Times of Terror: Discourse/ Temporality and the War on Terror | Lee Jarvis

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 foram alvo de intenso debate ao longo dos últimos anos. Diversos foram os analistas que, por meio dos mais distintos vieses teóricos e metodológicos, procuraram avaliar o que aconteceu, o que mudou e o que se manteve inalterado no sistema internacional. Todavia, retomando a profícua distinção proposta por Lynn-Doty (1993) entre perguntas do tipo por que (why-questions) – interessadas em investigar porque determinadas ações e/ou decisões foram tomadas – e perguntas do tipo como (how-questions), cuja meta é entender como sentidos são produzidos e dados aos mais diversos sujeitos sociais, podemos argumentar com certa segurança que este ultimo tipo de pesquisa associado à Guerra ao Terror se desenvolveu apenas mais recentemente na área de Relações Internacionais. O livro ora resenhado é uma valiosa tentativa nessa segunda linha.

Fruto do doutoramento de Lee Jarvis, professor da Swansea University, especialista em segurança internacional, política externa norte-americana e análise discursiva, a obra em questão procura abordar as representações e as performances relacionadas à temporalidade nos discursos da Guerra ao Terror. Em outras palavras, como a questão do tempo foi apresentada pelas mais diversas autoridades norte-americanas e quais as implicações dessas representações na prática política. A partir de um corpus discursivo de mais de 600 documentos oficiais, de órgãos como a Casa Branca, o Departamento de Estado, o Departamento de Defesa, o Departamento de Justiça e o Departamento de Homeland Security, o autor afirma que:

Este livro oferece uma tentativa de traçar as formas como pressupostos particulares sobre um conhecimento privilegiado de temporalidade foram centrais para a percebida necessidade, legitimidade, coerência e política identitária da Guerra ao Terror (Jarvis, 2009, p.p 15).

Nota-se, portanto, que as metas arroladas pelo autor coadunam-se com os pressupostos do que convenciou-se chamar de Virada Linguística: o movimento que busca romper com a concepção representacionalista da linguagem, afastando-se da idéia de que esta seria única e exclusivamente um reflexo das condições materiais da sociedade. Trata-se de uma tentativa de demonstrar a importância dos discursos para a estabilização de significados que seriam instáveis e contingentes. Nesse sentido, o papel do analista não é descortinar o discurso, encontrar o que as pessoas realmente querem dizer ou mesmo descobrir uma realidade para além do discurso; a tarefa do analista é trabalhar com o que foi dito ou escrito, explorando padrões entre e através dos discursos e identificar as conseqüências sociais de diferentes representações discursivas da realidade. Nas já famosas palavras de Laclau e Mouffe (1985, p.118):

Um terremoto ou a queda de um tijolo é um evento que certamente existe, no sentido de que ocorrem aqui e agora, independentes da minha vontade. Todavia, se a especificidade deles é construída em termos de ‘fenômenos naturais’ ou ‘expressões da ira de Deus’, depende da estruturação de um campo discursivo.

Com esse embasamento teórico, apresentado ainda na introdução do livro, Jarvis adianta a sua hipótese: segundo o autor, representações particulares de temporalidade foram centrais para que a administração George W. Bush (2001-2009) pudesse transformar a Guerra ao Terror num esforço possível, legítimo, coerente e com sentido. Explorar estas concepções de tempo permitiria entender quais sentidos foram criados para tamanho esforço bélico, além de deixar claro que se este conflito foi compreendido como o embate entre bem e o mal, civilizados e bárbaros, tal fato deve-se a uma construção política e nada tem de natural.

A obra está estruturada em seis capítulos, extremamente claros, muito bem divididos e esquematizados. Na introdução, Jarvis apresenta seus objetivos, pressupostos teóricos e metodológicos além da estruturação prévia do livro, abordando en passant as hipóteses e análises dos capítulos que se seguirão. O capítulo 02 nos traz uma discussão sobre a existência social, discursiva e histórica da temporalidade, deixando de lado concepções do tempo como uma realidade objetiva, exterior às nossas subjetividades. Os capítulos 03, 04, 05 são o núcleo do livro, nos quais o autor apresenta as concepções de temporalidade presente na Guerra ao Terror: descontinuidade radical (radical discontinuity), tempo linear (linear times) e atemporalidade (timelessness). Por fim, o capítulo 06 aborda as implicações das discussões supracitadas para se pensar políticas de contra-terrorismo, identidade, violência e temporalidade.

