolocar em discussão as interpretações  de que foram objeto desde a Antiguidade até os nossos dias.Se è verdade, como pensa Casertano, que a obra de “reconstrução do passado é obra que nunca termina”, estamos de acordo com ele quando afirma que o valor das nossas conclusões e soluções reside precisamente em sua capacidade de suscitar novos problemas e de abrir novas perspectivas para a investigação (p. 13). Encontramos ao longo destas paginas leituras polêmicas e interpretações inusitadas, mas tudo isso não faz senão tronar ainda mais interessante a leitura deste volume. Ele convida o leitor, especialista ou não, a colocar em ação o seu pensamento, a confrontar testemunhos e fragmentos e a dar a sua contribuição para este trabalho interminável de reconstrução e interpretação do legado dos filósofos Pré- Socráticos. O livro é assim coerente com o critério estabelecido pelo próprio autor para a avaliação dos resultados de um trabalho de pesquisa: a sua capacidade de “propor novos problemas e abrir novas vias de investigação”!

Miriam C. D. Peixoto – Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. E-Mail: [email protected]

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Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga – DETIENNE (HH)

DETIENNE, Marcel. Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga. Tradução de Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São Paulo: Loyola, 162pp. Resenha de: BENHIEN, Rafael Faraco. Em defesa de uma antropologia histórica: com os gregos e para além deles. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.352-357 março 2010.

Como seu nome indica, este livro de Marcel Detienne explora certas relações entre os antigos gregos e nós. Ainda assim, em contraposição ao que geralmente se projeta em tais relações, o autor se recusa a reificar por meio delas quaisquer mitos de origem do Ocidente. Da mesma forma, enfrenta com ousadia o discurso corporativista, mais ou menos sofisticado conforme o caso, daqueles que sustentam uma epistemologia própria aos estudos históricos, sejam eles “antigos” ou “modernos”, “nacionais” ou “estrangeiros”. Os Gregos e Nós trata, antes de tudo, da defesa e dos resultados de uma metodologia experimental, o comparatismo.

É bem verdade que tal método nada tem de novo, como sugere o próprio autor ao recuperar alguns dos fundadores da sociologia, da antropologia e da linguística modernas. Com efeito, para Émile Durkheim, Marcel Mauss e Antoine Meillet, aos quais se somaram mais tarde Marcel Granet e Émile Benveniste, a comparação deveria estar no cerne de toda a reflexão sobre essa dimensão específica da Natureza que é o Social. Não por acaso, no prefácio do primeiro volume do Année Sociologique, publicado em 1898, o próprio Durkheim afirmou: “a história só pode ser uma ciência na medida em que explica, e não pode explicar senão comparando. Mesmo a simples descrição é impraticável de outra maneira: não se descreve bem um fato único, ou do qual se possuem raros exemplos, porque ele não é bem observado”. Ora, tanto para Detienne, como para os cientistas sociais por ele citados, não se trata de reafirmar a essência de um objeto dado a priori, mas sim de colocar em cheque o próprio arranjo de questões a partir do qual o pesquisador concebe a série documental a ser estudada. Em outras palavras, o autor se quer herdeiro da tradição que toma o comparatismo como um instrumento privilegiado para dissolver especulações ontológicas.

Mas se o comparatismo já possui uma história considerável, não deixa de ser interessante ver o quanto sua presença é relativamente recente na obra de Detienne. Explico-me. Entre as décadas de 1960 e 1980, intervalo no qual o autor iniciou carreira e conquistou renome internacional, sua adesão ao grupo que tinha por patrono Louis Gernet e por patrão Jean-Pierre Vernant deu-se em sintonia com os estudos helênicos. Detienne notabilizou-se então por estudar exclusivamente as sociedades gregas, em especial seus mitos e sua religião.

Neste período, o comparatismo, embora evocado de tempos em tempos, não produziu muito mais do que as tímidas páginas que servem de anexo a Problèmes de la Guèrre en Grèce Ancienne (1985), cuja organização ele dividiu com Vernant.

A partir de meados dos anos 1970, contudo, em paralelo aos trabalhos do “helenista puro”, Detienne passou a se interessar cada vez mais pela história crítica de certos conceitos-chave em seu próprio métier. Em L’Invention de La Mythologie (1981), por exemplo, sem se ater a recortes temporais institucionalmente estabelecidos, ele procurou analisar a constituição do campo epistemológico que marcou o sentido moderno de categorias como mito e mitologia. Acompanhando seus empregos ao longo dos séculos, ele mostrou como tais termos foram utilizados por especialistas para reafirmar subrepticiamente toda uma série de pré-conceitos, em particular aqueles que servem para opor civilização e barbárie, razão e imaginação.

