Estado, sociedade e educação profissional no Brasil: desafios e perspectivas para o século XXI | Eraldo L. Batista, Isaura M. Zanardinie e João C. da Silva

O livro tem por objetivo, segundo seus organizadores, apresentar “resultados de pesquisa focalizando questões teóricas e metodológicas e empíricas, trazendo ainda aspectos histórico-conceituais da Educação Básica, particularmente do ensino profissional” de nível médio (Batista, Zanardini e Silva, 2018, p. 13). Trata-se de coletânea de 13 capítulos, escritos por 19 pesquisadores.

Maria Ciavatta, no Prefácio, já nos indica que “o conjunto de textos, sobre vários aspectos do Estado, sociedade e educação no Brasil, é exemplar sobre a questão educacional da população nos cinco séculos de existência conhecida pelo mundo europeu, a terra brasilis, e na atualidade desta segunda década do século XXI” (p. 9). Leia Mais

Democracia, federalismo e centralização no Brasil – ARRETCHE (TES)

ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012, 232 p. Resenha de: LOBO NETO, Francisco José da Silveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.2, maio/ago. 2014.

O livro de Marta Arretche trata da democracia, do federalismo e da centralização. Temas fundamentais na sociedade radicada neste país continental que, desde 15 de novembro de 1889 se constituiu, pelo decreto n. 1 do Governo Provisório, como Federação.

A autora, ao trabalhar seu objeto, prioriza o aprofundamento da ordem constitucional atual, no qual revela sua trajetória de cientista social e cientista política, recorrendo às referências que lhe oferecem a História e o Direito, na elucidação dos fatos e na construção de sua análise interpretativa.

Importante mencionar, desde já, o rigor metodológico da organização da obra composta de cinco capítulos, cada um deles com sua especificidade e todos se integrando para conformar a unidade do livro, “apresentado originalmente como tese de livredocência defendida no Departamento de Ciência Política na Universidade de São Paulo” (p. 24), em 2007. A própria autora nos diz, na Introdução, que “embora cada capítulo possa ser lido separadamente, o livro tem uma unidade teórica e analítica” (p. 13), no “objetivo de examinar ‘se’ e ‘como’ Estados federativos produzem efeitos centrífugos sobre a produção de políticas públicas, tomando o caso brasileiro como objeto empírico” (p. 13).

Peça importante na interpretação do seu livro é, além da Introdução (p. 1131), o artigo de 2001 “Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana” (Arretche, 2001, p. 30). Nele, ela analisa os estudos da ciência política nos Estados Unidos, revelando-nos rumos novos de pesquisa. Sua preocupação foi “destacar a necessidade de ampliação da agenda de pesquisas sobre a natureza das relações intergovernamentais no Brasil”, sugerindo dois caminhos: “exame dos processos decisórios em que o governo federal foi bem sucedido em implementar sua agenda de reformas” e “análise do processo decisório de políticas que envolvam relações diretas entre o Poder Executivo dos diversos níveis e/ou nas quais o Poder Judiciário funcione como árbitro dos conflitos intergovernamentais” (Arretche, 2001, p. 30).

A importância deste livro, portanto, está justamente na concretização dessa ampliação de agenda na própria produção da pesquisadora, a partir de 2001. As análises contidas nos cinco capítulos respondem a muitas questões, mas abrem, sobretudo, outras tantas indagações.

De fato, a autora menciona duas dimensões centrais no seu foco de análise: “o poder de veto das unidades constituintes nas arenas decisórias centrais (sharedrule) e a autonomia dos governos subnacionais para decidir suas próprias políticas (selfrule)” (p. 13). Assim, a estrutura do livro tem os três primeiros capítulos voltados para a primeira dimensão e os dois últimos abordando a segunda dimensão.

No primeiro capítulo, a pesquisadora examina 59 iniciativas de interesse federativo, que foram aprovadas na Câmara dos Deputados entre 1989 e 2006. Tratam de diferentes matérias que afetam interesses dos governos subnacionais, relacionadas às receitas de estados e municípios; à autonomia dos governos subnacionais na decisão sobre a arrecadação de seus impostos, o exercício de suas competências e a alocação de suas receitas. E ela o faz sempre trazendo o texto da Constituição de 1988, onde claramente é atribuída à União autoridade para legislar “sobre todas as matérias que dizem respeito às ações de Estados e municípios” (p. 70). A autora também demonstra que os constituintes de 1988 “não criaram muitas oportunidades institucionais de veto” e “não previram fortes proteções institucionais para evitar que a União tomasse iniciativas para expropriar suas receitas ou mesmo sua autoridade sobre os impostos e as políticas sob sua competência” (p. 70). Assim, com argumentação solidamente fundamentada, aborda os seguintes aspectos: a partir do federalismo comparado, analisa hipóteses do processo centralizador vivido na década de 1990; estuda amplamente as leis federais afetando interesses dos governos subnacionais, fundamentando-se na distinção entre execução de políticas e autoridade decisória; analisa – como determinantes federativos desse processo – as mudanças nas agendas da Presidência da República e o comportamento das bancadas estaduais; finalmente, identifica a influência das instituições federativas em relação aos processos decisórios. Em sua conclusão “de como 1988 facilitou 1995”, que aparece como título deste primeiro capítulo do livro, Marta nos diz que “há mais continuidade entre as mudanças na estrutura federativa da segunda metade da década de 1990 e o contrato original de 1988 do que a noção de uma ampla reestruturação das relações intergovernamentais autorizaria supor” (p. 72).

Já o segundo capítulo se volta para uma análise do comportamento das bancadas estaduais na Câmara dos Deputados em relação às matérias de interesse federativo, especificamente aquelas em que a União e os “governos territoriais” tinham interesses opostos. Foram identificadas 69 iniciativas – propostas de emenda constitucional (PECs), projetos de lei complementar (PLPs) e projetos de lei (PLs) – representando 24% de votações no período de 1989 a 2009. Este capítulo se ocupa da agenda federativa após a Constituição de 1988 cuja temática principal é a criação de impostos e contribuições não sujeitos à repartição com os estados e municípios, da análise da correlação entre a “centralização decisória nas arenas federais” e a limitação das “oportunidades institucionais de veto dos governos territoriais”. A conclusão da pesquisadora é exposta em um duplo aspecto. Primeiramente a “centralização regulatória combinada à ausência de arenas decisórias adicionais de veto” limita as oportunidades de veto dos governos subnacionais. Em segundo lugar, o comportamento das bancadas estaduais sem coesão em torno das questões estaduais, cedendo mais aos acordos partidários do que aos interesses regionais que representam (p. 112113).

No capítulo terceiro, a investigação se volta para uma análise comparada da relação entre federalismo e bicameralismo, como fundamentação argumentativa do estudo sobre o comportamento do Senado Federal brasileiro. Sobretudo estudando a tramitação de 28 emendas constitucionais, a autora constata que nossos senadores não se deixam afetar pelas pressões dos governadores, das elites econômicas ou da opinião pública dos estados ou regiões que representam. O poder de veto no Senado Federal, de fato, pertence aos partidos políticos e não aos interesses regionais. Unindo o caso brasileiro às teorias que embasam o relacionamento do federalismo ao bicameralismo, a pesquisadora assim se expressa em sua conclusão: “mesmo sob o bicameralismo simétrico em que a Câmara Alta constitua uma arena adicional de veto, o efeito inibidor de vocalização dos interesses regionais sobre a mudança institucional pode ser substancialmente reduzido se a segunda casa legislativa também for uma casa partidária, isto é, se a disciplina partidária prevalecer sobre a coesão da representação regional” (p. 141).

Se até aqui Arretche privilegiou a análise da centralização e o poder de veto das instâncias subnacionais, nos capítulos quarto e quinto seu foco será a descentralização e autonomia nas relações verticais da federação e a questão da igualdade regional.

O capítulo quarto examina as bases teóricas para a análise dos “mecanismos institucionais que permitem aos governos centrais obter a cooperação dos governos subnacionais para realizar políticas de interesse comum” (p. 27). A análise comparada permitiu minimizar uma correlação direta entre a criação destes mecanismos e a forma federalista ou unitária de organização do Estado. A distinção conceitual entre execução e autoridade decisória é mais útil do que a distinção entre estados federativos e unitários “para predizer os efeitos centrífugos da relação central-local, isto é, dos arranjos verticais dos estados nacionais” (p. 170). Isto significa, no caso brasileiro, que a “convergência em torno das regras federais é alavancada quando a) a Constituição obriga comportamentos dos governos subnacionais ou a União controla recursos fiscais e os emprega como instrumento de indução de escolhas dos governos subnacionais.” (…) “Neste sentido, efeitos centrífugos não são diretamente derivados da fórmula federativa, mas mediados pelo modo como execução local e instrumentos de regulação federal estão combinados em cada política particular” (p. 171).

O capítulo final enfrenta – inovando – a questão crucial do pseudo-confronto entre a proposta federalista e a igualdade territorial como forma de manter a unidade da União. Neste sentido, argumenta contra as interpretações de que a Constituição de 1988 criou instituições federativas comprometedoras da eficiência do Estado brasileiro, lembrando que não podem ser ignorados nem o papel das desigualdades regionais, nem as relações da União com os governos subnacionais sobre o seu funcionamento. A divisão entre unidades pobres e ricas é que está “na origem da escolha por um desenho de Estado que permita ‘manter a União’ e evitar os riscos associados à fórmula majoritária” (p. 175). Resgatando as discussões dos capítulos anteriores, Marta Arretche sintetiza: “Distinguir quem formula de quem executa permite inferir que, no caso brasileiro, embora os governos subnacionais tenham um papel importante (…) no gasto público e na provisão de serviços públicos, suas decisões de arrecadação tributária, alocação de gasto e execução de políticas públicas são largamente afetadas pela regulação federal”. Após debruçar-se sobre dados de um panorama das políticas nacionais de redução das desigualdades e seus efeitos sobre a desigualdade territorial de receita, das políticas nacionais de regulamentação e supervisão do gasto e seus efeitos, a autora afirma em sua conclusão: “A parte mais expressiva das transferências federais no Brasil tem sua origem no objetivo de reduzir desigualdades territoriais de capacidade de gasto. Essas foram (historicamente) um elemento central de construção do Estado brasileiro, similarmente a outras federações, em que a ideia de uma comunidade nacional única prevaleceu sobre as demandas por autonomia regional” (p. 201).

Como afirma a apresentadora, o livro traz “uma interpretação inovadora sobre o nosso sistema federativo”. É uma obra fundamental para os cientistas políticos e apoio à autoanálise dos políticos em seu comportamento. Sobretudo, porém, indicado para fortalecer análises de pesquisadores e profissionais da saúde e da educação, já que estes campos manifestam fundamental correlação entre os poderes central e locais.

Referências

ARRETCHE, Marta. Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 23-31, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/spp/v15n4/10369.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2014. [ Links ]

Francisco José da Silveira Lobo Neto – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Dicionário de trabalho e tecnologia – CATTANI; HOLZMANN (TES)

CATTANI, David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre, Zouk, 2011, 494 p. Resenha de: LIMA, Raphael Jonathas da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.12, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2014.

Organizado por Antonio David Cattani e Lorena Holzmann, o Dicionário de trabalho e tecnologia, publicado em 2011, já em sua segunda edição, tem como propósito capturar e reunir inúmeros aspectos que vêm configurando o mundo do trabalho e orientando um conjunto de mudanças cuja maior profusão passou a ser verificada na fase que se estende das últimas décadas do século XX ao início de século XXI. Obra de caráter coletivo e multidisciplinar, o dicionário contou com a contribuição de 62 especialistas de diferentes áreas, os quais se desdobraram na composição de 107 verbetes dedicados a sumarizar aspectos referentes à implementação da tecnologia ao trabalho. Trata-se da evolução editorial de uma obra originalmente publicada em 1997 com apenas cinquenta verbetes e sob o título Trabalho e tecnologia: dicionário crítico, renomeada em 2002 para Dicionário crítico de trabalho e tecnologia e, finalmente, em 2006, quando ganhou o título atual, reunindo 96 verbetes e incorporando outros autores.

Conforme a caracterização feita na apresentação, os organizadores do dicionário têm como finalidade principal oferecer uma obra capaz de dimensionar as grandes transformações no mundo do trabalho (resultantes de inovações tecnológicas, gerenciais e institucionais), o aumento do não trabalho/desemprego e seus efeitos danosos, segundo eles preocupações já bastante disseminadas entre acadêmicos, trabalhadores e suas organizações. Nesse sentido é que procuram apresentar um panorama o mais completo possível acerca de conceitos específicos unificados sob a alça das macrocategorias trabalho e tecnologia. Outrossim, em sua quase totalidade, o dicionário oferece ao leitor um material com extrema coesão, podendo-se mesmo perceber uma enorme uniformidade nos argumentos e também nas avaliações feitas pelos autores acerca dos efeitos identificados nos processos tratados por cada verbete. Ponto que pesa a favor do dicionário. Em outros termos, prevalece o argumento segundo o qual da conjugação entre (novos) processos de trabalho e formas inovadoras de tecnologia decorre, o mais das vezes, a precarização que de alguma forma atinge os indivíduos em seu espaço profissional com reflexos sentidos nas demais esferas do seu cotidiano, notadamente na familiar.

A constatação acima apontada, afinal, condiz com a argumentação (trivial, é verdade, mas fundamental) segundo a qual a precarização foi o efeito negativo mais percebido e discutido pelas análises que margearam o panorama que envolveu as modificações no mundo do trabalho, sobretudo, no último quarto do século XX, potencializadas por avanços produtivos e organizacionais configurados, dentre outras formas, pela constituição de clusters e distritos industriais espalhados por Europa, Estados Unidos e, finalmente, Brasil. Isso porque, historicamente, a implantação (e manipulação) de práticas inovadoras de organização da produção industrial tem sido associada à intensificação do controle, da vigilância e da exploração do trabalho, sucedidos estes pelo enfraquecimento da ação sindical, fenômeno por sua vez acompanhado da sistemática ameaça aos direitos e às conquistas dos trabalhadores, preocupações frequentemente presentes nesse debate.

Inovações emblemáticas, como a introdução por Henry Ford da linha de montagem movida a volante magnético, em sua fábrica de Highland Park, Michigan, nos Estados Unidos, em 1913 – entendida como um avanço sem precedentes na indústria automobilística, a despeito de ter se apropriado de princípios mecânicos já conhecidos – tornaram-se emblemáticas pelo que passaram a significar em termos de ordenamento social, organização e controle das forças sociais do trabalho pelo empreendimento capitalista em expansão (Beynon, 1995). Nessa época, origina-se o conjunto de processos reunidos sob o nome de fordismo, praticamente consensuais nas práticas empresariais subsequentes, até a sua crise, nos anos 1970. O dicionário contempla o fordismo com uma caracterização extremamente fiel ao que de fato veio a representar para a indústria: uma inovação simultânea no chão de fábrica e nas dimensões macroeconômicas e institucionais. Em consonância com um conjunto de práticas (racionalização, separação entre concepção e execução do trabalho e a individualização na prescrição e execução de tarefas) reunidas sob a nomenclatura de taylorismo (concebidas por Frederick Taylor), o fordismo avançou em sua finalidade de estabelecer um novo princípio de disciplinamento fabril e um novo mecanismo de extração de maisvalor via intensificação do trabalho.

O aparato de procedimentos técnicogerenciais aglutinados a partir da combinação fordismotaylorismo aparece de forma bem sistematizada no dicionário, assim como processos como o toyotismo, o just in time eo kanban, os quais constituem a fase posterior de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo. Essa etapa está mais relacionada à segunda metade do século XX, quando se instaura um regime de acumulação (flexível) caracterizado pelo fim do compromisso fordista e composto pelo amplo quadro de reestruturação produtiva que incluiu, além de alterações tecnológicas e na organização do trabalho, a reorganização de firmas, o estabelecimento do fluxo financeiro em rede e o deslocamento regional incessante de empresas, confirmando assim o princípio básico do capitalismo de buscar novos espaços para reinvestir seu capital excedente e reequilibrar sua taxa de lucros (Harvey, 2005).

O dicionário também caracteriza aqueles instrumentos concebidos como estratégias de resistência frente ao avanço avassalador das mudanças tecnológicas dentro das empresas. O verbete ‘ação sindical em face da automação’ mostra como o aperfeiçoamento técnico da produção visa fragilizar os trabalhadores, seja pelo seu ajuste ao princípio da polivalência, seja pela prática da redução de postos de trabalho. Em contrapartida, a ‘ação sindical em face da automação’ e a ‘greve’ se colocam como os dispositivos capazes de promover modificações nas relações de produção e, sobretudo, na estrutura de poder, usando a rigor os sindicatos como a forma institucional mais expressiva de ação coletiva com essa finalidade. E a processos particularmente problemáticos e polêmicos, como ‘degradação do trabalho’ e ‘divisão sexual do trabalho’, somam-se outros fenômenos, como ‘informalidade’, ‘tecnociência’, ‘teletrabalho’, ‘autogestão’ e ‘economia solidária’, que ajudariam a reduzir o fosso de poder que historicamente vem separando empresários e trabalhadores no seio da economia capitalista. Essas novas formulações conferem um caráter mais diversificado ao dicionário ao passo que são fortes provas de que os estudos sobre trabalho sempre se renovam pela incorporação dessas inovações gerenciais, organizacionais e tecnológicas inauguradas ano após ano.

Vale ressaltar que, logo na apresentação, os organizadores da obra destacam a centralidade da inovação tecnológica ao recordarem ser ela uma componente inquestionável do trabalho, uma vez que “produz artefatos e processos que, cada vez mais, passam a mediar o liame entre o homem e a natureza” (p. 12), não se entendendo essa relação exatamente como saudável, pois implica um progressivo sufocamento das forças sociais do trabalho. De fato, é inquestionável que, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, o capitalismo vem procurando beneficiar o processo de trabalho (e não o trabalhador), almejando alcançar um maior grau de eficiência e de produtividade, sobretudo em detrimento do poder das organizações trabalhistas.

Portanto, cabe aqui superar a perspectiva histórica de enxergar unicamente a ruptura entre o par ciência/tecnologia e o conjunto de forças sociais e econômicas do qual faz parte. Esse entendimento de renovação na relação entre tecnologia e sociedade se manifesta no tratamento conferido pelos autores às sociologias da ciência, da tecnologia e, naturalmente, do trabalho, convergindo com a afirmação de Braverman (1987) de não se instituir um cenário de hostilidade à ciência e, por consequência, à tecnologia. Deve-se apenas questionar os seus empregos como instrumentos de criação, perpetuação e aprofundamento do fosso que separa classes sociais. Implica afirmar que a tecnologia não pode ser acusada de produzir relações sociais, em geral conflituosas e de subordinação, porque em sua essência ela é o resultado e não a causa dessas relações representadas pelo capital e que favorecem o processo de acumulação no seio da engrenagem capitalista. Pois bem, como ciência e tecnologia estão intimamente ligadas, o dicionário não poderia desconsiderar este fato e, como resultado, confere certa relevância a processos tais como ‘inovação’, ‘biopoder’ e ‘nanotecnologia’, enfatizando ainda a relação entre ‘tecnociência e trabalho’, ‘tecnologia e desenvolvimento’, de forma a evitar o determinismo tecnológico que caracteriza, em especial, a sociologia (do trabalho). Não obstante, ao lançar luz sobre a tecnologia e sua relação com processos científicos e inovadores, o dicionário não abdica de assinalar os fenômenos que, quase obrigatoriamente, surgem imbricados a essa dinâmica, a exemplo daqueles relacionados à saúde do trabalhador (‘ergonomia’, ‘ergologia’, ‘lesões por esforços repetitivos’ e ‘qualidade de vida no trabalho’).

Cabe aqui suscitar que, possivelmente, o único porém desse dicionário com cerca de 470 páginas é o fato de, em hipótese alguma, se tratar de uma obra orientada a iniciantes no assunto. Por outro lado, revela-se uma preciosíssima fonte de consulta para pesquisadores com relativa experiência e algum aprofundamento nos diversos debates colocados, o que justifica a aparente falta de didatismo que o material deixa transparecer em diversos momentos. Essa dificuldade é ligeiramente amenizada através da inclusão, ao final do manuscrito, de um índice por assuntos e verbetes, ferramenta extremamente útil à medida que permite fazer correlações entre os tópicos elencados e, comparativamente, atestar a maior ou menor ocorrência de cada um no seio do debate.

Não obstante tal constatação, esse dicionário temático, indiscutivelmente, é uma obra de grande utilidade para os estudiosos e interessados no tema e, desde já, ocupa a condição de item de consulta obrigatória em língua portuguesa. Ele permite não só compreender de forma sistematizada o percurso da degradação do trabalho no século XX como identificar os mais significativos instrumentos elaborados para mitigar seus efeitos. Igualmente, conforme salientam Cattani e Holzmann na apresentação a esta edição, almeja-se aqui oferecer uma obra capaz de transpor o caráter tradicionalista dos dicionários, satisfeitos apenas em disponibilizar ao leitor a gênese e o desenvolvimento histórico de conceitos. Conforme entendem, o que orientou a publicação foi a possibilidade de subsidiar o seu público alvo com os instrumentos capazes de qualificar as investigações que porventura estejam em curso. Nesse sentido, não se trata de um glossário repleto de definições desassociadas, mas de um preciso mapeamento a respeito das questões abordadas pelas mais renomadas publicações e evidenciadas durante os principais eventos científicos nacionais e internacionais.

Referências

BEYNON, Huw. Trabalhando para a Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. 2. ed. Paz e Terra: São Paulo, 1995. [ Links ]

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. LTC Editora: Rio de Janeiro, 1987. [ Links ]

HARVEY. David. A produção capitalista do espaço. 2. ed. Editora Annablume: São Paulo, 2005. [ Links ]

Raphael Jonathas da Costa Lima – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Uma ecologia política dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental – PORTO (TES)

PORTO, Marcelo Firpo de Souza. Uma ecologia política dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção da saúde e da justiça ambiental. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012, 2. ed., 270 p. Resenha de: MIRANDA, Ary Carvalho de; TAMBELLINI, Anamaria Testa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.1, jan./abr. 2014.

A abordagem de Marcelo Firpo de Souza Porto, em Uma ecologia política dos riscos…, traz uma contribuição valorosa ao debate, não só acadêmico, mas do conjunto da sociedade, sobre os riscos à saúde humana e ao ambiente a que estamos submetidos, decorrentes do modelo de desenvolvimento socioeconômico em curso. A partir da identificação dos conflitos socio-ambientais, fundamenta, com a complexidade conceitual que este campo de conhecimento e- prática exige, o escopo metodológico de abordagem de riscos ambientais e ocupacionais, não só fazendo a crítica aos modelos reducionistas utilizados, mas também apontando para caminhos que nos permita um desenvolvimento que tenha como preocupação fundamental a condição humana.

A compreensão sobre Vulnerabilidade Social é colocada no centro deste estudo como fio condutor da construção metodológica sobre os riscos, numa perspectiva integradora de diversos campos de conhecimentos, incluindo aqueles oriundos de fora do meio acadêmico. Deste modo, a sabedoria que provém da experiência das pessoas atingidas pelos problemas estudados se constitui também num pilar fundamental na construção do conhecimento necessário aos seus enfrentamentos. Unificando a ciência acadêmica com o conhecimento advindo de fora dela, no exercício da transdisciplinaridade, o autor nos apresenta caminhos mais consistentes aos desafios dos riscos em contexto no qual as complexidades tecnológicas de sistemas e produtos consumidos pela sociedade já não permite conferir à Ciência Normal e ao Estado a exclusividade de seus enfrentamentos. Os vários exemplos de acidentes ampliados, decorrentes de tecnologias complexas, como as tragédias de Chernobyl e Bhopal, apenas para citar dois acidentes que ganharam enorme notoriedade, pela gravidade e extensão, atestam esta realidade.

É preciso, portanto, desnaturalizar e contextualizar o risco, com base em uma visão crítica às concepções tecnicistas que sistematicamente desconsideram as populações afetadas, sobretudo as mais vulneráveis. Tal contextualização permitirá também estabelecer conexões entre os fenômenos locais e aqueles de natureza mais global, conferindo à análise das situações concretas de riscos a capacidade de articulá-los aos modelos socioeconômicos que imperam no mundo globalizado em que vivemos. Esta opção, particularmente, destaca o autor, “não é apenas uma técnica didática para facilitar a vida do leitor”, mas tem sua origem numa concepção teórico-filosófica que faz parte dos vários conflitos que marcam a crise da chamada Ciência Normal, tal como formulada por Thomas Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas. Trata-se, então, de uma cosmologia que coloca o universo epistemológico necessariamente mediado pela ética, sem a “neutralidade” propagada pela ciência moderna e que supera a dicotomia entre o pesquisador e seu objeto de estudo. É uma abordagem metodológica que permite que o conhecimento gerado para construção de soluções concretas, diante dos riscos a que estamos submetidos, possa ser apropriado pelo conjunto da sociedade, proporcionando soluções compartilhadas, fazendo da ciência um componente importante na tomada de consciência social e adoção de medidas que possam pavimentar não a sustentabilidade do modelo vigente, mas uma sociedade sustentável.

Tendo tais princípios como referência às abordagens metodológicas para prevenção de riscos ambientais e ocupacionais em suas complexidades, o autor destaca que não existem respostas fáceis nem exclusivas. O desafio deve incorporar, de forma integrada, conceitos provenientes de diversos campos de conhecimento, tais como a saúde coletiva, as ciências sociais, as ciências ambientais, a ecologia política e a economia ecológica. Com esse pressuposto, estrutura o trabalho em cinco capítulos, traçando um recorrido que começa apresentando os referenciais empíricos e teóricos, ponto de partida fundamental aos estudos de riscos. Já neste momento está destacada a incorporação das dimensões éticas e sociais inerentes à sua abordagem, sustentando a necessidade de superação dos limites reducionistas para compreensão dos territórios. Tal superação será buscada nos postulados de Milton Santos sobre o território, ou seja, é um lugar de projetos e disputas, de onde emergem, ademais, questões sociais, ambientais e de saúde. É nos territórios onde a vida se constrói, expressando as contradições de uma sociedade estratificada econômica e socialmente. Esta estratificação gera contextos diferenciados, tornando inadequada a generalização de modelos científicos na análise, controle e prevenção de riscos. Nessa diferenciação se expressa a vulnerabilidade de grupos sociais, reveladora da lógica de modelos de desenvolvimentos que se dão em nome do crescimento produtivo, que concentra poder e riqueza ao mesmo tempo que gera exclusão social e pobreza. É nesse cenário que o autor traz o conceito de ‘vulnerabilidade’ como elemento central para o desenvolvimento de análises integradas e contextualizadas dos riscos. A partir deste conceito, destaca suas diversas dimensões, prioriza a Vulnerabilidade Social como componente fundamental do pro- cesso analítico, articula o local e o global, revela as limitações da Ciência Normal e assume uma nova base epistemológica: as concepções da Ciência Pós-normal, tal como formulada por Funtowics e Ravetz.

Deste modo, as respostas sociais tornam-se componente de destaque na perspectiva de enfrentamento dos riscos socioambientais. O autor enfatiza, então, a importância do Movimento pela Justiça Ambiental e as ações solidárias em rede, como manifestações dos movimentos sociais voltadas para a transformação da realidade e destaca o princípio da precaução, colocando-o como desafio civilizatório no enfrentamento das incertezas decorrentes da complexidade tecnológica, que cada vez mais é incorporada à vida social. Nesta dimensão, a incerteza passa a assumir condição de destaque nas avaliações de risco. E são vários os tipos de incertezas assignados. Vão da incerteza técnica, relacionada, por exemplo, à qualidade de bases de dados utilizados para a formulação de cálculos, passando pela incerteza metodológica, expressa na margem de valores relacionados a intervalos de confiança, chegando à incerteza epistemológica, esta a mais grave, pois, conforme assinalado no livro, expressa uma “lacuna estrutural entre o conhecimento disponível e a capacidade de analisar e realizar previsões acerca do problema analisado”.

Para melhor precisar o referencial conceitual analítico na análise dos riscos, ou seja, a Vulnerabilidade, e, apoiado nos marcos da epistemologia ambiental da ciência Pós-normal, o trabalho destaca que a Vulnerabilidade é um conceito polissêmico, utilizado em diversos campos de conhecimentos e, portanto, em diversas situações. No mundo fisicalista, analisado pela física, química e as engenharias, a Vulnerabilidade está relacionada a máquinas, instalações e processos produtivos possíveis de acidentes e falhas. Trata-se de uma abordagem funcionalista, cujo universo considera apenas a perda de função do sistema técnico. A ergonomia francesa do pós II Guerra dá uma passo adiante com relação a esta abordagem reducionista, ao transformar sistemas técnicos em sociotécnicos, relacionando, assim, a confiabilidade técnica à humana.

No mundo da vida, analisado pelas ciências biológicas e biomédicas, a Vulnerabilidade é um conceito relacionado aos sistemas complexos dos seres vivos, envolvendo organismos e ecossistemas. No universo da biologia e da ecologia, é considerada como perda de vigor, incapacidade adaptativa ou descontinuidade de espécies ou ecossistemas. Na biomedicina, a noção de vulnerabilidade está referida à existência de indivíduos ou grupos sociais suscetíveis com predisposição para contração de doenças diante de situações de risco. Ao desconsiderar as dimensões sociopolíticas, econômicas, culturais e psicológicas, na análise das situações de saúde, este paradigma reduz a vida a sua dimensão biológica ou genética, cujo exemplo histórico ficou cunhado na difusão da eugenia aplicada pelos nazistas para produzir, com base na seleção humana sustentada pela genética, a superioridade de certas ‘raças’.

Na perspectiva de superação do reducionismo do paradigma biomédico, o campo da saúde pública passa a incorporar elementos sociais, culturais e econômicos na análise de situações de riscos a determinadas doenças. Será, então, no mundo do humano que a noção de Vulnerabilidade ganha sua dimensão mais complexa, estando relacionada a sistemas sociais, sociotécnicos e de relações de poder. Tem, então, como campos de conhecimento as ciências sociais e humanas, assim como a filosofia, exigindo que questões de natureza ética e moral sejam incorporadas às suas análises. Visto sob esta perspectiva, o estudo destaca a natureza humana e social da Vulnerabilidade, valorizando os processos históricos no condicionamento dos riscos gerados pelos modelos de desenvolvimento econômico e tecnológico. Trata-se, então, de considerar Contextos Vulneráveis. Nesses contextos, o conceito de Vulnerabilidade Social protagoniza-se e está tipificado em dois componentes: o das populações vulneráveis, aquelas mais atingidas em situações de injustiça ambiental, e aquele relacionado ao Estado e à sociedade civil.

O primeiro componente, chamado de ‘Vulnerabilidade Populacional’, corresponde a grupos sociais submetidos a determinados riscos, decorrentes de maior carga de danos ambientais que incidem em populações de baixa renda, grupos sociais discriminados, grupos étnicos tradicionais, bairros operários e populações marginalizadas em geral. Expressam-se, por exemplo, através de discriminação social e racial, que se concretizam por desigualdades no acesso à renda, educação, moradia, proteção social, atenção- à saúde, assim como em precárias relações de trabalho. São grupos sociais muitas vezes ‘invisíveis’, com baixa capacidade de organização e influência nos poderes decisórios, situação que contribui, também, para a invisibilidade dos riscos a que estão submetidos, tornando-os ainda mais vulneráveis.

O segundo componente, a Vulnerabilidade Institucional, relaciona-se ao papel do Estado, envolvendo capacidade institucional (incluindo recursos técnicos e humanos), assim como as políticas econômicas, tecnológicas e arcabouço jurídico. Resulta de relações complexas de alcance internacional, nacional e local, expressando contradições e disputa de interesses decorrentes do antagonismo de classes. No escopo deste componente da Vulnerabilidade Social, o autor destaca o fenômeno da globalização atual que procura impor a quebra de barreiras de proteção aos Estados nacionais, fazendo fluir fluxos financeiros internacionais, cuja dinâmica pode produzir colapsos em economias nacionais, com importantes impactos sociais.

Por fim, são expressos 11 princípios norteadores da proposta de análise integrada e contextualizada de riscos em situações de vulnerabilidade e injustiça ambiental, no sentido de proporcionar uma visão abrangente dos problemas ambientais e ocupacionais, em situações de importantes desigualdades sociais, como é caso da realidade brasileira. Englobam a ecologia política dos riscos; a visão ecossocial da saúde humana; os aspectos multidimensionais e cíclicos dos riscos; as relações entre os níveis local e global; a necessidade de integração de conhecimentos e práticas; o agravamento dos ciclos do perigo em contextos vulneráveis; as singularidades de contextos onde os riscos ocorrem; a importância do conhecimento local e das metodologias participativas nas abordagens analíticas dos riscos; as incertezas inerentes a situações de risco; a importância da prevenção, precaução e promoção e o destaque às articulações dos movimentos sociais no enfrentamento das ameaças. São, em verdade, 11 pilares sobre os quais a análise integradora de situação de risco é sustentada com maior firmeza metodológica.

Toda esta construção metodológica traz consigo a busca de uma “ciência sensível” superando as dicotomias estabelecidas entre o técnico, o humano e o social, incrustadas nos discursos e práticas reducionistas da ‘ciência normal’. Com esta superação articula técnicos, cientistas, trabalhadores e cidadãos em geral na defesa da vida e da democracia. Enfim, é um trabalho solidário, justo e de grande densidade intelectual, refletindo a possibilidade concreta de encontros produtivos da ciência com os afetos.

Ary Carvalho de Miranda – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]

Anamaria Testa Tambellini – Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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A pesquisa histórica em trabalho e educação – CIAVATTA; REIS (TES)

CIAVATTA, Maria; REIS, Ronaldo Rosas (Orgs.). A pesquisa histórica em trabalho e educação. Brasília: Liber Livro Editora, 2010, 200 p. Resenha de: DAMASCENO, Rosangela Aquino da Rosa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.12, n.1, Rio de Janeiro, jan./abr. 2014.

