Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco (Garanhuns – 1958-1964) | Erinaldo Vicente Cavalcante

O ano de 2014 marca o cinquentenário do golpe civil-militar que instaurou um regime ditatorial no Brasil que se estendeu por vinte e um anos. A ditadura militar instalada no Brasil, bem como seus efeitos, ainda hoje é motivo de debates e discussões que estão longe do esgotamento. A título de exemplo do vigor desses debates podemos citar a promulgação de Comissões da Verdade que, em âmbito municipal, estadual ou federal, têm se dedicado a investigação dos abusos cometidos pelos militares durante o período em que comandaram a política no Brasil.

Tão importante quanto investigar seus efeitos é entender como foi sendo urdido um momento propício para a tomada do poder pelos militares. Questionar, por exemplo, que fatores concorreram para que o golpe civil-militar fosse bem sucedido? Como se criou uma atmosfera própria para o seu sucesso? É na perspectiva de investigar como foram surgindo fatores que contribuíram para a derrubada de um governo constitucional e, ao mesmo tempo, forneceram a sustentação para que fosse estabelecido um regime ditatorial militar que podemos inserir o livro Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco [Garanhuns – 1958-1964], do historiador Erinaldo Cavalcanti.

A obra em foco, proveniente da dissertação desenvolvida pelo autor junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, se propõe a analisar como, a partir do medo do comunismo, foram construídos discursos e práticas anticomunistas na cidade de Garanhuns durante os anos de 1958 a 1964. Durante a leitura da obra, fica claro que o comunismo era referenciado em diversos discursos da época como um conjunto de ideias e práticas que ameaçavam subverter determinados valores delineados como fundamentais dentro do microcosmo representado pela cidade de Garanhuns – e no restante do Brasil – como a liberdade individual, a família e a religião. É importante ressaltar, como escreveu Erinaldo Cavalcanti, que nas análises presentes no livro, o autor procura abordar o comunismo e o anticomunismo “não apenas como projetos, meramente políticos, mas as experiências vivenciadas por diversos atores sociais num espaço e tempo específicos que ajudaram a tecer uma atmosfera de medo na cidade de Garanhuns” (2012, p. 20).

O deslocamento analítico proposto por Erinaldo Cavalcanti – analisar o papel do medo do comunismo na constituição de discursos anticomunistas e os efeitos desses discursos no cotidiano de uma cidade distante 245 quilômetros da sede do poder estadual, que era o palco de grandes embates políticos e sociais à época, a cidade do Recife – permite observar que as cidades distantes das grandes capitais não estavam imunes às disputas e negociações que ganhavam espaço nos principais centros urbanos do Brasil. Essa é, aliás, umas das preocupações presentes em sua escrita: durante os três capítulos que compõem a obra, o autor mostra como as inquietações, os debates e mesmo os conflitos ocorridos na esfera municipal de Garanhuns se articulavam com o que estava acontecendo em outras partes de Pernambuco – e, em maior escala, no Brasil – naqueles anos anteriores ao golpe civil-militar de 1964.

Como referido, o livro Relatos do Medo é composto por três capítulos mais a introdução, onde cada capítulo é estruturado a partir de uma determinada parte do corpo documental relacionado pelo historiador durante suas pesquisas. No primeiro capítulo, chamado Garanhuns: cenário de histórias múltiplas, Erinaldo Cavalcanti expõe ao leitor como o seu interesse pela temática do medo – especificamente o medo do comunismo – foi motivado por relatos memorialísticos que ouviu de pessoas mais velhas que presenciaram os discursos e práticas anticomunistas nos anos anteriores ao golpe de 1964. Em seguida, o autor apresenta a cidade de Garanhuns e algumas particularidades de sua constituição histórica que vão ajudar na compreensão da história a ser narrada, como a importância do café para a produção local e o poder que conferia aos latifundiários responsáveis pela sua produção.

Após situar o leitor em relação a algumas singularidades da cidade de Garanhuns, Erinaldo Cavalcanti apresenta alguns dos autores com quem dialoga ao longo de sua obra, entre os quais podemos destacar Michel de Certeau. Baseado nas análises de Certeau sobre as cidades e as práticas urbanas, Erinaldo Cavalcanti volta seu olhar para as vivências desenvolvidas pelas pessoas nos mais variados espaços da cidade de Garanhuns – como as barbearias, a câmara de vereadores, as praças, as alfaiatarias, etc. – a fim de ponderar sobre “o comunismo sendo vivenciado, perseguido, vigiado, defendido, controlado e passando despercebido sempre que se julga necessário e possível” (2012, p. 50).

Nesse momento o autor chega ao ponto principal do capítulo: a crítica à documentação produzida pelos agentes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, por meio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Com base nos relatórios dos agentes do DOPS, Erinaldo Cavalcanti analisa como a presença de práticas de partidários do comunismo na cidade de Garanhuns, por exemplo, a realização de comícios, atrai a atenção da Secretária de Segurança Pública do Estado. O deslocamento de agentes do DOPS para Garanhuns, a vigilância e o mapeamento das atividades das pessoas consideradas comunistas em relatórios cujos detalhes incluíam informações referentes à profissão que desempenhavam na cidade e os apelidos pelos quais eram conhecidos, são alguns dos efeitos relacionados pelo autor como decorrentes do medo da presença de comunistas na cidade.