Tal esforço reflexivo, associado ao rompimento com Vernant, acabou levando Detienne a, na sequência, reavaliar o papel do comparatismo em sua produção. Em trabalhos como Transcrire les Mythologies (1994), Comparer L’Incomparable (2000) e Comment Être Autochtone (2003), o “helenista” foi aos poucos se confundindo com o “antropólogo”. Vale dizer: cada vez mais distante do discurso que localiza nos antigos gregos uma especificidade ontológica em geral dotada de inestimável valor (os inventores da razão, da estética e da política), Detienne se propôs a observá-los a partir do confronto, ancorado em determinadas variáveis, com as mais distintas experiências societárias. Surgem assim outras razões, outras estéticas e outras políticas, todas aptas a iluminarem-se reciprocamente. Poder-se-ia dizer, e isto estaria correto, que tal transformação só foi possível em função das questões e dos conhecimentos acumulados por Detienne enquanto helenista. Não obstante, na medida em que a perspectiva defendida em seus derradeiros trabalhos engendra um desencantamento dos nossos gregos, tornados um entre tantos povos igualmente interessantes, é preciso reconhecer que há também aí um ataque aos valores celebrados nos mesmos espaços em que ele se formou.

Os Gregos e Nós, publicado originalmente na França em 2005, aprofunda ainda mais esta guinada na trajetória de Detienne. Ao longo de seus seis capítulos, o autor ora procura fundamentar intelectualmente sua proposta comparatista, ora apresenta de forma sucinta os trabalhos coletivos que ele coordenou em torno de temas tratados por tal viés. O capítulo que abre o livro, Fazer antropologia com os gregos, por exemplo, apresenta o projeto de uma antropologia histórica da Grécia Antiga. Tal texto opõe, a partir de um balanço da história das ciências sociais, historiadores e antropólogos. Em linhas gerais, para Detienne, enquanto estes se propuseram desde cedo a comparar “incomparáveis”, colocando frente a frente sociedades que lhes pareciam dotadas de dignidades distintas, aqueles estabeleceram genealogias e oposições destinadas a instaurar ou a reforçar o caráter singular de cada experiência societária. É contra esta história do particular, organizada desde o século XIX em torno da categoria de nação, que Detienne conclama os historiadores e antropólogos atuais a se unirem.

O próximo capítulo, Do mito à mitologia, discute as diferentes embocaduras que, desde o século XVI, guiaram o estudo da mitologia. Na primeira parte do texto, o autor explora o estratégico lugar reservado aos gregos por inúmeros especialistas, qual seja, o de guardiões da fronteira que separa o mito e a razão. Para colocar em cheque tal posição, Detienne então recupera a polissemia da própria noção grega de mito e evoca, em seguida, a análise estruturalista como um caminho eficaz para dar conta desta diversidade.

Afinal, sugere ele, trata-se de um método atento à correspondência entre muitos planos semânticos no mais amplo recorte comparatista possível.

Transcrever as Mitologias, o terceiro capítulo, remete aos estudos realizados no livro homônimo que o autor organizou em meados da década de 1990. A questão que guia aqui a análise é a seguinte: como reagem diferentes sociedades ao verem suas tradições orais ganharem suporte escrito? Comparando experiências gregas, romanas, ameríndias, japoneses e judaicas, Detienne evoca os atores das transcrições, bem como a estrutura social que dá sentido a seus atos. Contrastando um e outro caso, ele procura evidenciar o quanto a cristalização da tradição jamais é ingênua, bem como seu papel na consolidação de novos regimes de historicidade, ou seja, nas formas de se reinventar os vínculos entre o passado, o presente e o futuro.

No capítulo seguinte, A Boca da Verdade, o autor faz um balanço das discussões que se seguiram à publicação de seu livro Les Maîtres de la Vérité dans La Grèce Anchaïque (1967), em particular no que diz respeito à história do vocábulo grego “verdade” (alétheia). De início, a preocupação de Detienne é desvincular este seu antigo trabalho dos defensores da Grécia como “inventora da verdade”. Afinal, mudanças nos sistemas de verdade não são um privilégio do Ocidente, tampouco implicam a substituição de um bloco monolítico por outro. Para o autor, aliás, a modalidade de “verdade” que passa a vigorar na Grécia a partir do século VIII a.C. tomou vários caminhos, muitas vezes conflitantes entre si (a vontade da assembléia de guerreiros, a dos filósofos, a dos sofistas, a dos poetas e assim por diante). A segunda parte do texto, por seu turno, defende a importância de se continuar nas trilhas de uma antropologia das figuras míticas dos mestres da verdade arcaicos. Segundo o autor, tanto os hermeneutas de Lille (p. 83-7), quanto os filósofos discípulos de Heidegger (p.