A coletânea dos organizadores Maria Ciavatta e Ronaldo Rosas Reis apresenta estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito do Programa de Cooperação Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Procad/Capes) que resultam de cinco pesquisas, duas teses e uma dissertação. Estruturado em duas partes – a primeira, “Trabalho e educação: interfaces com a história e a arte”, e a segunda, “Trabalho e educação: a indústria, seus processos e ideologias” -, o livro é permeado de registros sobre a produção da existência humana, mais especificamente no que tange à pesquisa histórica em trabalho-educação.

Conduzindo o olhar para os centros de memória, observa-se que eles se constituem para a preservação das múltiplas memórias e integram um espaço estimulador de reflexão do fazer histórico dos vários segmentos sociais. Em um entendimento mais aprofundado de cidadania, a memória torna-se processo de construção da identidade, porque contribui para a formação cultural, compreensão do real e análises da evolução de lutas sociais que se desenvolvem no tempo e no espaço.

A pesquisa “Arquivos da memória do trabalho e da educação: centros de memória e formação integrada para não apagar o futuro”, de Maria Ciavatta, expressa os resultados de uma pesquisa mais ampla, da qual foram selecionados os seguintes recortes: a historicidade do conceito de formação integrada nos debates político-pedagógicos; arquivos escolares e centros de memória sobre a escola e o trabalho; a memória fotográfica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis, unidade Rio de Janeiro (Cefetq), e o Centro de Memória do Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet/RJ). Partindo dessas abordagens, a autora situa a história em sua relação espaço-tempo e defende a importância do registro na construção da identidade de grupos sociais. A questão da relação trabalho-educação é dissecada no espaço das escolas de ensino médio-técnico de forma contextualizada, com a proposta, sobretudo, de discussão e reflexão sobre o tema da formação integrada. Assim, a escola, em toda a sua complexidade, cenário de lutas ideológicas, se inscreve com todas as suas tensões e mediações como ‘lugar de memória’.

Nesse contexto, a falta de políticas e fomento para criação de espaços destinados à guarda de acervo e à preservação do patrimônio colabora de forma ostensiva para os apagamentos da memória institucional, o que o texto em diversos momentos flagra. O estudo aponta ainda a memória do trabalho e da educação como um tema pouco explorado. Ressalta também a pesquisa à luz das fotografias, realizada nos centros de memória do Cefetq e do Cefet/RJ, como uma fonte de pesquisa social que precisa constituir-se num movimento de intertextualidade com outras fontes. Em suas considerações finais, alerta: “o primeiro pressuposto da formação integrada é a existência de um projeto de sociedade” – e defende o centro de memória “como elemento aglutinador, gerador de coesão social”.

Ainda na primeira parte do livro, Jorge Gregório da Silva apresenta o artigo “A reconstrução dos caminhos da educação profissional em Manaus (1856-1877): refletindo sobre a criação da Casa dos Educandos Artífices”, no qual, sob a lente do materialismo histórico, busca desvelar as categorias recorrentes no discurso sobre trabalho e educação em Manaus. Partindo de um levantamento baseado em uma pesquisa documental e uma pesquisa bibliográfica, revela que a Casa dos Educandos Artífices alicerçou sua proposta pedagógica em um detalhado plano de organização didática e administrativa da educação escolar. Para esta publicação, o autor dividiu seu estudo em três seções: trabalho e capital: antecedentes históricos do projeto de educação profissional em Manaus; a criação da Casa dos Educandos Artífices de Manaus; os efeitos das categorias de análise no processo histórico de construção da educação profissional em Manaus (1856-1877). As reflexões sobre estas questões, notadamente, mobilizam uma argumentação que se alimenta no protagonismo do ideário marxista.

No artigo “Trabalho, arte e educação no Brasil – notas de pesquisa: sobre a dualidade no ensino de arte”, Ronaldo Rosas Reis coaduna as interfaces da arte com a história. Ao apresentar o contexto do trabalho desenvolvido, ressalta que há alguns anos pesquisa as relações sociais entre produção artística e o ensino de arte no Brasil. De forma analítica, introduz três notas sobre as investigações: nota explicativa, sobre o sistema de belas-artes; nota 1, sobre a Escola de Arte e de Ofícios numa sociedade ‘modernizada’; nota 2, sobre a arte no modernismo; e nota conclusiva, a razão dualista, a arte e o ensino artístico. O resultado, uma fecunda obra com significativa contribuição para os estudos sobre educação e arte e trabalho-educação, descortina oportunidades para outros estudos e mediações sobre o tema.

Encerrando a primeira parte do livro, Maria Inês do Rego Monteiro Bonfim apresenta o artigo “Trabalho docente na escola pública brasileira: as finalidades humanas em risco”, organizado em duas seções: o capitalismo e as especificidades do trabalho de ensinar; e o Estado brasileiro e o enfraquecimento do trabalhador docente. Com ênfase, defende a ideia de que o trabalho docente é determinado historicamente pelo modo de produção capitalista e denuncia, de forma contundente, a expropriação do trabalhador docente ante a dominação e o controle hegemônico, reiterando a importância de se pensar o trabalho docente da escola pública em sua articulação com a dinâmica social no capitalismo da atualidade.

A segunda parte do livro é protagonizada pela relação trabalho-educação, em temas ligados à indústria, seus processos e ideologias. Abre a cena o trabalho de Arminda Rachel Botelho Mourão, comprometido em subsidiar estudos que trazem para discussão a universidade tecnológica no contexto das políticas de ciência e tecnologia. Assim, “Tecnologia: um conceito construído historicamente”, estudo indispensável por seu caráter de atualidade e relevância do tema, é explicitado nas seções: a técnica: diferentes concepções (a técnica como instrumento de uso; a técnica como entidade autônoma; e a técnica como produto histórico); discutindo a tecnologia; e a construção de uma nova visão tecnológica.

O trabalho de Eliseu Vieira Moreira, “A teoria da qualidade total como política educacional do capitalismo”, está estruturado didaticamente em duas partes. A primeira – a teoria da qualidade total: um novo simulacro transplantado para a educação básica – busca “entender que a materialidade histórica da transplantação ideológica da qualidade total, do campo empresarial para o campo educacional, se deu em quatro focos diferentes”. A segunda – a qualidade como categoria de controle da educação – mostra as políticas implementadas pelo Banco Mundial e outros organismos, visando ao ajuste estrutural e sua manipulação nas relações de trabalho. Contrapondo-se à teoria da qualidade total, um projeto integralmente baseado na lógica do ideário neoliberal, o autor defende a ideia de uma qualidade na qual esteja inserida a qualidade de vida. Aportado em suas reflexões, filia-se claramente ao embate teórico, colocando-se frontalmente contra a transplantação da teoria da qualidade total no campo produtivo-empresarial para o campo das políticas educacionais. A pesquisa instiga a reflexão e a necessidade de se pensarem formas de intervenção e resistência ao modelo perverso e excludente ditado pelo ideário neoliberal.

Em “Crescimento econômico do capital, emprego e qualificação profissional no Amazonas”, Selma Suely Baçal de Oliveira debruça-se sobre a questão do desemprego, analisando as modificações impostas pelos atuais padrões do processo produtivo – competitividade e maior acumulação – presentes no conflito histórico entre capital e trabalho. O contexto da investigação desmembra-se nos temas metodologia e procedimentos; o debate teórico; o movimento do emprego/desemprego no estado do Amazonas no início do século XXI; e a indústria eletroeletrônica no Brasil e o contexto manauara. Com atenção aos processos metodológicos da pesquisa, promove um detalhado levantamento no qual analisa os indicadores de emprego e desemprego na Zona Franca de Manaus, no período de 2000 a 2003, com trabalhadores da categoria de eletroeletrônicos. Sua abordagem contempla a reflexão sobre as relações de trabalho e o contexto atual da disputa trabalho-capital. Alerta ainda para significativas mudanças no ‘mundo do trabalho’, em que destaco: a forte entrada do capital estrangeiro, o avanço tecnológico (automação da produção) e as perdas dos direitos sociais de cidadania conquistados pelo conjunto dos trabalhadores, cidadania essa preconizada pelo Estado em suas reformas.

A segunda parte do livro encerra-se com “Educação corporativa na indústria naval”, artigo de Antonio Fernando Vieira Ney. Notável por suas contribuições ao debate sobre educação corporativa, revela a manobra do capital para formar mão de obra do seu interesse. Para tal, lança seu olhar sobre a indústria naval e sobre como ocorre a divisão do trabalho nos estaleiros. Desdobra suas análises em questões como a conceituação de educação corporativa; a constituição da educação corporativa; as considerações sobre o trabalhador da indústria naval e a aplicação do tecnólogo na indústria naval. O autor elabora seu estudo com expressiva contribuição para pesquisadores da área trabalho-educação, trazendo à luz elementos que podem auxiliar na compreensão do interesse do capital em assumir a responsabilidade de formação profissional, abrindo um campo de possíveis reflexões e ações no espaço político.

Por fim, cabe o registro da percepção de uma costura ideológica e uma linha discursiva contra-hegemônica permeando as produções dos autores.

Rosangela Aquino da Rosa Damasceno – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Planos de Saúde e Dominância Financeira – SESTELO (TES)

SESTELO, José A. F.. Planos de Saúde e Dominância Financeira. Salvador: EDUFBA, 2018. 397p. Resenha de: ANDRIETTA, Lucas Salvador. Planos de saúde: protagonistas da acumulação de capital na saúde brasileira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.18, n.1, Rio de Janeiro, 2020.

As lacunas que se pode apontar no livro de Sestelo são consequência de seus próprios méritos: a ambição de seus objetivos e o rigor de sua execução. Trata-se de um trabalho inconcluso, em muitos sentidos, embora não menos interessante.

Fruto de uma abordagem exploratória, o livro acrescenta peças importantes a discussões em andamento. Não hesita em enfrentar debates teóricos controversos e não ignora que trata de uma matéria em movimento. Ao fazê-lo, contribui enormemente para colocar algumas questões em outro patamar. Nesse sentido, as perguntas que deixa em aberto são mais valiosas que suas conclusões.

Como resultado, o autor nos oferece um extenso mosaico, tanto teórico quanto empírico, embora sua obra deixe suspensa no leitor a expectativa por uma síntese.

Sestelo nos apresenta uma tese bastante atual. Dedica-se a compreender como os traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo se expressam na atuação das empresas de planos de saúde no Brasil. Suas conclusões são inequívocas: os aspectos fundamentais daquilo que se convencionou chamar de financeirização se manifestam cada vez mais intensamente na saúde brasileira.

O livro vem somar-se à tradição de trabalhos que buscaram problematizar e compreender a convivência incômoda entre a lógica sanitária e a lógica empresarial. Esta herança está evidenciada ao longo de todo o texto, seja no diálogo crítico que faz com essa literatura, seja de forma implícita nas inquietações que perpassam o trabalho.

Contudo, não se restringe ao tributo monótono às referências do passado. Embora mostre como o empresariamento da saúde é um processo com décadas de continuidade, Sestelo enfatiza a todo momento a importância de compreendermos suas novidades históricas. Nesse sentido, contribui para um esforço atual – e coletivo – de abordar o papel de grandes grupos econômicos dentro do sistema de saúde brasileiro.

Para isso, explora a trajetória de seu objeto, os planos de saúde, revelando seus contrastes e transformações. Recupera o passado de arranjos comerciais incipientes, empresas familiares de pequeno alcance e esquemas que, mesmo quando atingiam maior escala, permaneciam geridos de forma simplória.

Mas não o faz senão para evidenciar as características das empresas que hoje dominam o setor. Entes que atuam em escalas muito mais elevadas, em mercados de concorrência mais acirrada; que profissionalizam sua gestão; que despertam o interesse do capital nacional e estrangeiro, promovendo operações financeiras de grande magnitude; e que transitam por diversas atividades econômicas, – não apenas na saúde.

Algumas escolhas teóricas e metodológicas feitas pelo autor merecem a atenção especial da comunidade acadêmica que se situa na fronteira entre a Saúde Coletiva e as Humanidades. O livro aponta para algumas questões comuns a todos nós. Ainda que sem resolvê-las todas, tem o mérito de limpar o terreno de pistas falsas e concepções equivocadas que tanto influenciam o senso comum e, também, o trabalho de especialistas. Destacamos algumas dessas escolhas.

Em primeiro lugar, o autor rejeita a visão do mercado de planos de saúde no Brasil como algo ‘natural’, ou seja, uma necessidade inexorável induzida pela demanda espontânea da população. Nesse sentido, resgata a tradição da Economia Política ao buscar compreender o real papel das operadoras dentro do sistema, sobretudo o esforço permanente que realizam para criar, recriar e ampliar seus espaços de atuação e suas condições de acumulação de capital.

Em segundo lugar, o autor se afasta de interpretações binárias e estanques sobre as noções de ‘público’ e ‘privado’ que permeiam o sistema de saúde (cap. 1). Nesse sentido, enfrenta um problema crucial: como apreender corretamente as inúmeras articulações, sobreposições, contradições e fluxos entre os distintos componentes do sistema de saúde? Como fazê-lo sem perder uma perspectiva sistêmica? Sem restringir-se à mera apreciação de mixes público-privados, como um enólogo que comenta uma carta de vinhos?

Em terceiro lugar, o autor demonstra cuidado no tratamento do conceito de financeirização, que tantas acepções distintas recebe na literatura (cap. 2). Sem entrar aqui nos pormenores relacionados ao termo ‘dominância financeira’, o trabalho acerta ao enquadrar sua análise empírica das empresas como entidades integrantes do padrão de acumulação que caracteriza o capitalismo contemporâneo.

Para isso, apoia-se numa definição de ‘capital financeiro’ que nos parece a mais apropriada. O autor se distancia daqueles que insistem em separar o que é inseparável. Que insistem em tratar como diferentes e antagônicos os interesses do ‘capital produtivo’ e do ‘capital rentista’. Pelo contrário, encara o capital financeiro precisamente como a fusão das formas parciais do capital. Como nos lembra Eleutério Prado: “ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social constituída pelo próprio capital” (Prado, 2014, p. 21).

Dessa forma, Sestelo consegue escapar de armadilhas recorrentes e enquadrar melhor seu objeto. O leitor não encontrará em seu trabalho uma ‘esfera das finanças’ descolada e independente da ‘economia real’. Não encontrará também empresas não financeiras passivas diante de um processo que lhes subverte as ‘virtudes’.

O que o leitor encontrará é um esforço de compreender como as empresas de planos de saúde expressam a lógica geral do sistema e a ela se integram. Em outras palavras, como esta lógica se difunde de forma cada vez mais intensa sobre domínios como a intermediação assistencial.

No caso específico da saúde, não se trata de dizer que os esquemas de comércio de planos e seguros são uma novidade recente. Mas sim de mostrar como o processo vivido pelo setor, sobretudo nas últimas duas décadas, aprofunda tendências que antes eram incipientes. Especialmente, como algumas empresas relativamente irrelevantes se transformaram em grandes grupos econômicos multissetoriais, multifuncionais e transnacionais, capazes de impor sua agenda sobre inúmeros assuntos de interesse público no campo da saúde.

Além do esforço de articular diferentes temas num referencial teórico consistente, o livro recorre a uma extensa pesquisa documental (cap. 3). O resultado é um quadro rico de informações sobre a trajetória das maiores empresas de planos de saúde brasileiras.

Mais que o mero interesse nas transformações e pormenores do mundo corporativo, Sestelo sugere, durante todo o texto, possíveis desdobramentos de seus achados e reflexões, deixando em aberto uma agenda de pesquisa ampla.

Sobressai a conclusão de que as empresas de plano de saúde ocupam, cada vez mais, um papel central dentro do ‘complexo econômico-industrial da saúde’:

Não há dúvida de que o esquema de intermediação assistencial ocupa um lugar estratégico nessa constelação. O lugar da intermediação permite múltiplas interfaces de relacionamento comercial e fundamentalmente detém o poder discricionário de gestão financeira sobre os valores pagos a título de contraprestação pecuniária pelos trabalhadores/clientes, seja na forma de pré-pagamento ou pós-pagamento (p. 360).

Esta constatação se desdobra em muitas questões atuais, algumas delas enunciadas pelo próprio autor.

Contribui, por exemplo, para elucidar a grande capacidade dos planos de saúde de manterem seu desempenho durante as oscilações econômicas que afetaram a economia brasileira nos últimos anos. Não apenas pelo seu poder de mercado diante de clientes, fornecedores e prestadores, mas também pela facilidade com que obtêm benesses do setor público, seja do ponto de vista tributário, seja da regulação de suas práticas. Este tema excede a problemática específica das empresas, sobretudo num país com grandes desigualdades em saúde, que essas tendências parecem estar aprofundando.

Outros campos de pesquisas recentes podem se beneficiar do trabalho de Sestelo, embora não façam parte do escopo da obra. Vale a pena mencionar dois deles.

Primeiro, o papel que os planos e seguros ocupam hoje no sistema de saúde faz com que sejam protagonistas nas transformações observadas no mundo do trabalho dos profissionais de saúde. As novas formas de contratação, as mudanças nas condições de trabalho, as relações de trabalho que fogem à legislação ou que foram remodeladas pela recente reforma trabalhista.

Igualmente, é preciso sempre lembrar que o mercado de planos de saúde brasileiro é constituído por uma grande maioria de planos coletivos empresariais vinculados a contratos formais de trabalho. Tem, portanto, uma relação íntima com a dinâmica do mercado de trabalho em geral. E os planos de saúde, embora de forma ainda indefinida, terão de reagir às tendências futuras do mundo do trabalho brasileiro.

Segundo, o livro corretamente menciona o Sistema Único de Saúde (SUS) no sentido de explicar como as acepções sobre a articulação público/privada abriram espaço para a conformação de um mercado hipertrofiado de saúde suplementar no Brasil. Contudo, o trabalho não aprofunda a discussão sobre o espaço que o SUS e o orçamento da saúde ocupam nas estratégias atuais dos planos de saúde. Este passo adicional contribuiria muito, empiricamente, para as pesquisas dedicadas a entender os processos de mercantilização e privatização que afetam as políticas públicas, não apenas na saúde.

Esses caminhos abertos por Sestelo ajudam a alargar uma agenda de investigações sobre as empresas que atuam na saúde brasileira. Seus apontamentos deixam claro que essas pesquisas não ficam limitadas aos fenômenos que interessam aos clientes de planos privados – cerca de 1/4 da população brasileira –, mas interferem nas questões relativas a todo o sistema de saúde.

Pelas razões expostas acima, o livro Planos de saúde e dominância financeira é muito bem-vindo ao acervo da Saúde Coletiva, assim como despertará o interesse daquelas pessoas situadas nas suas fronteiras com outras áreas do conhecimento.

Referências

PRADO , Eleutério . Exame Crítico da Financeirização . Crítica Marxista , n. 39 , p. 13 – 34 , 2014 . [ Links ]

Lucas Salvador AndriettaUniversidade de São Paulo , Faculdade de Medicina e Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde . Campinas , SP , Brasil . E-mail: [email protected]

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Entre controvérsia e hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil – MOTTA (TES)

MOTTA, Renata. Entre controvérsia e hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2018. 260p. Resenha de: ALMEIDA, Vicente Eduardo Soares de; FRIEDRICH, Karen. Lavouras transgênicas: ciência, liberdades civis e Estado de Direito em risco. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.1,  2020.

Descortinar os caminhos que explicitam a controvérsia e a construção da hegemonia no contexto da implantação de culturas transgênicas na Argentina e Brasil é o objeto de análise do instigante estudo “Entre controvérsia e Hegemonia: os transgênicos na Argentina e no Brasil” de autoria de Renata Motta. A obra lança mão de instrumentos metodológicos que nos permitem aprofundar ao nível mais explícito possível, evidenciando não apenas seu contexto macro político e social, mas as estratégias adotadas por atores sociais preponderantes nessa trama.

Sob o construto conceitual da bio-hegemonia, a autora disseca o modus operandi de uma renovada aliança das elites ruralistas envolvendo o poder material, institucional e discursivo de grandes corporações, decisores políticos, elites agrárias e especialistas, para os quais a fome é apenas uma “oportunidade” manipulável por grandes corporações da indústria agrobioquímica. Aponta ainda que essa elite busca não só fazer prevalecer sua narrativa mas, especialmente, construir um consenso de que seus interesses na promoção dos organismos geneticamente modificados refletem os interesses da sociedade, embora falsos axiomas como a diminuição do uso de agrotóxicos e o aumento da produtividade agrícola venham sendo refutados em estudos com dados do Brasil e de outros países ( Benbrook, 2016 ; Almeida et al, 2017).

A busca por esse “consenso” passa por estratégias de supressão das liberdades democráticas dos movimentos de resistência, incluindo a criminalização de movimentos sociais camponeses e o silenciamento de cientistas dissidentes.

Neste contexto, a autora nos apresenta uma reflexão de que o sistema político bio-hegemônico não suporta a dissidência nem a existência de pesquisas continuadas sobre os impactos ambientais e na saúde dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Que a tendência cada vez maior no sentido de cientifização da política e a politização da ciência tem sido alvo de diversos estudiosos sobre controvérsias relativas aos transgênicos, considerando os debates da mídia e as consultas públicas patrocinadas por governos.

Com um caminho teórico que combinou análise macrossociológica com foco no ator social com os níveis meso e macrossociológico, a autora lançou mão de categorias analíticas tais como: 1. Quem são os ativistas (suas bases sociais e organizacionais e suas identidades coletivas); 2. Como os movimentos agem (suas estratégias ou repertórios de ação); 3. Quais significados eles associam aos transgênicos (os problemas encontrados e os enquadramentos discursivos); 4. Quais são os resultados e 5. Quais são as estruturas de oportunidades e as ameaças que enfrentam.

O discurso e a agenda dos movimentos de resistência ao modelo bio-hegemônico, combinaram as temáticas ambientais, direitos humanos e direito a informação, trazendo um novo e fortalecido fronte de batalha com ideias associadas ao “interesse público, participação, transparência e responsabilidade pública, em oposição às práticas descritas como portas fechadas, ilegalidade e percepção de ilegitimidade” (p. 164). No entanto, como demonstra a autora, essa expressiva atuação dos movimentos sociais de resistência aos transgênicos no Brasil, não foi observada na mesma intensidade na Argentina.

Uma contribuição fundamental do livro trata da reflexão sobre as contradições existentes na condução do Estado Brasileiro por governos progressistas e suas decisões no sentido de consolidação dos interesses hegemônicos baseado numa política de conciliação de classes, equivocadamente vista pelos movimentos sociais como uma expressão de um “governo em disputa” (p. 157). As políticas de não enfrentamento de classe no campo agrário e na lógica econômica do assim chamado “agronegócio”, eram seguidas de táticas compensatórias e não estruturantes que, além de permitirem um avanço do modelo hegemônico, lastreavam uma série de programas sociais que “amorteciam” as bases sociais desses movimentos, impedindo-os de “radicalizar” suas pautas de reivindicação.

A formalização da aliança PT/PMDB, ainda no segundo mandato do governo Lula, culminando com a ocupação de vários quadros ruralistas da base do PMDB no governo, foi o sinal dado à sociedade de que as políticas para o modelo de desenvolvimento agrário seguiriam os interesses da chamada “governabilidade”, subordinando os temas ambientais, agrários e até mesmo de direitos humanos, ao crivo dessa aliança. E se, por um lado, o esforço econômico era de reduzir desigualdades por meio de transferência de renda do Estado, por outro, a concentração da terra se manteve intacta, e o poder político e econômico da elite agrária, com o boom dos preços das commodities e o amparo Estatal, foi enormemente ampliado.

O racha na bancada no Partido dos Trabalhadores – PT quanto à liberação dos transgênicos foi um outro golpe profundo na Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, o que acabou por fragilizar o movimento, além das políticas de cooptação e amortização social.

Assim, a biotecnologia foi, neste período de governos progressistas, a “pedra de toque” para penetração do capital na agricultura, onde a ação negligente sobre a regulação das normas de investigação e monitoramento dos impactos ambientais e à saúde na população contaram mais do que seus alegados atributos tecnológicos, ou mesmo das garantias legais de uma lei de direitos de propriedade intelectual sobre as sementes. E os governos têm sido, via de regra, permissivos ao projeto bio-hegemônico, com o estabelecimento de padrões questionáveis de proteção à saúde e ambiente, alvos de crítica e alerta de cientistas em todo o mundo. No Brasil, a regulação dos transgênicos cabe a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO), instância colegiada multidisciplinar, instituída em 2005 pela lei 11.105 de 24 de março. A atuação da Comissão é repleta de fragilidades técnicas e conflitos de interesse como exposto em uma carta denúncia de ex-membro da Comissão ( Torres, 2018 ).

O efeito discursivo e midiático das grandes corporações não foi suficiente para suplantar os obstáculos da resistência à implantação dos transgênicos no Brasil, o que reforçou suas táticas diretas de violência contra ativistas, com assassinatos, perseguições e criminalizações praticados por diversos setores integrantes dessa rede biotecnológica; cassando os direitos civis e políticos de seus adversários. Segundo a autora, o ato de violência contra um ativista defensor dos direitos humanos é um ato exemplar para demonstrar que o ativismo político e a mobilização não serão tolerados. Em sua essência, o livro nos traz a compreensão de que o regime agroalimentar bio-hegemônico é, portanto, um regime politicamente autoritário e repressivo, incapaz de reconhecer dissidências e tolerar o exercício pleno da democracia nas suas dimensões mais fundamentais da dignidade humana como o direito à informação e a alimentação e ao ambiente saudável.

Em tempos de restrição democrática em que vive o Brasil, ainda mais notórios são os interesses que justificam a aliança ruralista no atual governo, por sua natureza fascista e refratária aos direitos civis e ao ativismo social e ambiental. Daí a importância estratégica desse livro que busca, na investigação do tema, apreender a dinâmica dos conflitos existentes de forma tão honesta e profunda, que, claro, não esgotam os esforços de entendimento e superação das limitações da organização social em busca da soberania alimentar e do exercício da cidadania.

Assim, um roteiro categórico sobre a agenda de pesquisas que possam investigar as oportunidades de transformação dessa realidade, a partir do referencial dos movimentos sociais, são elencados pela autora, tais como: 1. A existência de uma democracia participativa; 2. A independência e pluralidade dos meios de comunicação; 3. A efetiva independência de divisão entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; 4. A existência de políticas e ações concretas contra a violência e a criminalização a ativistas e aos pobres do campo e lideranças rurais; 5. Proteção contra o clientelismo e a cooptação política.

Em breve análise desses indicadores, vimos que o conjunto da obra das políticas e decisões do atual governo versam em sentido contrário as oportunidades de transformação citadas acima. A desconstituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA é um dos exemplos mais evidentes dessa política de destruição da democracia participativa, que avança assustadoramente em vários setores da vida política do país. Ou ainda o alinhamento dos meios de comunicação, centralizado e guiado por uma política anti-pluralista e anti-cidadã, focada na cobertura de agendas políticas ditadas pela elite financista e empresarial, como a reforma trabalhista e previdenciária. A desconstrução dos espaços de controle social e as tentativas de negação e revisionismo histórico da política de tortura e perseguição dos dissidentes como ocorrido na ditadura militar, são fatos preocupantes que apontam para uma realidade de reforço do modelo hegemônico. Mas mesmo num contexto tão desfavorável, a conclusão do estudo inspira a necessidade de lutar, pois o direito é resultado de um construto social dinâmico, e não um resultado automático dos marcos legais eventualmente e efemeramente civilizatório. Em suma, mesmo que as controvérsias não resultem em mudanças concretas na correlação de forças, estas são necessárias para a construção de um novo tempo e manter acesa a chama de uma sociedade verdadeiramente justa, democrática e plural.

Referências

ALMEIDA , Vicente E. S. et al . Use of Genetically Modified Crops and Pesticides in Brazil: Growing Hazards . Ciencia e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro , v. 22 , n. 10 , out . 2017 . [ Links ]

BENBROOK , Charles M . Trends in glyphosate herbicide use in the United States and globally . Environmental Sciences Europe , v. 28 , n. 3 , p. 1 – 15 , 2016 . [ Links ]

TORRES , Raquel . Carta de Antonio Andrioli sobre CTNBio . Outra Saúde , São Paulo . 22 abr . 2018 . Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/carta-de-antonio-andrioli-sobre-ctnbio/ . Acesso em: 21 jul. 2019 . [ Links ]

Vicente Eduardo Soares de Almeida1 Universidade de Brasília , Brasília , DF , Brasil.
Karen Friedrich
2 Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. Email: [email protected]

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Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)

FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144p. Resenha de: HANDFAS, Anita. Por uma escola pública, democrática, reflexiva e plena de conhecimentos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18 n.2,  2020.

Resistência ao autoritarismo; gênese e significado; educação; redes políticas; criminalização do trabalho pedagógico; avanço do irracionalismo; democracia; reestruturação curricular – esses são apenas alguns dos aspectos do proclamado movimento Escola sem Partido, tematizado ao longo da coletânea organizada por Gaudêncio Frigotto. Fruto de investigações minuciosas realizadas por dezenove pesquisadores, seu objetivo é mapear os principais aspectos do Escola sem Partido, cujas primeiras manifestações surgiram em 2004, ganhando fôlego desde então e deixando rastros cada vez mais marcantes no contexto atual de avanço do obscurantismo no Brasil.

O livro é uma obra de compreensão sociológica acerca das conexões entre educação e autoritarismo. A coletânea é composta por nove capítulos. O eixo condutor que atravessa o livro é traçado pelos princípios da escola pública, democrática e laica, em diálogo crítico com os preceitos do Escola sem Partido, como já aponta o subtítulo. Ou seja, nesse livro há um terreno comum por onde percorrem os autores, em defesa de uma escola que promova o conhecimento científico, a reflexão e o debate, princípios a partir dos quais, os capítulos buscam oferecer ao leitor um diagnóstico rigoroso do referido movimento.

Nessa direção, o livro demonstra com clareza de dados e informações que, a despeito da propalada liberdade, o Escola sem Partido constrange o professor, sufoca o trabalho pedagógico e encoraja práticas de denuncismo entre os sujeitos que convivem no espaço escolar.

Para dar conta da diversidade de olhares contemplados na coletânea, o organizador mobilizou um conjunto de temas tratados nos capítulos que lograram, por um lado, focar em características específicas do movimento e, por outro, constituir um todo do fenômeno investigado, elucidando as questões centrais sobre o que vem a ser esse movimento, assim como os impactos sobre a educação, a escola e o trabalho docente.

O livro inicia com uma apresentação de Maria Ciavatta que nos convida à reflexão, mostrando que, ao buscar a gênese do Escola sem Partido, os autores da coletânea chamam à organização e à ação todos aqueles que lutam por uma sociedade democrática e por uma educação emancipadora.

No primeiro capítulo, Gaudêncio Frigotto nos chama a atenção para a ameaça que representa o Escola sem Partido. Ao evocar a metáfora da “esfinge” e do “ovo da serpente”, adverte para os perigos da propagação da ideologia desse movimento, cujo alvo é o esvaziamento da função social da escola pública. Abrindo caminho para os capítulos seguintes, Frigotto traça um amplo panorama sobre a gênese do movimento, mostrando que a ideologia tão propalada por ele funciona, em última instância, como um mecanismo para encobrir seus interesses políticos e econômicos, tendo em vista a posição atual ocupada pelo Brasil no interior das contradições do capitalismo.

No capítulo seguinte, é a vez de Fernando Penna analisar o discurso do Escola sem Partido. O autor mostra que por detrás daquilo que muitos professores entendiam por absurdo, deboche e mesmo improvável, o movimento alcançou êxito em suas posições na escola e na sociedade, ao partir de uma estratégia discursiva simples e próxima ao senso comum que desqualifica o professor e coloca pais e responsáveis pelos alunos numa posição inquisidora. O autor destaca e analisa quatro aspectos do discurso do movimento: (1) a concepção de escolarização; (2) a desqualificação do professor; (3) a acusação da escola como espaço de ideologização, e dos docentes como militantes travestidos de professores.

O terceiro capítulo foi escrito por Betty Solano Espinosa e Felipe Campanuci Queiroz. Nele, os autores adotam a perspectiva analítica das redes sociais, para quantificar e qualificar os agentes e as ideias que formam o Escola sem Partido, buscando identificar suas interações com atores de variados espectros sociais. Ao mapear a teia de articulação existente, Bety e Felipe concluem que os membros que compõe o movimento estão vinculados a partidos políticos, instituições religiosas e grupos empresariais poderosos.

No quarto capítulo, Eveline Algebaile traça um quadro geral “do que é”, “como age” e “para que serve” o Escola sem Partido. Ao esquadrinhar a plataforma principal do movimento, um sítio virtual da internet, a autora mostra que, ao contrário do que pode parecer, o Escola sem Partido não se constitui enquanto um movimento, no sentido de agir e organizar seus adeptos orgânica e fisicamente, mas tem todas as suas ações veiculadas por meio de uma plataforma virtual, espaço onde são difundidas suas ideias e divulgadas as orientações para denúncias contra supostas práticas de doutrinação ideológica por parte dos professores.

O capítulo seguinte foi escrito por Marise Ramos e se dedica a analisar os impactos das ideias difundidas pelo Escola sem Partido sobre o trabalho pedagógico dos professores. Para tal, a autora desmonta a suposta neutralidade do ato educativo aventada pelo movimento, asseverando que as contradições e disputas por concepções de mundo presentes no espaço escolar nada mais são do que manifestações salutares inerentes ao ato de educar. Para a autora, sem isso, a escola se torna amorfa e cativa da ideologia das classes dominantes.

O sexto capítulo, escrito por Mattos et al, lembra que o debate em torno do caráter secular e democrático da educação pública vem de longa data e a atuação de grupos religiosos contra a laicidade é uma marca na história da educação brasileira. Na atualidade, segundo os autores, essas posições se revestem em ataques aos conteúdos veiculados na escola e nos livros didáticos, sob o pretexto do Escola sem Partido, de que somente aos responsáveis dos alunos caberia velar pelos valores morais, religiosos e sexuais de seus filhos.

Em seguida, o capítulo de Isabel Santa Barbara, Fabiana Lopes da Cunha e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho parte do entendimento de que historicamente a escola tem sido uma instituição normalizadora e disciplinadora da classe trabalhadora. No entanto, os autores argumentam que quando a escola passa a representar uma oportunidade real de ascensão social das camadas populares, setores conservadores interessados em preservar a hierarquia social e os valores das classes dominantes passam a atacar a escola e os professores. É neste cenário que o Escola sem Partido ganha terreno para operar por meio de mecanismos de “governamento”, no sentido de impor novas condutas e subjetividades no espaço escolar.

