Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina | Dardo Scavino

Filósofo, crítico literário e ensaísta, o argentino Dardo Scavino (1964 -) é atualmente professor de História Cultural Latino-americana na Université de Versailles, cargo que assumiu após ter exercido docência na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad de Buenos Aires até 1993. Sua formação acadêmica também se deu nessa instituição portenha, o que explica o grande envolvimento do autor com os assuntos políticos de sua terra natal até os dias atuais. Em seus últimos trabalhos, tem se dedicado a pensar os relatos políticos produzidos ao longo da história republicana na Argentina, analisando a gramática que os compuseram e, ainda, compõem.

A motivação do autor para tal abordagem teria surgido das imediações do Bicentenário de independência do país, momento em que Scavino percebe haver uma mudança de época por conta dos interrogantes que surgiram sobre alguns valores políticos e morais sustentados pelo Kirchnerismo. O autor começou a construir sua análise com a publicação de Narraciones de la independência: arqueología de un fervor contradictorio (2010), livro em que recupera discursos sobre a identidade política argentina por meio dos mais diversos tipos de fontes entre o século XVI e XX. Esta obra acabou conhecendo sua continuidade no lançamento de Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina (2012), uma obra mais conceitual cujo propósito é percorrer os mais diversos relatos políticos perfilados no contexto do século XX a fim de sublinhar as formas narrativas que definem os atuais enunciados da política Argentina. As abordagens perpassam desde o radicalismo de Hipólito Yrigoyen (1852- 1933) até o desenvolvimentismo de Carlos Menem (1930 -).

A questão central de Rebeldes y confabulados é estabelecer a gramática que sustenta os relatos políticos argentinos, entendendo por “gramática” as regras discursivas que erigem a fórmula narrativa da nação. Pela observação de textos que apresentam em seu teor diretrizes políticas – podendo ser eles literários ou pronunciamentos oficiais –, Scavino define três dimensões que compõem essa fórmula: a denúncia, sendo primordial o anúncio do adversário nas narrativas políticas; a exortação, o reconhecimento de dimensões inconciliáveis que geram o enfrentamento e a mudança de ideais; e, por fim, a promessa, reveladora de novas perspectivas à definição da política. Dessa forma, entender o nome do livro é alcançar a proposta analítica do autor: todos os relatos políticos propõem-se transgressores frente à ordem estabelecida (rebeldes), independentemente de suas filiações esquerdistas ou direitistas, e acabam comprometendo seus adeptos (confabulados) através da introjeção de uma fábula política.

“Não há povos sem narrações, não há povos sem memória”. Por meio dessa máxima, Scavino indica ser o homem um animal político pela sua condição de “narrador definitivo”, uma vez que a linguagem é precursora de qualquer ação política. O autor define, assim, a força material presente nas narrativas políticas, revelando ser o passado das guerras pela independência argentina um mito revisitado inúmeras vezes para a elaboração de novos sentidos discursivos. Essa fábula do “hoje como ontem” esteve presente nas narrativas da rebelião armada promovida pelo partido da União Cívica Radical, sob a liderança de Yrigoyen, em prol da democracia (1905-1930), assim como esteve em Leopoldo Lugones, que defendeu na “repetição da espada” a forma de suprimir uma anarquia democrática sentenciada pela presença de uma plebe ultramarina (1924), e também na Revolução Argentina organizada por Juan Carlos Onganía, de teor anticomunista, que resgatava a Tradição Militar iniciada pelo processo de independência para reaver a integridade nacional (1967). Valendo-se de uma leitura de Freud, Scavino indica que recordar é reelaborar um relato e, portanto, um mesmo evento passado pode assumir distintos lugares narrativos.

Essa metodologia de análise de Scavino pode também ser observada na própria disposição que edifica sua obra. Composto por vinte e três capítulos que apresentam certa independência entre eles, o livro segue um ritmo cronológico, não tão rigorosamente – de forma a permitir pequenos lampejos de raciocínios que se mostram como breves interlúdios –, mas sempre dentro de uma lógica sucessora de argumentos. Por exemplo, entre o já anunciado início do livro em torno da figura de Yrigoyen e o desfecho com a de Menem, outro grande nome que recebe destaque e, de certa forma, conecta os relatos políticos dessas personagens é o do General Perón, que em torno da sua figura ressignificou e enraizou importantes substantivos à gramática da narrativa política argentina.

O primeiro dos capítulos em que Scavino vai tratar de Juan Perón inicia-se com uma citação à obra de José Hernández, assim interpretando Martín Fierro: “los argentinos sean unidos porque esa es la ley primera”. Seguem as nomeações dos inimigos políticos e a interpretação do que seria uma má política após 1917 com o comunismo, o anarquismo, o liberalismo, sendo estes criadores de conflitos internos à sociedade e que desarticulariam a população como um todo. Por fim, configura-se o relato do fascismo. Nesse momento, Scavino vai sobrepor os discursos de Benito Mussolini (1926) e de Perón (1943) para encontrar a semelhança de suas gramáticas, sem reduzir a experiência argentina a uma cópia do modelo totalitário europeu. Ambos não falavam em nome de partidos, mas de organizações corporativas para impedir a radicalização interna de opostos; assim como ambos defendiam a intervenção estatal, para suplantar a democracia burguesa que dividia a população. E essas ideias seriam apenas rearranjos dos sentidos de povo – que só com Perón assumiriam as distintas significações de “argentinos”, trabalhadores e descamisados, sugerindo-nos um afunilamento do relato político com o passar do tempo –, de inimigos – primeiramente os estrangeiros e, depois, os que não se encaixavam nas demais classificações de povo – e de propostas políticas – a partir de 1946 Perón deixaria, por exemplo, o uniforme militar para vestir a casaca civil!

