The Caravan: Abdallah ‘Azzam and the rise of the global jihad | Thomas Hegghammer

O livro The Caravan: Abdallah ‘Azzam and the rise of the global jihad, publicado no início de 2020, une dois nomes que pesquisadoras e pesquisadores interessados pelo movimento jihadistas irão, em algum momento, se deparar: Thomas Hegghammer e Abdallah ‘Azzam (1941-1989). Hegghammer é doutor em Ciência Política e um dos principais autores sobre jihad; seus trabalhos versam sobre a jihad na Arábia Saudita (2007; 2010), o fenômeno dos combatentes estrangeiros no islã (2006; 2009; 2010; 2013; 2020) e, mais recentemente, a cultura jihadista (2017). ‘Azzam, doutor em princípios da jurisprudência islâmica, foi um dos mais importantes teóricos jihadistas do século XX e, por sua atuação na Guerra do Afeganistão (1979-1989), ficou conhecido como o “pai dos mujahidins” – combatentes da jihad. A obra explora uma miríade de eventos e processos, tendo como fio condutor a trajetória do clérigo. O objetivo de Hegghammer é examinar a relação entre ‘Azzam, o mundo em que esteve inserido e a globalização da jihad.

Por jihad global entende-se o fenômeno de mudança na percepção de inimigo em organizações jihadistas; dos regimes locais à declaração de guerra contra os EUA e o Ocidente. É importante ressaltar que o conceito religioso de jihad precede em séculos a ideia de nação e foi utilizado como parte da expansão religiosa desde o século VII. Contudo, a partir dos anos de 1960, a jihad foi proposta como forma de resistência aos regimes seculares no mundo muçulmano, especialmente, no Egito (COOK, 2005).

Durante a Guerra do Afeganistão, os contingentes muçulmanos imigrantes contribuíram para a vitória sobre a URSS. Esse processo é considerado fundamental para o estabelecimento de redes e, para a mudança de percepção sobre os problemas enfrentados pelos fiéis. Nos anos 1990, estratos islâmicos sectários defenderam que a religião ainda estaria sob ataque do Ocidente e, portanto, seria necessário revidar (GERGES, 2005; WEISMANN 2017a; 2017b; WIKTOROWICZ 2006;). Nesse sentido, o processo de globalização está mais ligado às posturas políticas de grupos jihadistas no fim do século XX do que ao conceito religioso. Diferente da tendência inaugurada pelo trabalho seminal de Fawaz Gerges, The far enemy: why jihad went global (2005), centrada na formação da al Qa’idah no final da guerra, o argumento de Hegghammer se destaca por voltar-se, especificamente, para o conflito e seu principal ideólogo.

Ao longo de dezesseis capítulos, o corpus documental evidencia a profundidade da pesquisa conduzida durante dez anos e que acessou materiais nunca explorados em trabalhos acadêmicos sobre a jihad. Textos acadêmicos e políticos do teórico, correspondências, documentos internos, entrevistas com o filho, com a viúva e com jihadistas importantes e, até mesmo, boletins escolares são mobilizados para compor a narrativa da primeira biografia de Abdallah ‘Azzam fora do eixo hagiográfico islâmico.

Cada capítulo aborda um aspecto do itinerário de ‘Azzam e, para nossa análise segmentamos a obra em quatro partes. A primeira inclui a vida do teórico antes de sua participação no conflito: “Palestino”, “Irmão Muçulmano”, “Guerreiro”, “Acadêmico”, “Andarilho” e “Escritor”. O argumento central é que a influência de ‘Azzam esteve ligada às suas credenciais.

Nascido em 1941, em West Bank, ‘Azzam sofreu desde a infância e dispunha da Nakba – a Catástrofe Palestina – como ativo político. Em decorrência, aos treze anos vinculou-se à Irmandade Muçulmana – organização islamista egípcia fundada em 1928 e com forte engajamento político. Para Hegghammer, essas duas características fizeram de ‘Azzam um personagem errante.

A trajetória acadêmica de ‘Azzam reforça a sua condição andarilha. O acadêmico concluiu seu ensino básico na Palestina (1957), graduou-se como professor na Jordânia (1960), fez mestrado em Shar’iah em Damasco (1966) e concluiu seu doutorado no Cairo (1973). Além das constantes mudanças, a sua formação foi também interrompida pela participação na resistência Fedayin entre 1969 e 1970. Hegghammer descreve um professor carismático, cuja produção acadêmica foi marcada pela defesa de um islã ativo socialmente, uma característica de intelectuais da Irmandade Muçulmana.

