States of Exception in American History | Gary Gerstle e Joel Isaac

O termo “estado de exceção” possui longeva historicidade e tem se tornado cada vez mais recorrente na linguagem contemporânea. Recorre-se a ele frequentemente para se apontar condições da vida política e jurídica atual ressaltando-se um fato ou um processo excepcional que aparenta estar se naturalizando na sociedade. De certo modo, essa perspectiva possui elos com uma noção teórica e prática mais precisa de estado de exceção, mas não se resume a isso. Historicamente, a exceção é o meio pelo qual se busca defender a soberania ameaçada do Estado e de suas instituições, possibilitando, inclusive, a suspensão de alguns direitos e garantias. De tal modo, o estado de exceção está no limiar entre uma crise e práticas duradouras de governo, que podem, em última instância, se tornar ditaduras.

O estado de exceção, contudo, é fruto de um Estado de direito, que formula suas previsões de emergência para os momentos mais críticos de sua comunidade. Logo, ele deve ser uma situação temporária de restrição de direitos e de concentração de poderes. Por conta disso, o estado de exceção é distinto de ditaduras e de Estados totalitários, uma vez que a restrição de direitos e a concentração de poderes são inerentes a essas situações.

Há vários analistas dedicados ao estado de exceção como objeto de estudo, sobretudo nas ciências jurídicas. Em geral, não há abordagem que deixe de mencionar as reflexões do jurista e filósofo italiano Giorgio Agamben (2007). Classificando o estado de exceção como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal, Agamben expõe as áreas mais obscuras do direito e da democracia que legitimam a violência e a arbitrariedade. De tal maneira que o poder de regulamentação e controle não seria mais apenas excepcional, mas o paradigma dos governos.

A obra de Agamben, sem dúvida, deu maior visibilidade ao tema em função de sua notória repercussão. No entanto, há outros muito importantes estudos que carecem de mais atenção. Alguns exemplos incluem a pesquisa do francês François Saint-Bonnet (2001), que tenta dissipar as sombras do abuso de poder em torno do direito público de crise; da estadunidense Nomi Lazar (2009), que busca uma forma de superar os riscos da dualidade norma/exceção no Estado liberal; do irlandês Alan Greene (2018), que explora o impacto da emergência permanente na validade das normas constitucionais; do jurista alemão Günter Frankenberg (2018), que reflete sobre as ambivalências do Estado de direito, a defesa da liberdade democrática e as práticas fundadas no direito de exceção; ou mesmo do brasileiro Marcelo Tavares (2008), que avalia os limites jurídicos das medidas de exceção no Estado de direto.

Recentemente publicado e acrescido à relação acima está o livro dos estadunidenses Gary Gerstle (University of Cambridge) e Joel Isaac (University of Chicaco), States of Exception in American History (2020). Professores, respectivamente, de História Americana e de Pensamento Social. A obra enriquece o debate a partir de uma perspectiva que é pioneira na compreensão das políticas de exceção e emergenciais na história dos Estados Unidos.

No livro organizado por Gesrtle e Isaac há 12 capítulos que estão divididos em três partes. A primeira, composta por três desses capítulos, remonta às contribuições do jurista alemão Carl Schmitt para tratar sobre as concepções em torno da designação “estado de exceção” e as reverberações de seu pensamento na atualidade. A segunda parte, que possui mais seis capítulos, aborda a experiência estadunidense com os poderes emergenciais. E a última parte, com os três capítulos restantes, trata do alargamento da exceção na contemporaneidade. A composição da obra reúne um grande elenco de pesquisadores e pesquisadoras provenientes das mais variadas e relevantes instituições (Yale College, Bard College Berlim, Columbia University, University of Toronto, University of Michigan, University of Carolina, American University of Paris e University of Chicago), mesclando reflexões oriundas das áreas de História, Ciência Política, Sociologia, Filosofia e Ciências Jurídicas em seus capítulos.

