Regalismo no Brasil Colonial: a coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808 | Leandro Ferreira Lima da Silva

Praca XV RJ regalismo
Palace Square, Rio de Janeiro. Ao fundo, a Igreja do Carmo (esquerda) e a Igreja da Ordem Terceira do Carmo (direita) | Imagem: Richard Bate, 1808

SILVA l Regalismo no Brasil regalismoO regalismo pombalino e o processo de submissão da Igreja ao Estado no império português foram amplamente reconhecidos pela historiografia luso-brasileira. Entretanto, apenas nas últimas décadas houve tentativas de análise que ultrapassassem as interpretações clássicas que compreendiam a ação regalista da monarquia portuguesa como uma política exclusivamente antijesuítica[2]. As transformações no campo historiográfico e a ampliação da noção de documento (Rousso, 1996), sobretudo após o advento da Nova História Cultural, resultaram em pesquisas inovadoras sobre o período pombalino e, sobretudo, problematizadoras da primazia inaciana. Esta, apesar de ser central na construção da política pombalina, não é suficiente para a compreensão das múltiplas dimensões das ações estatais direcionadas aos religiosos, e das ações do episcopado e de agentes civis em sua aplicação no Reino e no ultramar. Aqui reside a originalidade da obra de Leandro Ferreira Lima da Silva, Regalismo no Brasil Colonial, resultante da sua dissertação de mestrado e vencedora do prêmio de História Social (2013-2014) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo.

Graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo, Leandro Ferreira Lima da Silva possui uma trajetória de pesquisa sólida e em ascensão no campo de estudos sobre o regalismo pombalino. Além da obra resenhada, o autor escreveu “À sombra da “última ruína”: regalismo e gestão material na província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro” (Silva, 2013). Atualmente, Silva é doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, no qual continua os estudos sobre os impactos da reforma regalista sobre o clero regular.

Extrapolando as análises clássicas sobre o clero regular no período pombalino, mas não deixando de cotejá-las, o historiador coloca a Província da Ordem do Carmo do Rio de Janeiro, cujo território abrangia as casas das capitanias fluminense, paulista e capixaba, no centro dos esforços reformistas da Coroa portuguesa para enquadrar a Igreja luso-brasileira nos desígnios políticos da monarquia[3]. Tomando como ponto de partida a definição e a contextualização da política regalista portuguesa, o historiador realiza um balanço bibliográfico sobre a temática, enfatizando as relações entre o episcopado e o clero regular nos setecentos, assim como a secularização das estruturas missionárias do clero regular (Santos, 2019), o perfil do episcopado (Paiva, 2006) e o seu alinhamento à política regalista (Souza, 2011). Os estudos mencionados apresentam contribuições valiosas para a compreensão da construção da política regalista e das correntes intelectuais que a influenciaram, como o episcopalismo, o jansenismo e o galicanismo, além de possibilitarem uma reflexão sobre as tentativas de aplicação das práticas regalistas no âmbito diocesano pelo episcopado (Vivas, 2011).

A imersão do autor na produção historiográfica e num vasto conjunto documental oriundo de instituições arquivísticas nacionais e internacionais lhe permitiu analisar os impactos da política ilustrada nas congregações religiosas (carmelitas, franciscanos, beneditinos) que exerciam as atividades espirituais na capitania fluminense no período de 1750 a 1808. Correlacionando as informações levantadas na documentação (ofícios, cartas pastorais, crônicas, estatutos, correspondências, inventários) com os pressupostos teóricos da doutrina regalista, Leandro Silva reconstrói os múltiplos contextos de gestação – e posterior ação – da reforma do clero regular fluminense. O cruzamento de informações entre as fontes e a produção historiográfica resulta numa reconstrução minuciosa e detalhada da reforma régio-episcopal dos religiosos e da transição de um “tímido regalismo” ao “regalismo coroado” no reinado mariano.

Organizado em cinco partes, totalizando quinze capítulos e 556 páginas, a obra procura compreender a aplicação da política regalista na América portuguesa, evidenciando os mecanismos de subjugação dos religiosos, suas resistências às ações reformadoras, o papel do episcopado e dos agentes civis no empreendimento reformador e os reordenamentos dos espaços de atuação do clero (regular e secular) no campo religioso fluminense.

