SerTão Plural | Revista Historiar | 2021

“(…) como o sertão é grande”.

Guimarães Rosa

A categoria Sertão foi durante certo tempo uma das tendências interpretativas do Brasil – o Sertanismo, que se pretendia capaz de dar conta do que seriam as múltiplas realidades identitárias do país, de forma considerada mais realista, substituindo o lugar do índio pelo do sertanejo, ainda que mantendo basicamente um mesmo discurso de afirmação e busca por uma identidade romântica, costurando imaginação e tradição, especialmente na trama literária. Espaço tenso de debate e afirmação de contrastes – rural, urbano, civilizado, incivilizado, acossado ora pela tradição, ora pela modernidade, o sertão já sofreu o impacto do determinismo, do romantismo, do modernismo, do tradicionalismo. De todo modo, sua pujança excede suas (in)certas fronteiras e abre caminhos para reflexões quase sempre originais, mas também espinhosas. Talvez uma das mais percucientes dessas reflexões tenha sido a de Euclides da Cunha com Os Sertões. Desde então compreendemos que não há sertão, mas sertões.

Nesse sentido, pensamos esta edição da Historiar, SerTão Plural, como um encontro entre historiadores e historiadoras que abordam de diversos temas em diálogo com antropólogos, críticos literários e geógrafos, analisando os variados enredos, veredas, caminhos, travessias e paragens das paisagens e espaços das fronteiras historicamente construídas sobre os sertões brasileiros, que na perspectiva de Caetano Veloso, é “Sertão de não Terminar senão No coração”.

Ana Sara Cortez Irffi, em Sobre a propriedade da terra: o sertão do Cariri cearense e a invenção do “cabra” (Século XIX), investiga como foi construída a figura do cabra no cariri cearense, no século XIX. Para a autora, trata-se de uma construção que só foi possível devido ao contexto de implementação da posse da terra e da exclusão trabalhadores negros que não tinha acesso às terras, classificando-os a partir da utilização de um vocabulário social que marginalizava estes sujeitos.

Já o artigo Conflitos pela terra na construção da estrada de ferro de Baturité: desapropriações de sítios no Ceará e resistência (1878-1879), da historiadora Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis, examina os conflitos e tensões geradas na desapropriação de terras para a implantação da Estrada de Ferro de Baturité – EFB, no Ceará, entre 1878-1879. Ela demonstra em seu texto como as desapropriações das terras, os alojamentos, os materiais de construções e a construção prédios geravam diversos conflitos, inclusive impactando na definição de onde passaria os trilhos da estrada de ferro e na paisagem da vegetação a partir das disputas de poder.

Tomando como perspectiva as condições de possibilidades do estabelecimento de novas conexões entre os sertões pela relação temporal entre passado e futuro, Antônio José de Oliveira, analisa como foi construída a riqueza e opulência das elites caririense no final do século XVIII e início do século XIX, baseado na exploração das terras, escravos e criatório de gados. Este enriquecimento era gerador de poderes políticos e econômicos proporcionado através do controle da terra, de criatórios do gado e da cultura canavieira.

Se as operações históricas e sociológicas, por exemplo, a partir do século XIX delimitam um espaço geográfico para o sertão, antes disso ele era considerado uma paisagem flutuante, uma sinonímia para representar o que estava fora das regiões colonizadas, era visto como o outro, era o índio, as aventuras pitorescas.

Nessa perspectiva, o artigo de Adauto Neto Fonseca Duque e Maria Alveni Barros Vieira, Quilombos nas narrativas do governo do Piauí, explora as narrativas sobre projetos de desenvolvimento fomentadas pelo governo do Piauí e para os quilombos. Para tanto, os autores debruçam em uma série de reportagens para compreender o modo como os moradores de comunidades negras rurais perceberam e receberam a atuação governamental no ordenamento do seu espaço de vivência e trabalho.

