Processos judiciais como fonte para o historiador / Revista de Fontes / 2014

Os processos judiciais tem sido uma fonte praticamente inesgotável para os historiadores desde há muito tempo. Ao menos desde que a história passou a ser contada não apenas com grandes personagens e heróis, com a definitiva entrada em cena de novos agentes cuja abrangência social impôs a necessidade de buscar suas pistas, trajetórias e formas de ação e pensamento em uma maior multiplicidade de resquícios do passado. Não há dúvida que, com isso, ganhou a realidade histórica uma dimensão mais humana, marcada por conflitos, tensões e / ou acomodações nos seus vários níveis, e seu conhecimento com novos problemas e perspectivas de análise. O dossiê que ora se apresenta pretende revisitar, aqui, algumas dessas perspectivas tendo em vista dois pontos de discussão que consideramos de fundamental importância quando falamos hoje de processos: sua dimensão institucional e a necessidade de se pensar a justiça para além do espaço propriamente judicial.

Quanto ao primeiro ponto de discussão, não se pode negar o impacto profundo e positivo que houve na historiografia, ao menos no Brasil, com o estudo dos casos de litígios na justiça, sobretudo criminais, para se entender a vida social com a inclusão das categorias que outrora se classificava de “subalternas” – pobres, escravos, libertos, etc. – como sujeitos ativos de sua própria história.

Assim, convém destacar que a normatividade a que dá corpo este tipo de fonte não tem, recentemente, passado despercebida, como os textos aqui apresentados expressam. Ao contrário, a análise institucional de funcionamento dos órgãos, tribunais e seus agentes, que há poucos anos poderia cheirar a uma história de tipo tradicional, com uma dimensão administrativa identificada com um caráter oficioso, gerando certa ojeriza a muitos dos dedicados a nosso ofício, tem se revelado fundamental. Não como pastiche, como um arrazoado vazio de normas e regulamentos, mas sim enquanto uma cultura de práticas, ritos e formas que revelam não só o que punir, mas como fazê-lo, bem como o que deve ser perdoado e mesmo valorizado em uma verdadeira gramática social.

A contribuição de Alejandro Agüero caminha por essas sendas, ao mostrar como o pensamento social impactava nas práticas da cultura jurídica hispânica, a partir do exemplo da mais distante periferia da estrutura judicial do império espanhol, sem que essas práticas fossem exclusivas desse contexto periférico.

Em relação aos estudos sobre a justiça propriamente dita, além da percepção e análise de suas várias instâncias como extremamente importantes, impõe-se cada vez mais a ampliação de seu entendimento para espaços de resolução de conflitos além dos que mais tradicionalmente interessam à História do Direito moderno (os foros criminal e civil). O artigo de Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz mostra, nesse sentido, a incrível potencialidade dos arquivos dos tribunais episcopais para uma visão mais ampla da realidade múltipla dos foros de uma sociedade estamental.

É verdade que, para o caso particular do que se convencionou chamar de Antigo Regime, a justiça estava na base da concepção social que se traduzia nas mais distintas formas de manutenção da ordem. Nessa sociedade, o rei seria o supremo provedor dos distintos corpos, concebidos como desiguais por natureza. Este papel do soberano se expressava na concepção de administração – profundamente manipulada por autoridades dotadas de jurisdição, ou seja, de poder de julgar -, na pluralidade de tribunais específicos que muitas vezes se sobrepunham em suas funções com outros; e também nos diferentes meios de ascensão social, que também se valiam de procedimentos processuais, ou seja, da justiça. Esse papel da justiça como meio de legitimação social e assim também de mobilidade, é perceptível na contribuição de Aldair Rodrigues que analisa as potencialidades para a História d os processos de habilitação ao sacerdócio e à familiatura do Santo Ofício no caso luso-brasileiro.

No entanto, a validade de se pensar a abrangência da justiça e dos processos para resolução de tensões políticas e sociais não se esgota até hoje, mesmo com a ruptura constitucional e a formação dos novos Estados liberais no século XIX, que pretenderam circunscrever o espaço da justiça como um dos seus poderes. O que fica especialmente evidente na concepção que a Constituição deveria ser a norma (o “código dos códigos”) que vincularia todas as outras, numa chave bem distinta do pluralismo jurídico predominante no paradigma anterior, em que as infrações à Carta passariam a ser delitos que deveriam ser processados. É assim que, num marco temporal bastante atual, Andrei Koerner analisa os processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI) após a Constituição de 1988, no contexto das decisões do Tribunal sobre o tema, detalhando os argumentos dos ministros e as implicações jurídicas e políticas da decisão.

Do ponto de vista metodológico, é evidente que, como toda fonte, os processos devem ser manejados como extremo cuidado e compreendidos dentro do quadro cultural e institucional em que foram produzidos. A contribuição de Bruno Feitler ao dossiê propõe-se a tratar dessa questão tendo como horizonte os debates existentes em torno dos processos-crime da Inquisição portuguesa.

Os artigos aqui reunidos – apresentados na “Primeira jornada de fontes do departamento de História da Unifesp”, realizada no dia 3 de dezembro de 2012 – não são mais do que alguns exemplos da grande potencialidade que os processos judiciais têm para as Ciências Sociais (em particular para a História), e procuram, assim, incentivar o estudo desse tipo de documento em suas mais variadas e múltiplas formas.

Andréa Slemian – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: [email protected]

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo / CNPq. E-mail: [email protected]


SLEMIAN, Andréa; FEITLER, Bruno. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.1, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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