87-90), ignoraram a importância de tal ciência e, portanto, não puderam avançar muito além do que já sabiam. Aqui, porém, o mais interessante é ver quem Detienne elege como interlocutor e quais argumentos utiliza para desbancá-los.

Quanto aos próprios argumentos, ao menos no que concerne o círculo constituído em torno de Jean Bollack, o mínimo que se pode dizer é que eles simplificam de modo grosseiro os trabalhos dos hermeneutas. Basta abrir os volumes de Bollack sobre Empédocles ou Heráclito para perceber que uma antropologia está sim ali presente e que ela permite colocar em relação diversos textos.

Achar seu Lugar é o título do quinto capítulo da obra. Retomando tópicos já trabalhados em seu livro Comment Être Autochtone (2003), Detienne se preocupa em abordar o problema da construção de identidades históricas. Por certo, o tema não poderia ser mais atual: graças aos esforços de políticos como Le Pen e Sarkozy, a especificidade da França voltou a transformar-se em terreno de acirrados debates. Buscando instrumentos de crítica contra tais novas “mitologias”, o autor volta-se para as práticas e os processos administrativos implicados na produção da crença acerca da autoctonia e da fundação em diferentes sociedades. É assim que ele contrasta, entre outras, as experiências da Atenas do século V a.C. com as da Padânia, da França e de Israel modernos.

Já o derradeiro capítulo, Comparáveis nos balcões do político, investe contra o culto da origem da política e do político na Grécia Antiga. Para tanto, o autor toma como terreno de combate diferentes modalidades de reuniões de pessoas em processos decisórios. A assembléia dos guerreiros gregos é assim comparada à dos cossacos e à dos circacianos, bem como às reuniões dos religiosos budistas no Japão, dos cônegos seculares na França Medieval e dos iniciados (senufo) da Costa do Marfim. Por meio de tais expedientes, interessa a Detienne inventariar quem, em que circunstâncias e de que modo, tem acesso à palavra pública. Assim se compreende melhor, insiste ele, tanto o fato do exercício da política não possuir uma única origem, como ajuda a problematizar as circunstâncias que destruíram estas experiências sociais particulares.

Tendo em vista a estrutura e o tema da referida obra, cumpre dizer aqui que sua tradução para o português chega em boa hora. Com efeito, nós, que vivemos uma expansão sem precedentes do sistema universitário brasileiro (talvez com os dias contados, quem sabe?), podemos pensar a partir dela mudanças interessantes a serem implementadas para as futuras gerações.

Entre os historiadores, por exemplo, qual a razão, além da corporativa, para se manter o curriculum centrado nas etapas de uma história que raramente reflete sobre o ato, em grande medida arbitrário, que a nomeia “Ocidental”? Precisamos de mais cadeiras de Grécia e de Roma Antigas, de Idade Média ou de História do Brasil? A sugestão de Detienne é clara: uma vez que “nossa história não começa com os gregos”, que ela é “infinitamente mais vasta”, é preciso estender nossos interesses para outros domínios. E há mais: é também necessário fazer com que novos e velhos domínios se cruzem, dialoguem entre si. Uma história comparada, outro nome para uma antropologia histórica, não pode se dar ao luxo de formar eruditos inteiramente dedicados ao estudo de uma só cultura.

Afinal, parodiando o Durkheim de As Formas Elementares da Vida Religiosa, o cientista social não deve se interessar apenas por este ou aquele homem em particular, mas também pelo Homem e, ainda mais urgentemente, por todos aqueles com os quais ele compartilha o privilégio e a responsabilidade de dividir um presente.

Por fim, algumas rápidas ponderações sobre a tradução e a edição. Embora tenha realizado um trabalho honesto, a tradutora demonstra não ter grande familiaridade com o vocabulário próprio das ciências sociais, algo nefasto para o leitor desavisado. Assim, contrariando os usos consagrados em português, ela traduz Année Sociologique por Ano Sociológico (p. 33); Potière Jalouse por Ceramista Ciumenta (p. 46 – é bom lembrar que o interessado nesta obra de Claude Lévi-Straus a encontrará em bibliotecas e livrarias brasileiras com outro título, Oleira Ciumenta); e os Annales por Anais (p. 188). A editora deveria ter sanado tais deslizes com uma revisão técnica adequada. Quanto à edição, é simplesmente lamentável que o desaparecimento das oito páginas repletas de fotografias do original francês não seja sequer indicado ao leitor brasileiro.