Resultante de um evento homônimo realizado na University of Cambridge, em 2015, e na University of Chicago, em 2018, o livro foi apresentado no Institute of the Americas da University College London, em setembro de 2020, agregando estudos históricos de momentos e espaços de exceção com análises conceituais acerca da emergência, do estado de exceção, da soberania e da ditadura. Uma combinação entre teoria e história que ressalta as destacadas instância em que a Constituição dos Estados Unidos foi anulada, suspensa ou deliberadamente enfraquecida por atores políticos desde a independência do país. Perpassando momentos históricos notórios como a Guerra Civil, a Grande Depressão e a Guerra Fria, os textos exploram como foi possível aos Estados Unidos sobreviver aos estados de emergência sem perder o seu caminho democrático. Suas análises históricas de pensamento político, raça e de instituições políticas contemplam também a era do terror, pós atentado de 2001, e os legados do Trumpismo.

States of Exception in American History oferece, para além dos Estados Unidos, uma introdução ao problema das emergências nos Estados liberais, sendo muito importante destacar a sua contribuição para examinar como as democracias enfrentam as emergências. Se por um lado parece paradoxal suspender a Constituição para permitir ações executivas fora da lei, por outro lado esse paradoxo talvez seja algo que as democracias liberais devam permitir para o enfrentamento de severas crises com agilidade, desde que prezando claramente pelo estado de direito.

Até então, nenhuma obra havia se dedicado a dar visibilidade a momentos de exceção na história dos Estados Unidos ou a pensar sobre suas implicações práticas e/ou teóricas nas experiências estadunidenses com poderes discricionários e exceções ao estado de direito. De tal modo que o livro apresenta tanto perspectivas teóricas como estudos de caso.

Na primeira parte do livro destaca-se a contribuição da já mencionada Nomi Claire Lazar (Yale College), que apresenta as definições de estado de exceção, apontando as fundamentações teóricas que orientam a coletânea. Situando a perspectiva de Carl Schmitt, Lazar reflete sobre os distintos sentidos moral, legal e político da exceção. Para a autora, os Estados Unidos nunca vivenciaram um estado de exceção nos preceitos de Schmitt, mas ressalta que o grande perigo colocado por sua ideia é o de se erodir a legitimidades das instituições republicanas. Já David Dyzenhaus (University of Toronto), que encerra a primeira parte do livro, sustenta em seu capítulo que o apelo a normas legais pode se tornar vazio na sustentação das instituições, se um regime abandonar seus compromissos com o estado de direito. No entanto, caso esse compromisso seja claramente mantido, as políticas constitucionais podem ser flexíveis e fortes o suficiente para lidar com emergências sem o ferimento de princípios constitutivos básicos. Ou seja, como apontam os organizadores na introdução do livro, é possível que haja espaço para a exceção nas democracias liberais, desde que hajam instituições fortes e compromissadas com o Estado de direito.

Na segunda parte do livro, os capítulos se dedicam a estudos de casos da teoria e da prática dos poderes emergenciais na história dos Estados Unidos, com um recorte temporal que se estende da independência até meados do século XX. Nos seis textos que compõem essa parte da coletânea, destacam-se os capítulos de autoria de John Fabian Witt (Yale College) e de Joel Isaac (University of Chicago). Ambos revelam que a distinção entre o ordinário e o extraordinário não é tão clara quanto se poderia supor, ressaltando, então, os riscos oferecidos nas evocações da exceção. O primeiro deles, To Save the Country: reason and necessity in constitutional emergencencies, é uma contribuição para as reflexões teóricas em torno dos poderes emergenciais. Witt recupera ideias do teórico Francis Lieber acerca dos poderes emergenciais em tempos de guerra que constroem uma forte defesa à discrição presidencial e que sustentam que uma cultura de governo constitucional é indispensável para a preservação do estado de direito nos momentos de excepcionalidade.

