Que horas são… Lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna | Serge Gruzinski

Seguindo um modelo que já se transformou em marca, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), em seu mais novo livro, Que horas são… Lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna, apresenta ao leitor um texto que parte de temáticas contemporâneas sobre o outro, sobre o diferente. Logo em sua introdução, o autor usa da metáfora cinematográfica para apontar a dinâmica daquilo que ele gosta de chamar de planetário. O cinema, as questões atuais sobre o terrorismo e a curiosidade são elementos que vão permear todo o livro, que traz uma linguagem acessível e uma metodologia ainda pouco utilizada nos estudos históricos sobre a América e o mundo: a história comparada.

Um dos pontos positivos da leitura, e um dos grandes méritos, é justamente a facilidade que o autor tem de nos apresentar o passado de forma natural, ou seja, destrinchando as fontes e fazendo interessantes conexões entre elas. Que horas são… Lá do outro lado é justamente o ápice dessa forma de narrativa que parte de questionamentos relevantes da contemporaneidade. Gruzinski começa narrando o enredo de um filme: na Taipei dos dias atuais, uma jovem deseja comprar um relógio que indique o horário, tanto de Paris quanto de sua cidade de origem, pois viaja para a Europa no dia seguinte. O vendedor de relógios, enamorado, decide aproximar-se dela de todas as maneiras, tentando abolir o tempo e a distância que separam dois mundos longínquos e diferentes. É a partir desse simples enredo que o autor aponta as questões que recheiam o livro, tais como o universo desconhecido do outro e o fascínio que ele exerce, o encurtamento das distâncias e o choque de mundos.

Gruzinski parte desse paralelismo com a atualidade para introduzir sua problemática, a comparação de duas crônicas escritas em lugares considerados, hoje, como incrivelmente distantes, mas ligados de forma excepcional desde muito antes do século XV. Nesse período de grandes ações e descobertas, cristandade e islã estavam intrinsecamente ligados, e essa ligação fica nítida nas narrativas apresentadas pelo autor para expor justamente a questão das conexões planetárias, deixando sua temática favorita, as mestiçagens, apenas como pano de fundo.

Na narrativa, o autor nos mostra que o mundo estava em mudanças durante o século XV e a cristandade encontrava-se na vanguarda dos acontecimentos. Em 1492, o grande ano, os reis católicos conquistaram o último minarete da Ibéria, sob domínio direto dos mouros, ao mesmo tempo em que um genovês sob a bandeira de Castela chegou às “Índias”. A partir desse momento, o mundo nunca mais foi o mesmo e a curiosidade do homem só fez crescer. Quase um século depois, em Istambul, surgiu uma crônica a respeito da descoberta do Novo Mundo por esse genovês, cristão ao extremo, Cristóvão Colombo. O autor do Tarih Hind-i garbi (História da Índia Ocidental) não se identificou, mas Gruzinski o nomeia com o epíteto Anônimo.

A partir do momento que nomeia o Anônimo, o autor passa a descrever o mundo islâmico e a curiosidade que Istambul tem sobre as conquistas de além-mar de seus inimigos cristãos. Ao nos apresentar esse mundo, descobrimos que apesar da crônica ter sido escrita em 1580, foi publicada somente em 1730, sendo a quarta obra impressa com caracteres árabes através da invenção de Gutenberg. Nesse ponto, Gruzinski menciona a importância e a curiosidade que a América tinha e exercia sobre os homens mulçumanos durante todo o período em que o Tarih esteve à espera da publicação.

Paralelamente, e em subtópicos curtos, Gruzinski nos mostra o reverso da medalha. No Novo Mundo, no coração da cidade do México, um homem europeu dirigiu seus olhos para o império Otomano, com a mesma curiosidade e especulação que o Anônimo demonstrou em relação à América conquistada. Diferentemente de seu companheiro das letras, o cronista do Novo Mundo é identificado pelo autor, que faz, durante toda a narrativa, explanações interessantes sobre a vida e atuação de Heirinch Martin, que em 1606 publicou um Repertório dos tempos. Tal narrativa traz dois capítulos especialmente dedicados ao Império Otomano. A partir daí, o autor vai narrando a individualidade de Martin.

Os primeiros capítulos do livro são dedicados à identificação e inserção de cada um dos autores em seus mundos naturais, sem qualquer ligação direta. Apenas no final do capítulo 1 que podemos ver nitidamente a intenção do autor em realizar uma história comparada e conectada ao sentido de planetário.

Interessante é a sensibilidade do autor ao tratar de um tema que é, muitas vezes, visto com olhos de estranheza e de surpresa: a conexão dos mundos. Da mesma forma que Jean Claude-Schmitt afirma que a Idade Média era uma civilização visual, rivalizando com a nossa sociedade atual devido ao exacerbado uso de imagens (SCHMITT, 2007), Serge Gruzinski afirma e demonstra sua concepção de mundos conectados ao dizer que não existiam lugares desvinculados depois das grandes “descobertas europeias”. O Anônimo de Istambul é exemplo dessa constatação, pois, mesmo estando inseridos em um Império que tinha como inimigo maior os reinos da Península Ibérica, os islâmicos não podiam perder as notícias de um mundo novo.

Mas qual seria o real motivo por trás da curiosidade? O autor expõe algumas razões para tal interesse do outro pelo novo, tais como os metais preciosos e as especiarias. Entretanto, é incisivo ao afirmar que não são esses os únicos motivos capazes de explicar o desejo de saber o que ocorre em lugares longínquos. Após a aventura ibérica protagonizada primeiramente pelos marinheiros de Lisboa, os homens passaram a se lançar em aventuras, à procura de novos conhecimentos, estreitando laços.