Rafael Faraco Benthien – Doutorando Universidade de São Paulo (USP) Bolsista FAPESP [email protected] Rua Dr. Nogueira Martins, 420/83 – Saúde São Paulo – SP 04143-020 Brasil.

Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania – CORTINA (C)

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. Resenha de: RIZZON, Gisele. sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 223-227, set/dez, 2009.

O livro Cidadão do mundo: para uma teoria da cidadania é, basicamente, uma análise que considera, excepcionalmente, os aspectos: sociais, econômicos, civis e interculturais de um princípio que se destacou, substancialmente, nos últimos tempos: a cidadania. A referida obra foi escrita por Adela Cortina, doutora em Filosofia e Professora de Ética e Filosofia Política na Universidade de Valência, Espanha. Seus trabalhos, no âmbito da fundamentação da moral e em ética aplicada, gozam de ampla projeção na Espanha e em outros países, especialmente, na América Latina.

A obra está organizada em sete capítulos. O primeiro trata de uma teoria da cidadania. Os capítulos, compreendidos entre o segundo e o sexto, abordam pontos relevantes da cidadania nos âmbitos político, social, econômico, civil e intercultural, sendo que, para cada um desses aspectos, é designado um capítulo em especial. No sétimo capítulo, a temática envolve o processo de educar, sendo esse, segundo a autora, imprescindível para a constituição da cidadania. A obra consta, também, de um capítulo introdutório e um epílogo.

“Para uma teoria da cidadania” é o título do primeiro capítulo. Nesse, a autora, de maneira bastante relevante e consciente, afirma que “entende-se que a realidade da cidadania, o fato de se saber e de se sentir cidadão de uma comunidade, pode motivar os indivíduos a trabalhar por ela”. (p. 27). O sentir-se cidadão está diretamente relacionado com o processo de conhecer os princípios relevantes que regem o conceito de cidadania. Cortina expõe como sendo um desses princípios o sentimento  de pertença, por parte dos membros de uma determinada comunidade.

Nesse mesmo capítulo, ela trabalha uma dimensão histórica do conceito de cidadania, conceito esse excepcionalmente antigo, mas que, no fim no século XX, ressurge com vigor deslumbrante, principalmente, em virtude do aumento de sentido da concepção de justiça social.

No segundo capítulo, “Cidadania política: do homem político ao homem legal”, a temática está centrada na “origem da noção ocidental de cidadania, a essa dupla raiz grega e romana do tempo que o acompanha ao longo de sua história, criando não poucas confusões”. (p. 30). Assim, os conceitos de cidadão e de cidadania são buscados nos tempos remotos e clássicos de Atenas dos séculos V e IV a.C. e de Roma do século III a.

  1. até o século I da Era Cristã. Cortina, no decorrer desse capítulo, explicita a influência que esses conceitos tiveram na percepção e na definição do conceito de cidadão, em âmbitos teóricos e práticos, o que faz com que melhor se compreenda a conceituação em vigor na contemporaneidade.

A autora, nesse capítulo, compõe o texto por meio de estratégias de escrita, que se utilizam de uma ordem temporal, auxiliando, dessa forma, a construção de um pensamento ordenado, em nível de compreensão, das sucessivas mudanças conceituais ocorridas no decorrer dos diferentes tempos históricos.

O Capítulo 3, “Cidadania Social: do Estado do Bem-Estar Social ao Estado de Justiça”, tem como foco de discussão central o nascimento e o desenvolvimento histórico do Estado do Bem-Estar Social, assim como a crítica à solidariedade institucionalizada, por esse Estado instituída. Segundo Cortina, o que haveria de se institucionalizar é um mínimo de justiça e não o bem-estar, pois esse promove um “Estado paternalista [que] gerou um cidadão dependente, ‘critiqueiro’ e não crítico, passivo, apático e medíocre”.

(p. 64). Nesse sentido, uma proposta que prime por uma cidadania, consciente e efetiva, não se constitui de forma plena. O conceito de liberdade também está em pauta nesse capítulo, e ele é colocado em direta contraposição com a postura paternalista do Estado do Bem-Estar Social, principalmente em âmbito político, uma vez que nesse Estado são os “governantes [que] decidem em que consiste o bem do povo sem contar com ele”. (p. 67).

