Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial | Cristina Pompa

Abordagens interdisciplinares são recorrentes nas histórias das etnias americanas. Embora viabilizem uma análise mais consistente das sociedades indígenas, sobretudo de seus ritos e mitos, elas nem sempre se coadunam com a perspectiva da análise diacrônica. De todo modo, esses historiadores buscam harmonizar a diacronia à sincronia dos modelos teóricos, mas, de fato, ao recorrer às Ciências Sociais, eles, muitas vezes, negligenciam a temporalidade dos registros do passado. Este procedimento raramente é explicitado nas obras dedicadas à etno-história que, em geral, acabam por apresentar critérios pouco objetivos para estabelecer similitudes entre os conjuntos mítico-rituais. Essas filiações teóricas também incentivam uma apropriação do passado que, não raro, contraria a crítica aos testemunhos, a análise dos contextos narrativo e cultural, bem como a sua inserção social e geográfica.

Esses impasses, porém, não se encontram apenas nos escritos da história das etnias americanas. Nos anos 1990, o ambicioso livro de Carlo Ginzburg, História noturna (1989), provocou uma enorme polêmica ao combinar a morfologia e a história do Sabá, seus significados sincrônicos e desenvolvimento diacrônico. O historiador italiano pretendia, então, harmonizar o estruturalismo à perspectiva histórica dos mitos, descobrir homologias formais e reconstruir seus contextos espaço-temporais.1 Para explicar a existência de substrato comum de crenças e rituais eurasianos, Ginzburg recorreu à difusão cultural promovida pelas migrações e a uniformidade psíquica, combinação capaz de promover o entrelaçamento entre história e morfologia.

Esse ambicioso projeto recebeu críticasas mais variadas, mas vale citar apenas a de Perry Anderson. Ao comentar essa combinação, ele escreveu: “sua presença simultânea no texto mais parece um resseguro tático do que uma síntese teórica, pois elas não podem ser logicamente conciliadas”.2 Ginzburg também desconsiderou a temporalidade dos testemunhos e promoveu cruzamentos de dados sem atentar para suas especificidades temporais e espaciais. Para tanto, baseavase no estruturalismo de Lévi-Strauss e na filosofia de Wittgenstein. Apesar da complexidade do tema, vale incluir essa breve menção para introduzir o livro de Cristina Pompa.

Religião como tradução tem o grande mérito de enfrentar o difícil diálogo entre as Ciências Sociais e a História. De forma brilhante, a autora indica afiliação teórica dos principais etnólogos brasileiros e estrangeiros para demonstrar como eles se apropriaram dos registros concebidos pelos missionários entre os séculos XVI e XVII. Pompa promoveu um confronto inédito entre a literatura etnológica do século XX e os testemunhos do início da colonização portuguesa na América. Assim como fez em relação aos registros quinhentistas, ela realizou uma breve crítica histórica das principais obras da etnologia que, a meu ver, jamais serão as mesmas, sobretudo para o leitor atento.

Nessa ambiciosa empreitada, Pompa consultou a vasta literatura dedicada aos Tupi e Tapuia. Receberam da autora um tratamento diferenciado as cartas, os relatos de viagem, os tratados e as histórias de missionários jesuítas e capuchinhos, de neerlandeses e demais estrangeiros que percorreram a costa atlântica e o sertão brasílicos, no período em questão. Junto à farta documentação, ela incluiu registros ainda pouco conhecidos, localizados nos arquivos jesuíticos em Roma ou em edições raras que lhe permitiram uma visão mais ampla das comunidades indígenas radicadas na América portuguesa. A erudição, a capacidade de observar detalhes e comparar testemunhos produziram uma obra obrigatória para os pesquisadores da história indígena. Seus objetivos, porém, não se resumiam a conhecer as etnias e seus confrontos com conquistadores e missionários. Procurou antes demonstrar inconsistências e, particularmente, anacronismos de estudos consagrados como os de Alfred Métraux e Florestan Fernandes.

Segundo a hipótese de Kurt Nimuendajú, não era a expansão bélica o motor das migrações dos antigos tupinambás. Desde o início do quinhentos, eles eram impulsionados por razões religiosas, buscavam a Terra sem Mal, que, séculos depois, permaneceria como responsável pelos deslocamentos dos apapocuvas. Partindo desse princípio, Métraux articulou os dados presentes nas fontes do século XVI e XVII às etnografias sobre os guaranis modernos para recompor a cultura tupinambá da época colonial. Sobre o método, Pompa escreveu: “Este ‘pecado original’ parece percorrer todos os estudos ‘clássicos’ sobre estes grupos; até nos trabalhos dedicados especificamente aos Tupinambá ou aos Guarani, os autores não deixam de recorrer, para explicar aspectos de uma cultura, aos dados da outra, pressupondo uma única e imutável ‘cultura tupi-guarani'” (p. 101). As pretensas homologias se baseavam no difusionismo, responsável por explicar o desenvolvimento cultural por meio da dispersão de costumes, ritos e mitos entre os povos. Apesar da perspectiva histórica, os difusionistas acreditavam na raridade de novos inventos e na estabilidade, ou mesmo imutabilidade, das tradições.

