Negritude: usos e sentidos | Kabengele Munanga

Originalmente publicado em 1988, o livro Negritude: usos e sentidos ganhou nova edição, no ano de 2019, pela Autêntica Editora. Kabengele Munanga, autor da obra, é um antropólogo nascido na República Democrática do Congo (RDC) e naturalizado brasileiro. Tendo uma vasta carreira acadêmica, aposentou-se, em 2012, como Professor Titular pela Universidade de São Paulo (USP), onde atuou como docente e pesquisador, especialmente, nas áreas de Antropologia da África e da População Afro-Brasileira. Com trabalhos cujo enfoque recai sobre racismo, políticas e discursos antirracistas, identidade negra, multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais, Munanga é uma grande referência nos estudos sobre a negritude no Brasil. Leia Mais

Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Existe atualmente uma ampla literatura dedicada a refletir sobre as conexões entre história e internet. As revoluções que o universo online aporta nas práticas de pesquisa e ensino de história têm sido objeto de densas análises por especialistas em diversas áreas do campo historiográfico. O novo livro de Mateus Henrique de Faria Pereira adentra esse debate com uma contribuição original, que está situada nas fronteiras entre Teoria da História e História do Tempo Presente. Leia Mais

Foucault e a teoria queer: seguido de Ágape e êxtase: orientações pós-seculares | Tamsin Spargo

[…] tanto investimento na crença de que a sexualidade é natural não significa que ela seja.

Spargo, 2017, p. 15.

Nos últimos anos, os estudos queer no Brasil ganharam destaque para além do que se costumava ver diante dos estudos da área de Educação, Psicologia e das Ciências Sociais. Ganhou força na História, desenvolvendo-se em seus processos autocríticos, de forma a jogar luz em recortes que atravessam gênero, raça, sexualidade e classe social. A construção do campo dos estudos das relações de gênero tomou novas cores e sabores com as percepções das teorias de gênero, as quais se convencionaram chamar de queer, adentrando áreas do conhecimento ainda conservadoras. Leia Mais

História de duas cidades: Paris, Londres e o nascimento da cidade moderna | Jonathan Conlin

O livro “História de duas cidades: Paris, Londres e o nascimento da cidade moderna”, de Jonathan Conlin, é fascinante. O historiador americano, radicado na Grã-Bretanha e reconhecido por pesquisas na área de museologia, utiliza uma abordagem que combina erudição, criatividade, pesquisa documental e imaginação histórica para analisar o desenvolvimento das cidades modernas a partir da Paris e da Londres dos séculos XVIII e XIX – ou seja, a chance de sermos tomados de surpresa nos mantêm alertas ao longo do livro.

A obra é dividida em seis capítulos – elaborados de modo a nos darem a sensação de um passeio – sobre a Paris e a Londres dos séculos XVIII e XIX. A partir de periódicos, documentos oficiais, memórias, relatos de viajantes, ilustrações, obras literárias, entre outros, Conlin analisa a relação entre metrópole, arquitetura e indivíduos, esquadrinhando seis distintos territórios da vida urbana parisiense e londrina: o lar, a rua, o restaurante, o music hall, o submundo noturno e o cemitério. Leia Mais

Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho) | Eduardo França Paiva

“Quem chama quem de quê? Como cada qual se define e define o outro?” A partir dessas interrogações, o historiador Eduardo França Paiva instiga a leitura e nos aproxima das problemáticas que norteiam sua nova obra “Dar nome ao novo”. Neste novo trabalho, o uso de vocabulários, de expressões, de léxicos são fios que conduzem o leitor para pensar sobre os usos de definições, categorias ou hierarquizações ao longo de três séculos. O objetivo está em levar quem lerá a obra a uma intensa compreensão das nomeações e descrições que marcavam, separavam e hierarquizavam os agentes históricos pelas dinâmicas biológicas e culturais das mestiçagens.

É importante destacar, para o maior entendimento da obra, o processo histórico entendido pelo autor como parte das “dinâmicas de mestiçagens”. Afinal, esse é um conceito elaborado recentemente, e permeia as dimensões históricas resultantes de mesclas, interseções, de mobilidades e de trânsito, no plano das representações e dos discursos, que geraram sociedades e produtos mestiços e não-mestiços (índios, brancos, negros, pretos e crioulos). Leia Mais

Que horas são… Lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna | Serge Gruzinski

Seguindo um modelo que já se transformou em marca, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), em seu mais novo livro, Que horas são… Lá, no outro lado? América e Islã no limiar da época moderna, apresenta ao leitor um texto que parte de temáticas contemporâneas sobre o outro, sobre o diferente. Logo em sua introdução, o autor usa da metáfora cinematográfica para apontar a dinâmica daquilo que ele gosta de chamar de planetário. O cinema, as questões atuais sobre o terrorismo e a curiosidade são elementos que vão permear todo o livro, que traz uma linguagem acessível e uma metodologia ainda pouco utilizada nos estudos históricos sobre a América e o mundo: a história comparada. Leia Mais

História e Psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

“O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz?”2. Essas são as questões que norteiam a célebre obra de Michel de Certeau A Escrita da História onde aponta as principais características da “operação historiográfica” e os caminhos traçados pela historiografia no século XX. O autor, porém, não se limitou a esse trabalho, produziu uma vasta bibliografia resultante de sua reflexão sobre a elaboração do conhecimento histórico. Por volta de 1982 buscou dar continuidade a esse livro, através de uma coletânea que comporia um segundo tomo que nunca chegou a ser publicado pelo próprio autor3. Nesse volume reuniria vários artigos que tratariam da relação entre a história e a psicanálise. Após sua morte, em 1986, esse projeto foi retomado numa obra póstuma juntamente com outros artigos de sua autoria, todos já publicados, e que tratavam da mesma temática. Assim, em 1987 foi publicado em francês, pela editora Gallimard, a primeira edição de Histoire et psychanalyse entre science et fiction. Em 2002 foi lançada na França uma nova edição, revista e aumentada, com a introdução de Luce Giard. Essa edição foi traduzida para o português por Guilherme João de Freitas Teixeira sob o título História e Psicanálise: entre ciência e ficção, publicada em 2011 pela Autêntica Editora.

Nessa obra Certeau utiliza-se da literatura, da literatura psicanalítica, da historiografia e de vários estudiosos das mais variadas formações para estruturar seu pensamento. Encontramos nos seus textos estudos das obras de Freud como A ciência dos sonhos (1900), Totem e tabu (1912-1913), Mal-estar na civilização (1930) e Moisés e o monoteísmo (1939), bem como os diversos textos publicados por Jacques Lacan. E várias referencias de pensadores como Pierre Nora, Lévi-Strauss, Nietzsche, K. Popper, Todorov, Paul Veyne, Roland Barthes, Deleuze e especialmente Michel Foucault.

Neste livro, além das notas de rodapé do próprio autor, encontram-se várias notas do organizador da edição em francês, Luce Giard, geralmente para explicar onde foi inicialmente publicado cada texto e para fazer referências cruzadas ou referencias com outras obras do próprio Certeau. Existem também notas do tradutor quando há dificuldade de encontrar equivalentes entre o francês e o português, quando a tradução não garante todo o significado que existia no significante da língua original, ou nas diversas vezes em que o autor faz trocadilhos. No fim da coletânea nos é apresentada toda a bibliografia de Michel de Certeau. Em seguida, referências de estudiosos do pensamento do autor e por fim as referências bibliográficas das obras citadas no decorrer do livro, tanto pelo autor, quanto pelo organizador. Termina-se o livro com um índice onomástico.

