Saúde Coletiva / História Oral / 2005

A revista História Oral ao longo desses oito anos de contínua circulação alcançou um patamar que pode e deve ser associado a um grande esforço coletivo. O constante rodízio de editores e suas equipes revelou um incansável e permanente trabalho de análise, de crítica, de seleção de artigos nacionais e internacionais, que concorreram para transformar esta revista em uma referência da produção do conhecimento mediante a utilização das fontes orais.

É importante registrar a forma como nesses últimos dez anos o trabalho com relatos orais adquiriu uma importância significativa em diversas áreas das ciências humanas e sociais no Brasil. O crescente interesse de professores, pesquisadores e estudantes em participar crescentemente da Associação Brasileira de História Oral é um sinal desse movimento. Os encontros regionais que ocorreram no Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, no intervalo dos encontros nacionais bianuais, deram uma grande visibilidade à força das pesquisas com fontes orais, ao seu uso em termos numéricos e qualitativos.

A leitura dos cadernos de resumos desses encontros regionais oferece uma diversificada cartografia das linhas e temas de pesquisa. Observa-se como o interesse pela história do tempo presente e seu amplo leque de temas se estabelece e se cruza com outras preocupações metodológicas, como a problemática do tempo, a narrativa oral e escrita, a memória, o esquecimento, a micro-história, relacionadas a questões técnicas como a forma da entrevista, a gravação, a transcrição, a edição, o arquivo em fita, em CD e em DVD. Todo esse quadro que, sucintamente, apontamos pode também ser relacionado à ampliação dos cursos de pós-graduação em diversas áreas das ciências humanas, que passaram a incorporar aos seus programas disciplinas relacionadas à temática da história e o uso das fontes orais.

Este número da revista História Oral traz como dossiê a temática da saúde, tratada da perspectiva das práticas sociais das camadas populares. Iniciamos pelo trabalho da antropóloga Martha Beatriz Cahuich Campos, da Escuela Nacional de Antropologia e Historia do México, que recupera experiências valiosíssimas das comunidades mexicanas que optaram por uma medicina construída na tradição popular e, ao mesmo tempo, estabelece uma reflexão sobre projetos de economia solidária. O artigo contempla uma análise sobre a necessidade da imbricação entre os projetos de economia solidária e o cuidado com a vida, com projetos de saúde libertadores, mas aponta como nem sempre essa união tem tido êxito.

O segundo artigo do dossiê, do historiador Fernando Dumas, da Casa de Oswaldo Cruz, traz para o leitor um rico trabalho de pesquisa desenvolvido na região do médio rio Negro, na Amazônia. Entrevistando a população da região localizada entre as cidades de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos, o texto revela como por meio de relatos de história de vida é possível descobrir todo um percurso de construção de uma cultura híbrida de cura. Segundo o autor, duas seriam as influências básicas que constituem essa tradição de saúde popular: de um lado, as práticas ritualísticas, de conotações mágico-religiosas, dos pajés; de outro, os usos curativos das plantas, alguns desenvolvidos por influência dos preceitos da terapêutica científica ocidental.

O terceiro trabalho é de autoria de Ana Paula Vosne Martins, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, e tem como título Memórias maternas: experiências da maternidade na transição do parto doméstico para o parto hospitalar. Mediante entrevistas com mulheres que nasceram antes de 1930, e que tiveram seus filhos e filhas em casa com parteiras, é desenvolvida uma reflexão sobre a história da maternidade distinta da realizada pelos médicos especialistas. A memória dessas mulheres é também analisada da perspectiva das implicações metodológicas da história oral.

Após o dossiê temos o artigo de Ronald Grele, do Oral History Research Office at Columbia University, em que aponta algumas linhas de reflexão teórico-metodológicas de um grupo de historiadores nos EUA que colocou em debate o uso das entrevistas em seus livros e artigos. Indica o autor, em linhas gerais, o que considera o percurso da história oral naquele país, bem como a formação de uma comunidade mundial – IOHA – e os temas que lhe parecem hoje estar no centro dessa discussão.

Um outro artigo que privilegia as questões teóricas e metodológicas resulta de um debate entre a historiadora Florence Descamps, da École Pratique des Hautes Études, e a antropóloga Florence Weber, da École Normale Supérieure (Paris), com a mediação de Bertrand Muller. A grande experiência e as ricas análises dessas duas pesquisadoras no trabalho com as fontes orais, sem dúvida, oferecem uma rica contribuição a este debate também no Brasil.