Na primeira acepção de temporalidade, descontinuidade radical, o autor apresenta o 11 de setembro como um marco histórico mundial, um evento que diferencia um antes e um depois, criando-se a impressão de que a vida anterior aos atentados nunca mais voltaria. Essa leitura é dividida em três interpretações, todas relacionadas à descontinuidade. Primeiramente, o 11 de setembro como um aviso ou lição, ou seja, a apresentação desse evento como uma abrupta mudança que caracterizaria o fim de um ambiente de segurança convencional, com inimigos que pudessem ser contidos, para um novo ambiente de vulnerabilidade e inimigos desconhecidos. Em segundo lugar, o 11 de setembro como declaração de guerra, ou seja, um momento em que os EUA e seus aliados são catapultados a um conflito inteiramente imprevisto e instigado por terceiros. Finalmente, o 11 de setembro como momento de autotransformação, no qual a população americana deixaria de ser materialista e hedonista e se transformaria, sacrificando-se, unindo-se e assumindo responsabilidades para superar tamanha violência. Em suma, enquanto a era pré-11 de setembro seria caracterizada pela segurança, paz e uma população americana individualista, agora teríamos um período de insegurança, guerra e coesão social.

Compreendidos dessa forma, os atentados excluem outras possibilidades de leitura e interpretação dos fatos. Conforme argumenta o autor, ao moldar o ambiente em termos de descontinuidade e imprevisibilidade, o governo norte-americano procurou estruturar suas reações como inevitáveis (a guerra começou com o 11 de setembro), necessárias (era preciso confrontar este novo ambiente imprevisível) e justas (os EUA estavam sob ameaça de futuros ataques). Assim, legitimaram-se medidas controversas ou mesmo de exceção para se combater o inimigo, abriu-se espaço para se agregar outras ameaças não convencionais à Guerra ao Terror além de se justificar as ações militares dos EUA na medida em que se nega qualquer capacidade de agência ao governo Bush nessa declaração de guerra.

A segunda leitura, linearidade temporal, é também dividida. Em primeiro lugar, temos uma continuidade, na medida em que o 11 de setembro é enquadrado em um mesmo continuum linear e perceptível de violências terroristas. Dito de outra forma, procurou-se enquadrar os atentados como mais um capítulo de atentados terroristas cometidos na história mundial. Uma segunda leitura apresenta os atentados como um retorno a uma normalidade moderada, ou seja, a despeito dos atos perpetrados, a vida retornaria ao normal, devido às ações governamentais e ao espírito do povo americano. Por fim, temos a idéia de progressão: ainda que os desafios sejam grandes e o inimigo desconhecido, a vitória frente aos terroristas é inevitável. Da mesma forma que a leitura anterior, esta leitura dos fatos exclui outras possibilidades, principalmente ao apresentar apenas uma trajetória histórica sobre o terrorismo, o que impede que a diferença entre os distintos atos conectados sejam apreciadas, além de despolitizar as ações norte-americanas antes e após os atentados e demonizar os agentes terroristas. Ademais, normalidade e progressão dariam segurança política às ações realizadas durante a Guerra ao Terror e ainda que não fosse possível precisar o local específico do fim desse conflito, teríamos ciência da sua direção e de seu resultado.

A ultima leitura, atemporalidade, mostra como a administração Bush fez uso de uma concepção do tempo como um lugar de recorrência e imutabilidade. Aqui, teríamos duas visões: uma batalha perene entre bem e mal e outra entre liberdade e medo. Enquanto teríamos, de um lado, uma visão que reduziria o conflito a um momento da eterna luta maniqueísta entre bem e mal, sem qualquer história e política próprias, de outro, encontraríamos um conflito sem história própria, mais um capítulo nos combates que já ocorreram ao longo do tempo pela liberdade. Assim, a administração norte-americana poderia posicionar a Guerra ao Terror como um conflito moralmente legítimo, no qual a inação seria uma abdicação inconcebível de um imperativo absoluto. Ademais, e mais uma vez, essa leitura poderia ser entendida como uma forte tentativa de se excluir qualquer resistência à Guerra ao Terror, escondendo quaisquer problemas que porventura viessem a ocorrer sob o guarda-chuva de uma disputa perpétua.