A presente coletânea é composta pela introdução de Giard Um caminho não traçado em que percorre a relação de Certeau com o tema – história e psicanálise – bem como considerações acerca das obras e da vida do autor. Em seguida, uma série de dez capítulos, que foram publicados inicialmente de forma isolada e por diferentes meios, correspondendo a artigos científicos, capítulos de livros e conferências. Existe, contudo, unidade e sentido entre os textos, não apenas pela temática comum que os perpassa, mas também pela possibilidade de ponderar sobre a própria metodologia de Michel de Certeau e de perceber como suas ideias se imbricam em uma trama. Cada capítulo contribui para a maior compreensão do pensamento do autor, não de forma progressiva, pois não existe uma hierarquia entre os textos, mas passamos a perceber como os diferentes textos corroboraram na edificação de uma teoria coerente e complexa. Assim, à medida que os textos nos falam sobre a Escrita da História eles mesmos nos servem de modelo dessa escrita.

Os três primeiros capítulos – A história, ciência e ficção; Psicanálise e história; e O “romance” psicanalítico. História e Literatura – mostram a relação construída pelo autor entre a história e a psicanálise. Todavia, Certeau faz isso de modo cauteloso, sem misturar ou confundir as identidades de cada disciplina. Seu lugar de fala é a história, e deixa isso bem claro. Embora fosse membro participante e ativo da École Freudienne de Paris desde sua fundação, por Jacques Lacan, nunca se fez psicanalista profissional. Percorria por ambas as disciplinas, gostava da fronteira, mas não residia fora de sua formação. Não procurou construir uma epistemologia geral. Sua reflexão como epistemólogo origina-se de seu trabalho enquanto historiador da mística dos séculos XVI e XVII. Ao traçar relações entre a história e a psicanálise, não a faz por simples atração, capricho ou fruto de um insight. Certeau atravessava as disciplinas por necessidade, quando um saber não respondia suas inquietações, buscava satisfazê-las em outra, mas sempre orientado pela história. Desse modo tramitava pela filosofia, teologia, linguística, literatura, antropologia e especialmente a psicanálise.

O autor não busca historicizar a psicanálise, nem pretende criar uma explicação social e histórica para a sociedade contemporânea a partir de uma leitura psicanalista. A novidade do trabalho de Certeau reside na reflexão que realiza das empreitadas de Freud como historiador. De até aonde cabe, ou não, de até aonde soma, ou não, a teoria e metodologia da psicanálise aplicada à operação historiográfica.

Volta-se para o antigo debate entre a história e a ficção. Segundo Michel de Certeau ao realizar a crítica documental o historiador consegue diagnosticar o erro/falso nesses documentos. Esse erro é a ficção, que é transferida para o campo do irreal. O que resta acreditam os historiadores ser o real e, portanto, a verdade, que se dá pela denúncia do falso. Mas o discurso histórico utiliza-se da ficção: a econometria histórica (a suposição do que poderia ser); o uso de metáforas; a possibilidade de mais de uma interpretação. Todavia, o discurso do historiador não se torna uma mentira por se utilizar da ficção, nem abandona o status de ciência, mas é real na medida em que se considera uma representação dessa realidade. O problema reside na lógica adotada pelas ciências positivas que relacionam ficção ao irreal e apenas com Freud que essa relação é revista.

Freud não foi um historiador profissional, mas escreve sobre História, e faz isso com um toque de suspense do romance policial e a inquietação do romance fantástico. No seu fazer histórico ele desorganiza tudo o que os historiadores acreditavam estar arrumado. Ele foi o único autor contemporâneo capaz de criar mitos, no sentido de criar romances com funções teóricas. A psicanálise e a história percebem o tempo e a memória de modos distintos. Contudo, os problemas que apresentam são análogos: tornar o presente capaz de explicar o passado, compreender as diferenças e as continuidades entre as organizações antigas e atuais, construir uma narrativa explicativa. Assim, a questão que vem à tona é: qual o impacto do freudismo nas discussões sobre as relações entre história e literatura?

A literatura é para a história o que a matemática é para as ciências exatas – a forma que torna o discurso inteligível. Mas no discurso freudiano é a ficção que fornece a seriedade científica. A narrativa produzida pela psicanálise, o “romance”, deveria combinar os sintomas da doença (a coleta de dados) com a história de vida/sofrimento do paciente (historicizar seu problema). O estudo tradicional, científico, não acrescentava a historicidade do caso clínico à coleta de dados, portanto dentro do discurso dito científico não entrava a história. Essa historicidade vem para superar o modelo teórico vigente. O “romance” então supera a ciência, pois além da coleta de dados (o factual) ele historiciza o caso. Em Freud, torna-se possível pensar história e ficção.

Os capítulos IV-VI: O riso de Michel Foucault; O sol negro da linguagem: Michel Foucault; e Microtécnicas e discurso panóptico: um quiproquó apresentam os problemas levantados por Foucault em diálogo com as teses de Certeau sobre a história e a psicanálise. Não uma ingênua apresentação das ideias de Foucault, nem mais um dos comentários sobre sua obra, mas uma reflexão do próprio Certeau a partir da leitura de Foucault, de quem não era apenas amigo íntimo, mas um admirador de seu trabalho. As obras de Foucault que alicerçam essa parte da obra são fundamentalmente As palavras e as coisas (1966), Arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975).

Envolvido num certo tom de ironia, Foucault descarta as certezas que o evolucionismo pretende, mostrando certo desprezo pelo postulado de um progresso contínuo. Para ele, todo sistema cultural é uma aposta, por ser incerto e não saber precisamente aonde vai chegar, mas mesmo assim, busca dar um sentido, uma ordem à vida, elaborando um modo de enfrentar a morte. Foucault critica essa ideia de progresso porque ela pressupõe que uma cultura caminha sempre para frente, acumulando e superando a anterior, hierarquizando-as. Contudo, cada cultura oferece ao nosso pensamento um mundo de ordem, o exótico de um pensamento é o limite de compreensão do nosso. E nessa relação de alteridade, percebemos as diferenças culturais e transformamos nossa relação com nossa própria cultura. Nosso mundo de certezas desmancha-se, marcando o fim de um sistema cultural e o início de outro. Nesse processo, palavras e ideias são utilizadas para pensar teoricamente esse novo sistema, e embora tais palavras e ideias existissem nos dois sistemas elas podem alterar o significado por estarem inseridas em ordens de pensamento diferentes.

Dessa estrutura do pensamento de Foucault, Certeau detêm-se em algumas questões de ordem metodológica: a análise histórica deve ser estrutural, ou seja, fazer uma adequação entre significante e significado, pois o significado das palavras é construído historicamente; a noção de periodicidade perpassa erroneamente a ideia de continuidade, de progresso, assim, necessitamos confrontar nosso objeto com outras obras contemporâneas ao próprio objeto, não se concentrando demais no pensamento anterior (as “influências”) e no posterior (nossas próprias ideias, teorias).

