Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI | Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos Teixeira da Silva

As relações entre Brasil e Estados Unidos constituem um campo riquíssimo de pesquisas. Embora muitos trabalhos de peso sejam publicados anualmente, o assunto está longe de ser esgotado. Isso se deve tanto ao fato dessas relações continuarem a se desenrolar na atualidade (o que as coloca constantemente em debate), quanto aos novos olhares lançados sobre o passado, os quais suscitam releituras e reinterpretações. Além disso, trata-se de uma área de estudo abrangente, onde se entrecruzam fatores políticos, diplomáticos, econômicos, sociais e culturais.

Os Estados Unidos foram a primeira nação a reconhecer a independência brasileira, em 1824. Desde então, procuraram difundir e ampliar sua influência sobre o país latino-americano, fosse como seu principal parceiro comercial (situação que perdurou por décadas); intervindo politicamente nos rumos do país; ou exportando padrões de consumo e comportamento por meio de sua poderosa indústria cultural. Todavia, a nova posição do Brasil no cenário mundial e a postura do governo Barack Obama estão reconfigurando essas relações.

Tais mudanças – e discussões a respeito das mesmas – não são de interesse restrito dos políticos, estrategistas militares ou pensadores acadêmicos. A telecomunicação encurtou as fronteiras entre os acontecimentos e o público, de modo que qualquer cidadão com acesso à internet, televisão ou jornal pode entrar em contato, diariamente, com notícias a respeito da relação Brasil-Estados Unidos. Desse modo, o tema pode ser debatido em diversos espaços por uma vasta gama de pessoas.

Nesse sentido, não é exagero considerar que o livro “Relações Brasil-Estados Unidos: Séculos XX e XXI” foi publicado em um período bastante propício. O material foi organizado por Sidnei J. Munhoz – professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM), autoridade no campo das relações internacionais – e Francisco Carlos Teixeira – titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), renomado pesquisador da área de História Política. Na introdução, Munhoz explica que o papel da obra é estimular reflexões sobre o relacionamento entre os dois países, em especial, no meio acadêmico brasileiro, onde o tema é, muitas vezes, visto com pouco interesse.

A obra congrega diversas qualidades que podem ajudar a cumprir com o objetivo, como capítulos assinados por grandes pesquisadores brasileiros e estadunidenses; análises detalhadas de documentos de diversas naturezas; quadros cronológicos sobre alguns dos assuntos abordados; e linguagem acessível a todos os públicos. Contudo, a mais importante é compreender “relações internacionais” em um sentido amplo, o qual permeia estruturas políticas, econômicas e culturais.

Os capítulos do livro abordam temas diversos, os quais são explorados a partir de uma extensa bibliografia, a qual estabelece relações entre diferentes campos. Assim, pode-se dizer que “Relações Brasil-Estados Unidos: Séculos XX e XXI” tem potencial para atrair estudantes interessados em desenvolver pesquisas em diferentes áreas, da diplomacia ao cinema, das políticas de defesa ao imaginário que um país criou a respeito do outro. A proposta do livro é bastante adequada ao pensamento de Munhoz, pois o pesquisador defende que haja um maior interesse por parte das universidades brasileiras em desenvolver pesquisas sobre a história e a sociedade dos Estados Unidos.

A obra se divide em duas partes. A primeira é composta por oito capítulos, em que os autores lançam um olhar histórico-cronológico sobre as relações entre os dois países. A partir de uma perspectiva mais ou menos linear, o leitor se depara com um panorama bem construído e detalhado desse relacionamento, do início do século XIX até os dias atuais.

O primeiro capítulo “Brasil e Estados Unidos: dois séculos de relacionamento” serve de introdução à obra. Nele, o professor Frank McCann (Universidade de New Hampshire) realiza um amplo debate sobre essas relações, bem como as historiografias brasileira e estadunidense analisa(ra)m essa convivência. Para o pesquisador, apesar de o contato entre os dois países ser frequentemente descrito como cordial e positivo, um olhar atento aos acontecimentos de longa duração revela uma história marcada por embates, medos, receios e expectativas frustradas. Pela emergência do Brasil como potência regional e com um destaque cada vez maior no cenário mundial da atualidade, esse capítulo é uma excelente “porta de entrada” para o livro.