Cabe lembrar que para definir o “eu”, o caminho mais fácil e seguro é definir o “outro”. Sendo assim, podemos notar que a questão das mestiçagens está presente no livro, mesmo que de forma subliminar, pois existiam dinâmicas de mestiçagem atuando na preservação de identidades antigas e na construção de outras novas, que ocorreram em paralelo a esse processo de organização social. Ou seja, em determinados momentos era frutífero realizar alguns contatos e mesclas; em outros, a impermeabilidade étnica era mais conveniente (PAIVA, 2012).

Será nessa perspectiva que o desejo de saber proporcionará na França o surgimento, durante o século XVI, de inúmeros livros sobre o Império Otomano; ao passo que a Itália era o entreposto que mais difundia notícias da América para os turcos (BERNAND; GRUZINSKI, 1997). Pelo ponto de vista europeu, o momento era de descobrir o outro. Nesse contexto, o papado faz questão de demonstrar preocupação com as almas pagãs dos índios americanos.

Os conceitos de planetário e de conectividade entre mundos são essenciais nessa obra de Gruzinski, justamente porque ele demonstra como acontecimentos lá, do outro lado são sentidos e impactados em lugares inimagináveis. O livro também faz uma forte crítica ao pensamento, muitas vezes leigo, de que era impossível existir conexões entre mundos em um período sem a tecnologia da internet, do rádio e da televisão. Pelo contrário, a obra vem justamente demonstrar que, muito mais do que informações, pessoas circulavam entre esses mundos e existiam entre elas as mais variadas trocas (biológicas, comerciais, de conhecimento). As notícias podiam demorar, mas chegavam.

A partir do desejo de saber, Gruzinski articula outro importante conceito, o da modernidade. Tal modernidade no período abordado está ligada intimamente com o conhecimento adquirido sobre o outro. O autor cita como exemplo a Península Ibérica, que passa a ver esse conhecimento como um critério de civilização, justamente porque conhecer o outro dava a entender o lugar do verdadeiro cristão no mundo e o abria à possibilidade de manter contato com o diferente, sobretudo contatos comerciais, a despeito das diferenças culturais, como religião e estrutura social e política. Dessa forma, o europeu se familiariza com o outro, nas palavras de Gruzinski, e esse outro são vários: os índios americanos, os turcos otomanos, os japoneses e chineses, os indianos, além dos mulatos e mestiços.

Gruzinski trabalha a ideia presente, tanto no Tarih-i Hind-i garbi quanto no Repertório, através do conteúdo. As duas obras estavam baseadas em saberes antigos que foram transmitidos, por sua vez, à cristandade latina via sábios de al-Andalus. Nesse ponto, outro elemento importante deve ser ressaltado: a presença de resquícios (o autor denomina de ecos) de Istambul na Cidade do México. Conexões que só podem ser feitas pensando no conceito de planetário. Não existiam fronteiras físicas, o mundo estava conectado, a alteridade se fazia a partir do encontro e do conhecimento com o outro, e o livro aponta justamente a dinâmica das trocas culturais que eram feitas no limiar das fronteiras da cristandade com o islã.

Essas crônicas apontam um desejo inerente a esses homens de estarem integrados ao novo. As narrativas do Anônimo, que demonstram as dinâmicas de mestiçagem que ocorreram no campo do conhecimento, é uma tentativa de fazer com que o desconhecido Novo Mundo se faça presente no interior do Império Otomano. A mesma coisa acontece com Heirich Martin, que escreve do México para contar uma história do mundo, mas inserindo a Cidade do México na dinâmica. Quando aborda tal questão, Gruzinski relembra outros diversos olhares sobre esse mundo conectado, que não é necessariamente europeu, apesar das influências tão importantes, como o Theatrum de Ortelius. Há outros que escreveram sobre a América e que não são necessariamente do Velho Mundo, como os índios e letrados mestiços do México. Garcilaso de La Vega e Guaman Poma de Ayala são dois expoentes dessa literatura nascida no Novo Mundo e que foi lida na Europa. Havia uma literatura preocupada em salvaguardar uma memória indígena conectada à história mundial, como fez, por exemplo, Cristóbal Del Castillo, Domingo Chimalpahin, entre outros.

Mesmo apontando essa interligação planetária, o autor peca em deixar apenas para a conclusão a interligação com a contemporaneidade. Contudo, o faz de maneira certeira e muito bem exemplificada. O livro tem um tom menos acadêmico e mais acessível; e ao utilizar novamente de filmes e livros, como Babel e Dom Quixote, Gruzinski formula sua resposta à problemática levantada no começo: sim, é possível pertencer a vários mundos e a vários tempos sem tentar uniformizá-los, tornando assim mais fácil lidar com a globalidade que atualmente compartilhamos.

Referências

BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à conquista, uma experiência européia, 1492-1550. São Paulo: Edusp, 1997.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese (Doutorado), Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.

SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens -Ensaios Sobre a Cultura Visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru/SP: Edusc, 2007.


Resenhista

Kellen Cristina Silva – Mestra em História pela Universidade Federal de São João Del Rei. Doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. [email protected]


Referências desta Resenha

GRUZINSKI, Serge. Que horas são… Lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2012. Resenha de: SILVA, Kellen Cristina. Entre dois mundos: a curiosidade planetária. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.3, n.11, p. 262-266, 2014. Acessar publicação original [DR]

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