Os últimos capítulos: História e Estrutura; O ausente da história; A instituição da podridão: Luder; e Lacan: uma ética da fala/palavra [parole] apresentam a perspectiva teórica de Michel de Certeau pensada em seu próprio objeto de pesquisa, a espiritualidade dos séculos XVI e XVII. Não encontraremos nesses artigos um estudo sistemático sobre essa temática tal como o faz em La Fable mystique: XVIe et XVIIe siècle (1982), por exemplo. O que norteia a composição da obra são as questões de ordem teórica e metodológica. Aqui, Certeau se detém a essas questões mostrando como elas se relacionam ao seu tema de pesquisa, é uma intervenção sobre seu próprio fazer historiográfico.

Certeau ao apresentar seu objeto lembra-nos que essa escolha – não apenas a sua, mas a de todos os historiadores – é uma escolha orientada por uma busca de identidade. Olhamos para o passado buscando algo do presente. Nesse primeiro momento encontramos com o outro por meio de nossa imaginação, reconstruímos um mundo que nunca conheceremos de fato, aí existe um erudito e não um historiador. Nossa busca é como a de um catador, que revira o lixo buscando os restos e sonhando com a casa que nunca terá. O pesquisador permanece o mesmo. Em seguida, com o contato maior com a documentação, numa relação de força, há um estranhamento com o outro e um afastamento de seu mundo. Percebemos que esse mundo nos escapa, que não é como imaginávamos ou como sonhávamos. O objeto de pesquisa se torna um outro, um estranho. Mas o que mudou com relação a nosso primeiro olhar não foi o passado, mas sim a maneira como olhamos para ele, uma mudança do próprio pesquisador diante de sua pesquisa, é nessa transformação que o erudito se torna um historiador. Fazer história é mais que produzir narrativas históricas, é ter consciência de que algo se passou, está morto, e é inacessível como vivo.

O trabalho do historiador deve fazer aparecer a alteridade. A história direciona nosso olhar para o passado a fim de se aproximar do estranho, do “selvagem” que habita as origens. O discurso histórico nos revela essa presença ameaçadora, tal qual a psicanálise, embora se utilizando de diferentes procedimentos. Assim, a concepção de história de Freud não é de uma permanência, mas de uma tensão que organiza uma sociedade ou um discurso.

Michel de Certeau é sem dúvidas um grande erudito e historiador do século XX e suas contribuições para as discussões acerca da teoria da história e metodologia da operação historiográfica estão para além do que conseguimos mapear. Encontramos nessa coletânea um compêndio de vários exercícios intelectuais do autor, uma verdadeira lição de como “fabricar” história. Certeau é comedido em sua escrita, mostra-nos como fazer a relação da história com as várias disciplinas que utilizamos como auxiliares. Escreve sobre teoria, mas preocupado em como essa serviria para resolver problemas do fazer historiográfico. Sua abordagem metodológica busca um entremeio [entre-deux] entre os eruditos do século XVII, os tratados de método do século XX e os pensadores pós-modernos. O caminho que traçou não busca responder definitivamente a toda problemática da Escrita da História, antes, porém insere mais questões para refletirmos e tomarmos consciência do que realmente fazemos ao escrever história, tomarmos consciência da nossa própria narrativa, e assim, como na psicanálise, trazer a tona o que está escondido/ ou o que escondemos no nosso ofício.

Notas

2. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 65.

3. GIARD, Luce. Um caminho não traçado. In: CERTEAU, Michel. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 37.

Maicon da Silva Camargo – Mestrando em História. Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Trad. Guilherme J. de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.  Resenha de: CAMARGO, Maicon da Silva. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.294-298, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

História e psicanálise: entre ciência e ficção | Michel de Certeau

Michel de Certeau (1925-1986) nasceu em Chambéry região camponesa da França. Intelectual de Inteligência brilhante e inconformado com a realidade, Certeau caminhou por vários caminhos de saberes, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas, e ainda caminhou por tantas outras disciplinas, como a Antropologia, a Linguística e Psicanálise. Michel de Certeau comuns de sua época [2]. Sua trajetória intelectual pode ser pensada como uma procura constante da palavra do outro, uma procura pelo outro e suas ações. Sua simplicidade lhe permitia perceber as artes e as criações nas coisas mais simples do cotidiano (o caminhar, o ler, o morar, o cozinhar, etc.), seu olhar nos levou a entender o sujeito como criativo, capaz de subverter a disciplina. Em linhas gerais, podemos identificar que o sujeito é o grande personagem de seus trabalhos [3]. Sua produção mostra enorme erudição, uma produção que vai do inicio dos anos 1960, até 1980. Religioso, foi ordenado sacerdote na Companhia de Jesus em 1950 e, fiel aos princípios de sua ordem, permaneceu padre e assim viveu até a sua morte.

Certeau subverte lugares. Inquieta o leitor, e ao mesmo tempo proporciona um diálogo com ele. A leitura de seus textos nos faz pensar a simplicidade do cotidiano de uma forma diferente, como um espaço de conflitos, de lutas capilares, quase imperceptíveis. Certeau nos mostra através de poucas palavras o barulho da estratégia e o silêncio da tática. Sua preocupação ainda se destaca na problematização no que se diz respeito ao conhecimento histórico e os meandros de sua produção, ao escrever “A escrita da História”, Certeau lançará questões de grande importância para a historiografia, descortinando o que está por traz do texto histórico, as suas limitações, as suas possibilidades e suas interdições. Afinal quem produz e como é produzido o texto do historiador? Quais os limites e as aberturas impostas pela sociedade dos historiadores? Quem julga a qualidade, e a validade do texto histórico. Arrisco em afirmar que A Escrita da História é um texto fundamental para se pensar o oficio, e para ser historiador.

Um dos mais importantes momentos da produção de Michel de Certeau é sua aproximação com a Psicanálise que se dá, sobretudo, por sua participação nos seminários de Lacan, de quem era grande admirador. Tendo tido uma relação direta com os textos de Freud, Certeau chega a destacar a influência do pensamento freudiano na historiografia, intervenções que ele chamará de “cirúrgicas”, essa influência permeará grande parte de seus textos. Participará ainda da Escola Freudiana de Paris, até a sua dissolução nos anos 1980.

Publicado pela primeira vez no Brasil em 2011, pela editora Autêntica, a coletânea de textos, “História e Psicanálise: entre ciência e ficção”, reúne textos que, mais uma vez, trazem à tona a heterogeneidade do pensamento de Michel de Certeau, dez capítulos que tratam desde a relação, muitas vezes conflituosa, entre história e ficção, da relação da própria história com a psicanálise, bem como três belíssimos textos sobre o pensamento e a pessoa de Michel Foucault, a quem Michel de Certeau admirava e reconhecia a força de sua produção e de seu pensamento. Porém, os temas abordados por Certeau vão mais além, abrem um leque de possibilidades para se pensar o conhecimento histórico. Trata-se de um rico material, onde é escancarado o pensamento múltiplo e fecundo de Certeau. Certeau fez de seu percurso “Um caminho não traçado”.

Inspirada na vida de Certeau, em suas práticas de esgrima e montanhismos nos Alpes da Savoia, Luce Giard, abre a coletânea de textos com um belíssimo ensaio sobre a vida e a obra do historiador do cotidiano. Usando uma linguagem metafórica, a autora faz um transcurso entre a vida e a produção historiográfica desse jesuíta, um pensador de passos firmes e inconformado com o seu próprio conhecimento, isso fez com que Certeau, caminhasse, buscasse o conhecimento incessantemente. Giard nos faz ver um Certeau simples, pensante, que estava sempre atento a perceber as artes escondidas no cotidiano, um personagem que mesmo tendo ganhado destaque no ciclo intelectual francês permaneceu sem ostentação, sem méritos. Historiador da espiritualidade e dos textos místicos, Michel de Certeau, sempre relia seus textos, demonstrando insatisfação, reavaliando suas posições e seu pensamento. Talvez seja por isso que os textos de Certeau, passados mais de vinte anos, ainda são de uma atualidade impressionante.