A postura intervencionista dos Estados Unidos com relação ao Brasil é tema recorrente em diversos capítulos do livro. Em “Estados Unidos: ‘farol’ e ‘polícia’ da América Latina”, a pesquisadora Mariana Villaça (Universidade Federal de São Paulo – Unifesp) trabalha como o país do Norte, “empunhando a bandeira da democracia exemplar […] e se afirmando como nação próspera, líder do desenvolvimento continental” (p. 66) valeu-se de tal ideia para tentar impor suas vontades sobre as nações do Sul. Esse comportamento originou uma série de embates, negociações e resistências, que a autora analisa a partir de certos episódios da história.

A Segunda Guerra Mundial é vista como peça fundamental nas relações entre os dois países. “A participação conjunta de brasileiros e norte-americanos na Segunda Guerra Mundial” aborda como foi firmada a aliança entre ambas as nações, apontando os jogos de interesses, os acordos comerciais e diplomáticos, a importância do envolvimento brasileiro na campanha dos aliados e os resultados esperados (e inesperados) advindos desse processo. O capítulo é assinado por Frank McCann e Francisco Ferraz, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Reconhecido como um período marcado por tensões e instabilidades políticas, a Guerra Fria é tema de três capítulos. Em “Na gênese da Guerra Fria: os EUA e a repressão ao comunismo no Brasil”, Sidnei J. Munhoz analisa a contenção dos movimentos da esquerda brasileira e o papel dos Estados Unidos nesse cenário. Paulo F. Vizentini, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), trata das contradições geradas pela postura do Brasil em se aliar aos Estados Unidos, mas sem abandonar a busca por autonomia em “O populismo e as relações Brasil-EUA (1945 a 1964): a dialética do alinhamento e da autonomia”. Tal comportamento gerou atritos que levaram os EUA a participar do Golpe Militar de 1964, período que é tema do capítulo “As relações Brasil-EUA durante o regime militar (1964-1985)”, também assinado por Vizentini. Neste, além de analisar os aspectos da política externa e importantes episódios dos mandatos dos presidentes-generais, o autor também busca combater “interpretações estereotipadas” (p. 245) sobre o relacionamento entre os dois países nesse período.

Os dois últimos capítulos dessa parte do livro abordam o relacionamento entre Brasil e Estados Unidos na virada do século XX para o XXI. O professor e diplomata Paulo Roberto de Almeida assina “As relações Brasil-Estados Unidos durante os governos FHC”, em que analisa a política externa dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2001). Segundo o autor, o Brasil adota, nessa época, a postura do “bom relacionamento como norma” (p. 282), que é ilustrada pela convivência cordial entre FHC e Bill Clinton, que nutriam admiração mútua e estavam dispostos a dialogar. Em “A política externa do governo Luís Inácio Lula da Silva e as relações com os Estados Unidos da América”, o pesquisador Ricardo Cabral trabalha com a postura pragmática e politizada do governo Lula, quando o Brasil assumiu com maior destaque sua posição de potência regional – geralmente, aproveitando brechas dos Estados Unidos, que estavam ocupados com a guerra contra o terrorismo – e passou a se envolver em questões de âmbito global.

A segunda fase do livro é composta de cinco capítulos que, conforme explica Munhoz nas notas introdutórias do material, focam em temas específicos, abordando relações de cooperação, resistências e tensões. De acordo com o organizador, muitas das análises optam por um “corte transversal” (p. 13), buscando a correlacionar diferentes campos de ações humanas, trabalhando com documentos diversos (textuais ou não) e trazendo discussões mais aprofundadas sobre o imaginário cultural que um país construiu do outro.