A primeira parte, “Regalismo e Clero Regular: um panorama”, composta pelo capítulo “A mentalidade regalista setecentista e o clero regular no Império Português”, retoma a discussão sobre as linhas gerais do pensamento regalista, procurando reconstruir as bases teóricas da ilustração por meio dos escritos basilares da mentalidade secularizante lusitana, como, por exemplo, o “Tratado em que se mostra que os religiosos, posto que em particular ou em comum, não podem possuir bens de raiz, que herdassem ou possuíssem por mais tempo que um dia e um ano” (Silva, 2018, p. 63), atribuído a Sebastião José de Carvalho e Melo, o “Testamento político e as Instruções a Marco Antônio de Azevedo Coutinho ambos de autoria de d. Luís da Cunha” (Silva, 2018, p. 62) e a “Dissertação que a pedido d’um amigo compoz o Autor com suma habilidade, e talento relativamente à relaxação das Ordens Religiosas atribuído a Alexandre de Gusmão” (Silva, 2018, p. 60), que versavam sobre o controle das corporações religiosas atuantes nos territórios reinol e ultramarino. Não obstante, devemos enfatizar que o processo de secularização da Igreja Católica lusitana não pressupunha uma descristianização do império, mas uma subordinação da esfera eclesiástica à secular (ou régia), por meio da limitação do espaço de atuação dos religiosos e da subordinação dos regulares ao poder episcopal.

As proposições defendidas pelos autores ilustrados acabaram por se transformar em medidas práticas nos reinados de D. José I (1750-1777) e D. Maria (1777-1815), uma vez que os discursos dos intelectuais e membros da administração portuguesa recaíam sobre os privilégios do clero, a exemplo do acúmulo de bens e propriedades por meio de doações e compras; dos costumes mundanos dos religiosos e da não observância do estado clerical; do ingresso excessivo de noviços nas casas religiosas. Tais aspectos orientaram a reforma religiosa da província do Carmo e, por conseguinte, das ordens religiosas atuantes nas capitanias da América portuguesa.

Composta por seis capítulos, a segunda parte, “A Província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro e o ‘tímido’ regalismo pombalino”, discorre sobre o cotidiano político-administrativo da casa carmelita da capitania do Rio de Janeiro, por meio de uma reconstrução contextual minuciosa que possui como ponto de partida os conflitos entre as facções que compunham a Ordem do Carmo fluminense. Os conflitos entre os grupos dentro da casa carmelita resultaram na sublevação (1743) pelo controle dos cargos administrativos da província e pela sua distribuição entre os filhos do Rio, religiosos naturais da capitania, e os filhos de fora, religiosos naturais do Reino ou de outras capitanias. A reconstrução dos embates entre os frades, pela administração dos cargos da Ordem, serve como fio condutor para a inserção da Província Carmelita na conjuntura de transformação da capitania fluminense em centro administrativo da América portuguesa e para os embates geopolíticos com a monarquia espanhola em torno das demarcações dos limites meridionais do continente.

Para o autor, as conjunturas geopolítica e administrativa favoreceram a não intervenção das autoridades civis nos conflitos internos da Ordem e a suspensão temporária da execução das leis testamentárias (1760) e das leis de restrição do ingresso de noviços (1761). Aspectos interessantes, na análise de Leandro Silva sobre o período, são a repercussão, nas demais ordens religiosas, da expulsão dos jesuítas dos territórios ultramarinos e o papel desempenhado pelos bispos na implementação da reforma regalista do clero regular no reinado josefino.

Leandro Silva demonstra que a saída dos inacianos do cenário missionário imperial português, a cisão interna dos frades do Monte Carmelo e a proibição de novas ordenações sacerdotais orientaram a política episcopal de recrutamento dos regulares visando a realização do ofício paroquial nas antigas missões jesuíticas, assim como favoreceram a permanência de alguns jesuítas no território diocesano (Silva, 2018, p. 187). Destaquem-se, neste sentido, as tabelas e gráficos, presentes na obra, concernentes ao recrutamento e posterior provimento dos religiosos e clérigos seculares na administração das paróquias e missões, por parte do bispo D. Antônio do Desterro – material de indubitável valia para os historiadores que desejam compreender o processo de secularização das aldeias e dos núcleos missionários, a partir do enraizamento das estruturas do poder episcopal nas dioceses coloniais (Silva, 2018, pp. 192-198).