O primeiro capitulo trata da relação entre História e ficção, o texto procura fazer reflexões acerca das possibilidades de pensar essa relação. Nesse sentido, Certeau vai pensar o discurso da história a sua pretensão de realidade. Afirma o autor que, o historiador não fala e nem tem a ambição de falar verdades absolutas. O discurso da história, embora deseje um efeito de real, ele não outorga uma verdade sobre o passado. Assim, Certeau, perpassa questões que norteiam o conhecimento histórico, propondo reflexões de caráter teórico e metodológico sobre essa tríade – história, ciência e ficção – um texto que traz para o cenário das discussões temas que norteiam a produção da história e o lugar da narrativa.

Os capítulos II e III se preocupam em estabelecer considerações sobre a História e a Psicanálise. Questões que possibilitam nomear a obra. Os encontros de Certeau com os textos de Lacan possibilitam o autor ampliar seus conhecimentos e suas reflexões sobre as suas pesquisas, rompendo fronteiras, Certeau, ainda pensa, nesses textos a relação entre a História e a Literatura, nessa relação Freud é a grande inspiração do texto, Certeau caminha pela psicanálise buscando entender as suas possíveis relações com a história.

Como dito anteriormente, Certeau nutria profunda admiração pelo filósofo Michel Foucault, a este dedicará três textos da coletânea aqui discutida – Capítulos IV, V e VI – mais do que textos sobre a produção de Foucault, Certeau escreve textos que revelam a sua admiração pela “revolução” causada pelos escritos foucaultianos, sobretudo, por “Vigiar e Punir” que ele considera como uma obra prima. Vale destacar aqui, que alguns comentadores criam uma oposição entre Certeau e Foucault, criando um grande equivoco. Não são pensadores em conflito, trata-se de pensamentos diferentes. Enquanto Michel Foucault busca entender a disciplina e a sociedade disciplinar, Michel de Certeau preocupa-se em perceber a antidisciplina, os meios e as táticas de fuga, de rompimento com a ordem. O texto, “o riso de Michel Foucault”, é um percurso pela personalidade de Foucault, em quem Certeau identifica um “um riso incontrolável”, dois pensadores que se negaram a ocupar um lugar fixo, estático. Foucault e Certeau ainda falam, suas falas habitam o texto. Vozes que escapam o jazigo que é o texto.

Os capítulos VII e VIII, estão relacionados a relação entre história e a escrita da história. Retomam questões, que de certa forma se fazem presentes em “A escrita da História”, contudo, não se afastam da proposta temática da coletânea, continuam ainda traçando caminhos pela psicanálise. Especificamente, o sétimo é uma discussão acerca do estruturalismo, corrente de pensamento de grande repercussão nos anos oitenta. O oitavo traz o ausente da história, é na verdade um texto sobre a escrita da história, ou, a elaboração do discurso histórico, um discurso que busca vestígios, pistas do outro, do passado, para elaborar um texto inteligível.

Concluindo, o capitulo de conclusão da coletânea é dedicado a Jacques Lacan, fundador da Escola Freudiana, de quem Certeau era membro ativo, nesses textos Michel de Certeau identifica nos seminários de Lacan, uma força criadora, (co) movedora de sentidos, Certeau foca sua análise naquilo que Lacan tanto utilizou. A voz, a voz que produz efeitos, gera experiências.

Mas o que Certeau causa em seu leitor? Não tenho respostas. A dúvida talvez seja mais forte e mais criadora do que a certeza. Duvidar faz criar outras respostas, a certeza me prende, me limita. Os textos de Michel de Certeau são como gravações, como pensa Gilles Deleuze, ao ler, o leitor atento, poderá escutar sua voz, suas pausas, suas entonações, a suavidade de sua voz e a força de seu pensamento. Melhor, o leitor atento poderá vê-lo, seu corpo franzino, seu olhar perspicaz, e a força de seu pensamento.

Os textos apresentados em “História e Psicanálise” revelam a sensibilidade e a potência do pensamento de Michel de Certeau, é um texto rico, profundo e povoado de vozes. Vozes de Certeau, de Lacan, de Foucault, vozes de leitores… Em 09 de Janeiro de 1986, uma triste quinta feira, Michel de Certeau morria, porém, não se calaria. Sua voz resiste ao caráter sepulcral do texto. A voz de Michel de Certeau continua ecoando em meio às instituições que legitimam o trabalho do historiador, mas, o pensamento certeauniano não conhece fronteiras, inquieta pesquisadores de múltiplos campos de saber. Certeau, certamente proporcionou uma revolução no pensar, no fazer. Revolucionou a nossa forma de escrever a história e nossa forma de perceber o cotidiano, o sujeito e a nós mesmos. Pois, a experiência do conhecimento de nada adianta se não modificar a nós mesmos, antes de tudo.

Notas

2. Cf. CHARTIER, Roger. Estratégias e táticas. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

3. Em “A invenção do Cotidiano” (Vol. 1 e 2.) Michel de Certeau se preocupa em perceber como as pessoas elaboram práticas cotidianas a partir de uma cultura ordinária, o cotidiano passa a ser inventado pelo sujeito através de suas artes, Certeau vê na invenção do cotidiano uma liberdade gazeteira, sorrateira, que age em micro espaços e micro ações.

Silvano Fidelis de Lira – Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (2012) e atualmente mestrando em História na Universidade Federal da Paraíba, desenvolve pesquisas sobre memória e sensibilidade. E-mail: [email protected]


CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: LIRA, Silvano Fidelis de. Um pensamento inquieto: os caminhos de Michel de Certeau. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.13, p.304-307, ago./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

O Erotismo | Georges Battaille

“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Este axioma de Italo Calvino (2007: p.11) baliza com precisão o que a obra L’Erotisme, de Georges Bataille, que veio a lume pela primeira vez em 1957, significou e ainda significa para os estudos de gênero, sexualidade, história da arte e das religiões. O objeto de pesquisa é o erotismo e o seu funcionamento na sociedade, tema do qual o autor jamais se afastou, haja vista as muitas obras publicadas, como História do olho (1972) e Acéphale (1936-1939), para citar apenas algumas. Pode-se afiançar que a obra batailliana busca explicitar uma série de tabus da sociedade, do incesto ao homicídio, tendo como ponto de partida as experiências humanas.

Georges Bataille nasceu em Billom, França, em 1897. Data e lugar não são apáticos ao itinerário do pensador. Nascer na França em 1897 significava, para muitos, estar fadado a combater na Primeira Guerra Mundial dezessete anos depois. Com Bataille não foi diferente, e o autor não esconde esse fato. Já no prólogo de O erotismo, ele atesta que os escritos foram elaborados “entre a guerra”, num “mundo abandonado”, em que os homens viviam “como espectros” (p. 30). Leia Mais

Que Horas São …Lá , No Outro Lado? América e Islã no Limiar da Época Moderna | Serge Gruzinski

Virá o tempo, em um futuro longínquo, em que o mar Oceano quebrará suas correntes; e uma vasta terra será revelada aos homens…” Estas palavras de Sêneca escritas no século I da era cristã são essenciais para a compreensão de um momento histórico único, que representam as grandes descobertas geográficas dos séculos XV e XVI. No novo livro do historiador Serge Gruzinski este tema é revisitado de forma diferente e também inusitada, servindo de pano de fundo para a construção da obra. O objeto central da narrativa não são as novas descobertas e sim o cruzamento de duas fontes que nos levam a visitar ao mesmo tempo a América e o coração do Império Otomano.