O artigo Histórias reconstruídas: Laura Brandão na memória dos seus descendentes, de Maria Elena Bernardes, do Centro de Memória da Unicamp, revela uma historiadora cuidadosa em percorrer as memórias e os silêncios daquela que foi a personagem central da sua investigação de mestrado. A escrita e a pesquisa expressam um equilíbrio de quem sabe os artifícios da narrativa e as armadilhas dos documentos.

O pesquisador Ely Bergo de Carvalho, valendo-se de um conjunto de entrevistas com um grupo de agricultores do município de Engenheiro Beltão, no Paraná, recupera todo um debate sobre as práticas de desmatamento ocorridas naquele estado a partir da década de 1940. O artigo O mal-estar dos civilizadores: ou como os agricultores lembram a floresta em Engenheiro Beltrão, Paraná aponta um complexo percurso de construção social de memórias sobre a floresta.

A pesquisadora e historiadora Marilda Ionta, da Universidade Federal de Viçosa, em A escultura de si nas cartas de Anita Malfatti, Oneyda Alvarenga e Henriqueta Lisboa, nos traz para reflexão todo um universo histórico, social e cultural a partir das missivas dessas três mulheres ao amigo Mário de Andrade. São três auto-retratos estilhaçados, que Ionta percorre, produzindo outras leituras sobre histórias de subjetivações sociais.

No artigo A memória dos lugares, dos objetos e os guardiões da memória na educação não-formal, a pesquisadora em educação Renata Sieiro Fernandes analisa diversos relatos de memória de um grupo de participantes de um projeto de educação não-formal na cidade de Paulínia, São Paulo. Ao estudar esses relatos, a autora nos remete a diversas trilhas teóricas acerca da memória, destacando como a evocação e a socialização de um passado interferem nas maneiras de representar e agir no presente.

O sociólogo Abdias Vilar, entrevistando diversos homens e mulheres aposentados, constrói um quadro social da maior atualidade. Utilizando-se da metáfora Vou fazer o que em casa? para nomear seu artigo, o autor adentra o universo cultural que institui e nomeia fronteiras quase invisíveis, que procuram definir e determinar o lugar do homem e da mulher na condição de aposentados.

A pesquisadora Thelma Velôso, da Universidade Federal de Campina Grande, por meio de um conjunto de entrevistas com líderes camponeses que atuaram na década de 1960, na Liga Camponesa de Alhandra na Paraíba, desenvolve uma série de análises sobre a memória dos movimentos sociais rurais no Nordeste do Brasil. Seu artigo Memórias de ex-dirigentes das Ligas Camponesas da Paraíba é sem dúvida uma rica contribuição à utilização das fontes orais na memória política.

Ao final, é apresentada uma resenha que escrevemos para o livro Espiritismo progressista: pensamento e ação de Rino Curti, de autoria de Alice Beatriz da Silva Gordo Lang e Maria de Lourdes Mônaco Janotti.

Este número 9 da revista História Oral traz também uma breve mensagem escrita pelas amigas e amigos de Gabrielle Becker – Gaby, externando a dor da saudade de uma pesquisadora e pessoa humana muito cara à comunidade em que militava profissionalmente, e também uma figura muito atuante na ABHO desde o momento de sua fundação.

Aproveitamos ainda este espaço para informar aos nosso leitores que passamos a disponibilizar eletronicamente esta revista no site http: /  / www.cpdoc.fgv.br / abho / . Atualmente, encontram-se disponíveis as edições de números 2 a 8.

Este número é resultado de um grande trabalho coletivo do nosso comitê editorial – Alice Beatriz da Silva Gordo Lang (Ceru-USP), Leny Caselli Anzai (UFMT), Janaina Amado (UNB) e Regina Beatriz Guimarães Neto (UFMT). Porém, não poderia deixar de registrar o apoio do Conselho Editorial e do Conselho Científico da ABHO, fornecendo inúmeros pareceres, cuidadosamente elaborados, que nos possibilitaram um diálogo mais efetivo com os autores, no sentido de buscar constantemente uma melhor clareza de estilo e coerência nos seus textos. Finalmente, agradecemos ao nosso coordenador de produção, André C. Gattaz, pelo trabalho sempre cuidadoso e profissional, em todas as etapas desse processo de produção. Que a revista seja um convite à leitura!

Antonio Torres Montenegro


MONTENEGRO, Antonio Torres. Palavras do editor. História Oral. Rio de Janeiro, v.8, n.2, p.7-10, 2005. Acessar publicação original [DR]

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