Aprofundando a relação colaborativa entre os bispos e a Coroa, Silva problematiza as denúncias do vice-rei Luís Vasconcelos e Sousa sobre o deplorável estado em que se encontrava a corporação carmelitana fluminense. Correlacionando o discurso do vice-rei do Estado do Brasil ao recrudescimento da política regalista no reinado mariano, uma vez que as preocupações geopolíticas e demarcatórias haviam cessado, o historiador questiona a aplicação prática da política regalista nas ordens religiosas fluminenses, numa perspectiva comparada com o caso baiano durante o governo do Marquês de Valença (1779-1783). Leandro Silva demonstra que a execução do projeto regalista para o clero regular ocorreu por meio da instrumentalização do episcopado pela Coroa, e de sua atuação em conjunto com os governadores e vice-reis da América portuguesa.

As ações do episcopado e do vice-rei, no empreendimento reformista da casa carmelita, são delineadas nos capítulos que compõem a terceira parte da obra. “Desenhando a ação regalista no Carmelo pós-pombalino: a denúncia do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa” apresenta ao leitor os argumentos que pautaram a reforma régio-episcopal da província e as frentes que seriam privilegiadas no processo: o mau comportamento dos frades e as bases econômicas e materiais da Província. O envio das correspondências redigidas pelo vice-rei à corte, por intermédio do Conselho Ultramarino, resultou na nomeação do prelado fluminense, D. José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco, como visitador e reformador da Província do Carmo do Rio de Janeiro.

A atuação do bispo reformador, em consonância com os apontamentos do vice-rei, é abordada nos cinco capítulos que compõem a última parte da obra, a qual se intitula “Regalismo coroado: a reforma episcopal do Carmo do Rio de Janeiro”. As medidas do prelado para reformar a Ordem e submeter os carmelitas à autoridade régia residiram no combate às irregularidades apontadas por Sousa em suas denúncias, com o intuito de dinamizar a produção econômica das propriedades carmelitas e, por conseguinte, ampliar as rendas da Coroa. É curioso notar que o impacto da política regalista pombalina sobre as propriedades eclesiásticas e os legados pios foram postos em segundo plano pela historiografia luso-brasileira, como ressaltou Laurinda Abreu em estudo detalhado sobre a temática (Abreu, 2005). Ultrapassando o vazio historiográfico, Leandro Silva demonstra ao leitor o processo de apropriação das propriedades pela Coroa, bem como as investidas régio-episcopais visando o melhoramento das fazendas, em consonância com a reforma do corpo clerical carmelita, realizada sob a autoridade diocesana.

A extirpação dos comportamentos escandalosos do clero, a participação nos rituais litúrgicos, o desenvolvimento de uma política assistencialista pelos frades e a ingerência do bispo nos assuntos internos da Ordem favoreceram o fortalecimento do poder episcopal no bispado fluminense. A incorporação de bens materiais e espaços de atuação dos religiosos ao espaço diocesano permitiu a consolidação do episcopalismo – teorizado por Pombal e colocado em prática pela Junta do Exame do Estado Atual e Melhoramento Temporal das Ordens religiosas, sob a administração dos prelados fluminenses e das autoridades régias. A ação da Junta e do episcopado permitiu que a reforma do clero regular, preconizada no reinado josefino, perdurasse até os oitocentos e resultasse em perdas do corpo clerical carmelita, como demonstrou o autor, por meio da secularização clerical, do abandono da Ordem ou da morte.

Por fim, alguns aspectos do trabalho de Leandro Ferreira Lima da Silva precisam ser ressaltados: a excelente contextualização no que toca aos âmbitos religioso, político, social e econômico do período em estudo, a partir da qual conseguimos apreender as redes em que os frades estavam inseridos e as estratégias utilizadas para preservarem e/ou ampliarem seu espaço de atuação e jurisdição. O historiador, em sua empreitada analítica sobre a aplicação da política regalista na Província Carmelita do Rio de Janeiro, demonstra o processo de teorização e, posteriormente, aplicação da política de reforço do poder régio, por meio da análise das linhas reformadoras nos reinados joanino, josefino e mariano.