O ano de 1453 marcou a derrocada e o último suspiro do Império Bizantino, já em estado de alerta desde o século VII. O advento do Islamismo é considerado o principal elemento de transformações no mundo medieval. Após a conquista da Anatólia e dos Balcãs o poder otomano, baseado na religião islâmica, consolida-se como a principal força política do oriente, com centro em Istambul. Por outro lado temos o surgimento inesperado de outros universos, localizados desta vez junto ao Atlântico, tendo inicialmente como centro a “Nova Espanha” e de modo singular a Cidade do México local escolhido por um dos cronistas para viver. Leia Mais

A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual | Graça Ramos

A literatura infantil vive seu auge no mercado editorial. A produção de livros de leitura no Brasil que, no início do século XX, priorizava a composição e a elaboração mais aprimorada da linguagem escrita, passa a ter como destaque, na atualidade, a articulação da linguagem visual. Na obra A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual, de Graça Ramos, publicada pela Editora Autêntica em 2011, a autora explora a temática da linguagem visual como um recurso de valor igualitário e, muitas vezes, imprescindível na produção de livros infantis.

Trata-se de uma obra pertencente à série Conversas com o professor – uma coleção organizada por Sônia Junqueira, com o intuito de facilitar ao professor o acesso ao conhecimento acadêmico. Nesse trabalho, Graça Ramos traz algumas questões sobre a literatura infantil, como o percurso histórico da arte da ilustração disposta nos livros infantis, explicita as denominações ou classificações mais indicadas para os livros infantis, além de apontar como a imagem foi ocupando lugar de centralidade na produção editorial. A obra apresenta uma linguagem poupada do uso acentuado de expressões puramente acadêmicas e apresenta-se acompanhada de ilustrações de diferentes livros de literatura infantil, expostas em constante diálogo com a produção escrita. Leia Mais

Canção popular brasileira e Ensino de História / Miriam Hermeto

Nas últimas décadas, o Ensino de História como objeto de pesquisa ganhou foros de amplitudes em todo o Brasil. As temáticas que o cercam também tem se diversificado. Em tempos assim em que, os saberes proporcionados por diferentes olhares, fontes e perspectivas dão asas a problematizações diversas sobre o ensino, mediando às relações entre a produção do conhecimento histórico o e conhecimento histórico escolar, a recente publicação “Canção popular brasileira e Ensino de História” de Miriam Hermeto, com invejável maestria, insere-se nesse debate.

O livro é rico em bibliografia e indicações de sites proporcionando acesso a arquivos diversos compostos por letras de músicas, capas de discos, jornais, entrevistas e vídeos, que cercam, dialogam e prestam informações sobre a canção popular brasileira. A primeira vista, por essa riqueza de detalhes e estratégias metodológicas crivados pelos diálogos de cores entre os textos, as diferentes cores de fundo numa mesma página, as múltiplas imagens em cores também diversas, temos a falsa impressão de estarmos manuseando um livro didático. Talvez, essa estética tenha sido criada para aguçar a imaginação do leitor a pensar sobre o objetivo maior do livro, canção popular brasileira como objeto e fonte de estudos históricos. Conteúdo, possibilidades didáticas e de pesquisa com documentos se mesclam de forma a indicar, que realmente, na educação histórica não se pode separar pesquisa de ensino.

A canção enquanto linguagem é confeccionada e consumida em larga escala por diferentes grupos socioculturais em todo o Brasil. É, portanto, amplamente acessível, presente na vida dos estudantes e atende bem aos anseios de professores pela busca de recursos pedagógicos que se aproximam do cotidiano dos alunos. Por possibilitar construir capacidades de leitura de mundo dos estudantes, enquanto sujeitos, cidadãos, trabalhadores, a canção “pode ser tomada como instrumento didático privilegiado no ensino de História” (HERMETO, p. 12 e 15) Isso é indiscutível. Talvez a grande questão resida nos problemas teórico-metodológicos de como tratar as canções. De antemão, ao problematizar a canção popular brasileira como objeto e fonte de estudos históricos para as práticas educacionais no Ensino Médio, a obra aqui analisada cumpre bem o objetivo a que se destina. O alvo do livro é o professor. A intenção é fazer com que ele vislumbre o interesse na realização dessas práticas, reflita sobre suas ações didáticas, e consequentemente que isso contribua para sua formação continuada.

Na discussão sobre a canção popular brasileira enquanto conceito historicamente construído, assunto abordado logo na introdução do livro, Miriam Hermeto, em consonância com Marcos Napolitano, justifica e escolha pelo século XX, ao afirmar ter sido nesse momento em que a historiografia concebeu o seu surgimento, a sua definição e a sua trajetória histórica. “Um produto do século XX,” relacionado à sua forma fonográfica: “registro sonoro em um suporte, (disco placa, filme, suporte digital ou outro formato) que lhe dá perenidade e, em última instância, ao desenvolvimento tecnológico industrial do mundo urbanizado.” Em termos gerais, “pode ser definida como um híbrido que se constrói ao colocar diferentes tipos musicais em diálogo.” Em termos mais específicos: “narrativa que se desenvolve num espaço de tempo curto (de 2 a 4 minutos) que constrói e veicula representações sociais, a partir da combinação entre melodia e texto” (HERMETO, p. 32).

Partindo da elaboração desse conceito para justificar o recorte temporal de estudo, a autora não se detém sobre diferentes formas de expressões e usos musicais que se reportam a outras temporalidades e até mesmo espacialidades das quais, pelo menos em parte, a canção popular brasileira deriva, mescla. Fato esse certamente passível de críticas. No entanto, além do trabalho em História requerer justificativas para seus recortes, cabe aos profissionais da aérea, inspirar-se ou aprimorar-se nos passos teórico-metodológicos sugeridos pela autora e construir seu próprio percurso e escolhas.

Tendo como pressuposto de que “ensinar História é ensinar teoria e metodologia,” Miriam Hermeto inspira-se teoricamente nas concepções de Marc Bloch sobre o objeto de estudo da ciência histórica: os homens e o tempo. Esse homem enquanto sujeito e objeto do conhecimento passeia sobre diferentes temporalidades: “o tempo da ação humana que se analisa” (passado) e “o tempo em que a análise é realizada” (presente). Esse homem – historiador – através de conceitos e métodos de pesquisa apropria-se do legado humano para a produção/ensino do conhecimento histórico. Essa produção humana configura-se em documentos.

Para discussão de documento, a autora apóias-se na definição de Jacques Le Goff, para quem “o documento é monumento,” pois sua produção está condicionada a diferentes fatores e haja vista informar sobre o modo de vida e a inserção social de quem os produziu e, ao padronizá-lo, “quis atribuir um estatuto de perenidade”. No entanto, para que a produção humana se transforme em documento para a História é necessário que se problematize e identifique “as diferentes camadas temporais”, os diferentes sujeitos e as relações existentes. Somente com esse olhar crítico se transforma os documentos “em fonte de informações sobre as relações dos homens no tempo” (HERMETO, p. 25 e 26) Assim, canção popular brasileira é entendida enquanto produção humana, documento e fonte para a história.