“Cidadania Econômica: a transformação da economia” é o título do quarto capítulo da obra Cidadãos do mundo. O enunciado da primeira seção desse capítulo: “O que significa ser um cidadão econômico?” traz um questionamento que, de maneira sucinta e direta, põe em pauta dois conceitos dicotômicos, porém convergentes, que se apresentam nas sociedades de cunho capitalista: o conceito de cidadania e o de economia.

Também, nesse capítulo, a autora lembra que as organizações econômicas precisam ser vistas como um grupo de pessoas que se unem, também, para fins dotados de cultura, não somente tendo em vista bens materiais e lucro financeiro. Assim, “a empresa não é entendida como um tipo de máquina, orientada exclusivamente para a obtenção do benefício material, mas como um grupo humano, que se propõe a satisfazer necessidades humanas com qualidade”. (p. 82). Cortina tece uma argumentação que coloca o recurso humano como elemento de fundamental importância dentro de um cenário de ordem econômica. O conceito de ética também transita neste campo de estudo, uma vez que esse é um conceito que se relaciona, diretamente, com processos de intercâmbio entre relacionamentos humanos.

No quinto capítulo: “Cidadania civil: universalizar a aristocracia”, a autora faz uma reflexão a partir do pressuposto de que toda pessoa pertence a uma sociedade civil. Afirma, ainda, que somente haverá uma cidadania civil, se houver a integração dessas mesmas pessoas a uma sociedade. Para elucidar esse pressuposto, Cortina toma, como um dos princípios essenciais, a qualificação do trabalhador. Para isso levanta a ideia de (Reich/Reino) e afirma que “a principal fonte de riqueza dos povos é a qualificação dos que neles trabalham, é a qualidade dos seus recursos humanos”, (p. 114); assim, a existência de profissões precisa ser caracterizada por atividades sociais de caráter ocupacional, que zelem por uma postura ética e de cooperação entre os envolvidos. Nesse capítulo, um ponto bastante “delicado” é colocado em pauta pela autora, que é a questão da qualificação dos trabalhadores. Para ela os trabalhadores precisam ser considerados uma fonte de riqueza e não somente a mais-valia que eles produzem às organizações, principalmente as de cunho capitalista.

O conceito de cultura é o ponto-chave do capítulo seis, intitulado “Cidadania intercultural: miséria do etnocentrismo”. Nesse, a autora explica como sendo fundamental o processo de entendimento do multiculturalismo, e que, “para respeitar uma posição não é preciso estar de acordo com ela, e sim, compreender que ela reflete um ponto de vista moral com o qual não compartilho, mas respeito em outro”. (p. 146). Por meio dessa concepção, outras situações são conflitantes, como, por exemplo, a caracterização de cultura, a identificação de diferentes tipos de cultura, assim como a construção da identidade social, uma vez que há essa necessidade, por parte do homem, para se sentir pertencente a  determinado grupo. O estudo construído passa pela percepção da importância necessária que deve ser dada ao processo identitário de cada sujeito, seja ele cultural, político, seja ele econômico, geográfico, principalmente, aqueles que atuam em meios nos quais o processo de respeito ao outro é imprescindível.

Revelando como sendo fundamental pensar sobre a cidadania por vias históricas, sociais, civis, econômicas e interculturais, como propôs Cortina nos capítulos anteriores, no sétimo “Educar na cidadania: aprender a construir um mundo juntos”, ela disserta sobre a necessidade da presença do educar para a constituição da cidadania. Educação, aqui apresentada, não tem apenas uma conotação formal, mas é estendida a todo processo que tenha como propósito o progresso dos modos de percepção do “capital axiológico”. (p. 181). Dentre os valores que a autora elenca como sendo os componentes da ética cívica estão presentes: a liberdade, a igualdade, o respeito ativo, a solidariedade e o diálogo. Tais valores explicitam que todo cidadão precisa ver-se como sujeito participante do contexto social, sendo que, por participante, ela entende aquele que atua ativamente e age ante a situações sociais apresentadas.