O oitavo capítulo, escrito por Rafael de Freitas e Souza e Tiago de Oliveira propõe uma reflexão filosófica sobre o Escola sem Partido. Partindo dos conceitos de doxa (opinião ou crença comum) e logos (razão), os autores mostram como o obscurantismo que atravessa o discurso do movimento fere os princípios da razão e do conhecimento científico na escola, garantidos inclusive pela legislação nacional, para dar lugar à opinião, ao senso comum, fortalecendo assim as crenças e convicções religiosas, como mais uma forma de atacar o conhecimento e o trabalho pedagógico realizado de forma competente pelo professor.

Fechando a coletânea, o capítulo de Paulino José Orso é propositivo de uma alternativa pedagógica e curricular que possa fazer frente ao desmonte da escola, do conhecimento e do trabalho pedagógico do professor. Nessa direção, o autor defende um currículo que contemple uma sólida formação teórica, possibilitando ao aluno uma visão crítica sobre o passado histórico e a compreensão da sociedade atual.

Com a apresentação sintética dos capítulos que compõe a coletânea Escola “sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira, fica claro que se trata de um livro da maior importância, sobretudo no contexto atual de avanço do obscurantismo do governo Bolsonaro que ataca a ciência e o conhecimento científico porque quer supor que tudo não passa de construções. A ideologia do Escola sem Partido quer fazer crer que a opinião é tão importante quanto o conhecimento, visão que nos empurra para o relativismo, tão contrário ao esforço investigativo e ao conhecimento, tão necessários para a construção de uma escola libertária. Em tempos sombrios como os que estamos enfrentando atualmente, parece ser mais uma vez oportuna a advertência feita por Saviani (2018) de que a luta pela escola democrática passa por sua articulação com a luta pela democratização da sociedade.

Nesse sentido, a coletânea em pauta é a um só tempo, um livro de denúncia e combate e por isso deve ser lido por todos aqueles que defendem uma educação pública, gratuita, laica e que contemple todas as dimensões da vida humana.

Referências

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia, 43. ed. Campinas: Autores Associados, (2018). [ Links ]

Anita Handfas – Universidade Federal do Rio de Janeiro , Faculdade de Educação , Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes , Rio de Janeiro , RJ , Brasil. E-mail: [email protected]

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Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido – PENNA et al (TES)

PENNA, Fernando; QUEIROZ, Felipe; FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018. 192p. Resenha de: AFFONSO, Cláudio. Pilares firmes contra a Arquitetura da Destruição.  Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.18, n.2, 2020.

Ao apresentar seu filme, em 1989, o sueco Peter Cohen nos convidava a um voo rasante sobre uma aldeia na qual, segundo ele, as pessoas ansiavam por um mundo mais puro e harmonioso, rejeitando as ameaças da decadência, o caos espiritual e intelectual que, segundo elas mesmas, conduziriam sua amada pátria à escuridão. Purificada do mal, protegida da degeneração moral e estética da cultura bolchevique e da degradação dos débeis, inúteis e parasitários, a nação renasceria bela, limpa e forte. Segundo Gerhard Wagner, médico-chefe do Bureau de Beleza no Trabalho, criado nos anos 1930 e retratado no filme, “se ao proletariado fosse mostrado como ele deveria se lavar e se elevar ao nível da burguesia, ele – o proletariado, entenderia que não havia porque lutar”. Um verdadeiro despertar estético libertaria os trabalhadores de sua classe e a sociedade superaria o conflito de classes. Ditas e repetidas, orquestradas e estampadas, articuladas às condições de existência daquela Alemanha, estas verdades serviram de base para a Arquitetura da Destruição que se seguiu. Para o cineasta, a tarefa de evidenciar e denunciar esta ‘arquitetura’ fundamentaria o repúdio aos regimes antidemocráticos e seu banimento da História da humanidade.

No mesmo ano de 1989, do outro lado do Atlântico, a República parecia reinaugurar-se. Na esteira dos avanços prometidos pela Constituição de 1988 e ansiados por boa parte dos brasileiros, respirava-se a noção de direito público universal, a defesa de princípios democráticos e a valorização das liberdades individuais e coletivas, abandonando os duros anos da ditadura civil militar das décadas anteriores. Se é verdade que não havia consenso em torno dos conteúdos da democracia e da cidadania, podemos afirmar com alguma convicção que cidadão – fosse o portador de direitos civis e sociais, fosse o de direitos do consumidor –, e cidadania foram os substantivos mais repetidos do período.Neste contexto, e não sem muita luta, a educação pública, laica, de qualidade e para todos parecia um projeto possível. A ressurgência de antigos movimentos sociais e o nascimento de novas formas de organização e mobilização, tanto de cunho popular quanto elitistas, dotavam a sociedade civil de feição estonteantemente dinâmica. Esperava-se a construção de uma democracia substantiva, independente do que isto quisesse dizer para os diversos grupos em disputa.

“A democracia em vertigem”, documentário lançado por Petra Costa, em 2019, testemunha um dos pontos de chegada desta disputa. Capturadas no tempo presente, as imagens emolduradas pela narrativa da própria diretora conduzem o expectador a momentos de angústia e desolação: a democracia brasileira em frangalhos.

A frase: “A bandeira do Brasil jamais será vermelha”, pronunciada no discurso de posse do atual Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019, talvez sirva de síntese metafórica daquilo que se instalou no Brasil nos anos recentes e que, como farsa – “um passado disfarçado voltando pela porta dos fundos” ( Konder, 1995 ), repete a Arquitetura da Destruição. Baseado numa espécie de milenarismo míope, ou salvacionismo débil, o regime de ódio político e intolerância, parece sustentar-se em concepções éticas, morais e estéticas que em muito fazem lembrar o irracionalismo fascista. A repulsa à Educação Democrática, e de resto, às instituições democráticas como um todo é, certamente, uma das bases fortes desta construção. Não é sem razão que a disputa pela Escola se tornou o centro aglutinador do movimento/programa/projeto/partido que, nos anos 2000, lançou-se ao combate em defesa de um Deus opressor e da Teologia da Prosperidade, da família parental, da moral machista e das ideologias ultrareacionárias e ultraliberais, autonomeando-se Escola Sem Partido (EsP) 1 .

Tudo isso para dizer: Educação Democrática: antidoto ao Escola Sem Partido, organizado por Fernando Penna, Felipe Queiroz e Gaudêncio Frigotto, é um livro imprescindível. E não apenas para quem se interessa por Educação. Lançado em 2018, reúne artigos de pesquisadores que àquela ocasião tinham assistido ao Golpe de 2016, mas não às eleições de outubro de 2018 e os primeiros meses do (des)governo Bolsonaro. Como o leitor logo perceberá, e talvez possa concordar, nem mesmo investigadores metódicos e criteriosos puderam antever o ritmo, a intensidade e a extensão da destruição que se seguiria. Aleatoriamente, mencionemos a Reforma Trabalhista, a subordinação do Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Fazenda, a liberação de um sem número de agrotóxicos, a extinção do Programa Mais Médicos e a ‘expulsão’ dos médicos cubanos em atividade no Brasil, o Decreto das Armas, os gigantescos cortes no financiamento da Educação Pública, a nomeação de Sérgio Moro Ministro da Justiça e da Segurança Pública e a avalanche de denúncias contra ele e, agora mesmo, a Reforma da Previdência. Ou, algum detalhe mais sutil, mas igualmente significativo, como a estratégia negacionista em relação ao Golpe Militar de 1964 e à Ditadura Militar que tem suscitado mecanismos de autocensura entre renomados autores e professores de História e Sociologia; ou a defesa que fez o Presidente da República ao afirmar que quer um futuro ministro do STF “terrivelmente” cristão, leia-se evangélico.

Se o livro ‘não viu tudo isto’ e, portanto, não traz a análise desta dramática conjuntura e suas implicações na fórmula do “Antídoto ao Escola sem Partido”, o que faz o livro? Aqui situa-se o ponto de inflexão mais importante que podemos tomar neste momento, segundo me parece. A obra faz ‘formação de base’, fundamenta pilares teóricos e, por que não dizer, ético-políticos para o enfrentamento que está em questão. Numa frase, tomada de empréstimo à Marise Ramos que assina a Introdução e inspirada na obra de Ellen Wood, Democracia contra capitalismo 2003, oferece muitas pistas para os que pensam que a democracia “em sua plenitude é incompatível com o capitalismo e odiada pela oligarquia dominante, não se pode lográ-la. Isto porém, não elide – ao contrário exige – a luta por sua conquista.” (p. 8).

Tomada como tarefa coletiva, a construção de pilares para o enfrentamento da desdemocratização do Brasil se faz de forma generosa e abundante ao longo dos textos. Em seu conjunto, o livro pode ser lido como resultado de três movimentos articulados: a delimitação criteriosa do ‘fenômeno’ Escola sem Partido, identificando e analisando suas bases materiais, institucionais e sua estratégia discursiva; a busca metódica das determinações históricas que conduziram à regressão das relações sociais capitalistas com a negação de seus postulados de integração dos indivíduos na diversidade social e do papel da escola no processo de socialização dos indivíduos nos valores do convívio coletivo e, a proposição de táticas de enfrentamento desta regressão, notadamente, o fortalecimento do Movimento Escola Democrática com perspectiva de gênero emancipatória. O ‘antídoto’ está, para os autores, na luta por democracia e escola democrática.

A análise do ‘fenômeno’ EsP, para o qual “O que verdadeiramente está acontecendo é que o conceito de ‘gênero’ está sendo utilizado para promover uma revolução sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar” (p.101), encontra-se em praticamente todos os textos. A diferença de ênfase talvez particularize as contribuições. Assim, os aspectos institucionais do EsP podem ser lidos em “Liberdade para a democracia: considerações sobre a institucionalidade da Escola sem Partido”, de Felipe Queiroz e Rafael Oliveira e “Direito à educação democrática: conquistas e ameaças”, de Russel da Rosa. Os aspectos discursivos são perscrutados em “Como o discurso da ‘ideologia de gênero’ ameaça o caráter democrático e plural da escola”, de Giovanna Marafon e Marina Souza; “O Movimento Escola sem Partido e a reação conservadora contra a discussão de gênero na escola”, de Fernando de Moura; “É que Narciso acha feio o que não é espelho: o ensinar e o aprender pela ótica do EsP”, de Carina Costa e Luciana Velloso e “A EsP na desdemocratização brasileira”, de Diogo Salles e Renata Silva. A análise do problema do ponto de vista das disputas históricas em torno da Escola, daquilo que Carlos Jamil Cury nomeou como “Educação e Contradição” ( 1995 ), encontra-se em “A disputa por educação democrática em sociedade antidemocrática”, de Gaudêncio Frigotto e “ Instrutio ou Educatio”, de Zacarias Gama. O centro da formulação tática encontra-se, segundo minha leitura, em “Construindo estratégias para uma luta pela educação democrática em tempos de retrocesso”, de Fernando Penna, mas também, e fortemente, no já citado texto de Giovana Marafon e Marina Souza.

Aos que sentem o ânimo combalido diante de tamanha avalanche, sirvo-me de duas imagens para concluir esta recomendação de leitura. A primeira está no Prólogo do também imperdível A era do cometa, do historiador alemão Daniel Schönpflug (2018) . Apropriando-se da tela “O cometa de Paris” (1918), de Paul Klee, ele descreve um contexto que “mirava exatamente esse limiar entre o passado e o futuro, entre a realidade e as projeções” ( Schönpflug, 2018 , p. 13). Tratava-se do ano de 1918, final da Primeira Grande Guerra Mundial e ano um da Revolução Russa. Usado como metáfora para definir um sinal do imprevisível, um arauto de grandes acontecimentos, de transformações profundas e, até mesmo, de catástrofes, o cometa representa o alvorecer de novas e impensadas possibilidades no horizonte, e futuros desconhecidos. Lembremo-nos que, percebidos ou não, cometas seguem cruzando o céu 2 .

A segunda, não menos importante, e que devemos a Gramsci, reafirmar o pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. As diversas sínteses, organizadas em artigos independentes, nos permitem avançar rapidamente na fixação de pilares firmes para a luta por democracia radical e plural.

Eis o antídoto. Eis a tarefa.

Boa leitura!

Referências

CURY, Carlos Jamil. Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenômeno educativo. SP, Cortez, 1995. 7ª ed [ Links ]

KONDER, Leandro. O novo e o velho. O Globo. 27/05/1995 [ Links ]

SCHÖNPFLUG, Daniel. A era do cometa: o fim da primeira guerra e o limiar de um novo mundo. São Paulo: Todavia, 2018, p.13 [ Links ]

Notas

1 O esforço analítico empreendido por FRIGOTTO, Gaudêncio (Org). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira . Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017 merece ser considerado pelos que desejam compreender melhor o fenômeno.

2 CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019. é mais uma luz no céu escuro.

Cláudia Affonso Colégio Pedro II , Rio de Janeiro , RJ , Bras. E-mail: [email protected]

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The New Brazilian University – A busca por resultados comercializáveis: para quem? – SILVA JUNIOR (TES)

SILVA JUNIOR, João dos R. The New Brazilian University – A busca por resultados comercializáveis: para quem?. São Paulo: Canal 6 Editora, 2017. 288 pp. Resenha de: ALVES, Giovanni. A ideologia da New Brazilian University. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.3, Rio de Janeiro,  2019.

O livro de João dos Reis Silva Júnior intitulado “The New Brazilian University – a busca por resultados comercializáveis: para quem?” (Projeto Editorial Praxis/RET, 2017), é uma importante contribuição para o entendimento da nova ofensiva do capital sobre as universidades públicas no Brasil. O livro possui uma introdução: “As tendências da universidade estatal no Brasil em face das influências dos Estados Unidos da América” e quatro capítulos nos quais o autor trata do capitalismo acadêmico na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); elementos de uma teoria do capitalismo acadêmico; a mundalização financeira, Estado neoliberal e as mudanças nas universidades em âmbito mundial (World Class University); e o novo papel da universidade estatal brasileira. É um livro interessante (e necessário) que preenche a lacuna de uma crítica da nova organização neoliberal da instituição ‘universidade estatal’ com impactos na natureza da produção do conhecimento e na atividade de trabalho do professor-pesquisador (o que nos ajuda a entender uma nova dimensão da precarização do trabalho docente).

O autor disseca o histórico e a natureza do ‘capitalismo acadêmico’, como ele denomina uma academia que busca resultados comercializáveis. Ao colocar-se no seio do capitalismo acadêmico por excelência, os Estados Unidos da América (Silva Júnior realizou este estudo durante sua estadia na Arizona State University), o autor situou-se num território privilegiado para exercer a crítica de um paradigma acadêmico que se disseminou pelo mundo global.

O título em inglês do livro, tal como a imagem mitológica da capa (Saturno devorando seus filhos), possuem candentes significados: a imagem da capa intitulada “Saturno” (de Peper Paulo Rubens, 1577-1640), é a metáfora suprema do capital devorando a civilização que no século XXI assume seu patamar histórico mais elevado, com o capitalismo neoliberal. O título em inglês do livro de Silva Júnior não é gratuito – é a expressão da colonização neoliberal da universidade, uma das instituições mais caras da civilização humana. No caso do Brasil, pelo menos desde a década de 1990, o capitalismo neoliberal significou o aprofundamento de tendências instauradas pela ditadura militar (1964-1984). O capítulo 1 do livro, no qual o autor tratou do capitalismo acadêmico na UFMG, expõe a visada histórica desde 1967. A miséria neoliberal no Brasil é, de certo modo, uma herança maldita da ditadura militar.

O autor abre o capítulo 1 com um estudo sobre a UFMG, o concreto com base no qual o autor disseca teoricamente – nos capítulos seguintes – as múltiplas determinações do capitalismo acadêmico e as perspectivas da universidade brasileira no século XXI. Silva Júnior reconhece o primado do objeto concreto segundo o qual ele vai expor a totalidade histórica da mundialização financeira, o Estado neoliberal no Brasil e as profundas mutações do processo de produção do conhecimento na era do capitalismo global que leva a forma-mercadoria do conhecimento à sua dimensão exaustiva – ou melhor, adequando a formulação à imagem mitológica da capa do livro, à sua dimensão autofágica.

O capital como sujeito automático da autovalorização do valor devora sua própria cria. A autofagia do capital expõe uma densa (e íntima) contradição que percorre a própria natureza do processo: valor de uso versus valor de troca, processo de trabalho versus processo de valorização, natureza e capital. Silva Júnior busca dissecar o processo de transformação da produção do conhecimento nas condições históricas da mundialização financeira do capital. O professor-pesquisador tornou-se trabalhador industrial – especializado – no sentido de estar mais próximo dos interesses da grande indústria (ou fazer parte da complexa cadeia de produção de valor na era das revoluções tecnológicas).

A forma-mercadoria complexa exige a adequação da cultura institucional das universidades como polo de produção de conhecimentos, um conhecimento que busca resultados comercializáveis. A nova forma institucional que a universidade brasileira deve adotar é o que Silva Júnior denomina “The New Brazilian University”. O nome é a marca. O foco do estudo no polo historicamente mais desenvolvido – as universidades estadunidenses – permite afirmar o preceito metodológico marxiano: “a anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco” (Marx, 2011, p. 58); ou seja, o mais desenvolvido explica o menos desenvolvido. Foi nos EUA que Silva Júnior descobriu o DNA da nova cultura institucional da universidade brasileira. A New Brazilian University ou a cultura institucional do capitalismo acadêmico no Brasil, que se corporifica nas universidades públicas que produzem conhecimento em parceria com a empresa privada.

A parceria da empresa privada com a universidade pública é o modo institucional de espoliação do fundo público pelo capital. A ‘New Brazilian University’ é a cultura do regime de acumulação por espoliação, adequado não apenas à mundialização financeira do capital que encontra nos EUA seu polo mais desenvolvido, mas a tradição oligárquica do capitalismo brasileiro na qual o público, desde as priscas eras do capitalismo colonial-escravista, confunde-se com o interesse do privado oligárquico.

A nova cultura institucional da universidade brasileira tem um impacto no processo de trabalho do professor pesquisador. Na verdade, ela explica – em última instância – a precarização do trabalho docente nas universidades públicas e privadas que incorporam as formas derivadas da lógica do valor, ou aquilo que Marx denominou trabalho abstrato (a forma do trabalho que produz valor, e, portanto, o fundamento da forma-mercadoria). Silva Júnior tem uma vasta reflexão sobre o trabalho alienado (ou estranhado) do professor nas universidades públicas, tendo portanto investigado as formas de degradação do trabalho do professor-pesquisador nas universidades no mundo do capital na sua cotidianidade. Não podemos esquecer que o estranhamento (Entfremdung) – como categoria lukacsiana – é, “em grande medida, também um fenômeno ideológico, [e] que em particular a luta individual-subjetiva de libertação do estranhamento possui um caráter essencialmente ideológico” (Lukács, 2013, p. 637). A ‘New Brazilian University’ é uma poderosa ideologia do capital no mundo acadêmico brasileiro. Ela move corações e mentes da vaidade e labor acadêmicos tendo, como telos efetivo, a busca por resultados comercializáveis. Portanto, a ideologia da ‘New Brazilian University’ é um componente ineliminável de “precarização da pessoa humana que trabalha” como professor pesquisador nas universidades brasileiras (Alves, 2016, p. 210).

Diante da crise estrutural de financiamento público das universidades brasileiras, a elite dirigente do ensino superior no Brasil proclama o modelo da ‘New Brazilian University’. Não poderia ser diferente – de FHC a Bolsonaro, passando por Lula, Dilma e Temer, a lógica do capitalismo acadêmico se impõe como modo de produção do capital em sua etapa de declínio histórico (o que explica sua dimensão autofágica).

Silva Junior tem uma formação marxista de base ontológica que lhe permite enriquecer o veio crítico, evitando reducionismos e determinismos mecanicistas. Neste livro, o autor nos conduz a entender as determinações estruturais e institucionais do estranhamento do trabalho nas universidade brasileiras, com o conceito de ‘New Brazilian University’, operando com riqueza, a crítica do capitalismo acadêmico. A análise da Reforma do Estado na era neoliberal no Brasil, o complexo jurídico-institucional que regulamenta a educação superior brasileira, os caminhos da commodification da produção do conhecimento na universidade brasileira, coloca o livro de Silva Júnior como sendo a crítica mais contundente da manifestação histórica da lógica capitalista na instituição universitária no Brasil – e quiçá, no mundo global. Mas, Silva Júnior não perde a particularidade concreta. Embora analise a universidade nos Estados Unidos, seu interesse é a crítica do trabalho na universidade brasileira, o que credencia a sua análise crítica com a força da dialética.

Referências

ALVES, Giovanni. A tragédia de Prometeu: a degradação da pessoa humana que trabalha na era do capitalismo manipulatório. Bauru: Praxis editorial, 2016. [ Links ]

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo editorial, 2013. [ Links ]

MARX, Karl. Grundrisse – Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo editorial, 2011. [ Links ]

Giovanni Alves – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Marília, São Paulo, Brasil. <[email protected]>

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Cultura, politecnia e imagem – ALBUQUERQUE et al (TES)

ALBURQUERQUE, Gregorio G. de; VELASQUES, Muza C. C; BATISTELLA, Renata Reis C. Cultura, politecnia e imagem. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. 318 pp. Resenha de: GOMES, Luiz Augusto de Oliveira. A materialidade da cultura: uma nova forma de ler o mundo. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.2, Rio de Janeiro,  2019.

O livro Cultura, politecnia e imagem,organizado por Gregorio Galvão de Albuquerque, Muza Clara Chaves Velasques e Renata Reis C. Batistella, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz, apresenta um panorama ampliado do conceito de cultura a partir de três eixos de análise que se complementam: (1) Cultura, educação, trabalho e saúde; (2) Cultura, educação e imagem; e, (3) Cultura e cinema. Os 20 autores que assinam os 15 artigos do livro apresentam importantes contribuições para compreender a materialidade da cultura nos tempos atuais.

No eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, ao debater cultura, os autores se fundamentam especialmente no materialismo histórico dialético para refletir sobre o conceito ampliado do termo. É interessante observar a defesa de uma concepção de cultura imbricada dialeticamente com todas as instâncias dos processos de produção da vida social, refutando a tradição idealista que busca na cultura algo puro e apartado do “reino dos conflitos e contradições” (p. 25). Além da crítica ao idealismo, é crucial destacar as reflexões acerca das obras de Eduard Palmer Thompson e Raymond Willians, pensadores da chamada nova esquerda britânica, para desconstruir a leitura de um marxismo dogmático e fundado no reducionismo econômico, que hierarquiza base/superestrutura e plasma a cultura no plano da ‘superestrutura’, desvinculada das relações sociais de produção (infraestrutura). Quanto às relações dialéticas entre estrutura e superestrutura, assim como Thompson (1979, p. 315) podemos dizer que “o que há são duas coisas que constituem as duas faces de uma mesma moeda”. Ao ter em conta os nexos entre economia e cultura, podemos perceber que a “dimensão cultural das sociedades são espaços dinâmicos permeados por conflitos de interesses” (p. 88), espaços onde estão presentes tanto o consenso quanto disputas por uma nova hegemonia. Essa constatação vai ao encontro das palavras de Thompson (1981, p. 190) de que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, valores esses que constituem a cultura, cuja base material deve ser investigada e considerada na análise do movimento do real.

É um desafio compreender o conceito de cultura não apenas como campo de consenso. Como nos informa o eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, a cultura pode ser entendida como resultado das ações dos homens e mulheres sobre o mundo. Em última instância, “ela se torna o próprio ambiente do ser humano no qual ele é formado, apropriando-se de valores, crenças, objetos, conhecimentos” (p. 99).

A obra de Clifford Geertz, trabalhada em um dos artigos do livro, também contribui para o debate sobre cultura, principalmente por abordar os modos de vida e discursos dos grupos vulneráveis ou excluídos. A noção de comportamento humano de Geertz é uma ótima ponte para aproximar a antropologia da discussão a respeito da compreensão do processo saúde-doença. A autora do artigo afirma que a contribuição de Geertz e a sua antropologia “é muito favorável para a inclusão do ponto de vista dos pacientes e usuários dos serviços na análise das questões de saúde, principalmente no atual contexto, no qual o discurso médico é dominante” (p. 114).

No segundo eixo, intitulado “Cultura, educação e imagem”, os autores tratam da construção de conhecimento por meio das imagens. Esse eixo, em especial, nos favorece a compreensão das imagens como mediação em espaços formativos, sejam eles institucional (como a escola) ou qualquer outro espaço de educação dos sujeitos coletivos. Para isso, os autores buscam principalmente nas experiências em sala de aula mostrar como, por intermédio da cultura (em especial, da imagem), é possível outra leitura do mundo.

Com isso, concordamos com Kosik (1976) quando entende que compreender a vida para além da sociedade fetichizada − que toma a coisas no seu isolamento, adota a essência pelo fenômeno, a mediação pelo imediatismo−, é um exercício de apreensão da totalidade do cotidiano. Por isso, tendo em conta a pseudoconcreticidade com que o mundo se apresenta, os autores indicam que na sociedade capitalista, onde “o urbano passa a ser uma sucessão de imagens e sensações produzidas e reproduzidas pelos indivíduos que criam uma condição fragmentada da vida moderna” (p. 88), crianças, jovens e adultos buscam nas imagens divulgadas nas mídias (televisão e redes sociais) a construção de si mesmos e do mundo.

Na lógica do capital, a imagem exerce um papel importante na manutenção da hegemonia, impondo valores e transferindo os desejos da burguesia para a classe trabalhadora. Como constata um dos artigos, a “dissolução da forma burguesa mantém-se no contínuo da passividade dos sujeitos sociais, arraigando assim uma violência subjetiva terrorista, como reconhecer e alterar este mundo […] a colonização estética dos sentidos é perversa” (p. 160).

Sabemos que a educação é apropriada pelo capitalismo como formadora de consenso: “forma-mercadoria e forma estatal como princípio de organização da vida social, impregnando a subjetividade humana de práticas autorrepressivas no que diz respeito aos seus impulsos de felicidade e liberdade” (p. 170). A leitura do eixo “Cultura, educação e imagem” reforça que o “viés questionador, transformador e revolucionário da reflexão e da produção cultural podem possibilitar uma nova forma de ler do mundo” (p. 143). Os artigos nos ajudam a compreender que a imagem é uma potente ferramenta, constituindo-se como mediação tanto revolucionária quanto para manter o status quoda classe econômica e culturalmente dominante.

Por fim, no último eixo, “Cultura e cinema”, os autores nos convidam a conhecer a discussão acerca da cultura e da imagem com base em consistentes formulações teóricas que envolvem a produção do cinema e os seus nexos com as práticas escolares. Neste eixo, podemos destacar que é de grande importância a crítica direcionada às produções acadêmicas que corroboram para que a “análise de filmes seja percebida ainda como uma forma acessória de se atingir uma compreensão sobre a realidade social” (p. 231), ou seja, esse tipo de análise trata a produção do cinema como uma mera fonte de registro e que para compor uma análise da sociedade necessitam de outros tipos de fontes.

Em seus quatro artigos, o eixo “Cultura e cinema” procura demonstrar como a produção fílmica é uma fonte histórica de grande relevância para analisar a sociedade a partir de uma “concepção estético-política” (p. 232). Busca na interpretação do filme “Terra em Transe”, do diretor Glauber Rocha, elementos importantes para a leitura dos acontecimentos do golpe empresarial-militar de 1964 e as variadas interpretações do seu sentido nos dias atuais. O filme é “uma síntese devastadora do processo de luta de classes no Brasil e na América Latina dos anos 1960 como núcleo duro permeando todas as relações sociais reais, demole todos os discursos de legitimação dos projetos colonizadores” (p. 254). A produção em questão nos ajuda a compreender a potência do cinema na captação do real e de como a organização formal e estética em imagem e som nos auxilia na percepção das disputas de classe ocorridas no período.

A concepção de romper com um olhar naturalizado sobre a sociedade de classes é um dos intuitos das produções fílmicas alternativas, em especial na conturbada América Latina do século XX. Assim, o Nuevo Cine Latinoamericanomarcou o cinema latino-americano, buscando em produções militantes, conscientizar trabalhadores e trabalhadoras a sair das suas ‘zonas de conforto’. Essa concepção de cinema buscou possibilitar, como nos indica um dos artigos, “uma nova leitura do mundo, e uma nova forma de pensar a nossa realidade, características fundamentais para a transformação social” (p. 287).

Assim como os longas-metragens, os documentários também contribuem para narrar os conflitos de classe. Como sinaliza uma das autoras, o documentário tem o poder de relacionar a antropologia, a arte visual e a produção cinematográfica para contar uma história. Com isso, os documentários sustentam o “mito de origem de falarem a verdade” (p. 258). Todavia, o eixo nos leva a refletir: Qual verdade? Verdade para quem? O livro nos convida a encarar o documentário como um gênero de grande importância para a pesquisa social.

O rico debate teórico com base na materialidade da cultura alicerçada nas pesquisas dos autores, seja em sala de aula ou na análise de imagens e filmes, ajuda-nos a entender a profundidade do conceito de cultura e a sua potência como agente da transformação social. O livro nos elucida quanto à necessidade de que a classe trabalhadora se aproprie e interprete sua própria cultura, descolonizando-se da hegemonia cultural da burguesia, para assim buscar a sua emancipação plena.

O livro Cultura, politecnia e imagemé um prato cheio para quem busca superar a concepção idealista de cultura, compreendendo-a na sua totalidade, em diversos espaços-tempos históricos, tendo em conta as relações dialéticas entre economia, cultura e outras determinações sociais, e em especial as experiências coletivas da classe trabalhadora. Nos três eixos temáticos, o conjunto de autores desenvolve formulações teóricas com evidências empíricas de que a cultura e os processos educativos que a elegem como objeto de estudo e de compreensão da realidade podem fermentar os germes de projetos de transformação social.

Referências

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. Tradición, revuelta y cons- ciência de classe. Barcelona: Crítica, 1979. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. [ Links ]

Luiz Augusto de Oliveira Gomes – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalho docente sob fogo cruzado – MAGALHÃES et al (TES)

MAGALHÃES, Jonas E. P.; AFFONSO, Claudia R. A.; NEPOMUCENO, Vera Lucia da C.. Trabalho docente sob fogo cruzado. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 268 pp. Resenha de:  BOMFIM, Maria Inês. Precarização estrutural do trabalho docente: o fim do professor intelectual? Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.3, Rio de Janeiro, 2019.

Trabalho docente sob fogo cruzado é uma coletânea organizada por Jonas Magalhães, Cláudia Affonso e Vera Nepomuceno, reunindo 12 capítulos que analisam, de forma crítica e sob perspectivas diversas, a desvalorização do trabalho docente, em tempos de precarização estrutural do trabalho (Antunes, 2018).

Com prefácio e apresentação de Gaudêncio Frigotto e Marise Ramos, respectivamente, o livro reúne estudos de pesquisadores membros do Grupo de Estudos Trabalho, Práxis e Formação Docente vinculado ao Grupo de Pesquisa THESE-Projetos Integrados de Pesquisas em História, Educação e Saúde (UFF/UERJ/EPSJV/FIOCRUZ) e de outros autores convidados, abordando ‘questões de natureza política, socioeconômica e ideológica’ sobre o trabalho docente. Dentre elas, assegurando a especificidade que o tema requer, a mecanização do trabalho na escola e a expropriação da subjetividade docente, em especial desde a década de 1990.

No Capítulo 1 da coletânea, “Trabalho de professor no fio da navalha: reengenharia das escolas e reestruturação produtiva em tempos de Escola Sem Partido”, Cláudia Affonso articula três dimensões centrais que estarão, também, presentes em outros capítulos: “a reestruturação produtiva das escolas, a Reforma do Ensino Médio e o avanço do Movimento Escola Sem Partido” (p. 4). Retomando o rico debate sobre a natureza do trabalho, analisa os sentidos conferidos à profissionalização docente nas últimas décadas por autores de matrizes teóricas diversas, e problematiza os limites da autonomia docente na atualidade. A participação docente desqualificada, que restringe a condição de intelectual dos professores no processo de ensino aprendizagem, articulada às implicações trazidas pela Reforma do Ensino Médio (2017) e, ainda, ao fortalecimento de ideologias de criminalização sinalizam duas preocupantes tendências: o esvaziamento da prática docente e o desemprego de professores.

Valéria Moreira é a autora do Capítulo 2, “A organização do trabalho do professor e a qualidade do ensino”. A autora busca apreender a “inviabilização da incorporação do trabalho ao objeto do trabalho” (p. 28), processo vivido pelos professores de Sociologia, em virtude da redução da carga horária da disciplina na proposta curricular do Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro. Discutindo o processo de trabalho, em geral, o processo de trabalho no século XX e o trabalho docente na atualidade, toma como objeto de estudo a emblemática materialidade fluminense, na qual os professores da rede estadual resistem às condições de trabalho severamente precarizadas.

“Carrera profesional docente en Chile: la construcción de un nuevo modo de ser profesor” é o terceiro capítulo da coletânea, escrito por Paulina Cavieres. O Chile, precursor do ciclo neoliberal que atingiu boa parte do mundo, possui uma legislação extremamente hierarquizada em relação à carreira docente, na qual os professores são permanentemente avaliados e certificados, o que estimula a promoção de certo tipo de subjetividade docente ‘assujeitada’. Diante desse quadro, a autora defende a potencialidade das chamadas ‘linhas de fuga’ (Miranda, 2000), que explicitam a resistência dos professores chilenos às novas formas de controle docente.

O quarto capítulo, “História da docência e autonomia profissional: notas sobre experiências em Portugal, Quebec (de língua francesa) e Canadá”, de Danielle Ribeiro, destaca a atualidade do movimento pela profissionalização docente. Recuperando, historicamente, avanços e retrocessos na constituição da profissionalização docente, problematiza os limites impostos à conquista da autonomia docente, aspecto central na luta pela ‘profissionalidade’. Na contemporaneidade, analisa os debates sobre autonomia docente em Portugal, Quebec e no restante do Canadá, evidenciado suas ambivalências, singularidades e conflitos.