Para Miriam Hermeto, no uso pedagógico, esse documento/fonte, recurso didático não pode pretender apenas ilustrar historicamente os fatos narrados. Do contrário, espera-se que o professor seja capaz de trabalhar com os alunos “as especificidades de linguagem e a forma como elas se inserem na dinâmica social”, isto é, interrogar as canções a partir de seus aspectos históricos gerais, tentando perceber como ela coteja o problema, o tema que se pretende abordar e as representações que ela suscita.

A partir de Chartier e Pesavento, a autora define representação como “algo que dialoga com muitos sentidos.” Nas palavras da própria: “as representações se traduzem nos temas abordados” que podem ter “as mais diferentes abordagens melódicas ou poéticas” e isso faz com que o conceito de cação popular brasileira abarque diferentes gêneros musicais e poéticos.” Os gêneros, assim, seriam formas de definir esse produto cultural: “pelo conteúdo temático da mensagem (canção engajada, canção de amor, canção de protesto…)” ou pelo “estilo musical (bossa-nova, samba-canção, xote, rock, baião, etc.)” (HERMETO, p. 36)

De modo geral, é na busca de compreensão das representações que a canção popular brasileira proporciona que se delineiam grande parte dos estudos que a tem como objeto ou como fonte de estudos históricos. Nesse sentido, a partir de letras transcritas e indicações de sites de onde encontrá-las em viva voz, a autora propõe um exercício de percepção musical com vistas a auxiliar o professor a depurar seu entendimento no processo de construção de representações sociais da canção popular brasileira, bem como, compreender a adequação entre letra e melodia.

A canção popular brasileira no livro é abordada como “fato social.” A autora parte dos diferentes sujeitos envolvidos na produção, “a um só tempo cultural e comercial.” As analises recaem sobre as pessoas e instituições, os problemas históricos e sobre uma infinidade de documentos históricos que vinculam a canção e as impressões pelo público: “álbuns (LPs, CDs e DVDs), fonogramas, vestígios de interações nas redes sociais, fotografias, vídeos de performances, depoimentos, biografias, textos de críticos musicais, propagandas de álbuns e shows, reportagens sobre eventos, documentários”, etc. (HERMETO, p. 43) Por esse prisma, Hermeto dialoga com os princípios teórico-metodológico de Robert Darton. Em suas análises sobre o livro o autor insere-o na perspectiva do circuito das comunicações, envolvendo produção e consumo: do autor ao leitor, do editor ao livreiro, fornecedores e críticos.

Em grande parte esse “circuito de comunicações” imbrica as páginas da segunda parte do livro, embasando as análises e conclusões sobre a canção popular brasileira. A ênfase recai sobre os cancionistas (melodia e letra), os performers (arranjadores, instrumentalistas e cantores). Analisa um pouco da história da indústria fonográfica brasileira (primeiras gravadoras, regulamentação e crescimento da produção); capas de álbuns como fontes e acessibilidade; produtores musicais e jornalistas, como mediadores culturais e de mercado; os meios de comunicação de massa (rádio, TV) de circulação; e a apropriação da canção pelo público.

Como protagonista no assunto, isto é, na condição de professora e pesquisadora na área, Miriam Hermeto compreende que os problemas envolvendo o processo de ensino-aprendizagem em História a partir da música não são novos nem estão resolvidos. Para o professor que não tem formação na aérea, as questões mais comuns são: qual gênero ou tipo de música deve ser analisado em sala de aula? Como enfrentar a questão da linguagem musical? Como lidar com as diferenças entre as escolhas dos professores e o gosto musical dos alunos? Onde obter fonogramas antigos e fora do mercado, para não se prender ao que se ouve na mídia?

Mesmo que não se propunha a dar receitas prontas, com uma abordagem metodológica que dialoga questões teóricas, historiográficas e didáticas, ao longo dos textos-bases a autora intercala boxes com essa variedade de documentação acima descrita. Por essa lógica, objetiva possibilitar ao professor alternativas de trabalhos pedagógicos e sugere atividades que o permite “mediar, por meio de orientação de pesquisa, a construção de algumas capacidades de aprendizagem histórica específicas”, tais como: “lidar com documentos datados, buscando diferentes versões de canções” (HERMETO, p. 17).

Para Miriam Hermeto compreender a canção popular brasileira apenas como fato social a partir da perspectiva de circuito de comunicação não é suficiente para se entender as razões da hegemonia e de sua originalidade. Assim, a autora dedica a segunda parte do livro a “trajetória história do fenômeno e a forma como ela vem sendo interpretada.”

Mesmo que não pretenda fazer uma história da canção popular brasileira, apresenta um balanço dos estudos acadêmicos sobre o assunto. O destaque recai sobre o historiador Marcos Napolitano (autor das orelhas do livro), além de outros especialistas como a cientista social Santuza Cambraia Naves e o lingüista, músico e cancionista Luiz Tatit. A partir dessas referências, elencando para cada momento as produções, os vários sujeitos envolvidos a exemplo de cancionistas, compositores e cantores, bem como os vários gêneros, constrói uma narrativa sobre as mudanças e continuidades na canção popular brasileira, no início do século XX aos dias atuais. Inicia com a legitimação do samba, seguindo do samba-canção à bossa-nova, MPB e jovem Guarda, tropicalismo, canção romântica e pilantragem. Na ênfase sobre a diversidade cancional dos anos 1970, analisa o rock nacional, rap e funk. Por fim para as décadas de 1980 e 1990 mostra a diversificação do mercado cancional brasileiro com três gêneros em especifico: sertanejo, axé e pagode e conclui com argumentos sobre a questão: “o século XXI: para onde vai a canção popular brasileira?”

As propostas didáticas para esse ponto dão-se no sentido de ampliar as possibilidades do “leitor/professor – não especialista em música, mas em história” a desenvolver a percepção musical: desde a audiência, os diversos gêneros a elementos que compõem a “gramática musical,” a relação texto e melodia, arranjo, interpretação e ênfase temática.

Na última parte do texto, Miriam Hermeto propõe uma proposta didática com cinco dimensões do documento (canção): dimensão material (suporte em que se encontra a narrativa histórica com a qual se pretende trabalhar, bem como o tipo de linguagem), descritiva (o tema e o objeto), explicativa (abordagem do tema em uma narrativa), dialógica (referências de pesquisa e culturais com as quais o texto dialoga e a partir dos quais foi construída a narrativa) e dimensão sensível – sentimentos e afetos que mobilizam a produção e a recepção do texto – (HERMETO, p. 148 e 149).

Em seguida, elabora uma proposta de estudo temático embasada nas canções de Luiz Gonzaga com vistas a discutir, “as representações do nordeste: um regionalismo universal.” Chico Buarque e Ruy Guerra, em o projeto cultural o veto de Calabar, (texto lançado em livro, disco e espetáculo) é abordado na discussão sobre a censura e as diversões públicas durante a Ditadura Militar. Por último, a partir das musicas cérebro eletrônico e parabolicamará, avalia as contribuições de Gilberto Gil, para a temática “trabalho e tecnologias da informação”. Didaticamente, foram criadas sequências de ensino, baseadas em um quadro panorâmico que envolve problematização, desenvolvimento da narrativa, aplicação de conhecimentos e reflexão/síntese. Esses passos são mediados por oito atividades que auxiliadas por documentos como letras de músicas, capas de discos, trechos historiográficos e entrevistas oferecem possibilidades de construção de conhecimento.