Para concluir, no epílogo, intitulado “O ideal da cidadania cosmopolita”, a autora afirma que há um ideal cosmopolita, que, de alguma maneira, está nas entranhas da natureza humana, que projeta esse humano na criação de uma cidadania, também cosmopolita, na qual todos os cidadãos se sintam como verdadeiros cidadãos. Para a efetivação dessa cidadania cosmopolita, Cortina explicita algumas teorias como sendo insustentáveis para o alcance desse fim, dentre elas, o “individualismo possessivo”. (p. 205). Em oposição, apresenta algumas situações que promovem a cidadania: a “lúcida e sábia solidariedade” (p. 205), a promoção da “Aldeia Global (por uma globalização econômica e ética)” (p. 206), e o “interculturalismo universal” (p. 207). É com essa perspectiva, qual seja a de uma construção para a cidadania, que Cortina encerra sua obra. Numa palavra: não é só o Estado ou um grupo de cidadãos que a efetiva, mas o conjunto de toda a sociedade, incluindo cada um dos seus componentes.

A relevância da obra pode ser representada pela seguinte afirmação: “O reconhecimento da cidadania social é conditio sine qua non na construção de uma cidadania cosmopolita que, por ser justa, faça com que todos os homens se sintam e se saibam cidadãos do mundo.” (p. 210). Faz-se a proposição ancorada na explicitação que Cortina efetiva no decorrer da obra, e que, de forma substancial, aborda a necessária promoção de uma teoria à cidadania, para que todos os cidadãos realmente se sintam Cidadãos do mundo. Por fim, faz-se uma relação entre um processo de real cidadania e a promoção de uma cultura para a paz, pois ambos têm por finalidade a valorização de cada sujeito social, assim como o seu contexto. O sentir-se presente, atuante e construtor de um espaço é a pedra fundamental de todo processo que visa à efetiva autovalorização social e, consequentemente, de respeito ao outro.

Referências

CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. Trad. de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. p. 210.

Gisele Rizzon – Graduada em Pedagogia pela Universidade de Caxias do Sul e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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O percurso do reconhecimento – RICOEUR (FU)

RICOEUR Paul. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. Resenha de: KUSSLER, Leonardo Marques. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.2, p.223-225, mai./ago., 2009.

Em um mundo de diversas discussões, de inúmeras teorias filosóficas, de conceitos, Ricoeur destaca a importância que há em discutir a temática do reconhecimento tal como se discute a do conhecimento. Este foi o impulso final para que Ricoeur compusesse esta belíssima obra: O percurso do reconhecimento. O livro se constitui em um compêndio de conferências proferidas pelo autor, em Viena e em Friburgo, as quais foram cuidadosamente trabalhadas posteriormente. A proposta inicial do autor surge provocando surpresa e perplexidade por não se ter visto um livro filosófico que tratasse diretamente do assunto reconhecimento, como tratam, em inúmeros livros, as muitas teorias e discussões do tema conhecimento. Contudo, a obra lançada anteriormente, A memória, a história, o esquecimento (Ricoeur, 2007), já tratava do tema do reconhecimento de um modo mais abrangente, na última parte do livro ao abordar o tema do o perdão.

O percurso do reconhecimento divide-se em três grandes estudos, para seguir a lógica do autor adotada em suas obras. Primeiramente, o estudo parte de uma análise linguística e lexicográfica da palavra reconhecimento, com base em dois grandes dicionários franceses – o Dictionaire de la langue française, de 1859, e o Grand Robert de la langue française, de 1985 (in Ricoeur, 2006 p. 15 e ss.). Esse primeiro estudo elucida a ideia de reconhecimento enquanto identificação, contando com análises de Descartes e Kant. Em instância primária, o verbo reconhecer comporta o eu que reconhece, enquanto está ativo. Tal identificação parte do identificar-se algo em geral para, posteriormente, chegar a identificar-se alguém. No segundo grande estudo, surge o agente (agency, diz Ricoeur) que revela a capacidade do homem enquanto ser capaz da ação de reconhecer. Nesse ponto, o autor liga essa capacidade à noção de narratividade daquele que pode reconhecer, à qual liga também as noções de memória e de promessa – mais bem explicitadas na obra A memória, a história, o esquecimento. Ricoeur fala do agir e do agente no mundo grego, aos quais relaciona o reconhecimento de si por outra pessoa que não o si mesmo. Nesta ocasião, existe uma bela, porém pequena, análise do reconhecimento de Ulisses na grande obra Odisséia, de Homero (in Ricoeur, 2006, p.90-91), nos dois momentos: o primeiro, em que Ulisses é reconhecido, e o segundo, o momento em que se faz reconhecer. Ricoeur também analisa as distinções de Aristóteles, no início da obra Ética a Nicômaco (in Ricoeur, 2006, p.97). A narrativa é trabalhada nesse segundo estudo com mais clareza, em que se marca o poder dizer, atrelando-o ao poder fazer e ao poder narrar-se – e também o poder ouvir-se, pois sempre se pressupõe o ser ouvido ao narrar-se. Estes temas são ligados à noção jurídica de memória enquanto promessa – a visão do falar de testemunhas, por exemplo, ou simplesmente a da promessa de um indivíduo ao outro, um simples pacto. Posteriormente, ainda no segundo estudo, é levantada pelo autor a ideia de esquecimento dos dados memoriais, da lembrança – a famosa anamnésis grega –, temas desenvolvidos mormente em sua obra, a qual trata diretamente do esquecimento.