Vera Nepomuceno é a autora do Capítulo 5, cujo título é “Reforma do Ensino Médio: uma estratégia do capital?”. O estudo sublinha os nexos históricos entre a dualidade estrutural na educação, os interesses da burguesia brasileira e a intensificação da escala e da profundidade da associação entre o público e o privado, com destaque para o protagonismo de fundações e instituições empresariais nas decisões do Estado, ignorando as condições concretas das escolas e dos jovens.

“Da ‘desnecessidade’ da educação à ‘desnecessidade’ do trabalho docente no Ensino Médio” é o título do Capítulo 6, escrito por Cláudio Fernandes. O tema é, igualmente, a Reforma do Ensino Médio e suas implicações para o trabalho docente, mas sob outra perspectiva.

Para o autor, a reforma de 2017 revelou-se como a continuidade e o aprofundamento da reforma realizada nos anos 1990, ambas marcadas pelas demandas da empresa flexível. Os efeitos dessa flexibilização configuram, na atualidade, a ‘desnecessidade’ tanto da educação como do trabalho docente, ainda que de forma contraditória. Buscando a materialidade que a reflexão requer, o estudo analisa a proposta implementada no Rio de Janeiro, produzida pelo Instituto Ayrton Senna (IAS), denominada de ‘Solução Educativa para o Ensino Médio’.

Amanda da Silva é a autora do Capítulo 7, intitulado “A presença de frações da classe burguesa na educação pública brasileira e as interferências no trabalho docente”. A análise parte da teoria de Estado como uma relação permeada de contradições. O conceito de ‘bloco no poder’ (Poulantzas, 1977), ganha centralidade na investigação sobre as ações empresariais no âmbito do Estado, mediante parcerias público-privadas. O trabalhador docente, nesse projeto da burguesia, tem sua autonomia severamente ameaçada.

O Capítulo 8 da coletânea é “Qual escola? Para que sociedade? Desafios da formação docente em um contexto de contrarreforma e retrocessos na gestão da educação pública brasileira”, de autoria de Maria Aparecida Ribeiro. Com base em um estudo de caso que retrata o percurso formativo de um aluno de licenciatura em Filosofia, suas conquistas, desafios e descobertas, a autora traz uma inquietante indagação: “como atuar na formação docente neste contexto de severa intervenção político-governamental nos processos de escolarização?” (p. 151).

Francisca Oliveira, por sua vez, aborda políticas regulatórias para o magistério no Capítulo 9, cujo título é “O Fundeb e a Política Nacional de Formação de Professores da Educação Básica: uma nova regulação para a valorização do trabalho docente?” A autora prioriza as políticas sancionadas no segundo mandato do presidente Lula da Silva (2003-2010), sendo o recorte empírico o estado do Ceará. A Política Nacional de Formação de Professores para o Magistério da Educação Básica, com suas ambivalências e o Fundeb, com suas contradições, são os alvos da análise apresentada no capítulo.

O Capítulo 10, escrito por Maria da Conceição Freitas, tem como título “Trabalho docente no ideário do materialismo histórico- dialético- Redecentro: 2010 a 2014”. A Redecentro é uma rede de pesquisadores do Centro-Oeste brasileiro, com a participação de sete universidades, em busca da qualidade nas produções acadêmicas, considerando duas lógicas: a mercadológica e a que, com base na ética e na relevância social, inclui a emancipação e a formação crítica e integral dos pesquisadores. A autora recupera diferentes tendências presentes na literatura internacional sobre trabalho docente e profissionalismo, apresentando dados referentes à produção acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília no período de 2010 a 2014.

Fechando o conjunto de textos da coletânea, Jonas Emanuel Magalhães é o autor do Capítulo 11: “Saberes docentes e epistemologia da prática: apontamentos críticos e possibilidades de investigação a partir do materialismo histórico-dialético”. Trata-se de estudo sobre conceitos que ganharam expressiva importância nos processos de formação inicial e continuada de professores nas últimas décadas, com base nas produções de vários autores, particularmente Maurice Tardif, principal referência sobre o tema no Brasil.

Uma primeira vertente de análise questiona se a ‘epistemologia da prática’ proposta por Tardif não estaria promovendo a secundarização da base científica necessária à formação docente, visto que “a produção de saberes da prática e pela experiência não implica necessariamente a compreensão efetiva dos fenômenos” (p. 204). Tendo em mente as categorias saber, ‘ação, interação, cultura e experiência’ propostas por Tardif (2002), o autor propõe o conceito de ‘consciência socioprofissional’, no qual o saber analítico sobre o trabalho se destaca, na sua historicidade, diferenciando-se do conceito de ‘consciência profissional’, proposto por Tardif.

Por fim, o Capítulo 12 traz a entrevista realizada com o historiador Fernando Penna, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, intitulada “Projeto Escola sem Partido: a ofensiva ultraconservadora contra o professor”.

As origens do movimento e sua ascensão nos últimos anos, particularmente quando se articulou a outros grupos reacionários, permitiram a Fernando Penna, destacar um aspecto de extrema relevância, isto é, o ódio direcionado à figura do professor, com fortes implicações para o esvaziamento da função docente. No plano legal, modelos de projetos de lei foram replicados pelo movimento, sendo aprovada a Lei Escola Livre, em Alagoas, alvo de ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. A disputa, porém, não ocorre apenas no plano legal, mas, também, no plano ideológico, marcado por uma determinada concepção de ética profissional docente contrária à autonomia do professor. Diante disso, em tempos de trabalho docente sob fogo cruzado, a resistência precisará ser ativa, articulada e permanente.

Referências

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. 325p. [ Links ]

MIRANDA, Luciana L. Subjetividade: a (des) construção de um conceito. In: SOUZA, Solange J. (org.) Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 29-45. [ Links ]

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977. [ Links ]

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. [ Links ]

Maria Inês Bomfim – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação – LIMA (TES)

LIMA, Marcelo. Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação. Curitiba: CRV, 2016. 130p. Resenha de: VENTURA, Jaqueline. Mercado e formação: uma análise crítica da mercantilização da educação profissional no Brasil. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Riov.17, n.1, Rio de Janeiro, 2019.

Em Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação, o professor Marcelo Lima, da Universidade Federal do Espírito Santo, faz um convite à reflexão crítica baseado em uma inquietante constatação: a mercantilização da educação e, em particular, da educação profissional.

O trocadilho do título, entre ‘mercado e formação’, traduz o atual movimento de ampliação do caráter privatizante da formação humana. O livro é composto por seis artigos que nos conduzem a refletir sobre como o viés economicista da educação e, em especial, da qualificação profissional, manifesta-se, atualmente, em dois planos simultâneos: a educação como serviço e a educação como mercadoria.

O primeiro capítulo, “Juventude, Trabalho e Educação”, abre o debate com uma reflexão sobre o papel da educação e do trabalho nos dias atuais, relacionando tal debate à situação da juventude no Brasil. O desemprego e a violência no contexto social contemporâneo são discutidos à luz de conceitos como desigualdade, urbanização, ética, educação, invisibilidade e alteridade.

Na sequência, em “A dialética trabalho e educação”, o autor busca no marxismo as referências teórico-metodológicas para discutir o processo de autoprodução humana que fundamenta epistemologicamente a pesquisa tratada no livro. Com o título “A qualificação e as mudanças no mundo do trabalho”, o terceiro capítulo discute como se dá a qualificação atualmente, considerando as mudanças no mundo do trabalho e suas consequências para a educação profissional.

No capítulo “O desenvolvimento histórico do tempo socialmente necessário para a formação profissional do técnico em eletrotécnica na rede federal”, a obra traz um importante e original debate sobre o conceito de ‘tempo socialmente necessário para formação profissional’, um conceito que relaciona os tempos produtivos e os tempos educativos. O autor demonstra que há uma tendência de diminuição desse tempo de formação.

Com base em um estudo empírico sobre o tempo de formação do técnico em eletrotécnica na rede federal do Espírito Santo, o autor conclui que houve uma espécie de ’reconfiguração‘ gradativa dos tempos relativos à formação em diferentes áreas, revelando diferentes concepções pedagógicas para os diversos momentos históricos.

Constata-se que, atualmente, as políticas produzidas na lógica do mercado, como, por exemplo, os cursos do Pronatec – com currículo estreito, imediatista e de baixa carga horária – tendem a esvaziar a base temporal desses currículos para fins de uma formação voltada mais para o trabalho simples do que para o trabalho complexo. Esse movimento restringe a educação às necessidades do campo econômico. Desse modo,

Segundo a perspectiva do discurso hegemônico, um dos meios para superar a suposta carência de formação da força de trabalho brasileira, considerada responsável pela não competitividade do Brasil a nível mundial, é a expansão acelerada da qualificação, bem como o acesso a diferentes níveis de certificação.

Essa diretriz tem criado um lucrativo mercado de transferência de recursos públicos para instituições privadas, ao expandir as vias formativas de caráter precário e aligeirado na rede privada e ampliar as possibilidades de certificação, realizadas, em sua maioria, com negação do direito ao conhecimento. (Ventura, Lessa e Souza, 2018, p. 158)

Na sequência, o capítulo quinto, “Expansão da rede federal: mercantilização e flexibilidade”, analisa as metamorfoses da rede federal de educação profissional, tomando como base empírica o desenvolvimento histórico dos modelos pedagógicos dessa modalidade de ensino ofertada pelo governo federal no estado do Espírito Santo.

Interessante notar que, ao longo da história, foram construídas marcas identitárias distintas para essa instituição educacional. Desde as escolas de aprendizes artífices até os institutos federais de hoje, cada período foi marcado por um tipo de homem que se deseja formar, ou seja, por um projeto educativo que caracterizou o projeto formativo da instituição.

No atual momento histórico, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em um movimento de ampliação e expansão de seu foco, abrangem de cursos de formação inicial e continuada (FIC) até a Pós-Graduação Stricto Sensu. Assim, a flexibilidade e a diversificação de oferta de cursos marcam a sua identidade hoje.

Esse movimento “pseudocria” o direito à educação (expande a rede federal, mas subsidia o setor privado), escondendo seu principal objetivo que é: resolver problema de formação para o mercado pela via da criação do mercado da formação. A criação desse híbrido, anfíbio e IFLEX permite a construção de uma identidade movente e fluída, elástica e adaptável às demandas do mercado. Combinar políticas neodesenvolvimentistas com políticas neoliberais coloca o governo e sua política numa encruzilhada que expressa uma ambiguidade ideológica, mas no fundo se alicerça na complementaridade de ações concretas que se estruturam na flexibilização e na heterogeneização dos tipos de oferta (e de ofertantes) da educação profissional, com o fito de resolver o (pseudo) problema de formar para o mercado pela via do fomento do mercado da formação . ( Lima, 2016 , p. 105, grifo nosso)

Encerra o livro o capítulo “Centros Públicos de Qualificação Profissional”, com a defesa de se reafirmar o caráter público da formação dos trabalhadores. Esse capítulo retoma a proposta de centros públicos de educação, defendida pelo grupo de trabalho nº 09 – Trabalho e Educação, da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – Anped, em meados da década de 1990 e reafirma a atualidade desta proposta contra-hegemônica.

O capítulo chama a atenção para o fato de que a educação profissional básica, relacionada ao ensino fundamental, voltada para a formação em ocupações subtécnicas, seja oriunda do sistema S ou das políticas do Ministério do Trabalho e Emprego, como o o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, cursos de formação inicial e continuada (Proeja-FIC) ou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), apresenta, de modo geral, currículos restritos, com conteúdo de menor complexidade e com uma leitura superficial da ciência e o domínio prático das atividades de produção.

Em suma, um currículo que reproduz as posições subalternas dos trabalhadores manuais. Além disso, o “processo de minimização da intervenção do estado nas áreas sociais também tende a diminuir a qualidade e quantidade da oferta escolar tipicamente estatal” ( Lima, 2016 , p. 124).

Em perspectiva contrária à oferta privada de educação profissional, o autor apresenta a proposta do centro público de educação profissional. Essa proposta alternativa, o projeto do Centro de Referência do Trabalho, a ’Fábrica do Trabalho‘, executado pela Secretaria de Trabalho e Geração de Renda da prefeitura de Vitória, em 2006, decorreu da crítica à lógica mercantil e significou uma alternativa pública, proposta pelo campo crítico.

A materialização do projeto ’Fábrica do Trabalho‘ não ocorreu. Embora a obra das instalações físicas tenha sido construída, disputas políticas internas fizeram com que o projeto político-pedagógico original não chegasse a ser efetivado.

Na conclusão, o autor chama atenção para o seguinte: a concepção privatista da formação profissional associada “à mediocridade política vigente, que se alicerça no personalismo e no marketing eleitoral, num momento de perda de hegemonia do governo do qual emergiu esse projeto” ( Lima, 2016 , p. 125, grifo do autor) inviabilizou a construção desse centro público de educação profissional.

A obra em exame, Trabalho e Educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação , é fruto de um estudo apurado e crítico. É um livro produzido por quem está preocupado em elucidar e transformar a realidade social e, por isso, é uma valiosa contribuição ao nosso pensar e fazer transformador também.

Ela nos oferece uma boa reflexão sobre as relações entre mercado e formação. E, principalmente, nos três últimos capítulos, oferece-nos uma análise crítica sobre a mercantilização da educação profissional no Brasil.

Referências

LIMA , Marcelo . Trabalho e educação no Brasil: da formação para o mercado ao mercado da formação . Curitiba : CRV , 2016 , 130 p. [ Links ]

VENTURA , Jaqueline P. ; LESSA , Ludmila L. ; SOUZA , Samantha C. V. Pronatec: ampliação das ações fragmentárias e intensificação da privatização da formação do trabalhador . Revista Trabalho Necessário , ano 16 , n. 30 , 2018 . [ Links ]

Jaqueline VenturaUniversidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação , Niterói , RJ , Brasil. E-mail: [email protected]

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[MLPDB]

Saúde e educação: um encontro plural – BERTICCI; SCHRAIBER (TES)

BERTICCI, Liane Maria; MOTA, André; SCHRAIBER, Lilia B.. (Orgs.). Saúde e educação: um encontro plural. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 326 p.p. Resenha de: RUELA, Helifrancis Condé Groppo. Encontros e diálogos entre a saúde e a educação no Brasil. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.17, n.1, 2019

Saúde e Educação: um encontro plural é o nome da obra organizada por Liane Maria Bertucci, André Mota e Lilia Blima Shraiber que foi publicada pela Editora Fiocruz em 2017. O livro promove o encontro de historiadores, educadores, médicos e cientistas sociais que se dedicam e dialogam com o processo histórico de construção da relação entre a saúde e a educação, sobretudo no Brasil do século XX, e que têm como referencial condutor a historiografia brasileira. Os 14 capítulos estão agrupados em três partes temáticas que trataremos na sequência, quais sejam: Formação Profissional; Campanhas e Práticas de Prevenção; e O Universo Escolar.

A primeira parte, composta por quatro capítulos, inicia com “Saúde e Educação: a formação profissional entre princípios do século XX e do XXI”. Neste capítulo a autora analisa as influências do Relatório Flexner na formação médica na América Latina e como a maioria das instituições incorporou as recomendações sugeridas pelo documento, a saber: privilégio da biomedicina, incorporação de tecnologias, ensino por disciplinas e divisão dos currículos por ciclos. Aponta também que houve uma importante mudança depois da segunda metade do século XX, quando organismos como a OPAS e a OMS passaram a sugerir uma revisão nos currículos dos cursos da área da saúde, visando uma formação que superasse a proposta de ciclos (básico, pré-clínico e clínico) e promovesse uma integração e harmonização entre os conteúdos e a inserção mais precoce dos estudantes nos serviços de saúde locais.

O texto seguinte, intitulado “Educação, Higiene e Profissão em Debate nos Congressos de Medicina Latino-Americanos e Brasileiros”, resgata a realização dos Congressos científicos de medicina no continente latino-americano na virada do século XX para o XXI e suas participações na consolidação profissional do médico no período. Com base nos documentos desses eventos foi possível demonstrar a tensão no processo de regulamentação e construção do campo de atuação enquanto áreas autônomas não só da profissão médica, mas também de outras áreas profissionais como a farmácia, a odontologia e a enfermagem.

Já o terceiro capítulo, “Diplomadas de 1946: o novo modelo de formação norte-americano e a Escola de enfermagem do Centro Médico da Faculdade de Medicina de São Paulo”, tem como objetivo contribuir para a análise histórica do movimento político e social que alterou a formação e a identidade profissional no Brasil pós-1930. Para isto foram tomados depoimentos das 16 egressas da primeira turma da Escola de Enfermagem de São Paulo.

No último capítulo dessa primeira parte, intitulado “A Cooperação Opas-Brasil na Formação de Trabalhadores para a Saúde (1973-1983): instituições, agendas e atores” são resgatadas as bases, o desenvolvimento, os desdobramentos e resultados da cooperação técnica Opas-Brasil e sua influência no cenário dos recursos humanos em saúde no Brasil. Destaca-se o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde (PPREPS) e o apontamento de que o legado da cooperação não se restringiu ao tema da formação de recursos humanos para a saúde e acabou influenciando e contribuindo para o próprio movimento de articulação que culminaria na formulação do Sistema Único de Saúde anos mais tarde.

A segunda parte, de uma maneira geral, trata do modo como determinadas populações enfrentaram doenças específicas e o quadro de saúde no final do século XIX e nas primeiras sete décadas do século XX. É iniciada com o capítulo “Morte aos Ratos!” que contextualiza o surgimento da epidemia de peste bubônica na Europa e sua chegada e disseminação no Brasil. São descritas também as estratégias de combate aos surtos e epidemias e suas relações com os ideais civilizatórios e de nação moderna da conjuntura do período.

O capítulo 6 da coletânea que tem como título “Os materiais educativos para a Prevenção do Câncer no Brasil: da perspectiva histórica à dimensão discursiva” discute os aspectos da educação em saúde para o controle do câncer no século XX, sobretudo através da publicação de impressos sobre o tema, elaborados entre as décadas de 1940 e 1960. Seus autores mostram como a mudança no padrão de morbidade fruto da transição epidemiológica impactou nas estratégias e práticas de combate ao câncer e como ele ganhou espaço na agenda da saúde pública brasileira depois da década de 1950.

“Saúde e educação na reforma dos Costumes dos Jovens Rurais mineiros (1952-1972): a experiência dos Clubes 4-S” é o terceiro capítulo dessa segunda parte. Os autores discutem a organização dos clubes de jovens rurais e sua ação de extensão rural em Minas Gerais, desenvolvida por funcionários da Associação de Crédito e Assistência Rural (Acar-MG). O projeto buscou uma “reforma dos costumes que tinha a sua centralidade na prescrição de preceitos morais e de saúde para uma parcela significativa da população rural de Minas Gerais, levadas à cabo por iniciativas de educação social” (p. 185).

O texto que fecha essa segunda parte é “Saúde pública, Mudança de Comportamento e Criação: da educação sanitária à emergência da inteligência coletiva em saúde” que realiza uma breve recuperação histórica da educação em saúde nas práticas de saúde pública no Brasil ao longo do século XX passando pela educação sanitária, a educação popular e a inteligência coletiva. São abordadas suas diferentes formas de interface com a comunicação, com os comportamentos e estilos de vida e como esses foram respondendo às mudanças do perfil epidemiológico de cada período.

A terceira e última parte do livro está estruturada em seis capítulos que tratam do tema da saúde no universo escolar. O texto “Saúde e Educação no Contexto Escolar” é o primeiro deles e busca demonstrar o desenvolvimento do movimento higienista e sua relação com a escola entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ele aponta como a higiene passou a condicionar os aspectos da infância, da adolescência, da organização escolar e consequentemente promover uma medicalização da escola. Segundo a autora, “a atual educação para a saúde no universo escolar herdou muitos aspectos da antiga higiene das escolas e dos escolares” (p. 224).

O capítulo seguinte, “Para a Sanidade do Corpo: ginástica e educação física nas actas e pareceres do congresso de Instrucção Publica – Rio de Janeiro, 1883”, analisa o material reunido para o congresso que, por falta de recursos, acabou não acontecendo. As Actas e Pareceres acabaram sendo publicados em 1884 pela Typographia Nacional. São feitas considerações sobre a higiene individual e da escola e a importância da ginástica para meninos e meninas como meio de moldar corpos saudáveis.

O terceiro capítulo dessa última parte é “Em Prol do Ofício, da Salvação Pública e de uma Comunidade Produtiva: higiene e saúde na formação de professoras primárias”, que se baseia no estudo de dois compêndios de higiene destinados à formação de professoras na escola normal da capital da República. O primeiro foi Noções de Hygiene, de Afrânio Peixoto e Graça Couto, e o segundo Compendio de Hygiene, de José Paranhos Fontenele. As publicações analisadas buscavam preparar as futuras professoras primárias com relação à higiene e aos conhecimentos elementares relacionados à saúde.

O capítulo seguinte “A Saúde pela Educação na Escola (Nova) Primária: artigos de José Pereira de Macedo na Revista Médica do Paraná, início dos anos 1930” traz considerações sobre os artigos publicados pelo médico professor da Faculdade de Medicina que dissertavam, entre outras coisas, sobre a necessidade de inspeção das instalações escolares como as cantinas e a “importância da instrução dos professores pelos médicos e a relevância da atuação desses professores bem formados para inculcar nos alunos noções sobre saúde e prevenção de doenças” (p. 282).

O penúltimo capítulo da coletânea é “Educação Rural, Eugenia e o Caso da Galinha Preta” que apresenta a experiência da Escola Rural do Butantã, mais especificamente da atuação da professora normalista Noêmia Saraiva de Mattos Cruz e suas estratégias de ensino que estimulavam os alunos a refletirem sobre o mundo do trabalho rural, patriotismo e higiene eugênica.

O livro termina com o capítulo “Formação de Cidadãos Higienizados para a Construção do Progresso Nacional: produção e circulação de livros escolares de higiene na primeira metade do século XX”, que segue a linha da última parte e trata da relação da higiene com o universo escolar. Nesse caso específico são abordados os livros escolares utilizados para disseminação de saberes e práticas higiênicas nas escolas primárias e nos cursos de formação de professores no referido período.

O percurso da obra que foi aqui traçado mostra o processo histórico de construção da relação entre saúde e educação sob uma perspectiva de forte base empírica. É digno de nota o rigor das pesquisas e a abrangência das experiências em termos geográficos, institucionais e áreas de atuação profissional, que são fruto do referencial teórico metodológico guia do livro.

Esse referencial, se por um lado traz uma riqueza de detalhes sobre as pessoas, os lugares e as datas, por outro pode deixar a desejar na análise conjuntural do período analisado. Ainda que em alguns momentos os autores se preocupem em relacionar a saúde e a educação com o momento político-econômico do país, em outros fica pouco evidente ou velada a relação dialética que esse binômio saúde-educação estabelece com o modo de produção social vigente do período. O referencial da determinação social do processo saúde-doença (Breilh, 2013) nos parece central para a realização dessa tarefa.

Assim, reafirmamos a importância da obra como base empírica da história da relação saúde-educação, ao mesmo tempo em que convidamos os pesquisadores para que em futuros estudos sobre o tema tenham em vista a não neutralidade e a intrínseca relação com o modo de produção social que esses dois campos de atuação possuem.

Referências

BREILH, Jaime. La determinación social de la salud como herramienta hacia una nueva salud pública (salud colectiva).Revista Faculdad Nacional de Salud Pública, Antioquia, n. 31, supl. 1, p. 13-27, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/pdf/rfnsp/v31s1/v31s1a02.pdf> [ Links ]

Helifrancis Condé Groppo RuelaFundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde – GOMES (TES)

GOMES, Rogério Miranda. Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 332p. Resenha de: FRANCO, Túlio Batista. A humanização do trabalho em saúde sob análise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.3,  set./dez. 2018.

Humanização, desumanização e o trabalho em saúde, temas do livro de Rogério Miranda Gomes, publicado pela Editora Fiocruz, em 2017, traz um instigante debate sobre o rico e espetacular universo do trabalho e cuidado em saúde. O tema é complexo e pode ser discutido a partir de inúmeras perspectivas. O autor toma para si o desafio de imergir no tema da humanização do trabalho, permeando a questão da alienação e embrenhando-se no que se chama desumanização.

Na revisão bibliográfica que perpassa os temas dos três capítulos iniciais, são chamados autores de diversas abordagens nos campos das ciências da saúde, sociais e humanas. Há nesse contexto uma competente e rica discussão, onde desfilam marxistas, psicanalistas, autores do campo da saúde coletiva de diversos matizes, compondo um amálgama que se fixa no tempo e espaço do estudo. É com esta diversidade que o autor monta sua caixa de ferramentas conceitual, e com ela se lança à conquista do seu objeto, o trabalho em saúde, na perspectiva analítica da humanização e desumanização.

Os muitos autores são tratados na obra como uma rica diversidade, que compõe o cenário e o torna rico, potente, capaz de olhar para a pesquisa e jogar luz sobre os enigmas que guardam o processo de trabalho e sua íntima relação com a humanização na saúde. Logo no início do livro, o autor compartilha questões instigantes: Enfim, o que seria humanizar o trabalho e as práticas em saúde? E o desumanizar, viria de onde? A aparente oposição entre estes dois conceitos é instigante pelo fato de que eles têm a mesma origem, o humano.

Convivemos com a ideia de que ‘humanização’ tem origem no humano, o que a qualifica; mas, ao mesmo tempo, seu contrário, a ‘desumanização’, é também uma produção humana. Ambos são produto e resultado de práticas desenvolvidas pelos trabalhadores da saúde, onde o principal dispositivo é o trabalho para a produção do cuidado. O trabalho é o propulsor desta produção, a energia que proporciona o manejo de instrumentos, conhecimento e as relações, para que, ao final, se tenha como produto o cuidado realizado.

Os conceitos que alimentam a perspectiva teórica do autor nos primeiros capítulos vão sendo esquadrinhados e tecidos ao mesmo tempo em que atravessam o plano concreto do trabalho em saúde, fornecido pelo estudo de campo. O livro é extremamente rico em material empírico, pacientemente produzido e processado por Rogério Miranda, e este conteúdo narrativo está detalhadamente descrito e discutido nos capítulos 4, 5 e 6. Sob diferentes e potentes categorias analíticas, cada fragmento de histórias de vida, ricas em figuras, afetos, cenários, vai merecer um tratamento singular e destacado na discussão proporcionada pelo autor. Usa os referenciais teóricos já suficientemente delineados, e com eles vai cotejando de diálogos, comentários e análises, as ricas narrativas do cotidiano dos trabalhadores, na sua atividade produtiva, nos cenários de práticas em saúde. Aqui a pesquisa ganha textura, cor, forma, a vitalidade necessária, para apresentar de forma direta, o ‘olho no olho’, as alegrias e tristezas do ato de cuidar, trabalhar, conviver, de quem busca, acima de qualquer questão, exercer com presteza o cuidado em saúde.

Por mais que a literatura enriqueça e instrumentalize o autor, o material empírico tem a magia e vitalidade do real, social e afetivo mundo do trabalho e cuidado em saúde. Aqui a realidade é tão forte, complexa, desafiante, e as situações vividas tão singulares, que não há espaço para o instituto da verdade absoluta. Impõe-se a necessidade de aprender com a própria experiência, e assim ser capaz de fazer o “resgate do momento clínico como espaço de criação, de produção de saberes” ( Gomes, 2017 , p. 142). Apenas para ilustrar, vale a pena ler as narrativas dos médicos que emprestam suas experiências para a pesquisa. Textos leves e fortes, como é a realidade na saúde; beleza singular no gesto, e ao mesmo tempo muito vivos. Por exemplo, Marina, infectologista, demonstra toda sua tolerância diante da negativa do usuário em não se tratar. O gesto delicado e gentil de esperar o tempo do paciente: “Eu acho que a pessoa tem que estar pronta para tratar, então eu sou tolerante, eu procuro deixar a pessoa chegar no seu tempo e alguns eu até faço profilaxia para infecção oportunista enquanto resolve se tratava ou não (…)” ( Gomes, 2017 , p. 142).

É com depoimentos fortes assim que o autor segue decifrando o dia a dia do trabalho em saúde, e revela que o cotidiano não é feito apenas do precário, sofrido, carente. Há muita vida pulsando, muita realização e descoberta, que revela o quanto a formação médica continua nos cenários de práticas. Marina tem na sua narrativa a demonstração da potência do cotidiano em produzir uma autoanálise e, ao mesmo tempo, um autoaprendizado. Isso é rico, forte e bonito. Este é o trabalho em saúde.

No capítulo 5, o autor enfrenta o tema das tecnologias de trabalho em saúde, tomando como base analítica as tecnologias de trabalho mediadas pelo trabalhador, o agente, que opera os vários instrumentos no seu processo de trabalho. A questão importante que vem à tona neste debate diz respeito à predominância ou centralidade do trabalho morto, aquele que está inscrito nos instrumentos, que subsume o trabalho vivo, o trabalho no exato momento da sua atividade produtiva ( Merhy, 2002 ; Franco e Merhy, 2013 ). O trabalhador, embora opere um trabalho vivo em ato no seu processo de trabalho, é fortemente capturado pelos instrumentos, a tecnologia dura, representada não apenas pelas máquinas, mas insumos e medicamentos. Este processo acontece por um forte agenciamento do mercado que opera no campo da saúde, e um processo de subjetivação presente entre trabalhadores e usuários, que associam o cuidado ao consumo de exames e fármacos. Neste cotidiano, médicos prescrevem sem necessidade técnica verificada, apenas para suprir a vontade do usuário: “Doutor, eu quero fazer todos os exames que eu tenho direito, tudo!”, conforme narrativa do médico Antônio. ( Gomes, 2017 , p. 194).

Essa dura realidade, difícil de ser enfrentada porque alimentada cotidianamente por dispositivos midiáticos, se repete para os medicamentos. Diversos meios são utilizados na sua apresentação, formulação de versões similares, propaganda, para aumentar consumo e margens de lucro dos fornecedores. Todas estas questões que habitam o mundo do trabalho, e muitas vezes não são visíveis, vêm à luz neste livro, e ganham força com as narrativas que lhes dão mais vida. Rogério Miranda dá visibilidade a estas questões, mostrando o quanto o campo do trabalho e cuidado em saúde é atravessado de muitos interesses, que se materializam em ações práticas, de alta repercussão no cotidiano.

Seguindo na análise empírica da pesquisa, o autor trata do encontro, um conceito importante para a compreensão do trabalho em saúde do ponto de vista da sua micropolítica. Este tema ganha centralidade por óbvio porque todo trabalho em saúde se dá com base no encontro, entre o trabalhador e o usuário, e o cuidado se produz na interseção entre eles. O encontro revela muito sobre a qualidade do cuidado, ele põe em análise a relação entre os envolvidos com o cuidado, o modo de acolher, o sentido que o trabalhador dá ao usuário, o valor à vida, o importar-se com o sofrimento alheio, a abordagem à fragilidade do outro. Situações onde o trabalho é o grande dispositivo do cuidado.

O livro nos revela, sem o citar explicitamente, muitos aspectos da micropolítica do trabalho, especialmente pelas narrativas, a discussão que estas proporcionam, os espaços de escuta, fala, acolhimento, na relação entre os trabalhadores e destes com os usuários.

A pesquisa, ao focar no cotidiano, releva ao mesmo tempo o espaço criativo, já citado aqui, o precário pela queixa dos trabalhadores: a falta de tempo, o trabalho apressado, a fila. “O vínculo pessoal, aquele vínculo amistoso, quase que de família, esse já desapareceu. Ainda peguei boa parte, um tempo dessa prática, que hoje praticamente desapareceu”, nos diz Luiz, clínico geral ( Gomes, 2017 , p. 230). A narrativa soa até saudosista, impressiona pela vontade de que fosse diferente, mas há uma resignação à realidade que se impõe, como a formação acadêmica, e o processo de trabalho excessivamente prescritivo, produtivista.

À boa análise e extrema riqueza de narrativas que ilustram as discussões que são mantidas no livro, o autor nas suas considerações finais se autoriza a reflexões das quais é possível extrair consequências diretas do estudo realizado. Em seis itens que propõem diretrizes para a organização dos serviços de saúde e processos de trabalho, são ofertadas possibilidades aos gestores, estudiosos, trabalhadores, para suas reflexões e ações.

Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde , de Rogério Miranda Gomes, é uma obra completa, com princípio, meio e fim, sustentada por volumoso e substancial referencial teórico, enriquecida por narrativas, tem a vocação de vida longa, e é uma boa referência aos estudiosos, e aos que trabalham efetivamente em serviços de saúde.

Referências

FRANCO , Túlio B. ; Merhy , Emerson E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde . São Paulo : Hucitec , 2013 . [ Links ]

GOMES , Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde . Rio de Janeiro : Editora Fiocruz , 2017 . [ Links ]

MERHY , Emerson E. Saúde: cartografia do trabalho vivo . São Paulo : Hucitec , 2002 . [ Links ]

Túlio Batista FrancoUniversidade Federal Fluminense , Instituto de Saúde da Comunidade , Centro de Ciências Médicas , Niterói , Rio de Janeiro , RJ. E-mail: [email protected] Brasil

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Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira – DANTAS (TES)

DANTAS, André V. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 319p. Resenha de: MENDES, Áquilas;  CARNUT, Leonardo . Decifra-me ou te devoro! Estado, capital e a urgência do debate crítico na Saúde Coletiva. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.16, n.3, Rio de Janeiro, set./dez. 2018.

Em tempos de tantos embates no movimento do capital contemporâneo, sob o comando do capital fictício, e seus reflexos perversos nas políticas sociais, em geral, e na saúde, em particular, promover uma reflexão crítica radical acerca dos rumos do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) constitui tarefa intelectual e política fundamental para traçar os desafios da Saúde Coletiva. Essa possibilidade certamente é materializada por meio do livro de André Dantas.

A grande contribuição desse autor refere-se à crítica a respeito da estratégia tomada pela Reforma Sanitária a partir da década de 1990. O movimento perdeu sua radicalidade – reivindicando o socialismo – e tentou assegurar os ganhos obtidos nos anos anteriores, insistindo no pleito da cantilena democrática burguesa (Marx, 2012). Porém, esse movimento optou seguir o caminho institucional do reformismo, defendendo um sistema de proteção social, desvinculado dos ideais antagônicos que o forjaram até a década de 1980.