Já Raimundo Alves de Araújo, em Mestiçagem, sexualidade e colonização dos sertões no século XVIII: o sexo como aliança entre europeus e indígenas, realiza uma reflexão sobre as relações sociais (e sexuais) humanas ocorridas entre colonos luso-brasileiros e os povos nativos americanos ocorridas no período colonial (nos séculos XVII e XVIII), compreendendo-as como formadora das mestiçagens que originaram posteriormente a figura do cearense.

Como dissemos, o dossiê buscou estabelecer diálogos com outras áreas do conhecimento para promover outros diálogos, outros olhares e novas sensibilidades. Os professores Clovis Ramiro Jucá Neto e Herbert de Vasconcelos Rocha, em Notas sobre a construção das casas de câmara e cadeia do Icó e Sobral: contribuição para a História da Arquitetura Cearense, destacam a importância das construções dos prédios de câmara e cadeias nas vilas dos sertões cearense. Eles analisam os significados destas edificações para o estabelecimento do controle político das elites locais sobre a administração e segurança das vilas do Icó e Sobral. Estes prédios são considerados pelos autores como as representações políticas e econômicas dos poderosos dos sertões que controlavam as pessoas, os espaços e a organização destas vilas.

Nísia Trindade (2013, p. 107) considera que entre o final do século XIX e ao longo das primeiras décadas do século XX, o “sertão integra o mesmo campo semântico de incorporação, progresso, civilização e conquista”, ou seja, é entendido como uma oposição ao litoral, cuja solução por meio da criação de um projeto de nacionalidade que aglutinasse o interior do país.

Nesse ínterim, o artigo Ceará profundo: dominação e resistência na conquista dos sertões, de Darlan de Oliveira de Oliveira Reis Júnior, retorna ao conceito euclidiano e discute a formação da sociedade colonial como “relação entre a apropriação das terras pelos colonizadores e o processo de exploração decorrentes da conquista dos sertões”. Ele demonstra que a formação da sociedade colonial foi fruto dos diversos conflitos, apropriações e resistências cotidianas dos povos nativos e dos chegantes a estas terras, vindos das diversas capitanias do Brasil profundo.

Já Reinaldo Forte Carvalho, analisa o “Almanaque Juízo do Ano”, publicado pela Casa dos Horóscopos de propriedade do cordelista e do astrólogo Manoel Caboclo e Silva, entre 1960 a 1996, na cidade de Juazeiro do Norte/CE. A produção e divulgação do almanaque através de folhetos serviu como meio de informação aos homens e mulheres do campo que o utilizava como uma profecia sobre as chuvas do Cariri e ajudava no processo de produção agrícola da região. O autor perscruta a vida e obra de Manuel Caboclo como um profeta do tempo que “concebia o futuro através de sua ciência astrológica, construindo uma visão de mundo que era permeada por elementos da natureza, ciência e magia”.

Entre a carne e a pedra, o corpo da cidade: um historiador experimentando as madeleines de Proust no sertão, artigo de Cid Morais Silveira, traz ao público uma narrativa permeada de memórias sobre as “particulares de ver e dizer a cidade de Morrinhos, no interior do Ceará” pensando-a a partir das construções de subjetivas, da dimensão do político e do social. Cid escreve sobre Morrinhos como um sinal de despedida, mas a leitura do seu texto nos leva ao encontro, ao rio que serpenteia os sertões construindo paisagens.

Em O triunfo sertanejo de um símbolo: o “Arco do Triunfo” em Sobral/CE como centralidade simbólica, Marcos da Silva Rocha e Raimundo Freitas Aragão examinam o Arco de Nossa Senhora de Fátima, em Sobral/CE, como monumento/documento das histórias e memórias da cidade, bem como os seus uso, abusos e conflitos, como lugar das reapropriações de seus sentidos e significados por diferentes sujeitos e tempos.

O artigo Nascidos das perversões e abençoados pelo batismo: o apadrinhamento das crianças ilegítimas e abandonadas no Arraial do Tejuco do século XVIII, assinado por Thassio Ferraz Tavares Roque toma como objeto de investigação os registros de batismos inferidos no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina/MG para descortinar a formação de compadrio, apadrinhamento e formação da sociedade colonial no Arraial do Tejuco, no século XVII.