A meu ver, pelo teor didático e denso da construção do texto, “Canção popular brasileira e Ensino de História”, vai muito além das fronteiras do ensino Médio. Deve ser leitura obrigatória para quem concebe a relação entre saber histórico e saber histórico escolar em qualquer nível do conhecimento, mesmo que não trabalhe em especifico com essa documentação.

Elisgardênia de Oliveira Chaves – Doutoranda em História em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Apoio CAPES.


HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e Ensino de História: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. (Coleção Práticas Docentes 2). Resenha de: CHAVES, Elisgardência de Oliveira. Em Tempo de Histórias, n.20, p.177-182, jan./jul., 2012. Brasília, Acessar publicação original. [IF].

A história ou a leitura do tempo | Roger Chartier

Fruto das pesquisas de Roger Chartier sobre as mutações da disciplina da história, realizadas desde o final dos anos de 1980, A história ou a leitura do tempo apresenta um panorama da historiografia nas três últimas décadas. O ensaio aborda os principais debates recentes da disciplina da história, desde seu estatuto de verdade, passando por sua aceitação social, a difícil relação entre história, memória e ficção, até o surgimento do livro digital e as novas formas de apresentação do texto historiográfico. Desde seu primeiro livro publicado no Brasil, A história cultural entre práticas e representações (1990) e seu célebre artigo “O mundo como representação”, publicado na revista dos Annales em 1989, o historiador vem se mostrando atento às reflexões teórico-metodológicas da disciplina. Em estudos posteriores, o autor buscou aliar a crítica textual à história do livro e da cultura, além estudar o recente impacto da cultura digital sobre a tradição escrita. Leia Mais

Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil | Marcus Marciano Gonçalves da Silveira

Desde a independência política do Brasil, já durante o período monárquico, surgiu a preocupação com a criação de uma identidade artístico-arquitetônica para o novo estado em vias de formação. Foi no contexto da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, que Manuel José Araújo de Porto Alegre encetou os primeiros debates acerca de um estilo arquitetônico nacional.

Entretanto, é somente a partir do movimento modernista e da institucionalização de uma política patrimonial para o país, com a criação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durante o Estado Novo, que estratégias mais incisivas em torno da criação de um modelo artístico identitário nacional começaram a ser colocadas em prática.

Na verdade, seriam os mesmos arquitetos promotores do movimento modernista aqueles que a parir do final da década de 1930, ajudariam o governo Vargas a forjar a política patrimonial do Sphan e a elaborar a “versão oficial” da memória patrimonial e artística do Brasil.

O paradoxo que caracterizou a trajetória desse grupo de arquitetos-intelectuais, marcada pelo seu envolvimento direto tanto nas políticas de preservação do “Barroco Colonial” – em especial o “Barroco Mineiro” – elevado por eles à condição de símbolo da identidade artística nacional, quanto no projeto de criação de novo “estilo brasileiro”, o moderno, também por eles legitimado, é o ponto de partida do estudo de Marcus Marciano Gonçalves da Silveira.

O livro consiste na publicação da Dissertação de Mestrado em História e Culturas Políticas do autor, junto a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nele, a partir do caso da cidade de Ferros (MG) – cuja Igreja Matriz dedicada a Santa Ana, originariamente em estilo colonial, foi demolida, na década de 1960, para a construção de um edifício em estilo modernista –, o autor procura estabelecer relações entre o processo de difusão da arquitetura religiosa modernista no Brasil, nas décadas de 1940 a 1960, com uma ideologia estatal de cunho desenvolvimentista e a escolha de políticas “modernizantes” por parte de determinados setores da Igreja Católica.

Diante do silêncio das principais narrativas sobre a história da arquitetura modernista no Brasil que, centradas na arquitetura civil, geralmente, só mencionam duas obras de arquitetura eclesiástica: a Capela da Pampulha e a Catedral de Brasília de Oscar Niemeyer, o autor se propõe a tirar da obscuridade outros projetos arquitetônicos modernistas para edifícios religiosos.

Para tanto, faz um levantamento dos projetos de igrejas em estilo modernista publicados nas principais revistas brasileiras de arquitetura entre as décadas de 40 e 60 (leia-se: Acrópole; Habitat; Arquitetura e Engenharia; Arquitetura; e, Arquitetura, Engenharia e Belas Artes).

Todavia, apesar do título do primeiro capítulo “A trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil” somente ao seu final (pp. 88-97) encontraremos uma lista e algumas imagens de projetos e de igrejas efetivamente construídas. Mesmo somando-se a esses, os projetos colocados – sem razão evidente – no Anexo A, o autor está longe de fazer um levantamento sistemático sobre o assunto: os exemplos mencionados, praticamente, só dizem respeito ao sudeste e, em número menor, ao sul do país e, além disso, o autor não se preocupa em destacar quais projetos efetivamente saíram do papel.

A primeira parte do livro, na verdade, se ocupa muito mais dos fatores ideológicos e políticos que legitimaram a destruição dos edifícios antigos e sua substituição por templos modernos.

O autor procura investigar de que forma o modernismo conseguiu fomentar a associação entre passado e atraso, e entre modernidade e progresso. O modernismo coloca-se como alternativa a um passado atrasado, não pelo seu valor histórico e estilístico, mas por ser carregado de estrangeirismos.

Neste sentido, “o projeto modernista” vincularia a idéia de retrógrado, de ultrapassado, sobretudo, aos chamados “estilos históricos”, a partir de uma construção discursiva que também reverberaria na política do próprio Sphan, uma vez que houve pouquíssimos tombamentos de edifícios em estilo eclético neste período.

Segue-se uma reconstrução da rede de interesses que uniu os arquitetos modernistas e alguns setores da Igreja. A Igreja buscava fugir de sua “identidade museológica”, a partir da retirada dos elementos decorativos que preenchiam todo o corpo do templo, tirando a atenção do altar. Assim, a ânsia de alguns setores do clero por uma renovação litúrgica que adequasse os templos à sua funcionalidade ajudou nessa aproximação.

No que tange, por exemplo, o caso da Matriz de Ferros, segundo o autor, a preocupação com o estado deplorável do templo era muito mais centrada na sua falta de funcionalidade do que no seu valor enquanto patrimônio histórico.

Neste sentido, a ausência de posicionamento do Sphan em relação à proposta de demolição da Matriz de Sant’Ana, ratifica a afirmação do autor de que o estilo “Barroco Nacional” legitimado pelos modernistas, foi praticamente o único padrão artístico que despertava o interesse da instituição, a qual deixava na mão da Igreja a responsabilidade absoluta sobre aqueles templos que “fugiam da norma”, incluídos aqueles em estilo colonial tardio.

Desta forma, a aproximação entre religiosos e arquitetos e a inércia/desinteresse dos órgãos institucionais, segundo o autor, teriam ajudado o modernismo a se colocar como a possibilidade arquitetônica capaz de atender aos desejos do clero por novas formas litúrgicas, mais adequadas ao espírito desenvolvimentista no qual o país estava mergulhado.

Na segunda parte do livro, o autor desenvolve seu estudo de caso, reconstruindo, com rica documentação, todo o processo que conduziu a demolição da antiga e a ereção da nova Matriz.