Sobre esta situação, o trabalho de Dantas nos remete a uma indagação que permanece central na contemporaneidade, essencialmente para todos os que defendem a saúde pública no país: é possível apostar na construção institucional, ou seja, promover reformas no Estado Social, 1 como forma de superação da crise atual na saúde?

Historicamente, a esquerda sanitária veio trilhando apenas a institucionalidade das ‘reformas’ por iludirem-se com a ideia de que o Estado social existente possa estar a serviço da produção do ‘bem comum’ (Correia, 2015). Em nossa percepção, aproximada à visão de André Dantas, um passo promissor na constatação dos limites do Estado é reavivar, na memória da Saúde Coletiva, sua ‘intrincada’ relação com o modo de produção capitalista.

Para entender a dinâmica da crise capitalista e seus efeitos na saúde, consideramos importante, antes de tudo, (re)decifrar a natureza do Estado capitalista. Em última, instância, o Estado constitui expressão de uma sociabilidade determinada, assumindo as relações de poder e de exploração nas condições capitalistas. A assunção disso remete à análise do capital como uma relação social de produção – uma ‘forma social’ – e como a ‘forma política’ (estatal) que se associa a essa dinâmica (Hirsch, 2017). Por isso, desconsiderar que o Estado brasileiro, na medida em que é parte integrante das relações capitalistas de produção e sua consonância com a dinâmica mundial do capital, é um deslize crasso e que pôs em risco toda estratégia e tática delineada pelo Movimento da Reforma Sanitária até hoje.

Trata-se, então, de considerar que a relação Estado/capital é orgânica. Neste sentido, não existe separação (nem relativa, que dirá absoluta!) entre o Estado e o capital. Apoia-se aqui na contribuição do debate alemão da derivação do Estado dos anos 1970 que deduz a ‘forma jurídica/política’ (Estado), ou ‘forma contratual’ das contradições da dinâmica do capital. Esta relação atribui ao Estado sua natureza capitalista, assegurando a troca das mercadorias na sua forma-valor e a própria exploração da força de trabalho (Bonnet e Piva, 2017).

Cabe mencionar, nessa reflexão, principalmente a ilusão do processo atravessado pela Reforma Sanitária, a esfinge que os reformistas subestimaram, que nosso autor Dantas se debruçou de forma profícua e que Pachukanis 2 nos ajuda a desmitificar sua essência.

Dantas inicia seu livro explicitando o argumento de Hirsch em que “a maneira pela qual o Estado age para assegurar a reprodução é determinada, em seu conteúdo, pelo movimento do capital e pelas lutas de classe e, em sua forma, pela sua transposição ao nível do aparelho de Estado” (Hirsch apud Dantas, 2017, p. 20). Desse modo, o raio de manobra da burguesia para promover sacrifícios vem se reduzindo, e daí a dificuldade de manter presente a aposta política em relação ao caráter emancipatório da democracia burguesa. É justamente nesse contexto que Dantas indica a retomada do debate tático-estratégico de classe, essencialmente da classe trabalhadora dos anos 1970 para os dias atuais, tendo como central o processo político construído ao redor do Movimento da Reforma Sanitária, no sentido de avaliar os seus desdobramentos.

A tese central do livro polemiza com o que o autor considera o processo de absolutização da democracia no contexto de luta de classes daquele período, compreendida como ‘valor universal’ (Coutinho, 1979), isto é, aspecto nodal da estratégia sanitária e que serviu para que ela fosse ‘devorada’. Dantas adverte que “tal processo em torno da fetichização da democracia” expressa uma divinização ou, sendo fiel a suas palavras, “a absolutização do Estado na consecução da tática do movimento sanitário pela reforma do sistema de saúde” (p. 24). Nessa perspectiva, Dantas não poupa críticas: “a centralidade que crescentemente ganhou a questão democrática deslocou o verdadeiro debate estratégico em nome do socialismo, uma vez que – fosse para promover a autocrítica da esquerda; fosse para lutar contra a ditatura; fosse, enfim, para lutar pelo socialismo – o caminho a percorrer parecia ser o mesmo” (p. 24).

Na primeira parte do livro, o autor concede especial atenção a um panorama teórico-político sobre o Estado e a questão democrática segundo a tradição marxista. De forma geral, nos mostra como Marx e Engels elaboram sua crítica ao Estado burguês, indicando o descaso da burguesia com a questão democrática conforme o avanço das forças produtivas e a imposição de sua dominação no contexto do acirramento da luta de classes. No âmago dessa disputa, Dantas não deixa de ilustrar na base de discussão do papel do Estado, na tradição marxista na virada do século XIX, o debate sobre mais reforma e menos revolução, capitulado pela social-democracia alemã, resvalando em resquícios sobre o pensamento da esquerda marxista, em geral e da esquerda sanitária, em particular.

No segundo capítulo, Dantas se aproxima do debate brasileiro sobre a questão democrática, em sintonia com a temática da revolução. Nessa discussão, percorre o caminho que vai das principais questões ancoradas nas interpretações da formação social brasileira, acerca das quais havia se construído a Estratégia Democrática Nacional (EDN) à elaboração da Estratégia Democrática-Popular (EDP). É dada ênfase a crítica de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho à primeira Estratégia e, posteriormente, como esse último autor foi privilegiado pelo Movimento da Reforma Sanitária e influenciado nos esboços da nova estratégia das classes trabalhadoras que viria a ter no Partido dos Trabalhadores (PT) a sua mais forte vocalização.

Entre vários aspectos nessa discussão, Dantas nos possibilita a compreensão de que o MRSB abandonou a crítica importante de Florestan Fernandes à reflexão profunda do papel e da função do Estado capitalista brasileiro. Dantas destaca a ideia-síntese de Florestan em seu clássico, A revolução burguesa , de que “o Estado não só era incontornavelmente de classe, capturado precipuamente pelos interesses imperialistas e de suas burguesias locais” (…) “como atuava de fato como comitê executivo da burguesia, sem espaços para concessões, uma vez que sob um registro dependente” (p. 113).

Por sua vez, o MRSB priorizou o ensaio de 1979 de Carlos Nelson Coutinho, intitulado “A democracia como valor universal”, em que para além de fazer a crítica à estratégia etapista democrática-nacional, possibilitava as linhas gerais do que viria a ser a EDP liderada pelo PT – esquerda democrática – na década de 1980 e a mola-mestra da trajetória priorizada pelo movimento sanitário: o caminho institucional das reformas por dentro do Estado.

Na segunda parte do livro, Dantas explora as características estruturais e o sentido mais geral da Reforma Sanitária, desde sua ação nos anos 1970 até a atualidade. Destaque é dado às lutas travadas no campo da saúde em que tiveram prioridade a atuação pelo enfrentamento setorial em relação à luta mais ampla no âmbito da sociabilidade das relações capitalistas. Daí o autor mencionar a prioridade da estratégia sanitária se fazer muito mais pela via da institucionalidade, por um lado, e por outro, pela reclamação constante da ausência da classe trabalhadora na defesa de sua agenda.

Dantas chama a atenção, nessa parte, para o destacado papel do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – ambas instituições nascidas na década de 1970 – na formulação das concepções e táticas do MRSB. O legado dessas instituições marcou os desafios conjunturais e os posicionamentos estratégicos assumidos pelo movimento. Nesse sentido, Dantas nos lembra, não por coincidência, o famoso documento do Cebes de 1979: “A questão democrática na área da saúde” (p. 182). Assim, o autor nos mostra que, nesse ambiente de ‘programa democrático’, o Estado passa a ser lócus preterido para desempenhar papel decisivo na formulação tático-estratégica que se desenhava no interior do MRSB. Por isso, Dantas insiste na ideia do “empenho dos sanitaristas na tática institucional de ocupação de postos na máquina estatal” (p. 183) nesse período.

Integra, ainda, nesta parte do livro, a importância a respeito da agenda democrática do movimento sanitário, nos anos 1970, por meio da pauta prioritária do Movimento Popular em Saúde (MOPS) e que foi elemento de destaque na 8ª Conferência Nacional de Saúde, na Comissão Nacional da Reforma Sanitária e na Assembleia Nacional Constituinte: a questão da participação social. Essa discussão Dantas desenvolve no capítulo 4, sob a forma de uma indagação provocativa, “Reeducar o Estado?”. O objetivo desse pleito foi o de se enfrentar a herança patrimonialista e clientelista da formação do Estado brasileiro, tendo como diretriz a institucionalização do ‘controle social’ na saúde, por meio dos conselhos de saúde nos três níveis de gestão do SUS. Dantas faz um balanço crítico desse mecanismo de democratização do Estado, evidenciando que o resultado do ‘controle social’, até os dias atuais, se resumiu a um processo altamente institucionalizado, distante da força de luta da classe trabalhadora. O autor chama a atenção para o caráter problemático da atuação desses conselhos.

No quinto e último capítulo, intitulado “Reforma Sanitária, SUS e socialismo: questão de princípios”, Dantas insiste na análise do debate estratégico da Reforma Sanitária, alertando para os riscos de suas formulações estratégicas que, por um lado, valorizavam a democracia burguesa, mas, por outro, se afastavam do reconhecimento do caráter capitalista do Estado. Aqui, o destaque do autor é para o desconhecimento dos fatores limitantes da forma e função dessa estratégia sanitária que acabou reforçando a ideia-síntese, ‘saúde é democracia’ (que até hoje é lema em congressos da Abrasco, por exemplo) e também para o não reconhecimento dos obstáculos de sua realização no interior da lógica do modo de produção capitalista.

Na conclusão, o autor discute alguns aspectos que contribuem para uma reflexão mais geral sobre a crise em que o movimento sanitário se encontra, conjuntamente com a dita ‘esquerda democrática’. Daí o título dessa parte ser extremamente provocador: “Da democracia ao socialismo”. Não resta dúvida, nesta parte, que Dantas reconhece os resultados devastadores que a contraofensiva neoliberal provocou a partir da década de 1990, principalmente contribuindo para o esvaziamento do debate estratégico da esquerda brasileira, mas também não escapa de sua análise a fragilidade dos desafios apontados para a luta por essa ‘esquerda democrática’, especialmente no contexto de pós-participação de seus quadros-chave nos postos de comando do governo federal. Dantas delimita bem sua síntese: “O essencial é o deslocamento que ela promoveu, ou pretendeu promover, da centralidade do socialismo para a centralidade da democracia” (p. 281). Para caminhar no sentido contrário, Dantas nos oferece uma alternativa: “Mais do que nunca é preciso que afirmemos que a democratização burguesa não se constitui como alternativa ao socialismo” (p. 282).

O mais importante para a reflexão acerca dos desafios do movimento sanitário é que Dantas não deixa, em nenhum momento, de articular muito bem a necessidade de um debate estratégico que se apoie firmemente numa crítica ao capital e suas formas de exercício de dominação, mantendo presente o socialismo no discurso e na prática democrática. Sem dúvida, trata-se de um livro essencial para ampliar o horizonte do campo da saúde coletiva e que instiga a autocrítica sem desqualificar o empenho dos sanitaristas na luta política do perverso tempo social em que se encontravam. Contudo, ainda assim, isso não nos exime de repensar as estratégias e táticas sobre o alcance de uma outra sociedade. Portanto, não há como fazer isso sem encarar o Estado como ‘a grande Esfinge’. Se não soubermos decifrá-la politicamente, seremos fatalmente devorados mais uma vez.

Referências

BONNET, Alberto; PIVA, Adrián. Prólogo . In: BONNET, Alberto; PIVA, Adrián. (Compiladores). Estado y capital: el debate alemán sobre la derivación del Estado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Herramienta, 2017 . [ Links ]

BOSCHETTI, Ivanete. A ssistência social e trabalho no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2016 . [ Links ]

CORREIA, Marcus O. G. Por uma crítica imanente sobre os limites das políticas públicas de direitos sociais e o Estado na produção do bem comum no modo de produção capitalista. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 24, n. S1, p. 55-65, 2015 . [ Links ]

COUTINHO, Carlos N. A democracia como valor universal. In: SILVEIRA, Ênio. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979 . p. 33-47. [ Links ]

HIRSCH, Joachim. Elementos para una teoría materialista del Estado. In: BONNET, A; PIVA, A. (Compiladores). Estado y capital: el debate alemán sobre la derivación del Estado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Herramienta, 2017 . [ Links ]

KARL, Marx. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012 . [ Links ]

PACHUKANIS, Évgueni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017 . [ Links ]

Notas

1 A denominação ‘Estado Social’ se apoia em Boschetti (2016), que busca captar a regulação econômico-social por meio de políticas sociais, atribuindo ao Estado capitalista suas determinações objetivas, explicitando que a incorporação dessas políticas pelo Estado não extrai dele sua característica essencialmente capitalista.

2 Evguiéni B. Pachukanis, jurista soviético, escreveu na década de 1920 seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo, desenvolvendo uma ideia original no interior do pensamento marxista no tocante ao papel do direito e do Estado na sociedade capitalista e pós-capitalista. O autor propõe uma investigação sobre o direito com base no método da obra de maturidade de Marx e que se refere especialmente ao texto de O capital. Para mais informações, ver Pachukanis (2017).

Áquilas MendesUniversidade de São Paulo , Faculdade de Saúde Pública , São Paulo , SP , Brasil. E-mail: [email protected]

Leonardo CarnutUniversidade Federal de São Paulo , Centro de Desenvolvimento de Ensino Superior em Saúde , São Paulo , SP , Brasil. E-mail: [email protected]

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Saúde Mental para a Atenção Básica – SOALHEIRO (TES)

SOALHEIRO, Ninaorg. Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 249p. Resenha de: MIRANDA, Lilian. Desafios para o cuidado integral: saúde mental na Atenção Primária em Saúde. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, maio/ago. 2018.

O livro Saúde Mental para a atenção básica, coletânea organizada por Nina Soalheiro, assume sua especificidade desde o título: não se propõe a falar da ou sobre a Atenção Básica (AB), mas oferecer conceitos, orientações e reflexões que sirvam aos trabalhadores, gestores, usuários e quaisquer outros atores sociais implicados no cuidado à saúde. Trata-se de uma oferta oportuna, na medida em que se materializa num contexto de crise sociopolítica, diminuição substancial de gastos públicos e transformação de importantes princípios estruturantes da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB (Brasil, 2017).

Há que se admitir, contudo, que num cenário de deterioração de condições materiais de trabalho, de referenciais éticos e, sobretudo, de esperanças em torno da justiça social, uma discussão sobre Saúde Mental é urgente, mas também arriscada. Risco que a coletânea assume desde sua epígrafe, uma citação de Michel Foucault que nos remete à incomensurabilidade da experiência de um livro, cuja conclusão é sempre incerta.

Também arriscada, mas consonante com seu objetivo de abordar a Saúde Mental para a Atenção Básica, campo reconhecidamente amplo, é a intenção do livro de utilizar uma linguagem simples e refratária à dominação de quaisquer discursos, inclusive os psi. É assim que um grupo de 16 autores enfrenta o desafio de tratar de modo acessível, mas sem prejuízo à complexidade, temas que se estendem de discussões sobre (des)institucionalização, território, processos de trabalho em saúde e medicalização, até envelhecimento, suicídio, práticas corporais e medicina chinesa. Sem esgotarem-se em suas reflexões e relatos de trabalho e pesquisa, os 12 capítulos ainda sugerem leituras de aprofundamento das temáticas por eles tratadas. Diante desse material, convidado a usar conceitos como ferramentas de trabalho, o leitor logo se pergunta até onde chegará uma coletânea com temática tão extensa e por quais percursos será conduzido em sua leitura.

Percursos múltiplos e diversos! É essa a aposta arriscada da coletânea. Risco coerente com o que parece ser sua principal discussão conceitual: a (des)institucionalização, tratada detalhadamente no segundo capítulo e retomada em grande parte dos demais. Sustentando o objetivo de construção de ferramentas, trata-se de uma discussão que nunca é empreendida de modo abstrato, mas sempre remetida a situações específicas do trabalho em saúde e, para tanto, o território também se configura como categoria teórica básica para o livro, apresentada no seu terceiro capítulo a partir da perspectiva da geografia crítica.

Na composição de uma espécie de tripé de alicerce da coletânea, seu primeiro capítulo oferece o direcionamento ético e o substrato afetivo que imprimem vitalidade à discussão sobre (des)institucionalização e território, encorajando o leitor a empreender um percurso de leitura tão amplo. Reconhecido como referência histórica e bibliográfica para todo o livro, Antonio Lancetti presenteia-o com este capítulo de abertura, oferecendo seu testemunho acerca da intensidade necessária ao trabalho em saúde mental nos territórios complexos da Estratégia Saúde da Família. Descrição de recursos, estratégias e cenas de trabalho, acompanhadas de orientações didáticas sobre questões que não podem ser desconsideradas num trabalho em Saúde Mental não manicomial, são apresentadas de modo a abrir o caminho dos demais capítulos do livro.

Ao longo da coletânea, as conquistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RP) são reconhecidas, mas com a ponderação de que se trata de um processo social complexo, cuja definição é remetida a autores brasileiros, como Paulo Amarante, e à tradição da psiquiatria democrática italiana. Na condição de processo, é contínua e compromissada com a constante construção de movimentos instituintes. Antonio Lancetti materializa este condicionante lembrando a importância de trabalhar na Atenção Básica com a circulação de pessoas, afetos, assim como sofrimentos e sintomas. Estes, em Saúde Mental, não são passíveis de amputação, mas podem circular, desde que acolhidos e tratados num território que precisa ser vivido, (re)apropriado e mesmo (re)construído por todos os atores envolvidos no cuidado à saúde.

Ao empreender esse processo de envolvimento com o território, os profissionais optam pela complexidade crescente porque o foco de cuidado desloca-se do problema para os sofrimentos, traduzidos a partir de um emaranhado de questões sociais, políticas, intersubjetivas, culturais e materiais envolvidas em cada pessoa. No bojo dessas reflexões, uma minuciosa apresentação das diferenças conceituais entre espaço, lugar, local e território, bem como territorialidade, região e cotidiano, permite que o leitor amplie sua compreensão sobre a complexidade do trabalho territorializado, recorrentemente defendido na Política de Saúde Mental.

A alusão a tal complexidade poderia desanimar o leitor. Mas o contato prévio com o capítulo de Lancetti, concluído após sua morte, pela colaboração de seu filho, paradoxalmente, impede tal infortúnio. A apresentação do Projeto Qualis, descrito pelo autor como uma “experiência de vitalidade eletrizante” empreendida num cenário de ausência de saúde pública, gera esperança e abertura para a leitura dos demais capítulos. Vários destes dialogam diretamente com os profissionais de saúde, reconhecendo as dificuldades e angústias próprias ao campo da Saúde Mental, marcado pela ausência de protocolos ou orientações objetivas para lidar com “casos que não fecham” e sofrimentos que não cessam, embora possam se modificar e se redirecionar. Para discuti-los, o conceito-chave é a (des)institucionalização que, tomada como um modo de gestão do cuidado, não visa à cura, constituindo-se numa perspectiva bastante diversa até mesmo na AB, cujos profissionais ainda são formados, hegemonicamente, a partir do paradigma biomédico e cujos investimentos em educação em saúde e recursos não medicalizantes se mostram limitados (Tesser, Poli Neto e Campos, 2010).

Fica evidente no livro a defesa de que limites como esse comprometem a operacionalização de um tipo de cuidado compreendido como encontro entre sujeitos. Um encontro que possibilita que o sofrimento e a doença sejam apropriados por usuários e profissionais e, assim, compartilhados (não mais se restringindo ao domínio de um único saber, geralmente o biomédico). No intuito de colaborar com a viabilização dessa forma de cuidado, são sistematizadas ao longo do capítulo várias discussões teóricas, bem como algumas normativas políticas e orientações acerca do trabalho em Saúde Mental. Mas, ao fazê-lo, os autores destacam que todo constructo teórico ou normativo é materializado em contextos específicos, que lhes impõem entendimentos e usos também singulares.

Respaldados por tal alerta, alguns capítulos trazem reflexões e orientações para problemas que ocupam espaços ainda pequenos nas discussões do movimento da RP e nas políticas de Saúde Mental. Entre eles destaca-se o suicídio, cuja detecção precoce pode ser feita, prioritariamente, na AB, mas exige alto investimento no treinamento dos profissionais. Também necessitado de investimentos é o campo da atenção ao idoso, hoje pautado, basicamente, nos cuidados desempenhados pelos familiares e num apoio insuficiente e pouco formalizado dos serviços de saúde. Tanto em relação ao suicídio quanto ao envelhecimento, os capítulos abordam o sofrimento que envolve usuários, famílias, profissionais e entorno social, chamando atenção para a necessidade de compartilhamento das necessidades de cuidado, sob o risco de que a individualização e naturalização de alguns papéis sociais acabem por gerar negligência e violências.

O livro apresenta também alguns temas que envolvem práticas mais experimentadas nos serviços de saúde, embora não hegemônicas ou consolidadas. Aborda, por exemplo, a lógica da redução de danos, a medicina chinesa, os dispositivos grupais e as práticas corporais ligadas à promoção da saúde, remetendo-se às discussões sobre (des)institucionalização e território, associadas a diferentes modos de compreender a própria noção de saúde. Embora distintas entre si, tais compreensões podem se transformar em importantes ferramentas para a desconstrução do modelo biomédico, na medida em que evidenciam os prejuízos ou a baixa eficácia de práticas que desconsideram as especificidades pessoais e comunitárias dos usuários do serviço. Questões fundamentais são então enfrentadas, tais como a tendência a ver os riscos à saúde de modo universalizado e naturalizado, desconsiderando a constituição histórica dos indivíduos. Ou o desafio de trabalhar em favor da responsabilização e da ampliação da autonomia dos usuários, sem culpabilizá-los e sem desresponsabilizar o Estado. Ou, ainda, o tênue limite entre a territorialização dos serviços comunitários e a regulamentação da vida privada.

O enfrentamento dessas questões se faz, em alguns capítulos, de forma didática, com a apresentação de conceitos próprios a correntes teóricas que, embora fundamentem grande parte de dispositivos e práticas da saúde coletiva, são pouco compreendidos pelos profissionais. É o caso da concepção de grupo segundo a esquizoanálise, de biopoder, segundo Michel Foucault, e de trabalho, numa leitura do materialismo histórico. Trata-se, sem dúvida, de uma heterogeneidade teórica bastante expressiva, com especificidades que não devem ser esvanecidas, mas que podem se transformar nas ferramentas de análise crítica e reconstrução da realidade que o leitor é convidado a construir. Um convite cujo aceite proporciona prazeroso compartilhamento da diversidade de olhares e aberturas à transformação, próprios do campo da saúde mental orientado pela lógica da (des)institucionalização.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=68&data=22/09/2017> Acesso em: 22 mar. 2017. [ Links ]

TESSER, Charles D.; POLI NETO, Paulo; CAMPOS, Gastão W. S. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 3, p. 3615-3624, 2010. [ Links ]

Lilian MirandaFundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde – CATIEL et al (TES)

CASTIEL, Luis D.; XAVIER, Caco; MORAES, Danielle R.. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. 1. edição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016. 400p. Resenha de: FERREIRA, Francisco Romão. Como sobreviver ao cinismo dominante no campo da saúde? Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16 n.1 jan./abr. 2018. FERREIRA Francisco Romão (Res)

No livro À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde, os autores colocam o leitor diante de duas visões de mundo diametralmente opostas: de um lado, apresentam o cinismo vulgar da sociedade contemporânea com a sua lógica mercantil, pragmática e instrumental; e, do outro lado, apresentam a tradição do pensamento grego representada pelos filósofos cínicos da era helenística, ou melhor, apresentam o kinismo como um antídoto para o cinismo atual. Estamos vivendo uma época de exacerbação dos diferentes estilos deste cinismo vulgar – político, econômico, moral e acadêmico. É preciso então criar defesas e modos de entender esses tempos sombrios na esperança de encontrar uma luz ou uma saída. Neste sentido, o livro nos coloca diante de um impasse: Como sobreviver ao cinismo dominante no campo da saúde sendo ele hegemônico, altamente racional e coerente na sua lógica interna?

O cinismo vigente possui um discurso muito bem articulado e baseado em evidências comprovadas cientificamente, mas não consegue esconder a sua verdadeira face reacionária, excludente, preconceituosa e opressora. E o livro põe o leitor diante dessas duas imagens, como num espelho, no qual podemos criar uma ilusão de realidade ao ver alegria, juventude e beleza onde só existem decadência e exploração, ao ver a face agradável da tecnologia para não entrar em contato com a realidade da exploração econômica. É um retrato da nossa sociedade com sua imagem da felicidade eterna das redes sociais enquanto grassa o desemprego, a exclusão, o preconceito e a homofobia. Trata-se então de uma escolha como aquela do filme Matrix – você pode ver o mundo como ele é (com toda a carga de angústia que a realidade apresenta) ou pode viver a irrealidade da felicidade eterna, sem riscos, sem rugas e sem contato com a interioridade. Uma felicidade mantida graças às maravilhas da tecnologia dos fármacos que produzem uma sociedade entorpecida, anestesiada e feliz.

O senso comum vê o cínico como um sujeito que afronta as normas sociais e as conveniências morais, agindo única e exclusivamente segundo o seu interesse imediato, sem pudor ou vergonha, de modo debochado e sarcástico, desprezando as regras da sociabilidade. Trata-se de um sujeito sem escrúpulos, petulante, atrevido, hipócrita e fingido. O cinismo em saúde, da mesma forma, se apresenta como uma solução tecnológica cientificamente comprovada, baseada em evidências, com o respaldo da comunidade científica e com todo o poder de sedução das mídias, da publicidade e das estratégias de comunicação da indústria farmacêutica. Nesta perspectiva, para todo mal (físico ou existencial) há um fármaco adequado, basta encontrá-lo e “seus problemas acabaram”. O cinismo, o sarcasmo e o deboche aparecem nas campanhas publicitárias para melhorar a performance e garantir a felicidade eterna na “melhor idade”. Elas beiram o escárnio. São tecnologias “de ponta” que proporcionam felicidade e juventude eternas, tudo sem dor, sem angústia e sem sofrimento.

Desde a arte estatuária grega, existe a busca por uma beleza ideal inatingível no plano humano. Essas esculturas simbolizariam uma espiritualidade que não pode ser ‘contaminada’ por traços que possam denunciar a presença da animalidade que há em nós, ou a passagem do tempo. O corpo da estatuária não é real, é pura idealização, e nele não aparecem as limitações do humano e os rastros da natureza física são retirados. A escultura grega elimina todos os vestígios do humano. Ela não tem rugas que indiquem a passagem do tempo, pelos que indicam a animalidade, veias que denunciam a passagem do sangue, dentes que lembram nossa gula e a natureza humana. Os detalhes que denunciam a animalidade e a finitude são retirados. Alguns setores das ciências médicas, da mesma forma, prometem um corpo jovem, belo e sem as angústias que são demasiado humanas. O cinismo em saúde parece resgatar esta promessa de um corpo ideal livre da passagem do tempo, da animalidade e dos sofrimentos e questionamentos naturais da vida, geralmente sem muito esforço por parte do cliente, basta adquirir o fármaco adequado. O cientificismo de alguns setores das ciências médicas, a mitologia da ciência, a hipocrisia dos discursos e a ideologia do mercado aparecem de forma clara e cristalina, desde que o sujeito queira ver.

Para enfrentarmos o cinismo atual vamos então conhecer o kinismo na versão grega que nos é apresentada com muita clareza e profundidade pelos autores. Eles conseguem expor o cinismo e a irrealidade do mundo contemporâneo, tendo como pano de fundo a realidade brasileira com suas artimanhas discursivas de alegria, felicidade, igualdade e cordialidade.

O precursor do Cinismo grego foi Antístenes, mas o seu principal representante foi o filósofo Diógenes de Sínope que, segundo a tradição filosófica, andava pelas ruas de Atenas com uma lanterna acesa em plena luz do dia fazendo uma pergunta prosaica: ‘Como/onde encontrar um homem feliz?’

Ele procurava um homem que vivesse sua vida superando as exterioridades exigidas pelas convenções sociais como comportamento, dinheiro, luxo ou conforto material. Buscava um homem que tivesse encontrado a sua verdadeira natureza, que vivesse conforme ela e que fosse feliz sem ter que obedecer às normas sociais. A felicidade deste homem estaria numa vida simples e natural, sem precisar das comodidades da riqueza, do luxo, da ostentação e do apego às normas sociais. Com sua pergunta irônica Diógenes colocava em questão o que seria a vida de um homem segundo a sua mais autêntica essência, o que seria mais verdadeiro na existência, o que iria além de toda a exterioridade, das falsas aparências, dos caprichos da sorte de modo a encontrar sua verdadeira natureza e, quem sabe, viver de acordo com os seus valores mais essenciais para, simplesmente, ser feliz.

Se andássemos pelas ruas do Rio de Janeiro fazendo a mesma pergunta hoje, provavelmente encontraríamos como resposta que o homem feliz é rico, bem-sucedido, famoso, alto, musculoso, com porte atlético e, principalmente, magro. Em tempos de lipofobia e de estigmatização da gordura, a magreza se transformou em qualidade moral e parâmetro de felicidade. Ou seja, os homens felizes de hoje, necessariamente, estariam devidamente adaptados às convenções sociais, muito preocupados com a imagem corporal e social e nem saberiam dizer muito bem o que seria ou onde estaria a sua essência, sua verdadeira natureza. Assim como o personagem Dorian Grey (Wilde, 2014), do escritor irlandês Oscar Wilde, a preocupação com a beleza, com a imagem social e com uma vida marcada pelo hedonismo seriam as únicas marcas da existência, colocando a satisfação dos prazeres imediatos no lugar do sentido da vida. E se a vida não proporcionar a felicidade prometida não há problema, a indústria farmacêutica terá uma imensa variedade de produtos para resolver a falta de desejo, a fadiga, as rugas, o estresse, a tristeza, a depressão, a velhice, a reposição hormonal e a incapacidade de concentração, sem contar com as próteses e cirurgias estéticas.

Este homem supostamente feliz seria um cínico, um sujeito dissimulado, e sua felicidade seria medida em postslikes, acessos e curtidas nas redes sociais. O sentido da vida estaria na construção da imagem, na adaptação cega às normas e convenções sociais, criando um corpo sem alma, reproduzindo uma vida que desconhece a própria essência, vivendo uma existência sem sentido e sem interioridade, pura aparência. O homem feliz seria, necessariamente, um metrossexual cheio de seguidores. O problema é que, assim como no retrato de Dorian Grey, a realidade teima em aparecer e os fármacos e as próteses da existência tendem a mostrar o lado ridículo do personagem.

O livro À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde apresenta então uma série de temas para discussão e reflexão que apontam para as nossas escolhas diante do crescimento desta onda hipócrita e conservadora. O leitor se vê também diante do espelho e não dá para ficar neutro ou indiferente às estratégias discursivas dos representantes do cinismo em saúde. São temas que discutem as estratégias de “aperfeiçoamento farmacológico” que levam ao sucesso acadêmico, os casos de doping que burlam o sistema e as estratégias discursivas que traduzem a ideologia científica atual. Os autores discutem também as formas como os parâmetros de beleza, magreza, juventude e vigor como exemplos de saúde ou de vida saudável e desejável, moralizando as condutas e controlando os comportamentos considerados desviantes ou de risco, sempre em nome do pragmatismo, da racionalidade da ciência e da objetividade.

A hiperprevenção e o automonitoramento aparecem como estratégias racionais e objetivas, frutos das escolhas livres e individuais dos sujeitos, sem mostrar que essas estratégias apequenam a vida, transformam sujeitos em coisas. A espetacularização da vida cotidiana transforma a existência numa performance que assegura a valorização de uma imagem social baseada no dinheiro, no sucesso a qualquer preço e numa felicidade prêt-à-porter.

Diante da proliferação de enunciados cínicos no campo da saúde só nos resta apelar aos kínicos, resgatando a ironia e o sarcasmo de Diógenes diante da hegemonia da ‘racionalidade científica’ e do pragmatismo utilitarista que coloca a vida a serviço dos interesses deste ambiente neoliberal conservador. Se toda época precisa de um Diógenes, encontramos neste livro uma postura típica dessa verve libertária que se apresenta de forma quase quixotesca diante da opressão do mercado, dos interesses da indústria farmacêutica e dos cínicos das ciências da saúde. Segundo os autores, em certa ocasião, Diógenes foi capturado por Felipe da Macedônia e, quando perguntado acerca da sua identidade, respondeu: “Sou um observador da sua insaciável ambição”. Esta frase retrata fielmente o espírito do livro ao firmar que “não há melhor imagem do papel e da função do filósofo kínico no mundo: instalado em frente aos poderes constituídos, corajosamente dizendo o que é preciso dizer” (p. 53). Este livro, portanto, é um antídoto para tratar os males do cinismo e da hipocrisia, trazendo a parrhesía, a liberdade da palavra, como remédio para mostrar a desfaçatez e a arrogância dos cínicos que trabalham na sala ao lado.

Referências

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Ed. Landmark, 2014. [ Links ]

Francisco Romão FerreiraUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Nutrição, Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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(P)

Direitos Humanos dos Pacientes – ALBUQUERQUE (TES)

ALBUQUERQUE, Aline. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá Editora, 2016. 288p. Resenha de MALUF, Fabiano. Dignidade e respeito aos pacientes: o olhar dos Direitos Humanos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, 2018.

Em tempos de judicialização da saúde, o livro Direitos humanos dos pacientes, de Aline Albuquerque, apresenta extenso arcabouço teórico dos direitos humanos e agrega importantes elementos à promoção e à defesa dos direitos dos pacientes. A obra tem como objetivo principal conjugar os conceitos dos direitos humanos ao âmbito dos cuidados em saúde dos pacientes tendo como base a normativa internacional sobre a temática.

O livro é dividido em três partes. A primeira, Aspectos gerais dos direitos humanos dos pacientes , é composta por dois capítulos. No primeiro capítulo, observa-se o cuidado em delimitar os conceitos de direitos humanos e de paciente. Parte da premissa de que os direitos humanos existem para concretizar a dignidade humana, de modo que todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, possam desenvolver suas capacidades pessoais.