No terceiro grande estudo, o autor procura mostrar a relação do eu que reconhece ou se faz reconhecer com o tema do reconhecimento mútuo. Nele são discutidas as teorias de Hobbes, por exemplo, em sua temática da organização social que, indiretamente, parece relacionar-se com o reconhecimento de si, pois se trata, como explica Ricoeur, no estado de natureza, de todos contra todos, de uma busca de reconhecimento de cada indivíduo pelo outro. Nesse estudo, também é reservado um grande espaço para as análises de Hegel sobre o reconhecimento. Existe uma boa relação, nos escritos hegelianos da época do livro Fenomenologia do espírito (in Ricoeur, 2006, p.178), por exemplo, entre servo e senhor, que, explica, na mesma linha, paralela ao reconhecimento de cada indivíduo em Hobbes, de forma diferente, a relação dialógica, por assim dizer, do servo com o senhor – também assinalada por Ricoeur como a luta de classes sociais e econômicas, embasadas em Thévonot e Boltanski (in Ricoeur, 2006, p.237-238). Vale ressaltar que, nessa relação, como se sabe, um deles se faz reconhecer, e o outro se submete a sua posição por não ter se arriscado tanto quanto o outro; oprimido, portanto, e tem seu reconhecimento comprometido. Partindo desse reconhecimento em Hegel, no período de Iena, Ricoeur relaciona o reconhecimento com o sentimento de amor, por exemplo, nessa temática de reconhecimento mútuo, em que se busca a reciprocidade, a alteridade nesse reconhecer. Nesse terceiro estudo, trabalha-se, junto à temática do amor propriamente dita, o conceito de agápe na tentativa de reconciliação, de mutualização desse reconhecimento. Também se discute o tema da relação de equidade ou equivalência no plano jurídico que, de certa forma, trata de uma igualdade, de uma mutualidade, de uma respeitabilidade. Nessa tentativa de se mutualizar o reconhecimento é importante ressaltar o papel da discussão do desconhecimento, caro à Ricoeur, pois mostra a dificuldade de se reconhecerem mutuamente os indivíduos, sem que ninguém seja desconhecido, esquecido, transpassado. A parte final do livro reserva a temática de dom, entendido como a possibilidade de se reconhecer alguém e trocar dons. Com isso, surge a ideia de gratidão, trabalhada de acordo com a tendência de retribuir o reconhecimento que se recebe, reconhecendo de volta o outro indivíduo. Essa mutualidade, equidade, respeitabilidade, alteridade são possíveis em um dito estado de paz, diz Ricoeur. Para o pensador francês, é somente esse estado de paz que pode, de fato, possibilitar essa troca de reconhecimentos enquanto dons, que têm sua expressão mais forte na troca sem compromisso, ou seja, no doar-se sem esperar o reconhecimento de gratidão de volta – algo um tanto cristão, como bem aponta o autor. Ricoeur também desenvolve, em parte, as teses de Lévinas (in Ricoeur, 2006, p.74 e ss.) sobre o reconhecimento do outro, que retratam a dissimetria entre o eu e o outro para um reconhecimento recíproco, de uma ética primordial que assegure esse tratamento mútuo.

Por fim, é de suma importância ressaltar que, por se tratar de um livro recente, e uma das últimas obras de Ricoeur, alguns temas estão aí indexados com pressuposições de leituras anteriores, algo mais refinado, por assim dizer, posto que o livro traz temas de algumas de suas obras anteriores. A obra apresenta-se, portanto, como uma síntese de determinadas teses, compactadas nesse belo volume. Entretanto, isso não reduz a importância, a novidade e o compromisso do autor ao trabalhar um tema de especulação constante como é o reconhecimento que, como ele mesmo diz em sua análise, não foi tomado com a devida seriedade até o presente momento. A leitura do livro é altamente válida, uma vez que se mostra como uma tendência forte na atualidade e, por ser um livro composto sistematicamente por Paul Ricoeur, prima pela qualidade das análises desenvolvidas, resultando em um ótimo referencial teórico nesse âmbito pouco discutido.

