Tempos de Vieira e de Machado | ArtCultura | 2008

Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.1

– Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

Ah! Indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante.

Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.2

Entre os dias 18 e 19 de setembro de 2008, ocorreu, na UFU, um dos eventos anuais do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política (NEPHISPO/UFU). Tratou-se de um “coloquinho” – como apelidamos – que visava refletir a respeito da Literatura Brasileira e de seus cânones, aproveitando, particularmente, as circunstâncias das comemorações centenárias de nascimento e de morte, respectivamente, de Antônio Vieira e Machado de Assis. Um “coloquinho” sobre dois gigantes; melhor alegoria que essa não poderia haver para um grupo pequeno que debatia, naqueles dias, não só a respeito das obras desses escritores, mas principalmente a respeito dos mundos vastos e heterogêneos dos quais eles são parte: especialmente a Literatura e a História.

“Tempos de Vieira e Machado: autoridades e autorias” foi o título escolhido. Nele, ancorava-se uma concepção de evento. Quando se chegou a este título (a esta concepção), o grupo do NEPHISPO percebeu o que queria com o colóquio: não queria falar de Vieira e de Machado, mas de seus tempos. Mas isto era ainda mais do que esquadrinhar seus contextos biográficos, sociológicos ou de produção literária: desejava-se entrar nos tempos das tradições que emulavam, nos tempos de circulação de suas obras, nos tempos da crítica literária e da historiografia, que os leram e releram; buscava-se, enfim, os tempos múltiplos que lhes conferiam autoridade e lhes transformavam em auctores.

Pode não parecer tão óbvio (como não é), mas o processo de constituição de cânones literários é tão baseado em preceitos estéticos (estilísticos) ou poéticos quanto em princípios éticos e em fenômenos políticos. Nesse sentido, sem fazer tabula rasa das dimensões propriamente artísticas dos objetos retóricos e literários (tais como sermões vieirinos e romances machadianos, por exemplo), as discussões do colóquio situavam-nos nas complexas tramas que os instituíram e os vêm instituindo como referências da Literatura lusófona e, particularmente, brasileira. Imagens mobilizadas nas obras de Vieira e de Machado bem como imagens que dela são e foram construídas e as relações que mantêm com instituições de saber/poder foram exploradas e problematizadas durante os dois dias do colóquio.

É uma síntese do “coloquinho” que se apresenta neste dossiê. Quase todos os textos apresentados encontram-se aqui reunidos na forma de artigos. Infelizmente, não temos como publicar os comentários, perguntas e polêmicas que surgiram naqueles dois dias e, tampouco, o clima cordial, agradável e verdadeiramente acadêmico que lhe fornecia espaço. Que fique ao menos registrada a gratidão do grupo com todos aqueles que colaboraram direta e indiretamente para a concretização daquela experiência. Institucionalmente, devemos reconhecer o fundamental apoio financeiro e logístico da FAPEMIG e do INHIS/UFU. No conjunto dos cinco textos aqui publicados, os leitores de ArtCultura não se depararão simplesmente com mais alguns dos muitos textos já existentes sobre Vieira e Machado. Neles, também não serão vistos resíduos de celebração panegírica. Neste dossiê, serão encontradas reflexões sobre o tempo em história e na literatura, levando-nos a considerar conceitos tais como os de retórica, mistério, autoria, anacronismo, crítica, imitação, autenticidade, poder, modernidade, contemporaneidade, teologia… Sem dúvida, este dossiê faz jus à memória literária de seus “homenageados” sem celebrá-los, mas, antes, pensando com eles. Boas leituras!

Notas

1 VIEIRA, Vieira. História do futuro, Brasília: Editora da UnB, 2005, p. 133.

2 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 18. ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 59 e 60.


Organizador

Guilherme Amaral Luz – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Política (Nephipo) e do grupo Educação, História e Cultura: Brasil, 1549-1759 (Deschubra). Autor de Carne humana: canibalismo e retórica jesuítica na América portuguesa (1549- 1587). Uberlândia: Edufu, 2006. E-mail:  [email protected]


Referências desta apresentação

LUZ, Guilherme Amaral. Tempos de Vieira e Machado: autoridades e autorias. ArtCultura. Uberlândia, v. 10, n. 17, jul./dez. 2008. Acessar publicação original [DR]

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