Aborda também o Sistema de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sistemas aos quais se vincula o Estado brasileiro; e inclui o Sistema Europeu de Direitos Humanos por possuir este vasta jurisprudência no campo dos direitos humanos demarcando, dessa forma, as obrigações legais dos Estados contidas nesses três sistemas.

Define a tipologia obrigacional na qual os Estados têm as seguintes obrigações de direitos humanos: obrigações de respeitar, de proteger e de realizar – razão pela qual a falha em cumprir uma dessas obrigações acarreta séria violação dos direitos humanos.

Com relação à conceituação de ‘paciente’, deixa claro que o termo carrega dupla condição – de vulnerabilidade e de centralidade no processo terapêutico – e acolhe seu uso por ser utilizado pelos movimentos reivindicatórios dos direitos humanos; pela condição de vulnerabilidade expressada pelo termo e pela relação humana existente nos cuidados em saúde em detrimento aos termos ‘usuários’ e ‘consumidores’.

O segundo capítulo trata da teoria e dos princípios dos direitos humanos dos pacientes. Faz um resgate do panorama dos movimentos, organizações de pacientes e legislações acerca dos direitos dos pacientes, iniciando-se pelos Estados Unidos, passando pela Europa até chegar ao Brasil.

Destaca, ainda, a distinção entre o referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes e as normas de direitos dos pacientes que, a despeito de se entrelaçarem, não são semelhantes. Os Direitos Humanos dos Pacientes derivam da dignidade humana inerente a todo ser humano, previstos em normas jurídicas de caráter vinculante, já as normas de direitos dos pacientes centram-se na perspectiva individualista do paciente sob bases consumeristas, dispostas em declarações, sem qualquer obrigatoriedade jurídica. Ressalta que o reconhecimento dos Direitos Humanos dos Profissionais de Saúde reverbera em benefício dos pacientes e contribui para disseminação de uma cultura de direitos humanos nos ambientes de cuidados em saúde.

Apresenta os pontos de convergência entre a Bioética e os Direitos Humanos dos Pacientes, porém reitera que ambos referenciais se expressam por meio de distintas linguagens e objetivos diferenciados, “a Bioética tem o escopo de refletir e prescrever moralmente, e o dos Direitos Humanos dos Pacientes, o de estabelecer obrigações juridicamente vinculantes aos atores governamentais com vistas à proteção dos pacientes” (p. 68). Evidencia os pontos de distanciamentos dos referenciais da Humanização da Atenção à Saúde notadamente em função da linguagem empregada, de cunho moral e motivacional, e do não reconhecimento do papel intransferível das autoridades estatais em prover condições dignas de cuidados em saúde para pacientes e de trabalho para os profissionais de saúde.

Nesse sentido, a obra traz à tona a discussão sobre a Abordagem Baseada nos Direitos Humanos aplicada à saúde ter como foco políticas e programas de saúde distantes da perspectiva do paciente. Assim, propõe uma inflexão no campo da bioética com o intuito de adotar uma perspectiva inclusiva, que recusa uma acepção atomista do indivíduo, ou seja, defende um conteúdo mínimo basilar do princípio da dignidade humana: “o de que cada ser humano possui um valor intrínseco que deve ser respeitado” (p. 77).

Albuquerque finaliza o capítulo abordando os princípios dos Direitos Humanos dos Pacientes: o Princípio do Cuidado Centrado no Paciente, notadamente o direito ao respeito pela vida privada e o direito à informação; o Princípio da Dignidade Humana que, apesar de polissêmico e complexo, assinala o papel fundamental para sua materialização na esfera dos cuidados em saúde dos pacientes; o Princípio da Autonomia Relacional, que enfatiza a interdependência do paciente com o meio relacional que o circunda, e o Princípio da Responsabilidade dos Pacientes, que corrobora que ao compartilhar informações e concorrer para a construção de seu plano terapêutico, o paciente reparte a responsabilidade pelo tratamento escolhido.

A segunda parte do livro, denominada “O conteúdo dos Direitos Humanos dos Pacientes”, compreende nove capítulos nos quais são tratados em profundidade os conteúdos de sete direitos humanos dos pacientes (do capítulo 3 ao 9): direito à vida; direito a não ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; direito à liberdade e segurança pessoal; direito ao respeito à vida privada; direito à informação; direito de não ser discriminado; e direito à saúde, todos detalhados posteriormente à apresentação da metodologia de levantamento e de desenvolvimento da jurisprudência internacional adotada (capítulos 1 e 2).

A abordagem dos direitos delimita-se a três aspectos: uma apresentação do assunto para melhor situar o leitor; as principais conexões entre o tema e o direito em análise e a exposição de casos ou relatórios sobre o tema. Busca-se extrair de cada direito humano outros, mais específicos, destinados a serem aplicados na esfera dos cuidados em saúde. O que se tem como maior contribuição do capítulo é a demonstração que “determinados direitos comumente atribuídos aos pacientes derivam de normas de direitos humanos e que a jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos vem aplicando dispositivos de tal natureza com vistas a proteger o paciente” (p. 180).

A parte 3, intitulada “Aplicação dos direitos humanos dos pacientes”, defende a importância da figura do Agente do Paciente em seus diferentes contextos e condições específicas; ressalta a experiência normativa do Reino Unido, notadamente o sistema mais avançado em termos de direitos humanos dos pacientes e apresenta as normas brasileiras sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, guardando especial atenção às legislações existentes em seis estados brasileiros.

Encerra o capítulo apresentando as justificativas para uma proposta de lei brasileira sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, devido ao fato de não existirem políticas governamentais voltadas para a concretização de tais direitos e do vazio legislativo que concorre para a propagação de ações violadoras dos direitos humanos dos pacientes.

Nesse sentido, é oportuno ressaltar o Projeto de Lei nº 5559/16, em tramitação na Câmara dos Deputados, ao considerar que é dever do Estado zelar pela proteção das pessoas na condição de pacientes, adotar legislação condizente com sua situação específica de vulnerabilidade e que prevê os direitos dos pacientes com base nos documentos internacionais de direitos humanos e de bioética (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 2017).

De modo geral, percebe-se que injustiças e tratamentos desumanos podem ocorrer mais frequentemente em localidades onde não se reconhecem os direitos humanos dos pacientes no discurso político e em legislações. Assim, é de fundamental importância a necessidade de se ter direitos que assegurem a oportunidade e a segurança de persegui-los e reivindicá-los.

De fácil leitura e compreensão, a obra convida os leitores a uma reflexão crítica ao lançar luz sobre a temática, incipiente no país, e contribuir para fortalecer, no Brasil, uma nova perspectiva, a da cultura dos direitos dos pacientes no âmbito dos cuidados em saúde. Desse modo, ser possuidor de direitos numa sociedade que assegura a vigência e a concretização dos direitos humanos dos pacientes é ao mesmo tempo uma fonte de proteção pessoal e uma fonte de respeito à dignidade humana.

Referências

SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA. Carta de Recife. Moção de apoio ao Projeto de Lei nº 5559/16 – Estatuto dos Direitos do Paciente. XII Congresso Brasileiro de Bioética. VI Congresso de Bioética Clínica. Recife, 28 de setembro de 2017. Disponível em: < http://www.sbbioetica.org.br/uploads/repositorio/2017_11_01/CARTA-DE-RECIFE.pdf> . Acesso em: 16 de março de 2018. [ Links ]

Fabiano MalufUniversidade de Brasília , Departamento de Saúde Coletiva , Brasília , Distrito Federal , Brasil. E-mail: [email protected] >

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A economia desumana: porque mata a austeridade – STUCKLER; BASU (TES)

STUCKLER, David; BASU, Sanjay. A economia desumana: porque mata a austeridade. 1. edição. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2014. 302p. Resenha de: GUIMARÃES, Raphael Mendonça. Os impactos das políticas de austeridade nas condições de saúde dos países com algum tipo de crise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.1, jan./abr. 2018.

O livro A economia desumana: porque mata a austeridade foi originalmente publicado no ano de 2013 por Stuckler e Basu. Trata dos impactos das políticas de austeridade nas condições de saúde dos países que enfrentaram algum tipo de crise. Foi traduzido para o português em 2014 e, desde então, vem sendo alvo de estudos e resenhas em periódicos das áreas de saúde pública e economia. David Stuckler é pesquisador-sênior da Universidade de Oxford e pesquisador da London School of Hygiene and Tropical Medicine. Já Sanjay Basu é epidemiologista e professor de Medicina na Universidade de Stanford.

Recentemente, o professor Stuckler esteve, em outubro de 2017, no Congresso Brasileiro de Epidemiologia para um lançamento do seu livro e, concomitante ao lançamento, houve a conferência “Efeitos das políticas de austeridade sobre a saúde das populações”. Neste momento de crise política no Brasil, em que este tema se torna emergente, parece oportuna a elaboração de uma nova resenha sobre o livro recém-lançado, descrita agora à luz da conjuntura atual.

O ponto de partida dos autores é o que denominam “experimentos naturais”, que representam situações em que foram adotadas medidas econômicas por diversos países frente a períodos de crise e instabilidade econômica, e qual a repercussão destas medidas – classificadas como de austeridade ou seguridade – na saúde da população. A proposta do livro é trazer, de forma elucidativa, a evidência gerada pela implementação de políticas públicas e o impacto nos indicadores de saúde.

É importante pontuar que a proposta dos “experimentos naturais” é uma prática recorrente nas ciências sociais aplicadas, uma vez que é difícil, em muitas situações, isolar as causas e os efeitos dos fenômenos de interesse social desta área de conhecimento. Por isso, a ideia de analisar os efeitos (por exemplo, indicadores de morbimortalidade por eventos marcadores, como o caso do suicídio, ou agravos conduzidos por políticas públicas, como o caso da Aids), adotando as práticas econômicas em cenários de crise e recessão como a causa.

A obra de Stuckler e Basu é enfática quando diz que as políticas de austeridade têm efeito devastador sobre a saúde das populações, particularmente não só em indicadores de impacto, como a reemergência de certas doenças, tais como a desnutrição e algumas doenças infecciosas, mas igualmente em indicadores de estrutura e processo, como a razão médico/população e o tempo interconsultas.

Em sua análise, os autores citam que a possibilidade de cortes na execução orçamentária traz um cenário obscuro para um futuro próximo, a exemplo do que ocorreu em alguns países, quando seus governantes optaram por redução de custos como medida de contenção. Enfatiza-se, aqui, que não se trata de cortes de gastos, pois a redução é em cima de elementos de financiamento que são previstos por série histórica, e não sobre valores não previstos – o que caracteriza o corte como um plano de governo, e não como resposta à suposta crise econômica.

Dando historicidade à pesquisa, os autores abordam exemplos que remetem à Grande Depressão de 1929 nos Estados Unidos, e de que forma a austeridade, naquele momento, contribuiu para uma mudança na velocidade da transição epidemiológica naquele país. Adicionalmente, o relato descreve a melhora nos indicadores alavancada, anos depois, graças às medidas geradas pelo New Deal, especialmente na redução da mortalidade infantil. Na sequência, os autores descrevem vários outros experimentos, concentrados em países europeus (ocidentais e orientais), todos eles apontando para a mesma direção: há um impacto negativo quando a decisão econômica é de privatização rápida e não preserva os sistemas de seguridade e bem-estar social.

Stuckler e Basu argumentam, nesta descrição, que há alguns princípios que devem ser considerados nas decisões a respeito da austeridade. Primeiramente, é importante que a diretriz econômica que venha a ser adotada não seja nociva à população. Segundo, de alguma forma as ações elaboradas devem ajudar a recuperar, a médio e longo prazo, o acesso a emprego e renda. Finalmente, os autores ponderam que é preciso haver investimentos em saúde pública, em especial nas ações de prevenção de agravos.

Para defender estes aspectos, os autores descrevem exemplos ocorridos nos últimos quarenta anos. Por exemplo, citam a dificuldade mais recente da Grécia em conter epidemias e tratar doentes, quando um investimento em ações preventivas poderia ter minimizado estes efeitos prolongados. Adicionalmente, os autores apontam para um aumento, após declínio sustentado no tempo, na taxa de incidência de HIV, resultado de redução orçamentária em programas de prevenção à Aids.

Outro exemplo trazido é o caso da diferença encontrada entre antigas repúblicas soviéticas, que lidaram com a crise no Leste europeu no início dos anos 1990 de formas distintas. Cita, por exemplo, que os programas de privatização na Rússia e a demolição da era soviética provocaram um aumento na magnitude de morbimortalidade na população. Já em repúblicas com transições mais lentas e sustentadas, como é o caso de Belarus, a saúde pública vivenciou um impacto de menor proporção.

Ainda, na Suécia, foram criados programas de inclusão no mercado de trabalho que, no limite, contribuíram para a redução no número de suicídios, mesmo durante a recessão. Em conclusão, afirmam que “a piora da saúde não é uma consequência inevitável das recessões econômicas. É uma escolha política”.

Por fim, é descrito o caso da Islândia, que teve a oportunidade, diante da crise econômica no início do século XXI, de realizar referendos populares para decidir os caminhos futuros da economia. À época, a população votou majoritariamente a favor do pagamento gradativo aos credores internacionais. Houve, ao final, uma recuperação da Islândia, sem que ocorresse um impacto importante, no período, na carga de doenças.

Assim, de forma consistente, os autores descrevem que, em lugar de melhorar o cenário econômico, a austeridade acaba por agravá-lo, além de trazer outros problemas de gestão, como a piora dos indicadores de saúde pública. A conclusão apontada por eles é de que a saúde pública sofrerá mais pela austeridade fiscal do que propriamente pela crise econômica, e nesse sentido é importante garantir políticas públicas adequadas. Ainda, destacam que os efeitos negativos não são inevitáveis, mas dependem organicamente de uma gestão pública forte, que reafirme princípios como a equidade e a justiça social.

Não há consenso, portanto, sobre a origem das crises, e sobre como responder a esta questão. Entretanto, há relativo acordo sobre considerar as medidas de austeridade – como a redução das despesas sociais e o aumento da tributação- um erro (Greer et al., 2017). No que se refere à área da saúde, a implicação se dá no corte de serviços e restrição no acesso aos cuidados (Stuckler et al., 2017). Se considerarmos este tipo de estratégia num sistema de saúde integral e universal, como é o caso brasileiro, as implicações poderão ser severas e ir de encontro à constitucionalidade das medidas adotadas. A partir dos exemplos descritos na obra, pode-se dizer que a conjuntura atual do Brasil tipifica um ‘experimento natural’, e nesse sentido é importante que se faça uma leitura crítica do cenário atual.

O ano é 2017, e muito se especula, após passado pouco mais de um ano desde o golpe de estado de 2016, o que será do futuro desta ‘terra de palmeiras’. A ocasião do lançamento da obra favoreceu a discussão. O congresso, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pela Universidade Federal de Santa Catarina, reuniu pesquisadores de vários lugares do globo, proporcionando um intercâmbio de experiências, muitas delas convergindo para o debate sobre os desafios da saúde pública diante de um cenário de crise, que é o elemento central da obra sobre a qual esta resenha se refere.

A abordagem de Stuckler e Basu, ao longo da obra, reflete a necessidade de orientar as análises epidemiológicas sobre o processo saúde-doença considerando o efeito do contexto, especialmente inserindo a determinação social da saúde. Há que se incorporar o aspecto das iniquidades em saúde, o que torna as análises mais e mais desafiadoras, não só do ponto de vista teórico, mas igualmente do ponto de vista metodológico, exigindo modelos estatísticos explicativos mais robustos.

De forma apropriada, cita-se aqui o desmantelamento de políticas de saúde relativamente consolidadas, como é o caso da Política Nacional de Atenção Básica. Ainda que esta desconstrução não tenha sido contemporânea à redação do livro, ela ocorre concomitante aos debates proferidos por David Stuckler recentemente. Neste momento, há organizações da sociedade civil, bem como associações nacionais e internacionais (como, por exemplo, a Abrasco e a Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar – CIMF), emitindo notas a respeito dos riscos da restrição de gastos públicos para a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS). É importante destacar, aqui, que não se trata de uma escassez de recurso, mas de priorização. Afirma-se isso diante das manobras realizadas pelo governo para garantir uma suposta ‘harmonia de democracia’, capitaneando o Brasil com a troca de interesses entre os poderes, à custa de recurso público, muitas vezes oriundo exatamente destes cortes. Esta reflexão vai ao encontro do que Stuckler elabora em sua obra: austeridade para quem?

É preciso, ao final e ao cabo, compreender que o financiamento em saúde (à exceção daquele comprometido com o conflito de interesses da indústria e do capital, de uma forma geral) é realizado pelo povo brasileiro. Neste sentido, o discurso de César Victora, um dos cientistas mais promissores do Brasil, proferido no mesmo Congresso Brasileiro de Epidemiologia, precisa ser reforçado: “Devemos ter esta lealdade com a população que financiou muitos estudos no país, e nesta época que a tentação de emigrar é muito grande, nós temos que resistir e continuar construindo a nossa Saúde Coletiva”.

A economia desumana: porque mata a austeridade demonstra, de forma clara, que a saúde pública é fortemente comprometida com o contexto social, político e econômico que a cerca, não só como provocadora de mudanças, mas como vulnerável às ações realizadas por outros setores. É, portanto, uma obra provocativa à reflexão dos rumos que o Brasil toma neste momento de instabilidade, e é um convite à reflexão do papel que a academia, juntamente com os serviços de saúde e a sociedade civil ocupam e exercem no cenário adverso de desmonte voluntário da saúde pública no país.

Referências

STUCKLER, D.; REEVES, A.; LOOPSTRA, R.; KARANIKOLOS, M.; MCKEE, M. Austerity and health: the impact in the UK and Europe. European Journal of Public Health, v. 27, suppl. 4, p. 18-21, oct. 2017. [ Links ]

GREER, S.L.; BEKKER, M.; LEEUW, E.; WISMAR, M.; HELDERMAN, J.K.; RIBEIRO, S.; STUCKLER, D. . Policy, politics and public health. European Journal of Public Health, v. 27, suppl. 4, p. 40-43, oct. 2017. [ Links ]

Raphael Mendonça GuimarãesFundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira – FRIGOTTO (TES)

FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola ‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: LPP, Uerj, 2017. 144p. Resenha de: SOUSA JUNIOR, Justino. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.3, set./dez. 2017.

Esta é uma daquelas obras forjadas no calor da luta, produzida por sujeitos preocupados em compreender, explicar e transformar a realidade social. Temperada no aço, no mesmo passo do fenômeno, mas nem por isso mal acabada. Ao contrário, esta obra se faz de estudos acurados, atentos e críticos dos processos sociais que correm em nosso país. A atenção voltada para o projeto Escola sem Partido (EsP) desseca o objeto, mas o faz analisando criteriosa e criticamente as circunstâncias históricas em que ele é produzido. Eis aqui um pensar orgânico com um fazer teórico e político transformador.

Apresentado pela professora Maria Ciavatta, o livro é composto por nove artigos e reúne 19 autores os quais, versando sobre o mesmo objeto, a mesma problemática, não cometem repetições enfadonhas. Os textos complementam-se na tentativa de cobrir os principais problemas colocados pelos embates provocados pela proposição da Escola sem Partido: sua vinculação com o golpe de Estado expresso no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff; suas inspirações estadunidenses e sua ideologia e vinculações políticas obscuras; as articulações mais remotas do que se passa na conjuntura brasileira com as linhas majoritárias da crise do sistema metabólico do capital; os meandros jurídicos; a história recente dos embates educacionais brasileiros; seus aspectos mais eminentemente pedagógicos, didáticos etc.

As análises, muito bem fundamentadas, e todas agudamente críticas, adotam referências múltiplas que vão de Mészáros a Foucault, passando por Debord, Agamben, Platão, Gramsci, Saviani, Florestan Fernandes, Marx, dentre outros. A multiplicidade das referências faz da obra um diálogo amplo, rico, diverso, ao mesmo tempo múltiplo e uno. Múltiplo porque dialoga com fundamentações jurídicas, políticas, históricas, pedagógicas, econômicas, dialoga com a tradição e com a contemporaneidade. E uno porque todos os artigos e autores, sem exceção, assumem posição clara em defesa da democracia, do direito universal à educação, da laicidade do ensino, autonomia didática e adotam a perspectiva de análise dos ‘de baixo’. Todos os artigos trazem posicionamento crítico em relação à regressão social, política e econômica que assoma no Brasil deste período pós-golpe.

A obra em exame nos mostra como a ideia que nasceu em 2004 de uma iniciativa pessoal do advogado Miguel Nagib, aliás, fracassada no início,1 só ganhou vulto nos anos mais recentes exatamente no bojo da emersão da onda reacionária que se alevantou contra o governo da presidente Dilma Rousseff.

De início, os educadores progressistas subestimaram a EsP, parecia apenas uma iniciativa isolada, absurdamente conservadora, baseada em ideias esdrúxulas, numa visão mesquinha, princípios reacionários, embasamento rasteiro, argumentações preconceituosas e vulgares – não se esqueça que o garoto propaganda da moralista EsP é o ator de filme pornô Alexandre Frota. Mas ela foi ganhando corpo à medida que crescia a onda reacionária e toda sorte de visões atrasadas começavam a sair do ostracismo.

É nesse movimento social complexo, impulsionado por corporações e organizações estrangeiras,2 entidades empresariais e grande mídia, apoiada pelos setores reacionários dominantes no parlamento que emergem, portanto, do mais tenebroso pântano social, ideias de apoio a regimes ditatoriais, acompanhadas de ataques a lutadores sociais e a todo tipo de perspectiva progressista que defenda segmentos LGBT, negros, indígenas, feministas, sem-terra, sem-teto, trabalhadores e explorados em geral.

Esse ponto não é exatamente aprofundado na obra, mas, de qualquer modo, ela nos instiga à reflexão autocrítica: em que medida as composições, os conchavos, a linha política da conciliação de classes dos governos eleitos entre 2002 e 2014 não abriram caminho para o avanço de setores, partidos e indivíduos que trabalham para desqualificar qualquer projeto progressista de sociedade? Teria essa linha política, que de certa maneira fortaleceu e encorajou segmentos reacionários zelosamente tratados como aliados, de alguma forma, ajudado a gestar o ovo da serpente de que nos fala a inspiração bergmaniana de Frigotto?

A obra nos revela o caráter centralizador do projeto Escola sem Partido que não se apaga ou diminui com o crescimento de suas ramificações. A ideia da EsP tem representatividade em 14 estados da Federação, vincula-se a dezenas de partidos, todos conservadores, evidentemente, é defendida por dezenas de parlamentares em todas as esferas legislativas do país, mas não perde seu caráter centralizado e personalizado o que, de acordo com a obra em questão, invalida sua caracterização como movimento.

A obra desmistifica a pseudoneutralidade da EsP, comprovando seus vínculos políticos, ou seja, revelando sua face oculta, isto é, seu caráter fortemente ‘partidarizado’. A EsP guarda vínculos claros com organizações da hegemonia burguesa como o Instituto Milenium, entre cujos membros encontram-se Gustavo Franco, Armínio Fraga, Jorge Gerdau, Henrique Meireles, Guilherme Fiúza, Giancarlo Civita e Rodrigo Constantino; o Movimento Brasil Livre (MBL), o Foro de Brasília, o Instituto Liberal e a Frente Parlamentar Evangélica (FPE).

A partidarização da EsP evidencia-se também através da forte associação com políticos e partidos tipo Izalci Lucas, deputado federal do PSDB, autor de projeto de lei que visa incluir o EsP na LDBEN; Rogério Marinho, deputado federal do PSDB, autor de projeto de lei que criminaliza o ‘assédio ideológico’ (PL 1.411/2015); Dorinha Seabra Rezende, deputado federal do DEM; Jair Bolsonaro, deputado federal do PSC, e seus filhos Carlos Bolsonaro, vereador do PSC/RJ, autor de projeto de lei que visa incluir o EsP na educação do seu município (PL 867/2014), e Flávio Bolsonaro, deputado estadual PSC/RJ, autor de projeto de lei semelhante para o estado do Rio de Janeiro; Erivelton Santana do PSC; Antônio Carlos M. de Bulhões do PRB; Marcos Feliciano, deputado federal do PSC; Magno Malta, senador do PR, autor de projeto de lei de teor semelhante ao PL 867/2015 no Senado (PL 139/2016); Marcel Van Hattem, deputado estadual do PPB/RS, que propôs projeto de lei (PL 190/2015) visando instituir no sistema educacional gaúcho o “programa Escola sem Partido”. Tais são as expressões políticas e legislativas da EsP, que falam eloquentemente por si mesmas.

O livro em discussão aponta a profunda fragilidade teórica da proposição da EsP. Rechaça a separação proposta entre educação e instrução, que visa a reduzir a formação escolar à mera instrução técnica, como um procedimento neutro, como se isso fosse possível, deixando a educação a cargo da família; mostra como os livros didáticos continuam sendo majoritariamente embasados nas ideologias burguesas; mostra que a escola não é, como pejorativa e injustamente acusam os defensores da EsP, lugar de doutrinação esquerdista, mas lugar de embates entre contraditórios, lugar de tensionamentos em que, via de regra, ainda prevalecem visões conservadoras.

Os artigos, como um todo, assumem posição a favor da universalidade do conhecimento, da fundamentação científica, do pluralismo de ideias, da abertura para a investigação, para a reflexão, para o debate. Refutam a posição da EsP que propaga a liberdade, mas tolhe a atuação não só do professor, mas dos sujeitos da escola e de tudo que questione a sociedade burguesa e os princípios ‘sagrados da família tradicional’. A obra refuta o pressuposto de que os filhos são propriedade dos pais e que sua educação deve estar sob o controle desses proprietários. A sua reflexão sugere a questão: a noção de direito e de liberdade da EsP não terminaria convertendo-se justamente no seu oposto, isto é, seguindo indicação da obra, na negação do acesso aos saberes sistematizados e fundamentados (logos) e na condenação dos jovens ao universo estreito das crenças (doxa) de seus pais e ou tutores?

A obra em questão é uma valiosa contribuição ao nosso pensar e fazer transformador. Ela nos oferece farta informação e boa reflexão, mas não fecha questão quanto ao caminho a ser trilhado para o enfrentamento do problema. Nesse sentido, aproveitando a figura utilizada por Frigotto, podemos indagar: quem irá decifrar o enigma e destruir a esfinge?

Não podemos nos tornar reféns da ilusão do messias, é com projetos coletivos que decifraremos e destruiremos a esfinge. Se compreendermos que a EsP é uma expressão da luta de classes, e não parece poder ser outro o caminho, o primeiro desafio, que está longe de ser consensual entre as forças progressistas, é refletir seriamente sobre a necessidade de assumir uma posição classista nesse embate. A EsP nos impõe cada vez mais a necessidade de assumir posição política firme de confronto não só em relação àquela proposição, mas na disputa hegemônica como um todo. A EsP nos impõe os termos do conflito e, nesse sentido, ela coloca um aspecto muito positivo, qual seja, a situação clara do antagonismo de classe. Se a esquerda outrora governo errou ao semear ilusões de pactos sociais entre pontas extremas de uma polarização social abismal, os ideólogos da EsP expõem com nitidez indiscutível a carne viva da luta de classes. Nesse sentido, a escola, que não é a trincheira mais importante das lutas dos explorados, deverá ser concebida como espaço importante para a disputa aberta de projetos antagônicos. O que os ideólogos da EsP não sabem ou fingem não saber, talvez devido ao inebriamento momentâneo do golpe, é que a escola pública é nossa área, o campo privilegiado para a práxis política dos ‘de baixo’. Na escola pública estão as massas trabalhadoras, os desvalidos, os desempregados, os mal-remunerados, os humilhados, os oprimidos, os explorados, os que não têm nada a perder, mas que nutrem a esperança de um mundo justo e fraterno. Na escola pública estão aqueles cuja vida prática reclama verdades objetivas, esclarecimento, engajamento, prática transformadora. Por mais que ideias variadas circulem na escola pública, e isso é extremante saudável, as próprias condições objetivas acabam empurrando os sujeitos ao extremo da luta. As ocupações das escolas, um dos fenômenos mais interessantes e auspiciosos que aconteceram nos últimos anos, talvez em toda história da educação brasileira, são uma demonstração do quanto é fértil e promissor o espaço escolar para a formação crítica e transformadora.

A EsP precisa ser enfrentada exatamente como é: uma expressão da luta de classes, por isso não podemos ficar ‘falando de lado e olhando pro chão’, envergonhados, escondidos atrás da coluna do Estado de direito e da democracia burguesa, embora esse não seja um campo de disputa desprezível.

Ideias como a EsP não têm como vingar na escola pública. A postura que preconiza a criminalização e a perseguição aos professores, e que, ao mesmo tempo, se mostra totalmente insensível aos gravíssimos e históricos problemas relativos às desigualdades educacionais brasileiras; que desdenha da situação da escola pública, em que metade das unidades de educação básica não possui biblioteca e/ou sala de leitura; em que 28% das unidades não dispõem de abastecimento de água da rede pública; em que 23% dos docentes da educação básica não possuem formação em nível superior completa (Censo Escolar, 2016); e que acha normal a precarização do trabalho docente, as péssimas condições de ensino e os baixos salários, essa postura não vinga no meio popular, pelo menos como consenso.

Referências

CENSO ESCOLAR da Educação Básica 2016. Notas estatísticas. 2016. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_censo_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017. [ Links ]

COSTA, Antonio Luiz M. C. Quem são os irmãos Koch. Carta Capital, São Paulo, 9 jun. 2015. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/quem-sao-os-irmaos-koch-2894.html>. Acesso em: 7 ago. 2017. [ Links ]

Notas

1 Indignado com uma comparação feita por um professor da escola de sua filha entre Che Guevara e São Francisco, como pessoas que abandonaram suas vidas privadas para se dedicarem a uma causa maior, o senhor Nagib interpelou professor e escola, distribuiu panfletos na porta da instituição, mas tudo o que conseguiu foi provocar uma ampla reação dos estudantes que fizeram, inclusive, passeata a favor do professor.

2 Ver, a propósito, a relação entre os irmãos Koch e o MBL em Costa (2015).

Justino de Sousa JuniorPrograma de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará, Ceará, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco – SOUZA; MENDES (TES)

SOUZA, Helton Saragor de; MENDES, Áquilas (orgs). Trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo: enfermagem em foco. Rio de Janeiro: DOC Content, 2016. 116p. Resenha de: LIMA, Júlio César França. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.3, set./dez. 2017.

Esse livro é o encontro de diversos campos de conhecimento na abordagem do trabalho de enfermagem no capitalismo contemporâneo, tais como, Economia, Sociologia, Saúde Coletiva e Enfermagem. Embora diferenciados, os quatro capítulos se organizam em torno de um eixo central que é a perspectiva de classe inspirada no materialismo histórico-dialético sobre o trabalho em saúde e os serviços em geral. São textos que, apesar de serem de campos disciplinares diferentes e independentes entre si, são complementares, visto que a categoria trabalho serve de base a todos.

Abrindo a coletânea, Áquilas Mendes analisa “os limites dos direitos sociais trabalhistas e do financiamento da seguridade social no Brasil, com destaque para a Saúde, no contexto do capitalismo contemporâneo e sua crise” (p. 16). Seu pressuposto é que o fundamento da atual crise capitalista se explica por duas principais tendências articuladas entre si. A primeira é a queda da taxa de lucro que se verifica nas economias capitalistas centrais desde o fim da década de 1960, decorrente do crescimento do trabalho morto em detrimento do trabalho vivo na produção do valor. A segunda tendência é o crescimento da esfera financeira comandado pelo capital portador de juros na sua forma de capital fictício a partir dos anos 1980, também conhecida como ‘financeirização’.

Os efeitos dessas duas tendências nos direitos sociais, no financiamento da seguridade social e, particularmente, do Sistema Único de Saúde (SUS) não se resumem aos cortes nos gastos sociais, mas trata-se principalmente de uma mudança na organização do sistema de proteção social no Brasil, segundo os interesses do capital. Em se tratando dos direitos dos trabalhadores, o autor enumera diversas medidas que foram tomadas ainda no governo Dilma Rousseff, em nome do ajuste fiscal e da realização de superávits primários. Com relação aos impasses no financiamento da seguridade social e do SUS, estes decorrem do peso do capital portador de juros no orçamento federal; da permanência do mecanismo de desvinculação das receitas da união (DRU), renovada e estendida de quatro para oito anos com aumento do percentual de retirada das receitas do orçamento da seguridade social de 20% para 30%, sob orientação do atual governo; dos incentivos financeiros públicos à saúde privada, entre outros.

Quando o autor escreveu o capítulo ainda não tinha sido aprovada a PEC 241 que congelou os gastos do Governo por vinte anos, o que agrava ainda mais o quadro de subfinanciamento que descreve. De todo modo, permanecem válidas as propostas de enfrentamento nesse contexto de acumulação financeira do capitalismo. Entre elas, a mudança da política econômica que prioriza o pagamento de juros da dívida pública e a auditoria da dívida para possibilitar maiores recursos para a seguridade social.

O segundo capítulo, de autoria de Cassia B. Soares e colaboradores, discute “a prática social da Enfermagem na contemporaneidade, a partir de fundamentos marxistas, mais precisamente a partir das categorias trabalho e processo de trabalho” (p. 43). De início, discutem o trabalho em saúde em sua acepção ampla como trabalho coletivo que para os autores representa a ‘unidade do diverso’ e a síntese do ‘concreto pensado’. Em seguida, abordam o processo de trabalho de Enfermagem, particularmente dentro do hospital. A partir de Marx, elegem a categoria ‘cooperação’ para fundamentar a definição do processo de trabalho coletivo em saúde. A cooperação no trabalho em saúde detém a sua especificidade em relação ao trabalho industrial, na medida em que as tecnologias são diversas. Porém, em ambos os setores se mantém o fundamento da produtividade do conjunto dos trabalhadores e, da mesma forma que na indústria, na saúde a cooperação permite intensificar o processo de valorização e a reprodução do capital no setor.