Florestan Fernandes recorreu, por sua vez, a uma abordagem funcionalista para explicar as migrações. Embora apontasse a insuficiência dos dados, “não susceptíveis de aproveitamento sistêmico”, Fernandes considerou os deslocamentos como mecanismo de controle social, responsável por restabelecer o equilíbrio biótico das comunidades. “É óbvio”, concluiu Cristina Pompa, “que o diferente tratamento dado às fontes pelos dois autores depende das posições teórico-metodológicas, uma procurando rastros de um percurso de difusão, outro querendo descobrir mecanismos de funcionamento” (p. 107). As fontes, por certo, não foram analisadas a partir do contexto. Elas se subordinaram e sofreram cortes segundo as filiações teóricas.

Por certo, as teorias difusionistas e funcionalistas mencionadas tiveram enorme influência nas pesquisas históricas. O profetismo tupi tornou-se recorrente nos livros e teses, perpetuando “o pecado original” tão bem desvendado por Cristina Pompa. Ao alertar para o perigo de empregar as “informações pertencentes a grupos, regiões e momentos históricos diferentes” (p. 135), a metodologia dedicada a preencher lacunas da documentação antiga com dados de culturas contemporâneas, a autora se diferencia de boa parte das teses produzidas no âmbito da etno-história. Distancia-se ainda da etnologia e da amplamente praticada “crítica etnográfica das fontes históricas”.3 O “ar de familiaridade”, segundo a autora, não permite traçar comparações, nem mesmo preencher vazios documentais.

Como as ressalvas ao trabalho de Ginzburg, esse método permite comparações infinitas e descontextualizadas, além de pressupor que as culturas indígenas permaneçam congeladas no tempo. A meu ver,esse procedimento contraria a lógica histórica, nega a temporalidade dos testemunhos. Como recuperar a “verdade histórica” é inviável, Cristina Pompa defendeu a reconstrução da “trama e significações em que colonos, jesuítas, indígenas e capuchinhos liam e tornavam familiares alteridades culturais, no teatro do Brasil colonial” (p. 163). Buscava, então, entender as traduções,o deslizamento de sentidos entre os universos simbólicos dos colonizadores e dos indígenas.

Se a primeira parte do livro trata dos Tupi, a segunda consolida ainda mais a abordagem inovadora ao analisar os Tapuia do sertão. Embora as duas experiências se mostrem distintas, Pompa demonstra como a evangelização dos Tupi serviu de modelo para a dos Tapuia. A partir da experiência com osTupi do litoral, os missionários construíam, no imaginário europeu, a alteridade indígena, recorrendo à revisão e rearticulação de categorias religiosas como a profecia, a feitiçaria e a esfera demoníaca. Construiu-se, então, “o projeto missionário, voltado para a realização do desenho provincial da pregação do Evangelho” (p. 417).

No sertão, a alteridade radical, antes atributo dos Tupi, deslocou-se para osTapuia. Ao descrever a religião kariri, os capuchinhos empregaram a mesma abordagem e buscaram delimitar as noções de dilúvio, recuperar a passagem de São Tomé e das tribos perdidas de Israel, temas recorrentes nas cartas jesuíticas do século anterior. Nesses escritos, tornam-se evidentes não somente as traduções indígenas, a absorção do cristianismo a seus mitos, mas também como os religiosos traduziram a cultura kariri, a partir do tupi cristianizado.

Os índios traduziram a alteridade colonizadora e missionária, recorrendo ao seu simbolismo mítico-ritual, pois ora os religiosos receberam atributos de xamã; ora, ao explicar os eventos, os mitos cosmogônicos indígenas transformaram-se em apocalíticos; ora os ritos católicos serviam para construir um “universo simbólico nativo e para os nativos, que procurava eliminar simbólica e fisicamente os brancos”. (p. 417).

Sem recorrer a modelos teóricos redutores, Cristina Pompa promoveu um notável avanço da história das missões, sem descuidar das traduções, dos hibridismos religiosos promovidos pelas comunidades indígenas frente aos dilemas da colonização. A maior contribuição da segunda parte encontra-se, nas entrelinhas, quando demonstra os limites para se reconstruir o “verdadeiro índio”, rompendo com a “crítica etnográfica das fontes históricas”. A nova abordagem torna-se ainda mais relevante quando emprega a comparação para entender como horizontes simbólicos distintos, contextos sociais e econômicos variados originaram traduções, revisões e recomposições míticas e práticas, “no esforço constante de construir o sentido do mundo” (p. 419).

Notas

1 Carlo Ginzburg, História noturna; decifrando o sabá. (trad.), São Paulo, Companhia das Letras, 1991. Sobre a produção historiográfica de Ginzburg, ver: Dominick LaCapra, History & Criticism, Ithaca, Cornell University Press, 1985, p. 45-69; Luciano Canfora et al., Paradigma indiziario e conoscenza storica, Quaderni di Storia, 12, p. 3-55, 1980; Ronald Raminelli, “Compor e decompor: ensaio sobre a História em Ginzburg”, Revista Brasileira de História, 25/26, p. 81-96, 1993.

2 Perry Anderson. Investigação noturna: Carlo Ginzburg, in Zona de Compromisso. (trad.), São Paulo, Ed. Unesp, 1996, p. 81; Robert Bartlett. Witch hunting, in: The New York Review of Books, v. 38, n. 11, 1991.

3 Marta Amoroso. “Do alcance da tradução cristã”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 57, 2005.


Resenhista

Ronald Raminelli – Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: CNPq-Anpocs; Edusc, 2003. Resenha de: RAMINELLI, Ronald. O dilema do tempo na etno-história. Tempo. Niterói, v.12, n.23, 2007. Acessar publicação original [DR]

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