Registros Imortais | E. E. Santos

É no contexto geral do contorno das aflições espirituais que a obra “Registros Imortais” sobrevém, pela Editora Vinha de Luz, em tiragem datada de 2013 e reeditada no ano de 2020, a partir da transcrição de psicofonias, entendidas pela Doutrina Espírita como falas de espíritos através de um medianeiro. As “Palavras Iniciais” do organizador, Eugênio Eustáquio dos Santos (1958), insurgem contando a história pregressa que teve como desfecho a publicação deste livro, posto que, rico material concernente ao Espiritismo, supostamente extraviado, fortuitamente se revelou, abrindo espaço para análise, compilação e publicação de mensagens memoráveis dos idos de 1956 a 1958 (p. 16).

Historicizando o conteúdo da obra, sabedores dos sofrimentos arraigados em alguns desencarnados, ou seja, entes falecidos, Francisco Cândido Xavier (1910 – 2002), ou Chico Xavier, ícone do Espiritismo brasileiro, em companhia de Arnaldo Rocha (1922 – 2012) e outros amigos, fundaram o Centro Espírita Meimei (CEM), em 1952, na cidade de Pedro Leopoldo, no estado de Minas Gerais, tendo por finalidade a realização de reuniões mediúnicas de desobsessão (p. 242). Contudo, somente no final da obra, no primeiro anexo, intitulado “A história do Grupo Meimei”, é possível conhecer com mais abrangência o cenário no qual se passa as sessões de desobsessão, o que situaria melhor o leitor se apresentado na introdução.

Neste tipo de encontro desobsessivo, médiuns e doutrinadores se reúnem privativamente no intuito de socorrer – através do diálogo de cunho evangelizador – espíritos em desajustes morais, tendo em vista o amparo aos necessitados de esclarecimentos, sendo de utilidade tanto para os assistidos como para os integrantes, pois ambas as partes se beneficiam com a aquisição de conhecimentos e experiências que promovem a ascensão mútua do caráter (Schubert, 2021, p. 63).

Resgatando o conteúdo dos 15 últimos minutos das sessões que totalizavam uma hora, ocorridas semanalmente, foi possível trazer à baila registros de dizeres espirituais de várias naturezas, tais como: relatos de arrependimento pelos erros cometidos em passados encarnatórios, notas de agradecimento pelo apoio ofertado, recados de incentivo e orientação ao trabalho mediúnico, poemas edificantes, preces e rogativas, dentre outros. Nas declarações, foi exequível identificar pessoas cujos desencarnes ocorreram (ou provocaram) por motivos diversos, seja por causas internas – as enfermidades, seja por danos externos – os acidentes, assassinatos e, chamando atenção especial para casos de autoextermínio. Desta forma, o conjunto de informações é singular, uma vez que cada manifestante patenteia sua narrativa particularizando seu modo de pensar e agir, ou como deveria ser.

Os momentos finais, gravados por um aparelho presenteado por Torres Pastorino (1910 – 1980) – autor de uma obra de autoajuda muito conhecida no país, intitulada “Minutos de Sabedoria” (1966/2018), enfeixa 88 reuniões, à exceção da nº 60, ocorrida, mas não capturada, somando, ainda assim, 88 mensagens, visto que em uma das datas – 08/08/1957 – duas comunicações são apresentadas, dentre elas uma psicografia. O referido gravador – instrumento essencial para registrar as locuções, atualmente sob a tutela do memorialista de Pedro Leopoldo/MG, Geraldo Leão –, ilustra, de maneira expressiva, a capa do livro que transpôs vozes em letras. O instrumento, dos anos 1950, era uma peça caríssima para aquisição na época e se tornou peça raríssima para a historiografia do CEM, de Chico Xavier e dos seus confrades, bem como para a cidade na qual se aportou.

A concepção de gravar as sessões de desobsessão, segundo Santos (p. 16), partiu do entendimento da necessidade de preservar dados relevantes para o estudo da Doutrina Espírita, pois estes, anteriormente, estavam firmados apenas na memória dos participantes, contudo, e como poderia se esperar, seguiam fadados a se esvaírem com o passar do tempo. As comunicações, ademais, eram datilografadas por Waldemar Batista da Silva, que respondia pela alcunha de “Pachequinho”. Desse material surgiram dois livros publicados em 1955 e 1957, nos quais se pensava incluído todo o conteúdo, embora Arnaldo Rocha (organizador dessas obras) houvesse sinalizado haver mais, porém sem paradeiro. Diante de tal afirmativa, foi entendido que, procedendo, estaria sob a guarda da Federação Espírita Brasileira (instituição fundada em 1884 e reconhecida como entidade de utilidade pública por meio do Decreto 47.695/1960),1 detentora da chancela de todo o material alusivo, visto ter sido esta editora que publicou – há décadas – as obras contendo registros que findavam em 27/09/1956.