Um ponto, contudo, precisam ser levantado. Ainda que a obra de Laclau e Mouffe (1985), principal alicerce teórico do autor, seja conhecida de boa parte daqueles interessados em análise discursiva, a apresentação dos pressupostos e conceitos dos autores é pouco aprofundada por Jarvis. Por exemplo, temas e conceitos como articulação, momentos e exclusões são pouco abordados e poderiam contribuir muito para uma melhor apreensão do arcabouço teórico que será utilizado. Segundo Laclau e Mouffe (1985, p.105):

Chamaremos articulação qualquer prática estabelecendo uma relação entre elementos até que sua identidade seja modificada como resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada resultante da prática articulatória chamaremos de discurso. As diferenças posicionais, na medida em que apareçam articuladas dentro do discurso, chamaremos de momentos.

Da obra dos autores, e parcialmente da citação acima, temos a concepção de discurso como uma redutor de possibilidades, uma tentativa de se fixar um sistema unificado de significados em detrimento de tantas outras alternativas. Por isso, para os autores – e também para Jarvis – o que é excluído é importante, e tudo o que um discurso exclui é chamado de campo da discursividade. Para Laclau e Mouffe, portanto, o discurso é um fechamento, uma parada temporária na flutuação dos sentidos dos signos. Todavia, o fechamento nunca é definitivo: o discurso não pode ser completamente fixado pois ele sempre entrará em conflito com a multiplicidade de sentidos presentes no campo da discursividade. Assim, o discurso é um fechamento temporário, porquanto fixa um sentido numa forma particular mas não dita como esse sentido será fixado eternamente. Essas questões, da mesma forma que outros pontos na teorização de Laclau e Mouffe, poderiam ter sido mais bem aprofundadas. Para aqueles familiarizados com esta discussão, percebe-se que Jarvis segue as idéias dos autores, ainda que não as tenha apresentado de forma mais clara.

Inobstante a ausência de uma exposição desse porte, o livro é uma contribuição bastante valiosa para a área por, no mínimo, três razões. Primeiramente, a leitura deixa claro que os sentidos que rondam o 11 de setembro nada tem de natural ou essencial; são construções políticas articuladas mediante o uso do discurso. De forma análoga à Laclau e Mouffe, Jarvis não nega que as Torres Gemeas foram atacadas; contudo a leitura daquele evento como uma luta perene entre o bem e o mal, civilizados e bábaros, ou um choque de civilizações depende da articulação do campo discursivo e da exclusão de outras possibilidades. Em segundo lugar, o autor nos mostra como a questão do tempo e sua concomitante articulação foi um fator de fundamental importância para se inserir sentido, coerência e legitimidade à Guerra ao Terror, além de apresentar as conseqüências políticas dessas representações. Por fim, ao mostrar as potencialidades da associação entre a análise discursiva e as Relações Internacionais, Jarvis ilumina uma seara extremamente frutífera para futuras pesquisas sobre o uso da linguagem em nossa área.

Referências

LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal (1985). Hegemony and Socialist Strategy: towards a radical democratic politics. London: Verso.

LYNN-DOTY, Roxanne (1993). “Foreign Policy as Social Construction: a Post-Positivist analysis of U.S. Counterinsurgency Policy in Philippines”. International Studies Quarterly, vol. 37, p.p. 297-320.


Resenhista

Áureo de Toledo Gomes – Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

JARVIS, Lee. Times of Terror: Discourse, Temporality and the War on Terror. Basingstoke: Palgrave, 2009. Resenha de: GOMES, Áureo de Toledo. Meridiano 47, v.12, n.123, p.48-51, jan./fev. 2011. Acessar publicação original [DR]

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