Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco – SOUZA; MENDES (TES)
SOUZA, Helton Saragor de; MENDES, Áquilas (orgs). Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco. Rio de Janeiro: DOC Content, 2016. 116p. Resenha de: LIMA, Júlio César França. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.3, set./dez. 2017.
Esse livro é o encontro de diversos campos de conhecimento na abordagem do trabalho de enfermagem no capitalismo contemporâneo, tais como, Economia, Sociologia, Saúde Coletiva e Enfermagem. Embora diferenciados, os quatro capítulos se organizam em torno de um eixo central que é a perspectiva de classe inspirada no materialismo histórico-dialético sobre o trabalho em saúde e os serviços em geral. São textos que, apesar de serem de campos disciplinares diferentes e independentes entre si, são complementares, visto que a categoria trabalho serve de base a todos.
Abrindo a coletânea, Áquilas Mendes analisa “os limites dos direitos sociais trabalhistas e do financiamento da seguridade social no Brasil, com destaque para a Saúde, no contexto do capitalismo contemporâneo e sua crise” (p. 16). Seu pressuposto é que o fundamento da atual crise capitalista se explica por duas principais tendências articuladas entre si. A primeira é a queda da taxa de lucro que se verifica nas economias capitalistas centrais desde o fim da década de 1960, decorrente do crescimento do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo na produção do valor. A segunda tendência é o crescimento da esfera financeira comandado pelo capital portador de juros na sua forma de capital fictício a partir dos anos 1980, também conhecida como ‘financeirização’.
Os efeitos dessas duas tendências nos direitos sociais, no financiamento da seguridade social e, particularmente, do Sistema Único de Saúde (SUS) não se resumem aos cortes nos gastos sociais, mas trata-se principalmente de uma mudança na organização do sistema de proteção social no Brasil, segundo os interesses do capital. Em se tratando dos direitos dos trabalhadores, o autor enumera diversas medidas que foram tomadas ainda no governo Dilma Rousseff, em nome do ajuste fiscal e da realização de superávits primários. Com relação aos impasses no financiamento da seguridade social e do SUS, estes decorrem do peso do capital portador de juros no orçamento federal; da permanência do mecanismo de desvinculação das receitas da união (DRU), renovada e estendida de quatro para oito anos com aumento do percentual de retirada das receitas do orçamento da seguridade social de 20% para 30%, sob orientação do atual governo; dos incentivos financeiros públicos à saúde privada, entre outros.
Quando o autor escreveu o capítulo ainda não tinha sido aprovada a PEC 241 que congelou os gastos do Governo por vinte anos, o que agrava ainda mais o quadro de subfinanciamento que descreve. De todo modo, permanecem válidas as propostas de enfrentamento nesse contexto de acumulação financeira do capitalismo. Entre elas, a mudança da política econômica que prioriza o pagamento de juros da dívida pública e a auditoria da dívida para possibilitar maiores recursos para a seguridade social.
O segundo capítulo, de autoria de Cassia B. Soares e colaboradores, discute “a prática social da Enfermagem na contemporaneidade, a partir de fundamentos marxistas, mais precisamente a partir das categorias trabalho e processo de trabalho” (p. 43). De início, discutem o trabalho em saúde em sua acepção ampla como trabalho coletivo que para os autores representa a ‘unidade do diverso’ e a síntese do ‘concreto pensado’. Em seguida, abordam o processo de trabalho de Enfermagem, particularmente dentro do hospital. A partir de Marx, elegem a categoria ‘cooperação’ para fundamentar a definição do processo de trabalho coletivo em saúde. A cooperação no trabalho em saúde detém a sua especificidade em relação ao trabalho industrial, na medida em que as tecnologias são diversas. Porém, em ambos os setores se mantém o fundamento da produtividade do conjunto dos trabalhadores e, da mesma forma que na indústria, na saúde a cooperação permite intensificar o processo de valorização e a reprodução do capital no setor.
O fato de ser um trabalho coletivo não implica falta de assimetria de poder e controle equânime entre as categorias profissionais, e a cooperação não pode ser dissociada da divisão social e técnica do trabalho. Desse último ponto de vista, os autores identificam que “o princípio da cooperação na manufatura é mais adequado para se aplicar em relação ao hospital do que a forma de cooperação na grande indústria, porque a base da manufatura ainda resguarda a base técnica do ofício” (p. 50). É um tipo de trabalho que reproduz a organização taylorista do processo de produção mais geral, mas que tem incorporado a lógica da organização toyotista, e que é hegemonizado desde a formação acadêmica pelos referenciais funcionalistas que retroalimentam a própria fragmentação do cuidado.
A partir das investigações de base marxista, os autores apontam diretrizes teórico-metodológicas para analisar o trabalho de enfermagem na contemporaneidade, tais como a necessidade de situá-lo em sua condição de classe social; a análise da divisão interna desse trabalho; a investigação do objeto de trabalho e a concepção teórica de saúde que sustenta a ação; a análise dos meios e instrumentos utilizados, assim como o trabalho em si e, particularmente, a organização do processo de trabalho.