No entanto, Santos, presidente do CEM no momento da elaboração do livro, solicitou ao referido memorialista o empréstimo do gravador para figurar em uma comemoração. Apesar da negativa em primeiro instante, justificada pela manutenção da integridade do aparelho, insistente, em outra oportunidade, eis que o organizador desta obra em pauta foi surpreendido, não somente com a liberação temporária do objeto, mas com a apresentação da documentação datilografada das psicofonias, em páginas amareladas, porém imaculadas e salvaguardas em uma pasta também intacta, tão longeva quanto o aparato que acondicionava. Em análise documental, verificou-se que, para além dos originais das mensagens já publicadas, aqueles arquivos continham as tais anotações inéditas, agora transformadas em “Registros Imortais” (p. 19).

Para se ter ideia da relevância desses arquivos e do que o organizador alcançou em termos metodológicos, todas as reuniões estão sistematicamente ordenadas, datadas, apontam os nomes das pessoas presentes, identificam o(a) médium que recebeu o contato espiritual, atribui título para cada mensagem, cita a denominação tal como o espírito se apresentou – exceto um que não deixou sua “assinatura”, entretanto há esse computo. Nesse rol de comunicantes é possível distinguir personalidades vultosas do Espiritismo, como André Luiz e Meimei – Irma de Castro Rocha (1922 – 1946) – benfeitora a quem o CEM conferiu o nome, esposa do mesmo Arnaldo Rocha, previamente citado, e que é quem prefacia espiritualmente a obra, dado ao ocorrido do seu desencarne pouco antes da materialização do livro.

Estatisticamente, os espíritos comunicantes que mais proferiram foram Jerônimo Cardelli, com 11 mensagens; e Barros Fournier, com quatro mensagens; os demais têm identificação variada, sendo que uns assinam o nome completo ou isolado, outros as iniciais ou subscrevem como “amigos” / “irmãos”. E, fato curioso diz respeito a vários destes mencionarem o professar em religiões diversas, portanto, não adeptos somente do Espiritismo. A relação de médiuns totaliza oito participantes e o nome de Chico Xavier aparece com o maior número de cooperação (19 das 88 psicofonias), seguido por Geraldo Benício Rocha (18 psicofonias) e por Zínia Orsine Pereira (17 psicofonias), os demais somam o quantitativo de 33 psicofonias, sendo um dos médiuns de identidade desconhecida.

“Registros Imortais” nomeia como A, B, C D e E os cinco anexos que os integra. Esses elementos pós-textuais incluem explicações, breves biografias dos médiuns e de alguns espíritos identificados, além de um memorial fotográfico e textos explicativos. Sendo assim, é perceptível que certa parcela da exposição literária mais se assemelha a Apêndices, pois, considerando os escritos, parte relevante do material não foi somente reunida, representam mais do que complementações, considerando a proveniente argumentação de Santos. No capítulo “Minhas Palavras” (p. 231), o organizador traça uma breve autobiografia e faz um apanhando geral sobre o CEM mencionando colaboradores que estiveram com ele pelo caminho. Todavia, o pesquisador aparenta ter abstraído que “suas palavras”, à exceção do prefácio e das mensagens que claramente compõem a maior parte da obra, assomam em múltiplos espaços.

A narrativa omite elucidações sobre os 45 minutos precedentes às sessões gravadas, ainda assim, leva a inferir que esse tempo era destinado à conversação com espíritos que, por comum, nesse tipo de “atendimento”, demonstram atitudes rebeldes, estando revoltos diante de sua própria condição ou perante outrem. Deste modo, discursos ofensivos, injúrias, impropérios, são proferidos em função do atordoamento do emissor, enquanto o doutrinador busca acolher e orientar, geralmente em árdua e persistente tarefa de sensibilização e chamamento à adoção dos princípios cristãos baseados na fé, na esperança, na caridade, no amor e, sobretudo, no perdão (Schubert, 2021, p. 87).

Logo, talvez para evitar a exposição constrangedora e, inclusive, a identificação do comunicante em condição de desajuste moral e/ou emocional, esses momentos não foram gravados, tampouco esclarecidos na obra. Apesar disso, o lapso da supressão da informação referente ao período pregresso aos registros das sessões é um hiato informativo que outorga ao (à) leitor(a) familiarizado(a) com o tema embutir conjectura, tal como exposto anteriormente. De outro modo, para aquele legente insipiente, aparenta aquiescer a permanência no vácuo, embora, diante desta tentativa de análise de intenção de Santos, a lacuna possa ser proposital, tendo em vista um provável horizonte de obra complementar, considerando que “Registros Imortais” é a terceira de uma série correlata.

Indo além, e, quiçá, como repercussão das sessões de desobsessão descritas no livro – que até o presente ocorrem de maneira similar – e pelos exemplos apontados, ora nas entrelinhas ora de maneira explícita, cadencia a leitura o convite íntimo para a reflexão sobre as condutas humanas e o porvir. Nesse aforismo se aplica, na integralidade, a mensagem profética que instrui sobre a semeadura livre, mas de colheita obrigatória. Por outro lado, os dizeres dos espíritos realçam que os reparos nas fragilidades morais são permissivos, pertinentes e necessários, perante hodiernas oportunidades concedidas pela Divindade.