Ele destrincha toda a polêmica acerca da demolição, o Movimento Verde – pró- modernismo –, seus antagonistas, os pontos de vista, os discursos, o papel da imprensa, a decisão por meio de plebiscito, a atuação da Igreja – mais especificamente do Movimento Litúrgico –, o desinteresse dos órgãos de salvaguarda do Estado, etc.. As imagens colocadas no Anexo B muito enriquecem a percepção do leitor acerca da importância e do impacto que todo o processo teve para a cidade.

Assim, partindo de um plano mais geral, o da consolidação do modernismo como proposta mais conveniente a um Estado cujo programa político estava voltado para a “modernização” do país, o autor chega às conseqüências – a seu ver, nefastas – que a colocação em prática desta política de renovação teve para a pequena cidade de Ferros, no interior de Minas Gerais.

Destaca-se, nesta parte, a força narrativa com a qual o autor constrói seu discurso acerca da falência do projeto “modernizador” dos modernistas. Tocante é seu relato acerca de como o contraste entre o fórum – em estilo colonial – e a nova igreja representavam a memória de um arrependimento coletivo.

A imagem da estrutura arquitetônica modernista – hoje já não mais “moderna” – transformou-se assim no vestígio vivo de uma “modernidade” que não veio. A crença na eficácia da inferência arquitetônica como propulsora do progresso mostrou-se vã.

O estudo da dissolução da “paisagem tradicional mineira” na cidade de Ferros, deste modo, torna-se uma importante reflexão sobre a ausência de preocupação com o restante da paisagem urbana que caracterizou o “projeto modernista”, bem como uma lição para aqueles que fazem e implantam políticas patrimoniais neste país.

A eleição de uma ou outra forma patrimonial como mais “legítima”, em detrimento de outras, consideradas retrógradas, via de regra, acaba por retirar das gerações vindouras o direito de conhecer o seu próprio passado.

Marília de Azambuja Ribeiro – Departamento de História, UFPE.

Angélica Cristina de Paula Botelho – Bolsista PIBIC (Propesq/UFPE) do Projeto Espaço urbano, arquitetura eclesiástica e cultura tridentina da Professora Doutora Marília de Azambuja Ribeiro (Departamento de História, UFPE).


SILVEIRA, Marcus Marciano Gonçalves da. Templos modernos, templos ao chão: a trajetória da arquitetura religiosa modernista e a demolição de antigos templos católicos no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: RIBEIRO, Marília de Azambuja; BOTELHO, Angélica Cristina de Paula. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.29, n.1, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores – CASTRO (TES)

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 477 p. Resenha de: NARDI, Henrique Caetano. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

A obra de Michel Foucault ganhou um renascimento bibliográfico impulsionado pelos eventos que marcaram os 20 anos de sua morte, em 2004, ano do lançamento do livro de Edgardo Castro na Argentina que aqui apresento. O autor é doutor em Filosofia pela Universidade de Fri-burgo (Suíça) e professor de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de San Martín (Argentina). É também pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, agência de fomento equivalente ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A obra recebeu uma tradução cuidadosa em 2009, o que já é um primeiro mérito a destacar no texto. O livro é apresentado pelos revisores técnicos (Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan), assim como pela tradutora (Ingrid Müller Xavier) como um ‘motor de busca’ que ajuda a percorrer a vasta obra de Foucault e sua preciosa e complexa caixa de ferramentas conceituais.

Não se trata de um motor de busca genérico e cabe aqui apresentar ao leitor as primeiras notas técnicas sobre o trabalho. O autor adverte que não se trata de uma obra exaustiva e que os crité-rios de inclusão dos verbetes (entradas) obedecem a uma leitura pessoal. Edgardo escolheu guiar o leitor nos aspectos menos conhecidos e menos explorados da obra de Foucault, apresentando, por exemplo, informações úteis para superar dificuldades linguísticas em relação aos termos em grego, assim como os autores menos conhecidos que Foucault cita. Obviamente ele não deixa de lado os conceitos e temas centrais e os pilares de sustentação da obra, os quais, por sua vez, ganharam espaço destacado no livro e, na minha leitura, compõem a parte do livro que é a mais rica em análise e a mais interessante para o leitor iniciante.

Como motor de busca, eu teria algumas críticas tanto em relação à edição original em espanhol, assim como à tradução para o português. A crítica se dá pela escolha do autor em referenciar os termos para edições em francês dos livros de Michel Foucault. Ou seja, se o leitor quiser buscar na fonte os termos ou conceitos apresentados terá de comprar edições em francês, algumas, inclusive, que não estão mais disponíveis, como, por exemplo, a edição em quatro volumes dos Ditos e escritos (1994) em francês que agora só é vendida na versão em dois volumes (2001). Em minha opinião, este objetivo da obra que se dedica a informar a localização de termos e autores não acrescenta muito ao que já está disponível nos Ditos e escritos publicados em francês, pois estes apresentam um índice remissivo e de autores exaustivo que orienta o leitor de forma mais eficaz que o proposto por Edgardo. A edição em português poderia ter corrigido este problema, mas não o fez. Outro alerta importante ao leitor é que o livro, como já assinalei acima, foi pu-blicado em 2004 e não incorpora os seminá- rios publicados na coleção Hautes Études, da Gallimard/Seuil, posteriores a 2003, fato este apontado pela tradutora. Não foram incluídos, portanto, os seminários: Sécurité, Territoire, Population (2004), Naissance de la Biopolitique (2004), Le Gouvernement de Soi et des Autres I (2008) e Le Gouvernement de Soi et des Autres II: le courage de la verité (2009).

Em comparação com outras obras de introdução e apresentação dos conceitos de Michel Foucault, o livro de Edgardo é o mais extenso dis-ponível em português. O livro de Judith Revel (2005), Michel Foucault: conceitos essenciais, editado pela Claraluz – tradução do livro Le vocabulaire de Foucault (2002), por exemplo, tem somente 33 entradas (verbetes); o livro de Edgardo tem 294 entradas (verbetes).

As grandes qualidades do livro estão na visão panorâmica da obra. Ele permite tanto ter uma compreensão extensa da caixa de ferramentais conceituais deixada por Foucault, assim como montagens preciosas de citações que marcam o percurso do autor. Edgardo adverte de que sua obra (p. 15) não deve ser vista a partir de um texto com ponto final, mas um ponto de partida para uma obra coletiva, um convite para explorar o trabalho de Foucault.

O estilo do texto do livro é relativamente uniforme, o autor propõe inicialmente uma breve introdução do conceito e na sequência encadeia uma série de citações relativas ao mesmo que aparecem em diferentes momentos da obra de Foucault, assim como os relaciona a outros conceitos/temas. Este formato torna a leitura um pouco truncada, mas, ao mesmo tempo, permite que acompanhemos as torções conceituais ao longo da obra, as quais tornam material a ideia de escrita como experiência, ou seja, como Foucault afirmava, a escrita tinha, para ele, a função de transformação, ele escrevia para não ser o mesmo.

Referências

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, v. I, II, III e IV. Paris: Gallimard, 1994. [ Links ]

______. Dits et écrits, v. I e II. Paris: Gallimard, 2001. [ Links ]

______. Sécurité, territoire, population. Paris: Ga-llimard, 2004. [ Links ]

______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres I. Paris: Gallimard, 2008. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres II: Le courage de la vérité. Paris: Gallimard, 2009. [ Links ]

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. [ Links ]

______. Le vocabulaire de Foucault. Paris: Ellipses, 2002. [ Links ]

Henrique Caetano Nardi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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