O capítulo que abre esse conjunto de discussões é “As relações militares entre o Brasil e os Estados Unidos no século XX”, de Sonny Davis, professor da Texas A&M University. O autor constrói um panorama sobre o tema, trabalhando períodos-chave, como a aliança durante a Segunda Guerra Mundial; os acordos militares firmados nas décadas de 50 e 60; as políticas de defesa durante o regime militar brasileiro. O pesquisador também se preocupa em questionar a imagem de uma relação aparentemente pacífica entre as forças armadas de ambos os países, problematizando episódios de atritos e disputas.

O papel político do cinema é abordado em “Da boa vizinhança à Cortina de Ferro: política e cinema nas relações Brasil-EUA”, assinado pelo professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Alexandre Busko Valim. O autor estuda as políticas de produção de um conjunto de filmes estadunidenses e a veiculação dos mesmos no Brasil em dois períodos – a Política de Boa Vizinhança (1939-1946) e os anos iniciais da Guerra Fria (1947- 1953) – traçando relações entre o conteúdo das obras fílmicas, os interesses políticos que motivaram sua exibição e o posicionamento da opinião pública a respeito dos mesmos.

A intervenção estadunidense nos sindicatos brasileiros é o tema do capítulo “Internacionalismo trabalhista: o envolvimento dos EUA nos sindicatos brasileiros”, de Cliff Welsh, professor-colaborador da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Segundo o pesquisador, trata-se de um campo de estudos muito recente, em que muitos objetos e episódios ainda precisam ser explorados. Em seu texto, aborda a postura pedagógica dos Estados Unidos para com os sindicatos brasileiros, a partir de medidas que visavam a “ensinar” os trabalhadores a se comportar no ambiente de trabalho e a contenção dos ideais comunistas nos sindicatos nacionais. A parte final do capítulo traz uma interessante discussão sobre como o impacto limitado desses projetos, bem como o descontentamento com o governo João Goulart levaram as autoridades estadunidenses a se envolverem no Golpe Militar de 1964.

O regime militar brasileiro também é tema do capítulo “Opondo-se à ditadura nos Estados Unidos: direitos humanos e Organização dos Estados Americanos”, em que James Green – professor da Brown University – analisa a atuação da Comissão de Direitos Humanos da OEA no combate à violência praticada pela ditadura brasileira e a resistência dos militares em aceitar tais denúncias. Em sua empreitada, o autor vale-se de um amplo conjunto de fontes (como os relatórios produzidos pela instituição, reportagens jornalísticas e material de propaganda), além de traçar paralelos com outros países latino-americanos que eram governados por ditaduras à época.

O capítulo final do livro é de autoria do também organizador Francisco Carlos Teixeira que trabalha com a relação entre os dois países no contexto da “crise internacional desencadeada pelos ataques de 11 de setembro” (p. 528). Em “As dimensões de segurança e defesa nas relações entre o Brasil e os Estados Unidos em face especificamente na postura de ambos os governos em reação aos relatórios da Inteligência estadunidense sobre a presença de membro da Al-Qaeda na Tríplice Fronteira.

“Relações Brasil-Estados Unidos: Séculos XX e XXI” pode servir tanto aos pesquisadores com experiência na área, aos jovens estudantes interessados no campo, bem como aos leitores não acadêmicos. Logicamente, não é possível abarcar todos os episódios dessa longa história – e que continua a se desenrolar – contudo, não há como negar o valor dessa obra para compreender alguns dos elementos-chave dessa temática.


Resenhista

Celso Fernando Claro Oliveira – Doutorando pela UFSC, Florianópolis/SC, Brasil. Bolsista REUNI. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MUNHOZ, Sidnei J.; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (Orgs). Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI. Maringá: Eduem, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Celso Fernando Claro. Diálogos. Maringá, v. 17, n.1, p. 345-351, jan./abr.2013. Acessar publicação original [DR]

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