Já o texto Constitutional Dictatorship in Twentieth-Century American Political Thought recupera interpretações em torno da noção de ditadura que são importantes para a compreensão do contexto global de Guerra Fria na segunda metade do século XX. Isaac demonstra que a noção romana de ditadura foi retomada com adaptações para a preservação de princípios constitucionais liberais, embora as emergências do século tivessem poucos precedentes. As crises da contemporaneidade, inclusive, são distintas daquelas da antiguidade, tendo que lidar não apenas com guerras, mas também com sérios problemas econômicos. Nesse sentido, os governos precisam delegar poderes legislativos com aspectos de “ditadores constitucionais” (constitutional dictators), expressão utilizada pelo autor, para reviver o crescimento econômico, e não apenas para garantir a existência do regime. Logo, descortina um novo tipo de abordagem da exceção, passando por questões inerentes às relações econômicas do mundo capitalista. No Brasil, essa é uma ideia que já havia sido explorada por Rafael Valim (2017) ao abordar como o neoliberalismo contribui para criação de condições de excepcionalidade na sociedade.

Por fim, a última parte do livro explora em seus três capítulos como as noções de estado de exceção aparecem nas práticas das políticas liberais. Destaca-se o capítulo final, Spaces of Exception in American History, de autoria de Gary Gerstle e Desmond King (University of Cambridge). Nesse texto há uma contribuição para a noção especial da exceção em que os autores consideram exceções como sentidos de exercer o poder negando ou circunscrevendo direitos e outros estatutos legais. Assim, esses espaços não dependeriam de uma suspensão da lei ou a declaração de poderes emergenciais, ao modo schmittiano, eles se tornaram partes duráveis da política e da governança liberal que são muito poderosas, quando não reconhecidas.

Em suma, States of Exception in American History contribui para o debate com noções históricas, teóricas e práticas que nos alertam para uma crescente incorporação de medidas de exceção que, além de normatizadas, são normalizadas. Com análises pioneiras e muito relevantes em perspectiva histórica, os organizadores apresentam um avanço do debate em relação aos pressupostos de exceção nas reflexões de Carl Schmitt e de Giorgio Agamben. O livro é, então, uma robusta contribuição para o debate historiográfico acerca das relações entre o Estado de direito e o estado de exceção. Tornando-se, assim, uma abordagem importante para juristas, filósofos, historiadores e cientistas sociais em geral que procuram caminhos mais concretos de compreensão das práticas de medidas de exceção e de suas incorporações no direito contemporâneo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

GERSTLE, Gary, e Joel Isaac, edit. States of Exception in American History. Chicago: University of Chicago Press, 2020.

GREENE, Alan. Permanent States of Emergency and the Rule of Law: constitutions in an age of crisis. Oxford: Hart, 2018.

FRANKENBERG, Günter. Técnicas de Estado: perspectivas sobre o Estado de direito e o estado de exceção. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

LAZAR, Nomi Claire. States of Emergency in Liberal Democracies. New York: Cambridge University Press, 2009.

SAINT-BONNET, François. L’État d’Exception. Paris: PUF, 2001.

TAVARES, Marcelo Leonardo. Estado de Emergência: o controle do poder em situações de crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

VALIM, Rafael. Estado de Exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo: Contracorrente, 2007.


Resenhista

Antonio Gasparetto Júnior – Pós-doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estágio de doutoramento (Chercheur Invité) na Université Paris IV – Sorbonne. Professor do Mestrado Profissional em Administração Pública (PROFIAP/UFJF), Professor Formador na Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor substituto no Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG). É autor, dentre outros livros, de “Democracia e estado de exceção: entre o temporário e o permanente” (CRV, 2020), “Atmósfera de Plomo: las declaraciones de estado de sitio en la Primera República brasileña” (Tirant lo Blanch, 2019) e “História constitucional brasileira: usos e abusos das normas” (Multifoco, 2017). Suas pesquisas concentram-se em temas como autoritarismo, estado de exceção, história do direito, direitos e administração pública. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-7844-0055


Referências desta Resenha

GERSTLE, Gary; ISAAC, Joel (Eds). States of Exception in American History. Chicago: University of Chicago Press, 2020. Resenha de: GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Teoria e prática dos estados de exceção na história dos Estados Unidos. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.1, p. 445-449, 2021. Acessar publicação original [DR]

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