Sob o título de Palavra escrita e poder: a imprensa como instrumento de luta política, o segundo capítulo da obra em foco contém uma análise do papel da imprensa na construção do medo do comunismo e na propagação de discursos anticomunistas. Para tanto, o autor empreende uma minuciosa investigação do semanário garanhuense O Monitor e de dois periódicos de ampla circulação em Pernambuco à época: o Jornal do Commércio e o Diário de Pernambuco. Além desses periódicos, Erinaldo Cavalcanti analisa ainda a repercussão de um artigo publicado pelo jornal estadunidense The New York Times, onde Pernambuco é referenciado como um estado a beira de uma revolução comunista, a exemplo do que aconteceu com Cuba. Após apresentar alguns de seus interlocutores, no que se refere ao uso da imprensa como fonte histórica, como Tânia de Lucca (2006), Erinaldo Cavalcanti investiga a formação em Garanhuns do periódico O Monitor, pois considera que a “posição estampada que o jornal assumia é fruto do lugar social onde ele estava inserido” (2012, p. 103). No caso do semanário O Monitor, este lugar social estava ligado a Diocese de Garanhuns, desde sua fundação do semanário em 1933, até 1963 quando foi vendido a um político local. Em seguida, a análise volta-se para os artigos publicados nos referidos periódicos que vão criando e reforçando uma imagem do comunismo ligada à instauração de uma ditadura ateia, à dissolução de valores e liberdades pessoais. Nesse sentido, o historiador registra ainda uma série de artigos publicados no jornal O Monitor onde o voto feminino é incentivado e as mulheres são instruídas a votarem nos candidatos indicados pela Liga Eleitoral Católica (LEC), para, dessa forma, defenderem seus lares, suas famílias e sua religião.

Chegando ao terceiro e último capítulo de sua operação historiográfica1 – A Câmara de Vereadores de Garanhuns: poder, estratégias e combates – Erinaldo Cavalcanti volta-se para as atas da Câmara de Vereadores de Garanhuns. Ao percorrer essas atas, o historiador observa e aponta as singularidades estratégicas que o combate ao comunismo e seus representantes assumia ao ser travado na sede do poder legislativo municipal, como a recusa por parte dos demais vereadores em aprovar propostas comunistas. O autor demonstra também, ao narrar a ida à Garanhuns de Gregório Bezerra e, em momento posterior, a de Jorge Amado – ambos conhecidos como importantes membros do Partido Comunista no período – que as lutas sociais não obedecem a uma mecânica ou trajetória determinada. Por essa razão, segundo sua narrativa, enquanto a viagem de Gregório Bezerra à Garanhuns foi repudiada por autoridades ligadas a Igreja Católica e à Polícia, a ida do escritor Jorge Amado foi motivo de orgulho e recebeu voto de aplauso da Câmara de Vereadores. Jorge Amado inclusive foi convidado a oferecer uma conferência na Câmara. Por essa razão, o autor afirma que ao examinar a relação da Câmara de Vereadores com o anticomunismo “não podemos pensá-la sem levar em consideração essa dinâmica da luta que produziu atitudes de oposição ao comunismo, e em certos momentos, abraçou um intelectual defensor das ideias comunistas, convidando-o para aquele recinto” (2012, p. 145). A narrativa de Erinaldo Cavalcanti, ao acompanhar as deliberações dos vereadores, conduz o leitor até os primeiros dias do mês de abril de 1964. Dessa forma, podemos observar as demonstrações de apoio ao golpe civilmilitar por parte do poder legislativo de Garanhuns, apoio refletido no envio de moção de aplausos a políticos que apoiaram os militares, na cassação dos direitos políticos de representantes do comunismo na cidade e na concessão do título de Cidadão de Garanhuns a personagens que atuaram durante o golpe, como o General Justino Bastos, comandante do Quarto Exército à época.

Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco [Garanhuns – 1958/1964], figura como um trabalho de relevância para a historiografia brasileira por sua proposta analítica, pelos diálogos que estabelece com outros autores importantes da historiografia brasileira e internacional e pela maneira como Erinaldo Cavalcanti procede ao analisar o corpo documental que reuniu durante suas pesquisas. A narrativa tecida pelo autor a partir de suas fontes é fluida e minuciosa, o que permite aos leitores, mesmo os que não estão familiarizados com o tema, a se situarem e acompanharem sem dificuldades o que está sendo narrado. Vai além e instiga reflexões não apenas sobre o golpe civil-militar ocorrido no Brasil, mas também sobre o medo, sobre os interesses presentes em discursos que disseminam o pavor numa sociedade e os ganhos que esses discursos podem render aos grupos responsáveis por sua disseminação.

Nota

1. Ver: CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: _______. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p 56 – 108.

Luiz Felipe Batista Genú – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e mestrando do programa de Pós-Graduação em História da mesma entidade (PPGH-UFPE)


CAVALCANTI, Erinaldo Vicente. Relatos do Medo: A ameaça comunista em Pernambuco (Garanhuns – 1958-1964). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. Resenha de: GENÚ, Luiz Felipe Batista. As Práticas do Medo e a Construção do Anticomunismo na Cultura Política da Cidade de Garanhuns – PE (1958-1964). Escritas. Palmas, v.6, n.1, p. 271-275, 2014. Acessar publicação original [DR]

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