A segunda parte envolve aspectos pragmáticos da atuação de ‘Azzam a partir dos capítulos “Pioneiro”, “Diplomata”, “Administrador”, “Mujahid” e “Residente”. Foi por seu engajamento que ‘Azzam foi expulso da Jordânia em 1980. O clérigo passou um breve período lecionando na Arábia Saudita e, em 1981, partiu para o Paquistão. Segundo Hegghammer, até 1984 ‘Azzam tentou apoiar os mujahidins pregando em favor da resistência afegã. Contudo, o palestino não era o único a fazê-lo, outras organizações como a Liga Islâmica Mundial também assumiram um discurso pró-mujahidins a partir de 1980. A singularidade de ‘Azzam foi, justamente, a participação em Peshawar, na fronteira com o Afeganistão. Valendo-se de suas credenciais, e com apoio financeiro de Usama Ibn Ladin (1957-2011), com quem se relacionava desde 1978, ‘Azzam fundou o Maktab al-Khidamat (MAK), Escritório de Serviços, em 1984.

O MAK é fundamental para compreender o fenômeno dos combatentes estrangeiros muçulmanos. Por meio do MAK estrangeiros chegavam, eram treinados e enviados para ajudar grupos afegãos. Em outras publicações, Hegghammer mostra que até sua fundação, o número de estrangeiros que participaram do conflito aproximava-se de cem indivíduos, no fim da guerra o contingente estimado alcançava entre cinco e vinte mil (HEGGHAMMER, 2010). Com o livro, conhecemos uma estrutura quase caótica. Hegghammer aponta como o clérigo foi um combatente tímido, que passava a maior tempo produzindo propaganda em Peshawar. Ademais, a posição do teórico preconizava a educação enquanto a maioria dos migrantes, incluindo Ibn Ladin, se interessava pela ação.

A terceira parte foca nas duas principais características atribuídas ao teórico “Recrutador” e “Ideólogo”. A obra reafirma ‘Azzam como um recrutador eficiente, apresentando como seus escritos influenciaram e influenciam a migração para zonas de conflito. Hegghammer identifica em ‘Azzam um autor prolixo e foca em três obras de destaque. Signs of arRahmann in jihad of Afghanistan (1983), um compilado de relatos de sinais de favorecimento divino à causa afegã. Assim como Darryl Li (2012), Hegghammer defende que o texto introduz a martirologia no sunismo salafista. Além disso, mostra como após a sua publicação, relatos sobre mártires se popularizaram entre militantes islamistas.

Publicado em 1985, Defense of the muslim lands também recebe atenção. Na obra, ‘Azzam propôs que quando os muçulmanos são atacados, defendê-los é uma obrigação individual de cada fiel. Hegghammer percebe um efeito cascata; por ser uma obrigação individual não há autoridade que possa impedir a jihad. Para o autor, de algum modo, ‘Azzam construiu o argumento para a deslegitimação dos intelectuais e das autoridades, viabilizando uma postura mais autossuficiente de cada jihadista. Por fim, o pesquisador analisa a publicação de 1987 – Join the Caravan, à qual o título do livro faz alusão. Hegghammer sublinha como o texto compõe o léxico jihadista desde sua publicação e tornou-se, em suas palavras, um clássico instantâneo. Para o autor, o carisma professoral transparece na escrita e em palestras de ‘Azzam, ao que se soma, a pertinência dos temas, a erudição do teórico e as suas conexões, elementos que favoreceram a disseminação do pensamento do palestino.

Por fim, a quarta parte trata do legado do palestino “Inimigo”, “Mártir” e “Ícone”. A morte de ‘Azzam em um atentado a bomba no centro de Peshawar, em novembro de 1989, é um grande mistério. Hegghammer, em “Inimigo” e em “Mártir”, avalia os possíveis perpetradores: governos locais, outros jihadistas e Israel. Os últimos capítulos assumem uma postura especulativa e o autor conclui que o mais provável seria uma execução orquestrada pela inteligência paquistanesa. Ao mesmo tempo, o autor mostra que a morte do teórico contribuiu para construir narrativas muito positivas a seu respeito. O Hamas e al Qa’idah reclamam a memória de ‘Azzam e, segundo Hegghammer, nenhuma organização jihadista ousaria se opor ao teórico aberta e publicamente.