O fato de ser um trabalho coletivo não implica falta de assimetria de poder e controle equânime entre as categorias profissionais, e a cooperação não pode ser dissociada da divisão social e técnica do trabalho. Desse último ponto de vista, os autores identificam que “o princípio da cooperação na manufatura é mais adequado para se aplicar em relação ao hospital do que a forma de cooperação na grande indústria, porque a base da manufatura ainda resguarda a base técnica do ofício” (p. 50). É um tipo de trabalho que reproduz a organização taylorista do processo de produção mais geral, mas que tem incorporado a lógica da organização toyotista, e que é hegemonizado desde a formação acadêmica pelos referenciais funcionalistas que retroalimentam a própria fragmentação do cuidado.

A partir das investigações de base marxista, os autores apontam diretrizes teórico-metodológicas para analisar o trabalho de enfermagem na contemporaneidade, tais como a necessidade de situá-lo em sua condição de classe social; a análise da divisão interna desse trabalho; a investigação do objeto de trabalho e a concepção teórica de saúde que sustenta a ação; a análise dos meios e instrumentos utilizados, assim como o trabalho em si e, particularmente, a organização do processo de trabalho.

Leonardo Mello e Silva, no capítulo 3, vai discutir como a Sociologia do Trabalho francesa trata a ‘relação de serviço’, que é diferente de tratar o setor de serviços na medida em que essa relação existe no interior do setor industrial e, ao contrário, alguns tipos de trabalho do setor serviços não praticam a relação de serviço. Enquanto uma relação particular que ocorre entre cliente e prestador do serviço, tem grande variabilidade, o que impossibilita uma medida objetiva em termos de comparabilidade e repetitividade, diferentemente da relação industrial. Indica ainda que a oposição entre o que é produtivo e improdutivo, como se houvesse uma separação entre uma ‘economia industrial’ e uma ‘economia de serviços’ deve ser repensada.

A economia de serviços para o autor detém uma especificidade onde três polos convivem: o primeiro identifica a prestação de serviço como uma atividade visando uma realidade a ser transformada; no segundo polo está o proprietário dessa realidade; e no terceiro se encontra o prestador da atividade. Dada a heterogeneidade das situações, essa relação não pode ser desconectada das posições de classe desses conjuntos sociais. Destaca ainda que a relação de serviço se presta a uma análise centrada nas cenas interativas entre prestador e cliente, o que elide os modos de dominação estrutural presentes na relação patrão-empregado, mas não elimina a relação de classe e os conflitos nas interações cotidianas.

Silva discute o que denomina de ‘sociologia da relação de serviço’, e considerando que o conceito de divisão do trabalho recoloca essa relação dentro de uma perspectiva abrangente, aponta que a “aplicação do conceito de taylorismo para os serviços é, pelo menos, incompleta, para não dizer inadequada” (p. 71). Ou seja, pode servir para certos tipos de trabalho que são padronizados e seguem um protocolo de atendimento ao cliente, mas considerando mesmo aí a possível variabilidade e interatividade que possa ocorrer, o trabalho em serviço evoca uma ‘racionalidade substantiva’ em oposição a uma ‘racionalidade instrumental’. Na atualidade, o que se verifica é a migração de critérios de racionalização da empresa privada para o serviço público, que tiveram que se enquadrar dentro do ritmo de um fluxo produtivo cada vez mais intenso. Para o autor, o desaparecimento da hierarquia típica da divisão do trabalho taylorista “vai de par com a transferência da responsabilidade do serviço para o cliente ou usuário” (p. 75). Daí que “pode-se entender a compatibilidade social do modelo de organização e gestão do trabalho de tipo fluxo tensionado (…) com o esquema de análise teórica da relação de serviço (…)” (p. 76).

Avançando na análise dessa relação, mas agora debruçando-se sobre o trabalho de enfermagem, vai apontar diversos aspectos da realidade cotidiana desse trabalho a partir do estudo de Helton Saragor de Souza, autor do quarto e último capítulo do livro.

O capítulo tem como base um estudo de caso sobre o trabalho das categorias de enfermagem em três formas de gestão hospitalar: administração direta, terceirizada sob gestão de organizações sociais (OSs) e hospital privado. Sua hipótese é que a lógica da financeirização aplicada ao setor gera sobrecarga e intensificação do trabalho para os profissionais da área, aliadas à baixa qualidade do atendimento, e que o trabalho “é organizado sob o paradigma de reatividade da demanda nos moldes do pós-fordismo, especificamente, sob o fluxo tensionado” (p. 88).

Além dos pressupostos econômicos que estão na base dessas mudanças, o autor critica a interpretação de que o trabalho de enfermagem seja organizado predominantemente sob a lógica taylorista-fordista, pois a simplificação e a padronização nesse tipo de trabalho sempre se defrontam com a variabilidade do contexto e das características do sujeito-usuário. Além disso, considera que “a racionalização do trabalho em Enfermagem não se enquadra na dinâmica do trabalho vivo em ato, que supõe o trabalho relacional com o usuário como um espaço de protagonismo ou liberdade do sujeito trabalhador” (p. 91), pois o trabalhador está submetido à lógica geral das relações capitalistas. Para ele, o princípio organizador se fundamenta na reativação da demanda, ou seja, é o número de pacientes e as exigências do cuidado que racionalizam o trabalho de enfermagem, e o controle não é exercido por um gerente, mas pelas próprias tarefas conjunturais se sanadas ou não. Esse tipo de racionalização se baseia no modelo flexível pós-fordista sob o capitalismo financeirizado, que tal qual o taylorismo visa aumentar a produtividade, a lucratividade e a acumulação do capital no segmento privado e racionalizar os gastos nos serviços públicos.

A perspectiva teórica adotada é do fluxo tensionado de Durand que combina o processo de produção e a organização do processo de trabalho com o regime de mobilização dos trabalhadores. Uma combinatória que pode ser representada por três polos: “a integração reticular (…), a generalização do fluxo tensionado (…) e o modelo de competência como novo regime de mobilização da mão de obra” (Durand, 2003, apud Souza, p. 99).

Após analisar os princípios que ordenam a gestão do trabalho a partir dessa combinatória nas três formas de gestão hospitalar, identifica duas formas de exploração dos trabalhadores: a sobrecarga e a intensificação do trabalho em todos os setores das unidades hospitalares investigadas. O estudo aponta que a tendência é do trabalhador interiorizar a pressão “em um entendimento de que o direito da vida do paciente é muito maior do que o suposto direito de condições mínimas de trabalho” (p. 107). Mais que isso, a dinâmica laboral forja, também, um modo de vida, na medida em que o trabalhador incorpora o hábito de ‘fazer tudo correndo’, ser impaciente na vida pessoal e rápido nos afazeres domésticos.

Júlio César França LimaFundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. E-mail: [email protected]

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Ensino médio: à luz do pensamento de Gramsci – NOSELLA (TES)

NOSELLA, Paolo. Ensino médio: à luz do pensamento de Gramsci. Campinas, São Paulo: Editora Alínea, 2016. 180 pp. Resenha de: CAMPELLO, Ana Margarida de Mello Barreto. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.2, mai./ago. 2017

Ensino Médio: momento decisivo da formação humana

Nosella reúne nesse livro seis ensaios sobre o Ensino Médio. Apresentados primeiramente em forma de palestras e mesas redondas e posteriormente publicados em periódicos, os textos que compõem essa obra, escritos em diferentes momentos e à luz de contextos específicos, estruturam-se a partir de teses de fundo, que se repetem ao longo dos textos apresentados, a saber:

Aos adolescentes (todos) do Ensino Médio de 14 a 18 anos deve ser garantida uma formação de cultura geral, moderna e humanista, de elevada qualidade; sendo o estudo um trabalho muitas vezes mais duro e árduo que muitas outras atividades do mercado, muitos adolescentes as ‘escolhem’ por razões superficiais, imediatistas e utilitárias e não pela razão recôndita em sua consciência; se a desumana necessidade da família os empurra para a profissionalização precoce, cabe ao Estado intervir, remunerando seu trabalho/estudo, garantindo, com isso, a indefinição profissional, direito natural dessa fase etária, sem assistencialismos ou subterfúgios didáticos (p. 9).

O primeiro texto, “O Ensino de 2° Grau”, escrito para servir de base às discussões do Congresso Estadual de Educação da Rede Estadual de Ensino de São Paulo, realizado em abril de 1991, questiona a falta de clareza quanto à função específica desse nível de ensino. Seria ele propedêutico ao ensino superior, profissionalizante ou pré-profissionalizante? Fase terminal ou meramente transitória do sistema educacional?

Nosella entende ter havido um certo avanço quando se afirma ser o trabalho o princípio fundamental do ensino de 2° grau, mas que ainda assim permanecem dúvidas quanto à questão de sua identidade pedagógica. Defende que a autonomia didático-metodológica do ensino de 2° grau deve ser afirmada por um ensino marcadamente histórico e renovador que se define pelo e para o jovem a quem se destina e que ‘reinventa’ e ‘recria’ os instrumentos da ciência e da cultura ao reconhecê-los como histórica e politicamente criados pelos homens (p. 21). Na continuidade do desenvolvimento desse primeiro texto identifica dois princípios fundamentais para o ensino de 2° grau: o primeiro seria o próprio trabalho moderno, sua história, seus valores, suas leis. O segundo princípio, de caráter didático-metodológico, seria o exercício racional da autonomia, da criatividade e da responsabilidade humana.

O autor reconhece que a “catástrofe social” produzida no Brasil obriga os jovens à prematura busca pela sobrevivência, no entanto reafirma já nesse primeiro texto sua tese principal de que o Ensino Médio é fundamentalmente formativo, de caráter humanista, não profissionalizante.

O segundo capítulo é constituído pela conferência “Para além da formação politécnica”, proferida, em 2006, no Primeiro Encontro Internacional de Trabalho e Perspectivas de Formação dos Trabalhadores, promovido pelo Grupo de Pesquisa Labor da Universidade do Ceará. Segundo o autor, esse texto visa explicar por que considera inadequada a expressão ‘educação politécnica’, defendida por vários educadores marxistas, sobretudo nos anos 1990 e que para ele não traduz as necessidades de educação da sociedade atual, também insuficiente para explicitar os germes do futuro da proposta educacional marxiana (p. 50).

O autor esclarece que sua crítica à “bandeira politécnica” não é uma “mera questão de pureza semântica” e entende que os que a empunham defendem “políticas educacionais de outros tempos” como se “aqueles tempos e contextos passados conservassem hoje o mesmo significado cultural de antigamente” (p. 26). Explicita os termos utilizados e as fontes de estudo nas quais se baseia, assim como apresenta as razões que justificam suas críticas de natureza semântica, histórica e política à proposta de educação politécnica para a formação dos trabalhadores.

Apesar de considerar “muita pretensão elaborar uma proposta para a formação dos trabalhadores” (p. 44), retoma Marx e sua “fórmula pedagógico-escolar de instrução intelectual, física e tecnológica para todos (…) pública e gratuita (…) de união do ensino com a produção (…) livre de interferências políticas e ideológicas” e Gramsci e sua proposta de escola unitária para (re)afirmar a “formação omnilateral ou de escola unitária para todos e antes de tudo a superação da dicotomia entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho intelectual” (p. 46)

No terceiro capítulo, Nosella republica “Ensino Médio: em busca do principio pedagógico”, um texto que, segundo ele, nem sempre é bem considerado pela academia por estar “marcado pela experiência pessoal e pela emoção” (p. 10). Apresentado pela primeira vez em 2009, nesse artigo o autor parte de uma constatação: a intensificação do debate sobre o Ensino Médio que, segundo ele, é decorrente do aumento das matrículas nesse nível de ensino, constatado em pesquisas tais como a PNAD 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) , do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse crescimento de matrículas, segundo o autor, leva a que muitos pretendam “tirar proveito material dessa mão de obra juvenil e por isso pensam em profissionalizá-la rápida e precocemente” (p. 52). Ao defender o princípio pedagógico específico do Ensino Médio, entende que ele “é decorrente do momento vivido pelo jovem em busca de sua autonomia e identidade moral, intelectual e social” (p. 53).

Esse texto faz um resgate histórico bastante interessante dos debates acerca da dualidade do Ensino Médio brasileiro. Aborda as experiências de Anísio Teixeira da escola técnica secundária, ainda nos anos 1930, no então Distrito Federal, a reforma Capanema, o fracasso da profissionalização compulsória da lei n. 5.692/71, tentativa, segundo o autor, dos militares de universalização de seu sonho educacional de uma escola de técnicos submissos, de operadores práticos. A polarização dos debates educacionais quando da promulgação da Constituição de 1988 e da nova Lei de Diretrizes e Bases de 1996, a promulgação do decreto n. 2.208/97 pelo governo Fernando Henrique Cardoso e sua revogação pelo governo Lula. Em poucas páginas, o autor aborda, aprofunda e resgata historicamente as disputas de projeto para o Ensino Médio brasileiro.

O capítulo quatro “Ensino Médio: unitário ou multiforme?” sistematiza o debate com interlocutores do GT9 – Trabalho e Educação da Anped (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) e se constitui em continuação do capítulo anterior. “Conceitua a noção de escola unitária e de Ensino Médio e defende a reforma profunda dessa fase escolar (…) contra a atual política de sua fragmentação e profissionalização” (p. 69). Nesse texto, o autor aborda a função estratégica do Ensino Médio que, segundo ele, se constitui na pedra angular, “fase estratégica do sistema escolar e do processo de democratização e modernização de uma nação” (p. 71).

Sobre o conceito de escola única ou unitária, nesse capítulo, Nosella contrapõe esse conceito à questão da dualidade escolar, situando a ocorrência dos debates a esse respeito desde o final do século XIX. A existência de dois sistemas escolares, um de cultura geral desinteressada para formação de dirigentes, o outro de preparação profissional para os quadros do trabalho, leva à defesa de um sistema escolar unitário de educação básica, de modo a superar essa dualidade que seria expressão de injustiça social. Explora as diferenças semânticas entre os conceitos ‘único’ e ‘unitário’ para uma análise hermenêutica do conceito gramsciano de escola unitária, estabelecendo o autor em seu contexto histórico e cultural. Ao dialogar com Moura, Lima Filho e Silva (2015) considera que, no atual momento político brasileiro, é “importante propor com mais vigor e integralidade o projeto de escola média unitária” (p. 95), entende que os autores defendem uma visão de ensino médio multiforme e contesta a visão de “travessia” por eles apresentada.

O quinto texto, “Ensino Médio e educação profissionalizante”, constitui-se no prefácio do livro Educação profissional: análise contextualizada, organizado por Antonia de Abreu Sousa e Elenilce Gomes de Oliveira e publicado pela editora da UFC (Universidade Federal do Ceará). Nesse prefácio, Nosella destaca as críticas profundas e contundentes que os autores do livro fazem da educação profissionalizante, enfatiza a necessidade de que, ultrapassando a crítica, proponham as bases de suas propostas de politicas públicas no sentido da construção de um sistema unitário de ensino básico, fundamental e médio e, poeticamente, faz uma analogia entre o canto do rouxinol, representado pelas críticas, e a necessidade de realçar o canto da cotovia que estaria presente na explicitação da proposta de escola unitária.

O sexto e último ensaio, “A Escola de Gramsci: 22 anos depois”, constitui-se em atualização, um quase posfácio ao livro A Escola de Gramsci, publicado pela primeira vez em 1992. Organizado em tópicos, esse texto aborda quatro questões: a ideológica partidária, a linguística, a do historicismo e da dialética e a da escola unitária do trabalho. Ao abordar cada uma dessas questões, Nosella examina afirmações muitas vezes repetidas, redefinindo-as. Destaca Gramsci como um estudioso da linguística. Afirma que a única leitura possível de Gramsci é uma leitura absolutamente historicista, uma vez que é assim que esse pensador se autodefine (p. 127). Ao rever a conceituação de historicismo em Gramsci, reconhece, no livro que atualiza, passagem que “reflete posições teóricas deterministas” (p. 130) e esclarece o equívoco redigindo novas páginas. Finaliza trazendo novas fontes – os arquivos russos de Giulia Schucht, esposa de Gramsci – para o estudo da nomenclatura e da ideia de escola unitária, que representa a antítese política educacional contra a tese liberal da escola dual de ensino básico.

A atualidade e concretude deste livro de Paolo Nosella está exatamente em retomar questões historicamente em debate quando se trata de refletir sobre o Ensino Médio no Brasil. A continuidade histórica do debate desvela sucessivas reformas que, ao longo dos anos, deram quase sempre em nada e que parecem querer afirmar que o fracasso educacional é o objetivo do projeto de educação das classes dominantes no Brasil.

Nesse momento em que pela primeira vez se reforma, por meio de Medida Provisória, o Ensino Médio no Brasil reafirmo, com o autor, que estamos a anos luz da sonhada escola unitária, o que não significa que se deva abandonar a utopia.

Referências

MOURA, Dante H.; LIMA-FILHO, Domingos L.; SILVA, Mônica R. Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira. Revista Brasileira de Educação (Impresso), v. 20, p. 1.057–1.080, 2015. [ Links ]

Ana Margarida de Mello Barreto Campello – Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: [email protected]>

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As Ciências Sociais na educação médica – BARROS (TES)

BARROS, Nelson Filice de. As Ciências Sociais na educação médica. São Paulo: Hucitec, 1. ed., 2016. 185pp. Resenha de: ÁVILA E SILVA, Lidiane Mara de; FERREIRA, Jaqueline Teresinha. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.2, mai./ago. 2017

Neste livro, Nelson Filice de Barros faz uma análise das perspectivas e desafios ao ensino das Ciências Sociais na educação médica. Inicialmente, o autor resgata as bases sobre as quais se desenvolveu o campo das Ciências Sociais em Saúde no Brasil. Marcada pelo pensamento marxista, por estudiosos da Escola de Chicago nos Estados Unidos e por escolas francesas, a educação médica teve na década de 1960 a inserção de cientistas sociais nas escolas médicas diante da insuficiência do modelo médico-privatista e do cenário social que posteriormente culminou com a Reforma Sanitária Brasileira.

Os estudos sobre o tema, como o de Sergio Arouca e Cecília Donnângelo, analisaram esse contexto e são ainda hoje referências ao pensamento social em saúde. Para o autor, esse último estudo, ao analisar o trabalho médico em sua trama técnica e política, abriu um campo de estudos sobre a educação médica, medicalização e relação médico-paciente, dando corpo à sociologia na saúde brasileira.

No estudo de Nelson Filice de Barros, as bases conceituais se pautaram em análises macrossociológicas nos anos 1970, com caráter mais político do que científico, corroborando a crítica ao modelo vigente. Já a partir de 1990 e 2000, os estudos se concentraram em compreensões microssociológicas do processo saúde e doença, com a incorporação de estudos na linha do interacionismo simbólico, tendo como representantes Erving Goffman e Howard Becker.

No segundo capítulo, o autor analisa o conceito de tipo ideal em Max Weber e o utiliza para pensar as Ciências Sociais no campo da saúde, mais precisamente em como tem sido a inserção de cientistas sociais como antropólogos e cientistas políticos nos cursos da área de saúde no Brasil, incluindo graduação, pós-graduação e gestão em saúde.

Para ele, quando nos referimos à quantidade e qualidade do conhecimento produzido, há legitimidade mas uma ‘fraca credencial’, acompanhada de críticas que vão sendo adensadas ao longo da discussão. Sua experiência como docente do curso de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) permitiu compreender algumas delas.

Nos estudos revisados, por exemplo, o autor encontra análises sobre a reformulação do ensino médico, que destacam a necessidade de formar profissionais atentos às questões sociais, capazes de “compreender, responsabilizar-se e resolver a maior parte das necessidades e demandas de saúde dos indivíduos e das populações; além de dirigir e organizar equipes de saúde nos diferentes níveis em que se desenvolve o exercício profissional” (p. 50). Assim, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de medicina, o autor organiza um tipo ideal de currículo, dando enfoque às ações no campo da saúde e suas interações; conceito de cultura associado aos símbolos, valores e normas de usuários e profissionais de saúde; relações de poder e políticas de saúde. Essas questões permeiam o aluno como sujeito da aprendizagem e o professor como facilitador, rumo a uma emancipação crítica e à capacidade de atuar com usuários e outros profissionais.

No penúltimo capítulo, o autor analisa percepções de docentes e discentes sobre o ensino das Ciências Sociais na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Por meio de um questionário eletrônico, orientado pelo paradigma construtivista, foi possível colher informações que possibilitaram o adensamento do tema em questão que “pressupõe a forte dialética interacional entre estruturas e agenciamentos cognitivo, afetivo e cultural” (p. 71).

As percepções colocaram em evidência a invisibilidade das Ciências Sociais nesse contexto e a predominância do que ele considera uma contradição: os entrevistados reconhecem a importância das disciplinas na área para a formação, mas pouca valorização dos profissionais de Ciências Sociais e desconhecem a carga horária ou quando as disciplinas são ofertadas. Alguns temas possuem maior visibilidade, como a relação médico-paciente, o processo saúde-doença-cuidado, o desenvolvimento de atividades práticas, o cuidado integral em saúde.

No cerne dessa problemática está certamente a distinção epistemológica entre as disciplinas das Ciências Sociais e aquelas advindas do saber biomédico. O autor questiona como seria possível responder críticas em relação aos temas que partem da necessidade de compreensão do processo saúde e doença, de uma abordagem pautada na integralidade e no entendimento dos determinantes sociais da saúde, diante de uma formação predominantemente biomédica e intervencionista.

Em suas palavras, “trata-se de uma dificuldade paradigmática, pois a estrutura fundadora das Ciências Sociais opera com escolas de pensamento distintas e complementares de forma a não serem excluídas e assim perdurarem. Já o paradigma biomédico, em geral, opera com a lógica exclusiva, onde uma nova técnica, procedimento ou produto deve substituir o anterior” (p. 88).

Não obstante, para os alunos entrevistados no estudo há uma grande dificuldade em articular os conteúdos das disciplinas acima mencionadas com a visão biomédica e a prática. O autor dá ênfase à noção de interdisciplinaridade e complementaridade como via de integração diante das barreiras epistemológicas, ressaltando que precisamos formar profissionais com maior capacidade de interatuar, respeitando as diferenças e atribuindo igual valor aos diferentes saberes.

No ultimo capítulo são apresentados os resultados de uma revisão sistemática da literatura sobre o ensino de Ciências Sociais na medicina entre os anos 2001 e 2011. Trata-se de um capítulo mais denso que analisa o que foi discutido na literatura sobre o tema nesse período.

Para o autor, entre os principais desafios da formação médica para as Ciências Sociais está a falta de compreensão dos processos saúde doença e de sua complexidade, que podem ter resultados negativos como erros médicos e intervenções desnecessárias. Tal fato decorre de um reducionismo inerente ao modelo biomédico que se reflete na assistência e no cuidado, uma vez que valoriza o cuidado individual em um campo que demanda interação. É particularmente relevante no contexto do SUS, onde os princípios, dentre outros, são a integralidade e a universalidade.

Nelson Filice de Barros destaca que os alunos do curso de medicina somente ‘incorporarão’ os conteúdos das Ciências Sociais quando estiverem atuando como profissionais. Não são capazes de articular criticamente saberes em complementaridade com disciplinas de conhecimento biomédico, uma vez que os conceitos de Ciências Sociais põem em conflito as suas próprias identidades culturais.

Contudo, destaca a noção de responsabilidade social e a ética profissional, cada vez mais presente nas escolas médicas, que têm dado maior importância aos contextos sociais, às comunidades locais, estimulando o trabalho em equipe e a desmistificação da profissão como benevolência.

Sem o intuito de fomentar dicotomias entre disciplinas, Nelson Filice de Barros se preocupa em ensinar articulando sempre o saber à prática e buscando formas de desconstruir o ‘preconceito’ em relação ao conteúdo, sem deixar de lado a devida reflexão conceitual sobre a qual foram social e historicamente construídos. Trata-se, para o autor, de um campo fecundo onde se pulverizam conceitos que precisam ser desnaturalizados, reaprendidos e reincorporados à formação médica para que tenhamos profissionais que compreendam que as dimensões biológica e social não se separam.

As Ciências Sociais na educação médica é um estudo que interessa a cientistas sociais e sanitaristas, mas também a médicos, professores e a todos os profissionais da área de saúde. Nas palavras de Barros, “(…) enquanto para a maior parte dos que operam com a lógica médica o trabalho dos futuros médicos será curar doenças, para os que operam na ordem social o trabalho será de cuidar de pessoas, garantindo sua segurança e participação na tomada de decisões” (p. 146).

Ao analisar a inserção do pensamento social na saúde no Brasil, o autor resgata conceitos e ideais como os da fala acima que ainda encontram barreiras para serem absorvidos e incorporados na atenção à saúde no Brasil, diante de um modelo que se percebe cada vez mais insuficiente. Sua intenção não é contrapor esses modelos, mas reforçar sua complementaridade rumo à interdisciplinaridade, ultrapassando fronteiras a fim de que os saberes se interpenetrem.

Lidiane Mara de Ávila e SilvaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

Jaqueline Teresinha Ferreira – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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A medicina financeira. A ética estilhaçada – VIANNA SOBRINHO (TES)

VIANNA SOBRINHO, Luiz. A medicina financeira. A ética estilhaçada. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 336p. Resenha de: CASTIEL, Luis David. A dimensão financeira da medicina em questão. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.1 , jan./abr. 2017.

A revista Piauí de setembro de 2015 apresenta como matéria de capa a reportagem “O lobby dos remédios”, intitulada “Intoxicado de ofertas”. Um médico pesquisador participa de um congresso de psiquiatria com o firme propósito de se oferecer como ‘prescritor’ aos desígnios do bric-a-brac do marketing da indústria farmacêutica de psicofármacos. E faz fila para receber lanches, ganha brindes de qualidade, serventia e gosto duvidosos, joga videogames – num deles sua missão é salvar uma jovem da depressão munido de um antidepressivo virtual. Ao final da jornada, sai com seis sacolas com quase nove quilos de bugigangas e ainda conclui que, de certa forma, esta promiscuidade pode ser tratada alegoricamente com uma dose de benevolência, como um polvo, do qual os braços ‘somos todos nós’, assim como o alimento. Mas de quem é a cabeça do polvo?

Apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica – no contexto do neoliberalismo sustentável em suas estratégias mercadológicas. Estas são identificadas por estudiosos do campo por visarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos por meio de recursos eticamente discutíveis (Elliott, 2010), algo como o lado escuro da força da Big Pharma. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos favoráveis ao uso seguro da droga escritos por ghostwriters da própria indústria; a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis; o reforço à utilização abusiva de órteses e próteses, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários, entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas.

Inclusive, está documentado que pesquisadores da indústria farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme seu espectro de efeitos farmacológicos, profissionais do marketing da empresa devem vinculá-la ao tratamento de determinadas afecções e promover seu uso junto aos médicos como o tratamento ‘mais indicado’. Isto pode até implicar em encontrar uma doença incomum cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia, que tem o mau humor como sintoma). Este fenômeno costuma fazer parte destacada do que pode também ser designado por ‘medicalização’. Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi encarada como uma profissão, não como um negócio. Hoje os empreendimentos médicos são enormes e é duro admitir que o código de confiança implícito entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos de pesquisa não está mais assegurado.

Em uma matéria publicada no Le Monde DiplomatiqueQuentin Ravelli (2015) descreve as estratégias de ‘marketing’ da Big Pharma, representada pela gigante Sanofi-Aventis. Os médicos que mais interessam são aqueles com alto ‘potencial de prescrição’. Para localizá-los, há um bom tempo existem programas computacionais que os mapeiam por intermédio de dados coletados junto a distribuidores e com base nas vendas diretas em farmácias que exigem a apresentação e retenção de receitas. Além disto, são agregadas outras informações veiculadas por enquetes ad hoc de médicos.

Em busca de maior efetividade em suas ações, os setores de marketing elaboram uma tipologia de perfis de médicos: aqueles vinculados a movimentos sindicais, os afáveis e potencialmente receptivos, os acadêmicos, os ansiosos, os resistentes às investidas. Em síntese, o que interessa é sobrepujar qualquer enfrentamento retórico com argumentos e práticas que obtenham a fidelização dos prescritores aos medicamentos produzidos pela empresa. Isto se dá mediante treinamentos/workshops com vistas à formação de representantes hábeis em chegar aos resultados comercialmente desejáveis: o consumo dos produtos pelos pacientes. Para tanto, deve-se obter a aquiescência aos argumentos convenientes enunciados pela indústria farmacêutica.

Para resenhar e comentar este livro que aborda a dimensão financeira das práticas atuais da medicina, é preciso falar do seu autor. Talvez assim seja possível esclarecer não apenas seu conteúdo, mas algo que se sobressai da leitura, a inevitável ironia crítica que atravessa seus argumentos.

O autor é um médico cardiologista que também teve uma experiência na gestão técnica de um sistema de seguro de saúde de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde. A origem desta importante obra se localiza numa dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas que foi retomada, ampliada, atualizada e desenvolvida por iniciativa persistente do autor durante quase uma década.

Desde logo, percebe-se a estrutura acadêmica do livro. Impressiona a extensão do texto, a grande quantidade de referências e notas de rodapé. Mas esse formato é amenizado pela apresentação de exemplos provenientes da literatura e do cinema, e também de narrativas de eventos pessoais, muitas vezes, exibindo uma coragem admirável.

Vale repetir que o estilo empregado incide numa mordacidade que se harmoniza com a perspectiva de crítica necessariamente indignada diante das contradições precarizantes dos modos como se configuram atualmente as muitas engrenagens das cadeias de produção e consumo de sistemas e práticas de saúde. O livro também tem a ousadia de descrever aspectos que transitam pela hipocrisia por parte dos agentes que participam de situações que transitam por uma banalização do mal.

Assim, somos postos diante de médicos cujas práticas são configuradas por uma perspectiva de um neoliberalismo sustentável, abandonando o papel de cuidador e assumindo o lugar de gestor de condições de saúde, em função de critérios que ajustam meios e fins gerencialmente definidos. Tais médicos implodem a relação médico-paciente e diante do cliente (não mais um paciente, alguém que padece de algo), e tendem a se tornar profissionais impessoais que prestam serviços padronizados de qualidade variável, cuja efetividade em termos de resolução dos problemas dos pacientes é discutível.

Há uma atuação abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos que chega praticamente a uma forma mal disfarçada de suborno de médicos. São oferecidos presentes que participam, como indica o subtítulo, do estilhaçamento da ética, pois, por mais que os médicos achem que isto não influi no ato médico em si, há estudos que mostram como existem efeitos destas práticas na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes.

São descritas as práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que não conseguem camuflar os interesses mercantis na determinação dos níveis de capacidade de consumo de saúde dos clientes. Desta forma, assistimos à metamorfose precarizante daqueles que eram designados como ‘pacientes’ em ‘consumidores’.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de ‘realidade’ em questão, nem aspectos que são incluídos, não-incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Além disto, importa mencionar que há evidências suficientes acerca dos enviesamentos que as corporações farmacêuticas geram nos resultados de ensaios clínicos que escamoteiam a real efetividade e os efeitos adversos dos novos fármacos postos no mercado. Da mesma maneira, não se apresentam sob a forma de publicação os resultados de estudos que apontam para achados desfavoráveis em relação aos medicamentos experimentados.

Este quadro inevitavelmente contamina a cadeia de produção de ‘guidelines’ que sustentam o gerencialismo baseado na lógica de adequação de custos em termos de insumos e produtos/serviços. Isto cinicamente termina por prover na extremidade do paciente a provisão de ‘cuidados’ de saúde já definidos, na sua origem, por um selo imaginário de qualidade precária. Por mais duro que possa parecer, é impossível se conter e não enfatizar a dimensão de cinismo que se manifesta nas práticas cotidianas de (des)atenção à saúde.

Os leitores do livro irão perceber configurações que muitos irão vincular a penosos eventos como pacientes ou como pessoas de sua família. A origem da palavra ‘paciente’ indica sua posição como alguém que está afetado por algo que o ameaça ou o faz sofrer ou o deixa enfraquecido diante das demandas da sua vida (enfermo é aquele que está num estado de debilidade; doente é originalmente aquele que sente dor). Não se trata do sentido de quem é obrigado a ter paciência, que aguenta com resignação não só a manifestação de sinais e sintomas, mas, também, ao alto risco de ser maltratado durante seus encontros com as incômodas facetas do atual Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Referências

AMARAL, Olavo. Intoxicado de ofertas. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 108, p. 20-28, set. 2015. [ Links ]

ELLIOTT, Carl. White coat, black hat. Adventures on the dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010. [ Links ]

RAVELLI, Quentin. Nos subterrâneos da indústria farmacêutica. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://outraspalavras.net/destaques/nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica>. Acesso em: 25 dez. 2015. [ Links ]

Luis David CastielEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil <[email protected]>

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Medicalização em psiquiatria – FREITAS; AMARANRE (TES)

FREITAS, Fernando; AMARANRE, Paulo. Medicalização em psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. 148p. Resenha de: WHITAKER, Robert. Uma leitura crítica da medicalização em psiquiatria. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15, n.1,  jan./abr. 2017 .

A psiquiatria moderna tem nos proporcionado uma nova forma de pensar sobre nós mesmos, e nesse curto e fascinante livro, Medicalização em psiquiatria, Fernando Freitas e Paulo Amarante apresentam um conjunto de evidências e argumentos da percepção empobrecida feita sobre nós humanos. Os dois autores também detalham como o atual paradigma de cuidado da psiquiatria é construído sobre ‘ficções’. O livro é concluído com um olhar sobre terapias alternativas promissoras e, como tal, advoga fortemente a necessidade de se repensar os fundamentos do cuidado psiquiátrico.

Se o livro Medicalização em psiquiatria pode ser descrito como uma nova adição à crescente biblioteca internacional de livros de ‘psiquiatria crítica’, é notável que, nesse âmbito, ambos os autores têm posições de liderança dentro do establishment em Saúde Mental.

Paulo Amarante, psiquiatra, é reconhecido por décadas de trabalho e de luta pela reforma da atenção psiquiátrica no Brasil. No final da década de 1980, após ter estudado com Franco Basaglia e outros psiquiatras italianos que desenvolveram o cuidado comunitário em seu país de origem, Amarante militou e colaborou na redação da legislação de saúde mental que tem levado à desinstitucionalização no Brasil. Hoje, ele é o presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), e professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, unidade científica da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), instituição vinculada ao Ministério da Saúde. Fernando Freitas, psicólogo, é ex-diretor da Abrasme e, como Amarante, é professor e pesquisador da Ensp/Fiocruz.