Na atualidade, sabe-se que as sessões de desobsessão são pouco praticadas, talvez pelo desinteresse ou pela escassez de médiuns com capacidade, preparo e experiência diante da especificidade que a responsabilidade exige. Nesse contexto, é inevitável não aplacar reflexões sobre os modos de ação e de desencarne vigentes na sociedade de hoje – mais populosa que em meados dos anos 1950 e bem antes – crescentemente enferma no campo físico e mental, ainda que medidas de controle das doenças e prolongamento da vida tenham alavancado sucesso desde então; e também exponencialmente violenta. Sendo assim, tomando como base a função terapêutica do desencarnado através dos médiuns, possivelmente existe insuficiência nesse campo de atuação da Doutrina Espírita e méritos para aqueles que, mesmo desprovidos do contingente de encarnados medianeiros e doutrinadores, insistem e persistem nesta tarefa (Schubert, 2021, p. 63).

Ressalta-se que a desobsessão espiritual não é prerrogativa do Espiritismo apresentado por Allan Kardec (1804 – 1869), considerado o decodificador da doutrina, visto que segmentos religiosos, como a Umbanda e o Candomblé, dentre outras vertentes espiritualistas, também se valem desta prática. Para o Catolicismo a denominação de “exorcismo” e para o Protestantismo a de “libertação” são atribuídas à interferência de demônio(s). Os ritos divergem no sincrético modus operandi, embora convirjam na aplicação de preces ou orações (Sartin, 2016, p. 465).

Contudo, a “coincidência” que levou Santos ao encontro dos elementos que compuseram “Registros Imortais,” restabeleceu e fortaleceu lições que ultrapassam profissões de crença ou fé. A apologia real pende para a legitimidade da aplicação do código de civilidade nas relações humanas que primam pelo respeito a si e ao outro, incutido em cada preleção. Há muito se tem discutido os modos de ser e viver, não obstante o respeito à individualidade, a existência se desenha na interpessoalidade, seja no núcleo familiar ou social – campos que se abrem para as possibilidades de ações equivocadas que desvirtuam o ser humano que tende a pensar no processo de morte somente quando percebe aproximação do fato ou o vivencia.

Nesse cenário, a instigante descoberta dos arquivos que deram vida à obra “Registros Imortais”, não somente demonstra a capacidade de recuperação da memória, por meio da excelência laboriosa daqueles que articularam os processos de gravação, datilografia, arquivamento, resgate e, por fim, organização e publicação do material, transformando-o em literatura; mas como os conteúdos históricos detêm riquezas inquestionáveis para que através do passado se possa viver melhor o presente e planejar um futuro mais promissor.

“Registros Imortais” veio a calhar não meramente através do conteúdo, mas também pela ambiguidade na interpretação do título que bem representa os conceitos de imortalidade da alma – premissa do Espiritismo (Kardec, 2013, p. 88). Citando a frase que Geraldo Lemos Neto – editor da obra, proferiu vibrante com o atinar de Santos: “Este é um presente de Chico para o Meimei!” (p. 20) – completo concluindo e parafraseando o visionário interlocutor: É um presente de Chico para o Meimei e para a história do Espiritismo!

Conquanto a leitura seja de propensão espiritualista, é recomendada também para o espelhamento no resultado primoroso da preservação e preparação documental e válida àqueles que desejam conhecer crenças diversas de vida após a morte.


Nota

1 BRASIL. Decreto nº 47.695, de 21 de janeiro de 1960. Declara de utilidade pública a Federação Espírita Brasileira, com sede no Distrito Federal.


Referências

Kardec, A. (2013). O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB Editora.

Pastorino, C. T. (2018). Minutos de Sabedoria. Petrópolis: Editora Vozes.

Santos, E. E. (Org.), por Espíritos Diversos. (2020). Registros Imortais. Belo Horizonte: Vinha de Luz.

Sartin, P. D. (2016). A Igreja Católica, a possessão demoníaca e o exorcismo: velhos e novos desafios. Temporalidades, 8 (2), 447-468.

Schubert, S. C. (2021). Obsessão/desobsessão. Brasília: FEB Editora.


Resenhista

Márden Cardoso Miranda Hott – Mestre em Saúde Coletiva e Comunicação Humana pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora colaboradora do Núcleo de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, ligado à Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected] ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2791-8677  CV: http://lattes.cnpq.br/2111734725552382


Referências desta Resenha

SANTOS, E. E. (Org.). Por Espíritos Diversos. Registros Imortais. Belo Horizonte: Vinha de Luz, 2020. Resenha de: HOTT, Márden Cardoso Miranda. O Espiritismo em Registros Imortais. Revista M. – Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, e12064, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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