A cronologia da política regalista apresentada ao leitor permite-lhe compreender o gradual processo de submissão da Igreja ao Estado, em suas múltiplas vertentes, a exemplo da atuação dos agentes civis e eclesiásticos na reforma pombalina do Carmelo fluminense. Iniciando com o regalismo joanino e os interesses sobre as fronteiras meridionais da América portuguesa, Silva nos demonstra como a submissão do clero regular à autoridade monárquica recaiu no controle do ingresso de noviços na casa carmelita, no controle do trânsito de religiosos pelo Império e na subjugação dos religiosos aos tribunais régios – medidas que seriam aprofundadas no período pombalino e intensificadas, especialmente, após a expulsão dos clérigos da Companhia. Além das tentativas de controle dos frades carmelitas, o reinado josefino intensificaria o processo de apropriação dos bens e das propriedades da Ordem, por meio das leis testamentárias e de desamortização que intentavam inserir as fazendas na economia Atlântica. Por fim, o reinado mariano consolidou a secularização da Ordem do Carmo fluminense, através da reforma régio-episcopal e da atuação do bispo reformador, que desagregou a estrutura pastoral dos frades e os sujeitou ao poder episcopal.

Rompendo com a metonímia historiográfica, na qual os jesuítas possuem papel de destaque na reforma regalista do clero regular, e trazendo para o centro da análise o prelado e o clero secular, o historiador avança nas discussões sobre o episcopado da América portuguesa e as suas relações com o clero regular no tocante à subjugação dos religiosos à autoridade episcopal, na segunda metade dos Setecentos. Indubitavelmente, um trabalho de grande relevância e leitura obrigatória para os estudantes e pesquisadores que desejam compreender as relações entre Igreja e Estado, bem como entre o clero secular e o regular, sob a égide do regalismo pombalino e do reforço da autoridade monárquica no império português.(*)

Notas

(*) Este trabalho conta com o fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2. Podemos citar o trabalho de João Lúcio de Azevedo, O Marquês de Pombal e sua época, no qual o autor procurou colocar no centro da análise a ação regalista da coroa portuguesa para o clero regular, sem que se ultrapassasse a reforma inaciana. Cf. Azevedo, 2004, pp. 293-325.

3. Para além do estudo supracitado de João Lúcio de Azevedo, podemos mencionar os trabalhos de Maxwell, 1996 e Novais, 2005.

Referências

ABREU, Laurinda. Las relaciones entre el Estado y la Iglesia, em Portugal, en la segunda mitad del siglo XVIII: el impacto da legislación Pombalina sobre las estructuras eclesiásticas. In: BETRÁN, José Luis; SERRANO MARTÍN, Eliseo; CORTÉS PEÑA, António Luis (Eds.). Religión y poder en la Edad Moderna Granada: Editorial Universidad de Granada, 2005. pp. 329-352.

AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e a sua época São Paulo: Alameda, 2004.

MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo 2ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

NOVAIS, Fernando A. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. In: Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

PAIVA, José Pedro. Os Bispos de Portugal e do Império (1495-1777) Coimbra: Ed. Universidade de Coimbra, 2006.

ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, pp. 85-91, 1996.

SANTOS, Fabricio Lyrio. Te Deum Laudamus: A expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-1763). Salvador: Sagga Editora, 2019.

SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil Colonial: a coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Intermeios; USP/CAPES, 2018.

SILVA, Leandro Ferreira Lima da. À sombra da “última ruína”: regalismo e gestão material na província de Nossa Senhora do Carmo do Rio de Janeiro. Revista Angelus Novus, ano IV, v. 6, pp. 143-162, 2013.

SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no período pombalino, Lusitânia Sacra, n. 23, pp. 207-230, 2011.

VIVAS, Rebeca C. de Souza. Aspectos da ação episcopal de D. José Botelho de Matos sob a luz das relações Igreja-Estado (Bahia, 1741-1759) Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2011. 144 f.


Resenhista

Michelle Carolina de Britto– Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

SILVA, Leandro Ferreira Lima da. Regalismo no Brasil Colonial: a coroa portuguesa e a Ordem do Carmo, Rio de Janeiro, 1750-1808. São Paulo: Intermeios; USP/CAPES, 2018. Resenha de: BRITTO, Michelle Carolina de. Episcopado, clero regular e regalismo na América portuguesa1. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.41, n.87, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR].

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