Referências

RICOEUR, Paul. 2007. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, Editora da UNICAMP, 535p.

Leonardo Marques Kussler – Unisinos, São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

Leis da Liberdade – KANGUSSU (AF)

KANGUSSU, Imaculada. Leis da Liberdade. São Paulo: Ed.Loyola. Resenha de: FIGUEIREDO, Virginia. Sobre Marcuse, 40 anos depois de 68. Artefilosofia, Ouro Preto, n.6, maio, 2009.

“A subjetividade dos indivíduos, a sua própria consciência e inconsciência, tendem a ser dissolvidas na consciência de classe. Assim é minimizado um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente, o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos. A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e com- bateu na sociedade como um todo.” Essa passagem que extraio do livro Leis da Liberdade é uma citação de outro livro, A Dimensão Estética, de Herbert Marcuse. Ela exprime, com alguma clareza, a atitude desse filósofo que podemos considerar como membro da Escola de Frankfurt, mas também como um crítico da ortodoxia marxista, talvez pela influência que Martin Heidegger, seu orienta- dor em Freiburg, deixou marcada em seu pensamento. Neste ano de 2008, lembrando a importante participação e liderança de Marcuse no movimento estudantil de 1968, principalmente na Universidade da Califórnia, em San Diego, onde o filósofo era, na época, professor, nada mais justo que comemoremos os 40 anos de Maio 68, com a publicação do livro de Imaculada Kangussu, que é resultado de uma tese sobre Marcuse, defendida com muito brilho na UFMG em 2001. A autora, que há tempos milita no difícil questionamento, hoje e sempre, das relações entre arte e política, quer chamar nossa atenção para o sentido de subversão política que a dimensão estética pode conter. Nas suas palavras, a dimensão estética aparece como uma “trincheira para a potência de negação”, na qual se exercitam as leis da liberdade, que são a marca distintiva da natureza humana. Também são de se ressaltar, no livro As Leis da Liberdade, a s incursões psicanalíticas, sobretudo em conceitos freudianos, como os de pulsão e princípio de prazer, a partir dos quais nos é revela- do o sentido material e natural da razão marcuseana, bem como o progressivo recalque a que a mesma foi e continua sendo submetida pela ordem perversa do sistema capitalista.

Renovando o espírito de contestação e rebeldia, com o qual toda arte digna desse nome está comprometida, o livro pretende alcançar a definição de uma “Nova sensibilidade” (é assim que um dos capítulos se intitula) descondicionada. Se, junto com Freud, Marcuse reconhece o valor metapsicológico das estruturas pulsionais, diferentemente dele, o filósofo atribuiu a elas certa plasticidade e, portanto, certa capacidade de efetuar mudanças da organização social. Tomando, talvez como pressuposto, certa constatação de fracasso do que estava implícito nas propostas das estéticas vanguardistas – o que poderia ser resumido na estratégia de dissolução da subjetividade, como se esta última fosse o foco privilegiado da ação individualizadora do capital – a proposta de retomada da obra marcusiana parece querer indicar a necessidade da constituição de uma “nova subjetividade” positiva (e não mais dissolvida e negativa, o que, talvez tenha, segundo esse diagnóstico, favorecido o avanço voraz da economia pródiga de recalques do capital) ou estética, forte o suficiente para o confronto e a resistência frente à ordenação do nosso status quo.”

Virginia Figueiredo-UFMG/CNPq.

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O Novo Imperialismo | David Harvey

As metamorfoses da acumulação capitalista, do poder político e territorial em escala mundial, na passagem para o século XXI, trazem à baila teorias, conceitos e categorias históricas e geográficas há muito excluídas ou afastadas dos debates e discussões. A geopolítica, a geoestratégia, o imperialismo e o território ressurgem para explicar a política internacional dos Estados Unidos. Autores como Michael Hardt, Antonio Negri, Hannah Arendt, David Harvey, entre outros, revisitam o conceito de imperialismo, agora num outro espaço-tempo, com abordagens e entendimentos diferentes, opostos ou complementares.

David Harvey é um dos mais importantes geógrafos da atualidade, professor da City University of New York, autor de vários livros e artigos que versam sobre a economia, a globalização, a urbanização e as mudanças culturais contemporâneas, em diferentes contextos e escalas espaciais, utilizando o que denomina de materialismo histórico e geográfico como parâmetro analítico. Dentre as publicações do autor destaca-se Condição Pós-Moderna, de 1992, que oferece uma vasta contribuição para o entendimento das transformações político-econômicas do capitalismo do final do século XX. Leia Mais