Segundo Alexandre de Sá Avelar (2011) a historiografia do século XX, sob influência da segunda geração dos Annales, foi hostil ao gênero biográfico, considerando-a uma tradição antiquada. Além disso, as fontes supostamente restringiriam a narrativa aos grandes nomes do passado. Tal qual a história política, segue o autor, a biografia foi reabilitada em fins do mesmo século. No bojo das mudanças epistemológicas da História, e a partir das críticas de Pierre Bourdieu (1996), a biografia histórica rompeu com a linearidade e análise de trajetórias periféricas tornou-se o fio condutor por meio do qual as complexidades do passado são acessadas. Thomas Hegghammer não faz uma reflexão teórica sobre a biografia, a bibliografia também não apresenta uma referência nesse sentido. O texto é construído para ser acessível a um público mais amplo, nem por isso deixa de ser uma leitura densa. Ademais, algumas considerações de Avelar podem ser transpostas para The Caravan.

De partida, biografias são incomuns nos estudos de jihad. A escassez de fontes e análises centradas na teologia fazem com que trajetórias de acadêmicos jihadistas sejam mobilizadas para a investigação de suas produções intelectuais. Essa tendência se mantém em The Caravan, mormente nos capítulos sobre sua produção acadêmica e política. Contudo, Thomas Hegghammer vale-se de conjunto documental variado e inédito em língua não árabe para explorar Abdallah ‘Azzam para além do teórico. Cada capítulo narra um ‘Azzam diferente e por isso não há cronologia fixa. Essa escolha metodológica é fundamental para romper com a linearidade denunciada por Bourdieu.

O ‘Azzam biografado por Hegghammer tem uma trajetória acidentada, e suas ações e seu legado são avaliados por múltiplas vias. Com base nisso, o autor evidencia que ‘Azzam não pode ser considerado um jihadista global, mas um defensor intransigente da solidariedade entre muçulmanos: alguém que preparou o solo para a jihad global florescer. Ademais, ‘Azzam, para o Ocidente, é um personagem grandioso e periférico ao mesmo tempo. Um palestino, que foi expropriado e resistiu como tantos outros. O teórico prolixo e fundamental para o desenvolvimento de uma teoria jihadista transnacional, mas, que após 11 de setembro de 2001 foi reduzido a sua ligação com Ibn Ladin.

A obra é bastante eficiente explorando esse caráter dual: um grande nome da jihad nos anos de 1980, eclipsado pelos atentados de 2001. Nos capítulos finais, Hegghammer faz um exercício contrafactual de imaginar o que teria ocorrido com o clérigo caso não tivesse sido assassinado e como ‘Azzam avaliaria a al Qa’idah – criada por membros do MAK – e o 11 de setembro. Segundo o cientista político Richard Ned Lebow (2015) o exercício contrafactual tem valor analítico quando pautado na plausibilidade, articulando realidade e especulação. Ao utilizar tal expediente, Hegghammer revela suas interpretações sobre ‘Azzam. O ‘Azzam narrado pelo norueguês teria conflitos éticos e religiosos com o uso da violência, ainda que concordasse com as motivações. Hegghammer evidencia sua percepção sobre o clérigo como um homem de fortes convicções e comprometido com a observância dos preceitos islâmicos.

Em suma, The Caravan é uma narrativa muito bem fundamentada em fontes que a imensa maioria dos pesquisadores não terá acesso, que explora a trajetória de um dos principais expoentes do pensamento jihadista contemporâneo. Ainda que manifeste uma preocupação em ser acessível, Thomas Hegghammer produziu uma narrativa que problematiza e complexifica o seu biografado. O resultado é um livro obrigatório para compreendermos o terrorismo islamicamente orientado, o fenômeno dos combatentes estrangeiros e conceito de jihad no final do século XX e início do XXI.

Referências

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Resenhista

Gilvan Figueiredo Gomes – Formado em História pela UNICENTRO (2016), mestre em História do Tempo Presente pela UDESC (2019). Suas pesquisas versam sobre a Teoria Jihadista no final do Século XX e início do XXI. Se interessa também por produções midiáticas jihadistas, culturas jihadistas e culturas de jihad. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

HEGGHAMMER, Thomas. The Caravan: Abdallah ‘Azzam and the rise of the global jihad. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2020.  Resenha de: GOMES, Gilvan Figueiredo. Junte-se à caravana: o mito de Abdallah ‘Azzam e o (re)nascimento da Jihad Global. Tempos Históricos. Marechal Cândido Rondon, v.25, n. 2, p.309-316, 2021. Acessar publicação original [DR]

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