Leonardo Mello e Silva, no capítulo 3, vai discutir como a Sociologia do Trabalho francesa trata a ‘relação de serviço’, que é diferente de tratar o setor de serviços na medida em que essa relação existe no interior do setor industrial e, ao contrário, alguns tipos de trabalho do setor serviços não praticam a relação de serviço. Enquanto uma relação particular que ocorre entre cliente e prestador do serviço, tem grande variabilidade, o que impossibilita uma medida objetiva em termos de comparabilidade e repetitividade, diferentemente da relação industrial. Indica ainda que a oposição entre o que é produtivo e improdutivo, como se houvesse uma separação entre uma ‘economia industrial’ e uma ‘economia de serviços’ deve ser repensada.
A economia de serviços para o autor detém uma especificidade onde três polos convivem: o primeiro identifica a prestação de serviço como uma atividade visando uma realidade a ser transformada; no segundo polo está o proprietário dessa realidade; e no terceiro se encontra o prestador da atividade. Dada a heterogeneidade das situações, essa relação não pode ser desconectada das posições de classe desses conjuntos sociais. Destaca ainda que a relação de serviço se presta a uma análise centrada nas cenas interativas entre prestador e cliente, o que elide os modos de dominação estrutural presentes na relação patrão-empregado, mas não elimina a relação de classe e os conflitos nas interações cotidianas.
Silva discute o que denomina de ‘sociologia da relação de serviço’, e considerando que o conceito de divisão do trabalho recoloca essa relação dentro de uma perspectiva abrangente, aponta que a “aplicação do conceito de taylorismo para os serviços é, pelo menos, incompleta, para não dizer inadequada” (p. 71). Ou seja, pode servir para certos tipos de trabalho que são padronizados e seguem um protocolo de atendimento ao cliente, mas considerando mesmo aí a possível variabilidade e interatividade que possa ocorrer, o trabalho em serviço evoca uma ‘racionalidade substantiva’ em oposição a uma ‘racionalidade instrumental’. Na atualidade, o que se verifica é a migração de critérios de racionalização da empresa privada para o serviço público, que tiveram que se enquadrar dentro do ritmo de um fluxo produtivo cada vez mais intenso. Para o autor, o desaparecimento da hierarquia típica da divisão do trabalho taylorista “vai de par com a transferência da responsabilidade do serviço para o cliente ou usuário” (p. 75). Daí que “pode-se entender a compatibilidade social do modelo de organização e gestão do trabalho de tipo fluxo tensionado (…) com o esquema de análise teórica da relação de serviço (…)” (p. 76).
Avançando na análise dessa relação, mas agora debruçando-se sobre o trabalho de enfermagem, vai apontar diversos aspectos da realidade cotidiana desse trabalho a partir do estudo de Helton Saragor de Souza, autor do quarto e último capítulo do livro.
O capítulo tem como base um estudo de caso sobre o trabalho das categorias de enfermagem em três formas de gestão hospitalar: administração direta, terceirizada sob gestão de organizações sociais (OSs) e hospital privado. Sua hipótese é que a lógica da financeirização aplicada ao setor gera sobrecarga e intensificação do trabalho para os profissionais da área, aliadas à baixa qualidade do atendimento, e que o trabalho “é organizado sob o paradigma de reatividade da demanda nos moldes do pós-fordismo, especificamente, sob o fluxo tensionado” (p. 88).
Além dos pressupostos econômicos que estão na base dessas mudanças, o autor critica a interpretação de que o trabalho de enfermagem seja organizado predominantemente sob a lógica taylorista-fordista, pois a simplificação e a padronização nesse tipo de trabalho sempre se defrontam com a variabilidade do contexto e das características do sujeito-usuário. Além disso, considera que “a racionalização do trabalho em Enfermagem não se enquadra na dinâmica do trabalho vivo em ato, que supõe o trabalho relacional com o usuário como um espaço de protagonismo ou liberdade do sujeito trabalhador” (p. 91), pois o trabalhador está submetido à lógica geral das relações capitalistas. Para ele, o princípio organizador se fundamenta na reativação da demanda, ou seja, é o número de pacientes e as exigências do cuidado que racionalizam o trabalho de enfermagem, e o controle não é exercido por um gerente, mas pelas próprias tarefas conjunturais se sanadas ou não. Esse tipo de racionalização se baseia no modelo flexível pós-fordista sob o capitalismo financeirizado, que tal qual o taylorismo visa aumentar a produtividade, a lucratividade e a acumulação do capital no segmento privado e racionalizar os gastos nos serviços públicos.
A perspectiva teórica adotada é do fluxo tensionado de Durand que combina o processo de produção e a organização do processo de trabalho com o regime de mobilização dos trabalhadores. Uma combinatória que pode ser representada por três polos: “a integração reticular (…), a generalização do fluxo tensionado (…) e o modelo de competência como novo regime de mobilização da mão de obra” (Durand, 2003, apud Souza, p. 99).
Após analisar os princípios que ordenam a gestão do trabalho a partir dessa combinatória nas três formas de gestão hospitalar, identifica duas formas de exploração dos trabalhadores: a sobrecarga e a intensificação do trabalho em todos os setores das unidades hospitalares investigadas. O estudo aponta que a tendência é do trabalhador interiorizar a pressão “em um entendimento de que o direito da vida do paciente é muito maior do que o suposto direito de condições mínimas de trabalho” (p. 107). Mais que isso, a dinâmica laboral forja, também, um modo de vida, na medida em que o trabalhador incorpora o hábito de ‘fazer tudo correndo’, ser impaciente na vida pessoal e rápido nos afazeres domésticos.
Júlio César França Lima – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. E-mail: jlima@fiocruz.br
(P)