Relações internacionais contemporâneas | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2014

Já é lugar comum na literatura de Relações Internacionais que se iniciem textos com os dizeres “com o fim da Guerra Fria…”, “desde a queda do Mudo de Berlin”, ou ainda “a partir do fim da União Soviética”, para que seja estabelecida a temporalidade inerente ao período que vivemos.

Marca que se analisada à luz da História, pode causar estranheza. Muitos teóricos e historiadores de Relações Internacionais datam a contemporaneidade do sistema internacional a partir de Vestefália (1648). Para dirimir qualquer mal-entendido, contemporâneo neste dossiê, assume, pois, feições de presente, do tempo corrente, que por difícil apreensão se confunde com um passado contínuo, ou um futuro-presente que insiste em chegar rápido demais -ou ir embora muito cedo.

Contemporâneo que carrega no acelerado das imagens fugidias o desafio de interpretar o mundo no curso de seu desenvolvimento imediato, fomentando ideias frescas, novas à luz do mundo e que movem à fronteira nosso conhecimento acerca dos assuntos internacionais.

Quando o Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, conclamou o mundo durante a 69ª Assembleia Geral da Organização a lutar contra os fantasmas da Guerra Fria, parece ter esquecido de um intrincado jogo ameaças que se avolumam, mas que já mostravam potencial crítico desde finais da década de 1980. O senador democrata Garry Hart ainda em 1987 alertava para o financiamento de grupos tribais no Afeganistão, como o liderado por Osama bin Laden -que viria a se tornar a Al Qaeda anos depois. Hoje, assistimos à um avanço maciço do terrorismo, apoiado na desestabilização do Estado no Oriente Médio -com grande parcela de culpa do Ocidente e de Israel.

Na mesma toada, o mundo assistiu apreensivo ao avanço do HIV por todo o globo naquele mesmo período. As epidemias internacionais adentraram o século XXI como ameaças silenciosas e letais -de maneira ilustrativa tivemos (e temos) HIV, gripe suína, gripe aviária, e por último o ebola.

Primavera Árabe, epidemias que ameaçam cruzar (e cruzam) continentes, aviões civis sendo explodidos, a crônica pobreza africana, e um infindável etecetera chacoalham o mundo. Todos estes -e outros que espreitam à esquina da passagem do tempo- são apenas alguns dos desafios contemporâneos que enfrentamos e enfrentaremos ao longo deste século.

Na distopia orwelliana, o mundo dividido em poucos continentes, emula guerras para manter o equilíbrio de poder. Ao adentrar o século XXI, os fantasmas da Guerra Fria não são mais amedrontadores. As novas ameaças nascem da areia do deserto, vagam pelo ar sob a forma de graves epidemias, apresentam-se com feições xenófobas, escapam às ferramentas teóricas tradicionais.

Temos tempos interessantes pela frente, nos quais o lugar comum das relações internacionais muda constantemente, como se o centro estivesse em todo lugar1. É com este olhar que lançamos o dossiê dedicado às Relações Internacionais Contemporâneas, que traça um brevíssimo apanhado de temas problematizadores do porvir das discussões nos diversos campos que compõem a disciplina.

A seção Entrevista que abre o volume é de fundamental importância à memória das Relações Internacionais no Brasil. O Professor Doutor José Flávio Sombra Saraiva (IREL/UnB) reconstrói os quarenta anos de fundação da disciplina no país e aponta seus caminhos futuros.

Rafael Ávila e Marta Pinheiro apresentam uma interessante provocação à literatura sobre o poder, trazendo o poder informacional como uma nova face do tradicional e controverso conceito. A capacidade de criar, usar, disseminar e controlar informação é o argumento fundamental dos autores.

Timóteo M’bunde se debruça sobre a representatividade das lideranças do Sul Global ante seus pares. Ao lançar mão dos conceitos de Vilfredo Pareto, o autor traz novidade às análises sobre as elites do Sul e seu engajamento efetivo nas questões internacionais comuns ao tão aclamado “novo eixo das relações internacionais”.

Giulia Barão contrapõe o ideal de autonomia e desenvolvimento embutido na diplomacia pública brasileira, à exclusão das análises a cultura, problema de cunho analítico e potencialmente estratégico para a projeção internacional do país.

Por fim, Leandro Santos analisa a cooperação em matéria de segurança e defesa entre os países da Comunidade Andina de Nações para o combate ao narcotráfico. Problema agudo e caro não só à América do Sul, mas também estratégico aos Estados Unidos e à Europa. Seu argumento lança luz à guerra às drogas e o nexo causal direto à militarização da luta contra o tráfico, obscurecendo a fronteira entre a segurança interna e externa e prolongando conflitos na região.

É relevante mencionar que o breve hiato na seção “Tradução” desta Monções se deve à concentração de esforços para a trazer ao público brasileiro o seminal artigo de Katryn Sikkink e Martha Finnemore “International Norm Dynamics and Political Change” 2, a ser publicado no número subsequente a este (v. 03, n. 06). Consolidada, “Tradução” tem permitido à comunidade brasileira de Relações Internacionais o acesso a textos fundamentais das mais diversas áreas da disciplina.

Por fim, a seção “Resenhas Bibliográficas” conta com duas revisões bastante robustas. Alexandre Leite e Aline Cavalcanti (UEPB) resenham “O vencedor leva tudo: a corrida chinesa por recursos e seu significado para o mundo” da economista Damisa Moyo. Thiago Malafaia (PUC Minas) revisa “War, Religion, and Empire” de Andrews Phillips.

Dourados (MS), em 18 de outubro de 2014.

Notas

1 Parafraseando Miguel Reale em sua célebre frase “no Universo da Cultura o Centro está em toda a parte”.

2 Artigo originalmente publicado em inglês pela International Organization, v. 52, n. 4, pp. 887-917, 1998.

Referências

HOBSBAWM, Eric J. (1995). A Era dos Extremos: O Breve Século XXI. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.

HOBSBAWM, Eric J. (2009). O novo século: entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras.

KI-MOON, BAN. (2014). United Nations Mission for Ebola Emergency Response and the Office of the Special Envoy on Ebola: report of the Secretary-General. 24 set. 2014. Disponível em: [http://unbisnet.un.org:8080/ipac20/ipac.jsp?session=141X15O39O575.25006&profile =bib&uri=full=3100001~!1035246~!11&ri=1&aspect=subtab124&menu=search&sourc e=~!horizon]. Acesso em: 17 out. 2014.

ORWELL, George. (2009). 1984. São Paulo: Companhia das Letras.


Organizador

Fabrício H. Chagas Bastos – Doutorando em Integração da América Latina pela USP Professor de Relações Internacionais Contemporâneas da UFGD E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

BASTOS, Fabrício H. Chagas. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.3, n.5, p.1-4, jan./jun. 2014. Acessar publicação original [DR]

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