Propósitos e Propostas para a História da Ciência | Temporalidades | 2018

A História da Ciência sempre foi um campo aberto à interdisciplinaridade, ao diálogo entre historiadores e demais pesquisadores e, sobretudo, ao diálogo e ao questionamento acerca de sua identidade, de sua função, de sua construção narrativa e de sua ação histórica. O dossiê que agora tenho a honra de apresentar trouxe, em sua proposta inicial, tais indagações: Qual a especificidade da História da Ciência? Qual sua metodologia? Quais seus questionamentos teóricos? Qual seu olhar diante das fontes? O que a História da Ciência é capaz de fazer pelo e com o conhecimento? Longe de configurar-se como uma simples crise disciplinar de pouca monta para a História e seus praticantes, esse debate sobre si, sobre o lugar, sobre sua função, sobre seus praticantes e sobre suas características é marca indelével do fazer histórico, do métier do historiador e, portanto, da disciplina História. Sendo História, se a identidade da História da Ciência é forjada na sua própria indagação, no debate, nada mais salutar do que apresentar novos trabalhos como forma de revisitar essa identidade em constante discussão. É exatamente esse o passo que o dossiê “Propósitos e Propostas para a História da Ciência”, preparado pela dedicada equipe da Revista Temporalidades, dá ao apresentar 10 artigos de gradua(n)dos e pós-gradua(n)dos em História, em Filosofia, em Ciências e em História da Ciência. Antes de qualquer análise, vale destacar o interessante e diversificado perfil de autores e autoras que o presente dossiê oferece, marca típica dessa área do conhecimento. O leitor também perceberá que o debate disciplinar fica evidente nas distintas grafias utilizadas para determinar a própria área do conhecimento. Assim, por vezes grafa-se História da Ciência, noutras vezes seu o objeto de análise histórica vai ao plural e temos História das Ciências. É possível verificar, também, os destaques em maiúsculas e minúsculas (história das ciências, por exemplo); discussão que parece trivial, mas que poderia, muito bem, oferecer indícios sobre os diversos posicionamentos no debate disciplinar anteriormente mencionado. De qualquer forma, o que se apresenta aqui, entre propósitos e propostas, são histórias, no plural, nos plurais.

No primeiro artigo desta breve apresentação, Alexander Lima Reis e Millena Souza Farias, por meio de análise historiográfica, transitam entre periódicos, publicações de associações, livros e verbetes biográficos do século XIX, obras canônicas do século XX e bibliografia do recente início do século XXI que modifica a característica difusionista da história das ciências no Brasil. O autor e a autora não apenas destacam as formas pelas quais as ciências foram | são compreendidas e narradas ao longo dos quase três séculos de abrangência do trabalho, como também apresentam um verdadeiro desenho de algumas das principais alterações metodológicas que possibilitam a compreensão atual de ciência como sendo uma produção humana, social, política, cultura. Outra discussão historiográfica presente no dossiê pode ser encontrada no trabalho de Douglas Braga sobre o processo de institucionalização da medicina no Brasil ao longo do século XIX. Em sua análise, o autor apresenta algumas perspectivas sobre o referido processo de institucionalização, destacando e indagando tanto a concepção que apontava a medicina oitocentista como pré-científica, quanto a tendência de reduzir a comunidade médica do século XIX em torno de um bloco homogêneo e coeso, rotulado de higienista. Em linha semelhante de análise, o trabalho de Marcio Luiz Miotto apresenta algumas conseqüências institucionais do processo que vai da formação do profissional à atuação no campo da Psicologia, além de expor, por meio de três estudos de caso, uma discussão da tênue relação entre a História da Psicologia e áreas mais abrangentes do conhecimento, como a História da Filosofia e a História das Ciências.

A muito discutida interface entre a Educação e a história das ciências também marca presença no dossiê, mais especificamente, no artigo intitulado “Entre educação e ciência: discurso e atuação ambientalista de Angelo Machado (1974-2008)”, de Gabriel Schunk, e em “A utilização da história das ciências como instrumento facilitador para o aprendizado da física clássica no ensino médio”, dos autores Renan Alencar e Sérgio Yury Almeida da Silva. Seja pelo viés dos diferentes discursos da educação ambiental ou pelo uso da história das ciências como ferramenta metodológica facilitadora para o ensino de Física, cada texto, a sua maneira, vai discutir as concepções e fundamentos escolares da clássica, relevante e sempre atual relação entre o humano e a natureza.

Já no artigo de Vitor Claret Batalhone Júnior intitulado “Sob Ruínas e Atlas”, o leitor encontrará uma instigante análise sobre a produção intelectual do erudito britânico Samuel Purchas, análise que discute alterações ontológicas, epistemológicas, e suas relações com as noções ocidentais de tempo e espaço. Também debruçado sob os trabalhos de um personagem europeu, Weslley Oliveira Kettle apresenta as descrições naturais da capitania do Grão-Pará elaboradas pelo arquiteto bolonhês Antônio José Landi, com intuito de demonstrar como tais trabalhos fizeram parte de um propício projeto político, e não meramente científico, no contexto da colonização portuguesa na Amazônia. Em diálogo com a temática que relaciona os processos de colonização e as ciências, mas utilizando tratados náuticos para sua análise, o trabalho de Amanda Cieslak Kapp apresenta a relação entre teoria e prática na produção de conhecimento no cenário da expansão marítima durante a constituição do império espanhol no além-mar.

O leitor também encontrará uma análise sobre os desdobramentos da republicação de práticas e métodos agrícolas descritos, originalmente, por portugueses e brasileiros entre o final do século XVIII e o início do XIX. No trabalho de Janaina Salvador Cardoso é possível verificar o modo como as republicações no impresso O Auxiliador da Indústria Nacional contribuíram com o objetivo de promover a instrução de lavradores por meio de divulgação de práticas que melhoravam o aproveitamento de recursos naturais. Por último, e também utilizando fonte de jornal impresso, apresentamos o trabalho de Caroline Lisboa dos Santos Lima em que a autora estuda o projeto de saneamento do município de Passo Fundo à luz das notícias das páginas do periódico O Nacional. Destaca-se, na análise de Caroline Lisboa, posicionamentos diversos, interesses e preocupações com os recursos hídricos durante a execução do projeto de saneamento, discussão que termina por impactar, ainda hoje, o rio que abastece a região.

Diante desse diversificado passeio por temas, fontes, métodos, abordagens, discussões, propósitos e propostas da(s) história(s) da(s) ciência(s), resta o desejo de uma leitura prazerosa do dossiê que vem na sequência. Uma boa leitura.

Itabuna – BA

Francismary Alves da Silva – Universidade Federal do Sul da Bahia.


SILVA, Francismary Alves da. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.10, n.1, Jan./abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.