Essa é a forma como são apresentadas as narrativas políticas em suas particularidades, antagonismos e porosidades internas, e também em sua relação com alguns nomes clássicos de filósofos e políticos estrangeiros. Podemos destacar três grandes nomes que perpassam todo o livro: León Bloy (1846-1817), Ernest Hello (1825-1885), Mao Tsé-Tung (1893-1876), os quais apresentam fábulas bastante perceptíveis nos relatos argentinos. O primeiro, talvez o mais recuperado, foi um ensaísta francês que apontou a singularidade premente em certos homens por aceitar o seu destino e ou vocação. O segundo, filósofo de convicções católicas, definiu as oposições entre o “homem conservador” (que nada a favor da correnteza, medíocre) e o “homem superior” (que questiona e age, rebelde). E, por fim, o terceiro, grande referência política do século XX, concretizou em seu relato político a perspectiva de que o povo deve se unir frente a um inimigo comum, que foi lido na Argentina ora como a ditadura, ora como a democracia, ora como o neoliberalismo.

Definindo a sua própria obra como um “breviário”, Scavino buscou meios de mostrar a ausência de uma política ideal, pois todas as formas políticas representariam a conjugação das ideias de dominação e libertação. E, num mesmo sentido, tais ideias não podem ser confundidas com objetivos políticos, porque elas não são nada mais do que leis indissociáveis da gramática política. A corriqueira expressão basta! não carrega significados em si mesma, mas apenas se nela buscarmos a subjetivação e a convicção que sintetiza.

Nesse ponto, é possível marcar a importância da obra de Dardo Scavino para uma reflexão historiográfica. Embora Rebeldes y confabulados centre-se nas disputas pela gramática da política, seguindo um tom ensaístico e livre das prerrogativas contextuais, o autor não ignora que a própria linguagem tem uma problemática histórica, sendo importante observar que cada aliança, forjada dentro de um relato, tem sua distinta historicidade e temporalidade. O cuidado de Scavino é desarticular uma leitura simplista de seu argumento, alertando para o fato de que entender as narrativas políticas sob os mesmos traços formais não implica concluir que elas sejam equivalentes. Com essa breve acuidade historiográfica, Rebeldes y confabulados reestabelece um diálogo difícil e complexo do discurso como documento da análise histórica:

Las revelaciones históricas no dependen tanto de los documentos encontrados como de las metamorfosis en las perspectivas de interpretación. Y algo semejante ocurre con un sujeto: no es la súbita rememoración de algún episodio olvidado lo que le permite cuestionar su fantasma fundamental o su mito individual; es porque logra cuestionar ese relato que accede a vastas porciones reprimidas del pasado (2012: 243).

Sendo um dos objetivos a desconstrução de uma “origem” das políticas, o livro foca nos usos que se faz desses conceitos ou, como define o próprio autor, de palavras como revolução, violência, democracia, ditadura. Nesse sentido, a linguagem ganha destaque, convidando os historiadores a repensar o limite de “manipulação” dos homens sobre seus discursos, tendo em vista que já estamos possuídos por algumas destas narrativas.

Por fim, a atualidade efervescente desse livro nos sugere inúmeros outros questionamentos históricos sobre, inclusive, as atuais narrativas políticas que têm surgido nos movimentos brasileiros pelas ruas e redes sociais do país e, talvez aceitando o movimento analítico proposto por Dardo Scavino em seu livro, poderíamos pensá-las segundo uma pluralidade de interesses e de origens que correspondem a antigas e reiteradas fábulas políticas. A gramática do “Hoje como ontem”, “o povo heterogêneo unido por um inimigo comum” ou do simples “basta!” está pululando na nova cartilha política do brasileiro, embora não indiquem um inimigo comum. Sejam os discursos contra a ditadura, ou seja por ela, seria interessante desenvolvermos no Brasil uma reflexão como fez Scavino sobre a Argentina; ou melhor, não podemos nos valer da gramática de nossos vizinhos para pensar as nossas próprias posições políticas? Isso defenderia Rebeldes y confabulados, definindo que para o sujeito político só há uma única história.

Ivia Minelli – Mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente faz parte do programa de doutoramento dessa mesma instituição. E-mail: [email protected]


SCAVINO, Dardo. Rebeldes y confabulados: narraciones de la política argentina. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2012. Resenha de: MINELLI, Ivia. Escritas. Palmas, v.5, n.2, p. 199-203, 2013. Acessar publicação original [DR]

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