A partir da leitura dos artigos acima mencionados, a impressão que o SerTão Plural nos causa é sempre essa: algo que não tem fim, que não termina, que se expande, que está em toda parte, como sabiamente nos ensinou Guimarães Rosa. Assim sendo, os sertões não são ilhas isoladas e, por esse motivo, devem ser percebidos em suas (inter)rações.

Além dos artigos que abordam a discussão central deste dossiê, ou seja, os serTÕES historicamente inventados, reunimos, também, uma série de artigos cujos objetos de análises estão conectados com as demandas do presente, temporalmente estabelecidas nas camadas sedimentadas pelo entrelaçamento do presente, pretérito e futuro. É o caso da investigação realizada por Anne Alves da Silveira, em Repressão na ditadura brasileira: uma breve análise da atuação dos órgãos repressivos na Universidade Federal da Bahia (1972-1978), que discute as possibilidade de se trabalhar com o tema da ditadura em sala de aula, promovendo o desenvolvimento da análise crítica da sociedade e a consciência histórica nos educandos.

Luana Josephino de Melo, em Os pentecostais e a cultura política, centraliza sua investigação no crescimento do movimento pentecostal no Brasil não apenas um campo religioso, mas ele se capilariza na política e na mídia apropriando-se de elementos tradicionais da cultura política brasileira, como o patrimonialismo e o clientelismo. Já Hilário Ferreira, no texto A identidade negra e africana do cearense, evidencia a importância dos estudos sobre a presença da cultura africana no Ceará.

No campo das discussões de ensino de História, José Francisco dos Santos e Danielle Lima de Almeida realizam uma Análise dos livros didáticos e o lugar da mulher negra: passado e presente, evidenciando a centralidade da reflexão sobre representatividade do povo negro nos materiais didáticos como forma de reparação histórica. Para Matheus da Silva Santos, em A importância da avaliação da aprendizagem em tempos de pandemia de COVID-19: do conteúdo à ação de avaliar a partir do sistema remoto, destaca as diversas possibilidades avaliativas, entre elas o olhar para o processo e não apenas para a atribuição de um nota.

Em Política cultural e universidade pública: museus universitários na Amazônia brasileira, Wanessa Lott, Maíra Santana Airoza, Carolina Barros de Paula e Ruth Macedo Cardoso investigam os impactos das políticas culturais brasileiras nos museus universitários a partir da experiência da Universidade Federal do Pará. Para as autoras, os espaços museais das IES podem ser considerados como “uma vitrine lúdica/educacional para o conhecimento produzido, além de fomentar o diálogo entre os canônicos espaços universitários e a comunidade em geral”.

Francisco de Assis de Sousa Nascimento e Mariana Rita de Paula assinam o artigo “Uma luta com, dentro e contra a instituição”: o Hospital Areolino de Abreu no contexto da reforma psiquiátrica (1970-2004), destacando o papel social e a perspectiva democrática no processo de Reforma Psiquiátrica no contexto piauiense.

Por fim, mas não menos importante, retornamos com a sessão de entrevistas da Historiar, na qual honrosamente publicamos uma conversa com o Prof. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, com mediação de Denis Melo e Thiago Rocha. Entre os temas e temáticas tratadas podemos destacar a sofisticada análise das temporalidades mobilizadas e depositadas no sertão como o lugar do pretérito e não do contemporâneo; as discussões apresentadas em seus livros A invenção do nordeste e outras artes e Nos destinos de fronteiras; as outras linguagens que criaram e criam paisagens sobre o nordeste brasileiro, como os filmes Um som ao redor, Tatuagem e Amarelo manga que apresentam outras visualidades; o retorno à determinados estereótipos, como os cactos de Julliete Freire (participante do programa BBB21, da Rede Globo); as questões de gênero e o poder das artes e as artes do poder que inventaram e inventam os sertões.

Desejamos uma boa leitura!

Referência

LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2013.


Organizadores

Os editores


Referências desta apresentação

Os editores. Travessias pelos sertões plurais. Revista Historiar, v.13, n.24, p.3-8, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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