A beleza do livro começa a se tornar evidente no primeiro capítulo, onde ambos proporcionam um contexto filosófico amplo para se entender o que a psiquiatria biológica moderna tem feito. Escrevem sobre a ‘medicalização’ da vida moderna e as consequências que ela tem para nós como indivíduos. É um fenômeno que surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial; e enquanto avanços médicos – como o descobrimento de antibióticos – ajudaram a pôr controle sobre muitas doenças, o crescimento da indústria médica encorajou o cidadão moderno a ver a si próprio através das lentes médicas de ‘o que há de errado comigo’. Isso é particularmente verdadeiro na psiquiatria.

Dessa forma, Freitas e Amarante lembram aos leitores o que está em jogo. Medicalização pode se tornar um meio de controle social, com o indivíduo encorajado a adotar o ‘papel de doente’, o que leva à perda da autonomia individual. Nós somos encorajados a pensar que é ‘anormal’ sofrer, ou experimentar dor em nossas vidas, quando, claro é que, como qualquer busca na literatura irá nos lembrar, o sofrimento é inerente ao ser humano.

No que diz respeito à medicalização de nossas vidas emocionais, ela tem sido alimentada por uma ‘aliança profana’ que foi formada – como os autores apontam – entre a psiquiatria acadêmica e a indústria farmacêutica nos Estados Unidos na década de 1980. As empresas farmacêuticas passaram a contratar psiquiatras de escolas médicas prestigiadas daquele país para servirem como seus consultores, conselheiros e porta-vozes. Tal aliança passou a contar ao público uma narrativa sobre grandes avanços científicos. Pesquisadores haviam descoberto que os transtornos mentais eram ‘doenças cerebrais’ causadas por ‘desequilíbrios químicos’ no cérebro, e que poderiam ser então corrigidas por uma nova geração de drogas psiquiátricas. Com a difusão dessa narrativa para o público, o consumo de drogas psiquiátricas nos Estados Unidos explodiu, e, rapidamente, essa ‘aliança profana’ conseguiu exportá-la para o Brasil e outros países desenvolvidos em todo o mundo.

Freitas e Amarante proporcionam uma desconstrução sucinta dessa narrativa, começando com a crise existencial que por fim levou a Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) a adotar sua narrativa de ‘modelo baseado na doença’. Nos Estados Unidos, assim como igualmente se passava em muitos outros países, os psiquiatras nos anos 1960 geralmente não eram vistos como ‘médicos de verdade’. Então, no início dos anos 1970, o psicólogo David Rosenhan, da Universidade de Standford, publicou um estudo que publicamente humilhou a profissão.

Rosenhan e outros sete voluntários ‘normais’ se apresentaram em hospitais psiquiátricos, afirmando que ouviam uma voz que dizia ‘vazio’ ou alguma outra palavra simples. Todos foram admitidos e diagnosticados como ‘esquizofrênicos’, e ainda que eles se comportassem normalmente dentro do hospital, nenhum membro da equipe hospitalar – incluindo psiquiatras – identificou-os como impostores. Em contraste, os outros pacientes no hospital os reconheceram. Os ‘loucos‘ no hospital manifestaram muito mais discernimento que os profissionais.

Essa humilhação – e outros desafios sociais para a sua legitimidade – forçou a APA a refazer o seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM). A corporação profissional precisava apresentar os psiquiatras ao público como ‘médicos de verdade‘, e, em 1980, foi publicado o DSM III, que passou a ser propagandeado como um grande avanço científico, por passar a ser um manual de ‘doenças’ e de ‘transtornos’ reais que poderiam ser confiavelmente diagnosticados. Mas, como Freitas e Amarante escrevem, o DSM – que se tornou a ‘bíblia’ mundial da psiquiatria – não é baseado na ciência. Os diagnósticos são ‘constructos’ com critérios de sintomas arbitrariamente definidos; 35 anos de pesquisa têm fracassado em validar qualquer um dos transtornos mentais como doenças distintas.

Com o DSM III em mãos, a psiquiatria americana passou a nos persuadir a acreditar na noção de que depressão, ansiedade, psicose e outros transtornos mentais são causados por desequilíbrios químicos no cérebro. Essa narrativa é a de que as doenças cerebrais podem ser tratadas com sucesso por meio de medicamentos. Mas, como os autores explicam, pode-se considerar que a hipótese química tenha sido derrubada em 1996, quando Stephen Hyman, à época diretor do Nacional Instituto de Saúde Mental (NIMH) nos Estados Unidos, escreveu um artigo sobre como as drogas psiquiátricas ‘perturbam’ a função normal do cérebro em vez de corrigir um desequilíbrio químico. Remédios psiquiátricos, conforme os autores corretamente explicam, fazem o seu ‘cérebro funcionar anormalmente’.

Dessa forma, Freitas e Amarante desconstroem o ‘mito’ da psiquiatria moderna passo a passo. Em seguida, revisam a literatura de resultados sobre antipsicóticos e antidepressivos. Essa sessão talvez pareça particularmente surpreendente para leitores leigos. Um olhar atento à pesquisa revela que as drogas não proporcionam particularmente um benefício maior em relação ao placebo, nem mesmo em curto prazo, e que, a longo prazo, pacientes sem medicação – e isso é verdade até para aqueles diagnosticados com esquizofrenia – têm melhores resultados.

Então, o que há para ser feito? Se o Brasil e outras sociedades têm organizado o seu cuidado em torno de uma falsa narrativa, quais novos caminhos podem ser achados para ajudar aqueles que sofrem com suas mentes? No seu capítulo de encerramento, Freitas e Amarante descrevem um caminho à frente. Eles discutem vários programas terapêuticos, no passado e no presente, que têm focado em proporcionar um cuidado psicossocial e fazendo uso limitado – ou não – de medicações, que têm provado ser bastante bem-sucedidos. Em particular, falam da abordagem do ‘Diálogo aberto’ (Open dialogue) empregada no norte da Finlândia, que tem produzido notáveis resultados a longo prazo para as pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos.

Em suma, os dois autores visam um novo paradigma de cuidados que possa ‘oferecer uma atenção psiquiátrica’ fora dos manicômios e que não crie pacientes crônicos. Em outras palavras, Freitas e Amarante visam um paradigma de cuidado que ajude as pessoas que lutam com as suas mentes a verdadeiramente se recuperarem e poderem levar as suas vidas da melhor forma possível.

*Tradução de Flávio Sagnori Mota e Nina Isabel Soalheiro, integrantes da equipe do Grupo de Pesquisa Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Robert WhitakerJornalista especializado em Medicina e Ciência, presidente da Mad in America Foundation, Cambridge, MA, EUA <[email protected]>

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Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – LINDEN (TES)

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, 520 p. Resenha de: TERRA, Paulo Cruz. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

Como pensar/escrever uma História Global do trabalho? Essa é a questão que permeia o livro Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma história global do trabalho, de Marcel van der Linden, publicado em 2013, pela Editora da Unicamp. Trata-se de uma tradução para o português de uma obra publicada originalmente em inglês, em 2008. O autor foi diretor de pesquisa do Instituto Internacional de História Social, situado em Amsterdã, e, assim como a instituição, se tornou uma referência em termos da história global do trabalho, cujas linhas gerais nos são apresentadas nesse volume.

A História Global do Trabalho consiste mais, segundo o autor, em uma “área de interesse” do que um bem-definido paradigma teórico. Linden propõe o estudo transcontinental, mais do que transnacional, dos movimentos sociais trabalhistas e das relações de trabalho. Por transcontinental entende-se colocar “todos os processos históricos num contexto mais amplo, por ‘menores’, em termos geográficos, que sejam esses processos” (Linden, 2008, p. 14), tecendo comparações entre diferentes países e/ou, principalmente, analisando as interações internacionais.

Ao enfocar as conexões globais, segundo Linden, a História Global do Trabalho se contrapõe ao nacionalismo metodológico e ao eurocentrismo presentes na história do trabalho produzida na Europa e na América do Norte. O eurocentrismo define-se como “o ordenamento mental do mundo a partir da perspectiva da região do Atlântico Norte”. Nesse sentido, a história da classe trabalhadora e dos movimentos trabalhistas dessa região foram vistas como acontecimentos separados, e quando era dada atenção a outros locais, “estes eram interpretados de acordo com os esquemas do ‘Atlântico Norte’” (Linden, 2008, p. 11). O nacionalismo metodológico, por sua vez, “funde sociedade e Estado”, naturalizando o Estado-nação.

A proposta de Linden para uma História Global do Trabalho aponta também para um conceito mais amplo de trabalhador. O autor dialoga diretamente com Marx, para quem o trabalho livre assalariado – no qual o trabalhador, enquanto indivíduo livre, dispõe de sua força de trabalho como uma mercadoria – era a forma de mercantilização do trabalho verdadeiramente capitalista. Contudo, os assalariados constituíam apenas uma entre as cinco classes ou semiclasses subalternas no capitalismo, que incluiria ainda os trabalhadores autônomos, “que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou serviços resultantes de seu trabalho”; a pequena burguesia, “formada por pequenos produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores”; os escravos, “que não possuem nem sua força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidas”; e o lumpemproletariado, “que é totalmente excluído do mercado de trabalho legalizado” (Linden, 2008, p. 30). Com exceção dos trabalhadores assalariados, os outros grupos foram considerados como historicamente menos significativos para Marx.

Linden ressalta que pesquisas empíricas em diversas partes do mundo apontaram, entretanto, que as proposições de Marx sobre a classe trabalhadora e a mercantilização do trabalho eram muito restritas. O autor argumentou que no capitalismo há “uma variedade quase infinita de tipos de produtores, e as formas intermediárias entre as diferentes categorias são definidas de formas mais fluidas do que nítidas” (Linden, 2008, p. 30). Ele indica, por exemplo, que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que sugeria a visão clássica, e que existiam diversas maneiras de prender um empregado a seu emprego.

Considero a visão mais abrangente de classe trabalhadora como uma das principais contribuições do livro. Contudo, é preciso afirmar que outros historiadores, inclusive brasileiros, já chamavam a atenção para a ampliação do conceito de trabalhador, mesmo não estando ligados à História Global do Trabalho. Se, em 1998, Silvia Hunold Lara denunciava a exclusão dos escravos nas análises da história social do trabalho no Brasil (Lara, 1998, p. 26), o quadro tem sido alterado mais recentemente. Marcelo Badaró Mattos, por exemplo, afirmou que a experiência de convivência entre escravizados e livres foi fundamental no processo de formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro. Essa convivência teria ocorrido em diversos aspectos, como no mercado de trabalho, nas organizações criadas, além das ações coletivas. Segundo Mattos, os trabalhadores escravizados e livres conviviam tanto nas fábricas quanto na rua, além de partilharem outros espaços, como moradia, lazer, alimentação e transporte (Mattos, 2004, p. 62).

O Brasil, aliás, está presente em diversas partes do livro. O Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (Anpuh) “Mundos do Trabalho” é citado como exemplo de organizações surgidas no âmbito internacional, no período recente, que têm ampliado o estudo da história do trabalho. Além disso, o caso dos escravos ao ganho do Brasil é exposto como um tipo específico dentro da escravidão. Só que nesse caso há uma confusão causada pela tradução. Linden utiliza como referência um artigo de Maria Cecília Velasco e Cruz, que escolheu a expressão slaves-for-hire como tradução de “escravos ao ganho”. A versão brasileira do livro, por sua vez, traduziu a expressão em inglês como “escravos de aluguel”. Contudo, as expressões representam relações distintas: enquanto em uma os escravos são alugados pelos senhores, que recebem diretamente os proventos desse aluguel; na escravidão ao ganho, por sua vez, são os escravos que cobram pela execução de serviços e/ou venda de produtos e repassam os ganhos aos seus senhores, sendo permitido ao trabalhador cativo reter o que excedesse a quantia combinada previamente.

Além da discussão sobre o conceito de classe trabalhadora, presente na primeira parte do livro, a obra se debruça sobre a ação coletiva dos trabalhadores, entendida como “uma ação mais ou menos coordenada por parte de um grupo de trabalhadores (e, talvez, seus aliados), visando a atingir um objetivo específico, que eles seriam incapazes de alcançar individualmente, dentro do mesmo período de tempo e pelos meios a eles disponíveis” (Linden, 2008, p. 19). Assim, Linden aborda as variações do mutualismo, na segunda parte, e as formas de resistência, na terceira, que incluem as greves, os protestos de consumidores, os sindicatos e o internacionalismo operário. A quarta, e última parte, trata das contribuições das disciplinas adjacentes, como a teoria do sistema-mundo, de Wallerstein, ou o diálogo com estudos etnológicos, ao analisar especificamente os iatmul, um povo da Papua Nova-Guiné.

Ao longo do livro, somos apresentados a muitos exemplos de diferentes partes do mundo sobre os variados assuntos tratados. Aliás, chama a atenção a erudição de Linden, que domina uma vasta bibliografia, arrolada em impressionantes 81 páginas ao final da obra. A utilização dos exemplos mundiais é possível, segundo o autor, pois, apesar da diversidade e especificidades das experiências, “as formas de ação coletiva inventadas pelos trabalhadores subalternos de todo o mundo refletem uma lógica própria e bem definida, que é possível identificar e verificar” (p. 406). O autor apresenta justamente uma preocupação em buscar as frequências e tendências que podem ser agrupadas em alguns tipos básicos comuns.

Se os muitos exemplos das várias partes do mundo podem ser vistos como um dos pontos positivos do livro, eles também apresentam problemas. Para Leon Fink, as categorias altamente articuladas estabelecidas por Linden “tendem a ignorar grandes distinções entre Estado-nações e as suas políticas culturais”, bem como podem levar à perda do senso de “cronologia, periodização e turning points históricos” (Fink, 2010). Crítica semelhante foi feita por Fernando Teixeira da Silva, que indicou que a “justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica” (Teixeira, 2014, p. 360).

O livro de Linden é uma leitura instigante e propõe importantes reflexões para os interessados na história do trabalho. A História Global do Trabalho proposta por ele, por sinal, já tem dado importantes frutos pelo mundo. No Brasil, no entanto, ainda está engatinhando. De certo, um grande empecilho para o seu desenvolvimento é a falta de financiamento em nosso país para pesquisas que, nessa perspectiva, geralmente demandam amplos recursos para um trabalho em equipe. Infelizmente, tudo tende a piorar, já que o apoio ao desenvolvimento da ciência tem minguado cada vez mais.

Referências

FINK, Leon. Review of vand der Linden, Marcel. Workers of the World: Essays toward a Global Labor History. H-Net Reviews, julho 2010. Disponível em: <www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=30764>. Acesso em: 15 de jul. 2016. [ Links ]

LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, 1998. [ Links ]

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2013. [ Links ]

MATTOS, Marcelo B. Experiências comuns. Escravizados e livres na formação da classe trabalhadora carioca. Tese (apresentada ao Concurso para Professor Titular de História do Brasil) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. [ Links ]

SILVA, Fernando T. van der Linden, Marcel – Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 67, p. 357-363, 2014. [ Links ]

Paulo Cruz Terra – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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nserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave – FURTADO; NAKAMURA (TES)

FURTADO, Juarez Pereira; NAKAMURA, Eunice (orgs.). Inserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave. São Paulo: Editora FAP-Unifesp, 2014. 432 p. Resenha de: SOALHEIRO, Nina. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

O livro Inserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave demanda fôlego do seu leitor, o mesmo que foi necessário aos organizadores e autores para nos apresentar os resultados de um trabalho assumidamente longo e complexo. Organizado por um profissional da saúde coletiva com larga experiência no campo da saúde mental e uma antropóloga que tem seus estudos também voltados para o campo, o livro reúne pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento, mas orientados por uma metodologia rigorosamente interdisciplinar. Por isso não é uma leitura fácil nem dada a simplismos; ao contrário, vai muito além dos limites conceituais já consagrados no campo da atenção psicossocial.

Desde o título, o livro deixa claro que os organizadores e autores falam de inserção social e não de ‘reinserção social’ ou ‘reabilitação psicossocial’; falam de habitação e não apenas de ‘residências terapêuticas’ ou ‘serviços residenciais terapêuticos’; falam de pessoas com sofrimento mental e não de ‘portadores de transtornos mentais’ ou ‘pacientes psiquiátricos’. E demonstram que não são dados a caminhos fáceis, já que escolhem falar de pessoas com sofrimentos graves. Isso já nos dá uma boa medida da obra, a qual apresenta uma pesquisa inovadora no campo da saúde mental e atenção psicossocial, esta tão carente de sistematizações de fôlego, seja pela complexidade de fazê-lo, seja por nos contentarmos apenas com aquilo que nos cabe fazer.

A pesquisa que deu origem ao livro é resultado de indagações teóricas e políticas da equipe, a partir dos novos desafios trazidos pelo conjunto de mudanças implementadas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, particularmente na área de suporte social a moradias e habitação de pacientes com sofrimento mental grave. Dentro desse contexto de consolidação de uma saúde mental pós asilar, o livro ressalta a diferença fundamental entre morar e habitar: morar refere-se ao espaço, conforto e proteção que constituem a residência; habitar, ao modo de apropriação da moradia, inclui a história e o estilo de ser daquele que vive nela.

O campo da pesquisa é constituído por três municípios diferentes, duas capitais estaduais e um município contíguo a uma região metropolitana, os quais foram definidos por terem uma rede de saúde mental diversificada e já consolidada. A equipe de pesquisadores foi composta a partir da característica qualitativa, interdisciplinar e participativa do estudo, reunindo pesquisadores de quatro importantes áreas de conhecimento para abordagem do tema: antropologia, arquitetura, saúde coletiva e psicanálise. Uma perspectiva interdisciplinar sem pretensões holísticas, apenas baseada num roteiro comum e no compartilhamento exaustivo da experiência com o ‘objeto’ e campo.

Dessa forma, os resultados apresentam um conjunto de análises muito ricas, organizadas tanto por categorias específicas a cada uma das áreas de conhecimento quanto por um esforço de síntese e reconstrução do objeto através dos diferentes olhares. O livro e seu conjunto de capítulos materializam aquilo que insistentemente temos afirmado sobre a natureza interdisciplinar e intersetorial da atenção psicossocial e a necessidade intrínseca ao campo de agregar múltiplos saberes e abordagens. Para isso os organizadores estruturam o trabalho em três partes que reconstituem o longo caminho percorrido pela equipe da pesquisa.

A primeira parte, intitulada “Morar, habitar, inserir: perspectivas da arquitetura, antropologia, psicanálise e saúde coletiva”, representa um esforço de sistematização e compartilhamento com o leitor dos aspectos teóricos e conceituais de cada uma das áreas de conhecimento. Sem se ater a um mero exercício epistemológico acadêmico, o texto é radicalmente focado no objeto e no compromisso social da pesquisa.

A partir dos autores arquitetos vem a compreensão da casa como lugar de proteção das intempéries e a poética da nossa eterna relação com ela, sempre em construção. Apresentam-na em suas múltiplas dimensões de fundação, abrigo e construção material de nossa presença no mundo. E, sobretudo, relatos que trazem um olhar profundamente crítico das distorções presentes nos serviços estudados, detalhes que muitas vezes não conseguimos enxergar.

Os autores antropólogos trazem uma contribuição importante para o nosso campo, na medida que desvelam a insuficiência das definições simplistas de inserção social e ressaltam o valor de uma perspectiva etnográfica ‘de dentro’, aquela que analisa o pertencimento das moradias ao conjunto da organização social e cultural que produz exclusão.

Os autores da saúde coletiva não poupam esforços para situar o leitor na historicidade das políticas públicas para a área no Brasil, incluindo também um breve painel de experiências nacionais e internacionais relevantes. Discutem políticas e projetos de suporte social a moradias e habitação, sem abrir mão da dimensão simbólica envolvida nessa construção, sempre presente no livro como um todo. O que é muito bem ilustrado com a referência ao caso de um senhor que, chegando num Serviço Residencial Terapêutico no qual finalmente consegue uma vaga, deposita sua sacola sobre a cama e surpreende com a frase: “Agora posso viajar!”. Os espaços públicos de moradia têm que comportar pertencimento e errâncias, ser porto seguro para andanças que agora incluem o voltar.

Por fim, os autores psicanalistas ressaltam a importância da articulação entre singular e universal para a construção do habitar. Apostam na natureza essencialmente simbólica desta construção, única para cada sujeito, sem projeto comum para todos. A nós restaria apenas acompanhar os modos de habitar o mundo e o campo do Outro onde os sujeitos podem encontrar sua casa.

A segunda parte do livro é intitulada “Processos de investigação”, formada por sete capítulos que, segundo os organizadores, traduziria o ‘como fizemos’. Inclui reflexões teóricas sobre os diferentes métodos e técnicas de pesquisa utilizados e, mais importante, a narrativa dos pesquisadores sobre a experiência de campo. Um ‘campo’ na verdade constituído pela equipe em interação com os diferentes territórios de vida dos sujeitos pesquisados, trazendo experiências de imersão etnográfica e biográficas. Aqui encontramos uma pesquisa essencialmente qualitativa, levando a termo aquilo que é a potência desse modo de investigação: dar consistência a mundos obscuros e invisíveis, os quais só são acessíveis com extrema aproximação de rotinas e de vidas.

Em cada um dos capítulos encontramos pesquisadores sem medo do seu próprio estranhamento de mundos caóticos e sem pudor de nos fazer participar dos seus diálogos internos, mas sem deixar de sempre retornar ao seu papel de análise e reflexão dessas experiências. Um trabalho essencialmente etnográfico, na medida em que há uma imersão no campo de estudo, sistematizando experiências de compartilhamento com os sujeitos em seu espaço de vida e utilizando técnicas voltadas para uma descrição densa e profunda do universo sócio/cultural.

Destaca-se aqui o texto “Entre corredores e labirintos: a narrativa como fio de Ariadne”, uma referência mitológica ao desafio de adentrar labirintos da vida e conseguir sair. E os labirintos aqui incluem não só os espaços protegidos dos serviços, as instituições estudadas, mas também os becos, ruelas e os lados escuros e obscuros da cidade. Dessa forma, o trabalho dos pesquisadores prossegue ancorado num desenho de pesquisa suficientemente ousado para investigar com rigor metodológico ‘a vida como ela é’, desnudando poderes, abusos e solidariedades no mundo de pessoas que aprendem a viver com um olho aberto e outro fechado.

São descrições de personagens reais que apresentam modos singulares de habitação, que falam sobre uma relação complexa entre a vida íntima e a ordem esperada aos espaços públicos, que demonstram como os modos de habitar tem a ver com as histórias e marcas de cada um. O habitar é uma construção que conecta mundo interno e universo social e cultural, produzindo infinitos modos de viver a vida. Há o Rivaldo que vive numa casa inacabada, há o Anastácio que ainda não encontrou sua casa, mas construiu formas próprias de se proteger, há a Armênia, uma hóspede itinerante da cidade…

Encontramos também uma reflexão mais voltada para a sistematização dos desafios apresentados por uma política suficientemente construída para que possa ser avaliada, mas ainda em construção, de forma a comportar uma ação reflexiva sobre posturas e práticas, e incorporar novos saberes. Nesse ponto é importante a característica do livro de incorporar tanto a experiência dos estudantes e seu olhar crítico quanto a análise crítica de pesquisadores experientes. Com coragem suficiente para enxergar e descrever as novas iatrogenias geradas no interior do modelo, os desafios de formar cuidadores facilitadores e não dificultadores dos processos de (des) institucionalização.

Finalmente, na terceira parte do livro, os autores reafirmam o caráter avaliativo da pesquisa e o compromisso de todos na construção de convergências e consensos que resultem em reflexões avaliativas que possam subsidiar ajustes de rota e decisões para o enfrentamento dos desafios próprios às políticas públicas em construção. Há um esforço de síntese do trabalho investigativo das quatro áreas envolvidas – antropologia, arquitetura, saúde coletiva e psicanálise – que resulta na discussão do que envolve habitar uma casa protegida pelo campo do terapêutico, habitar uma casa, habitar uma grande cidade.

A dimensão do processo de pesquisa traduzido em livro nos impede de incluir neste espaço uma descrição pormenorizada da análise de dados e dos resultados do trabalho. Neste momento, remetemos o leitor ao próprio livro onde ele vai encontrar um conjunto de recomendações e proposições que possam ser fio condutor em seus próprios labirintos. São reflexões que nos levam a conceber lugares de moradia como uma construção sensível e orientada para as necessidades íntimas e sociais daqueles que têm sofrimentos psíquicos graves. Parece que a nós, cuidadores e pesquisadores de todas as áreas, resta-nos a aprendizagem da (des) institucionalização, o acompanhamento de muitas vidas construídas para sobreviver à crueldade da exclusão social e a luta política por cidades que nos comportem a todos.

Nina Soalheiro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) – BATALHA; MAC CORD (TES)

BATALHA, Claudio; MAC CORD, Marcelo (Orgs.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora Unicamp, 2015, 280p. Resenha de: VELASQUES, Muza Clara Chaves. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.2, mai./ago. 2016.

O livro Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) oferece ao leitor alguns dos estudos históricos mais recentes sobre o tema. Organizado por representantes de duas gerações de historiadores do trabalho, Claudio Batalha e Marcelo Mac Cord, a publicação dá continuidade à coleção Várias Histórias, criada pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desde a sua origem, o Cecult (1995) foi um dos principais espaços de renovação da história social, dinamizando as reflexões teóricas e da produção da história no uso das metodologias e fontes, com destaque para as investigações das experiências dos trabalhadores brasileiros nos estudos do século XIX e da primeira metade do século XX.

As formas de atuação dos trabalhadores nos seus locais de trabalho; o contato dos trabalhadores pobres com outros sujeitos históricos e as estratégias de resistência no embate entre as classes sociais; os espaços de sociabilidade, lazer e formas de expressão da vida cotidiana dos trabalhadores; e os laços de solidariedade, resistência e costumes são temas presentes nas dissertações e teses produzidas pelo Centro. Observa-se nestas produções a herança dos trabalhos que inauguraram, a partir de fins dos anos 1970, no Brasil um novo olhar da história social na interpretação dos temas da história da cultura e da história do trabalho, em um estreito diálogo com a produção do historiador inglês E. P. Thompson.1

Nos anos 1980, com o fim da ditadura civil-militar no país, assistimos à reestruturação das universidades públicas e, com elas, um novo fôlego na divulgação das pesquisas na área das ciências humanas. Nos núcleos acadêmicos de pesquisas históricas este movimento teve um importante papel através das revistas que ajudaram a impulsionar o diálogo entre os pesquisadores brasileiros e, consequentemente, fomentaram a produção historiográfica. No prolongamento deste movimento, como canal de divulgação das atuais pesquisas, a coleção Várias Histórias tem colaborado para a maior visibilidade do campo da história social, buscando divulgar uma produção que ajudou a desconstruir a hegemonia das explicações mais generalizantes e ortodoxas, principalmente nos estudos da escravidão, pós-abolição, trabalho escravo, trabalho livre e experiências operárias. O livro Organizar e proteger deve ser visto a partir deste contexto.

Com capítulos articulados com base nas análises de um objeto comum – as experiências associativas dos trabalhadores dos séculos XIX e XX –, o livro apresenta uma discussão pouco conhecida para o público que está fora dos círculos das pesquisas no campo da história. Batalha e Mac Cord, ao reunirem importantes estudos de especialistas da história social do trabalho na discussão das formas de organização de ajuda mútua dos trabalhadores ao longo do Império e primeiros anos da República brasileira, trouxeram questões essenciais a respeito da cultura associativa nas cidades do Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Maceió, Florianópolis, Campinas, além de algumas cidades do estado de Minas Gerais. Os autores dos nove capítulos da obra acabaram compondo um quadro que nos permite compreender a complexidade das associações mutualistas e das relações destas com os trabalhadores livres e escravos.

Partindo da proposição, explicitada na introdução do livro, de que as formas associativas que se multiplicaram na Europa, no decorrer do século XIX , são herdeiras das concepções iluministas do século XVIII, podemos observar nelas a defesa da vida pública e de ampliação da participação social, acompanhadas pelo sonho da meritocracia. Compreendem-se assim as bases do pensamento que conduziu a construção das diversas associações na Europa que reuniam “inteligências, virtudes e vontades” em seus grêmios literários e científicos, influenciando as experiências associativas nas colônias e ex-colônias europeias. A ideia de civilização e progresso somada aos valores e às práticas associativas terão grande peso na construção da sociedade liberal. Na sua origem europeia, o associativismo de início do século XIX refletia a fragmentação social vigente. As classes ‘subalternas’ não compunham os quadros de associados das organizações das elites letradas, e a burguesia proprietária não ficou de fora das experiências associativistas. Reuniam-se em entidades de classe que protegiam seus interesses econômicos e de atuação política. Trabalhadores também se organizaram em entidades de classe, pois entendiam que eram fundamentais para suas estratégias de sobrevivência.

Segundo os organizadores da obra, até o início dos anos 1980, os debates históricos, com raras exceções, trataram de ler o associativismo no Brasil como uma “espécie de pré-história da classe operária”. A partir de fins da mesma década, uma nova geração de historiadores debruçou-se nas pesquisas sobre o mutualismo no Brasil. Arquivos e fontes inéditos para o estudo das associações começaram a ser investigados, trazendo abordagens e interpretações renovadas sobre o associativismo, o que resultou em análises que puderam compreender as variadas formas que as práticas da ajuda mútua assumiram na nossa sociedade dos séculos XIX e XX.

Neste sentido, essas três últimas décadas foram suficientes para promover um acúmulo de conhecimento histórico sobre as formas de associativismo dos trabalhadores brasileiros e, em especial, sobre o mutualismo, como explicam os organizadores. Entendendo que as práticas do mutualismo no Brasil não são uma mera transposição dos modelos da experiência europeia, Batalha e Mac Cord chamam a atenção para as primeiras décadas do século XIX, onde encontramos a forma ‘clássica’ do associativismo no Brasil. Esta pode ser vista tanto na constituição das lojas maçônicas anteriores à independência, nas formas organizativas das elites letradas e proprietárias do Império dos anos 1830, como nas sociedades de trabalhadores artífices do mesmo período, que promoviam o auxílio mútuo e o aperfeiçoamento profissional para os seus membros.

Em um mergulho nas páginas de Organizar e proteger, fica claro para o leitor que a opção dos autores por um modelo de pesquisa que privilegia o estudo de caso permite que se chegue à principal chave de leitura para a compreensão do mutualismo como fenômeno histórico da sociedade brasileira. A chave encontra-se no olhar para as especificidades do objeto pesquisado. Os recortes de tempo e espaço nas análises revelam a dinâmica caleidoscópica das associações de ajuda mútua nas diferentes cidades estudadas.

Os autores do livro aprofundam a crítica às ‘verdades’ históricas consolidadas pela produção historiográfica anteriormente produzida, unindo-se aos avanços das pesquisas atuais sobre o mutualismo. Para Batalha e Mac Cord, os novos estudos opuseram-se às leituras que naturalizaram uma evolução das corporações de ofício como se estas necessariamente desembocassem no mutualismo e, na sequência, na formação dos sindicatos. Insistiram também na crítica à afirmação de que a construção da consciência de classe dos trabalhadores só era possível apenas a partir das organizações sindicais e partidos operários. Como importante contribuição do processo histórico da formação da classe trabalhadora no Brasil, o livro traz em seus capítulos a ampliação desse debate. As variações das conjunturas politico-sociais que envolveram as experiências mutuais impedem qualquer leitura cristalizada em busca de uma forma única do mutualismo no Brasil.

É possível compreender na leitura dos capítulos que as associações mutualistas foram criadas por diferentes grupos sociais. Algumas mutuais possuíam em seus quadros de sócios membros com identidades muito próximas, mas podia existir também em seu interior um distanciamento social muito grande entre seus membros. Esta contradição construía uma dinâmica de disputas e hierarquias no interior das associações, que também não foram por todo o tempo uma exclusividade dos trabalhadores. Ao oferecer serviços e benefícios, acabavam abrigando outros membros de origens distintas. No processo de surgimento das sociedades mutualistas ao longo da segunda metade do século XIX, as diversas experiências associativas de trabalhadores criaram identidades mais precisas no processo de manutenção de suas solidariedades e solução de conflitos.

Nas associações coloniais traduzidas por meio das irmandades leigas, pode-se ver a religião como um importante elo de união entre os trabalhadores. Junto a elas, os sentidos da solidariedade, da confiança na proteção mútua, assim como a ajuda material, mantinham hierarquias e obrigações que influenciaram as ações mutualistas na continuidade do século XIX. As experiências religiosas das irmandades mantiveram-se ativas nas formas de inclusão e exclusão social e racial existentes nas associações durante o Império, demonstrando que não só as corporações de ofício tiveram esse poder.

Outra nova questão é entendermos que a lógica associativa nem sempre esteve ancorada pelo primado da necessidade. Trabalhadores pobres sempre recorreram às mutuais, cooperativas ou sindicatos, onde podiam contar com as formas de assistência oferecidas, porém as condições de vida e trabalho podiam ser secundarizadas ou combinadas à priorização de elos que lhes conferiam identidades sociais. Logo, o mutualismo não pode ser lido apenas como a busca pela assistência na sua função previdenciária. Valores, ações festivas, rituais e outras práticas de construção de vínculos ainda menos estudadas, promovidas pelas sociedades de ajuda mútua, estavam presentes neste universo investigado pelos historiadores do livro.

Outra questão de destaque apresentada em alguns capítulos é como a condição social e a cor definiam a manutenção dos vínculos e hierarquias numa conjuntura de escravidão e fim da escravidão. Ser negro, em muitos casos, era fator de exclusão das associações. Porém, na luta contra a exclusão, observamos entidades de auxílio mútuo constituídas exclusivamente por homens pretos. Neste sentido, é grande a contribuição das pesquisas para o entendimento do complexo momento de convivência do trabalho escravo e livre para a história do trabalho. Em muitos casos, as sociedades mutualistas eram também um espaço de afirmação de identidade étnica e, muitas vezes, um indicador de status de seus sócios.

A não admissão de escravos ou libertos como sócios às vezes possuía o significado de estabelecer uma prática que procurava garantir ocupação para os sócios no mercado de trabalho e acentuar a diferenciação em relação ao trabalho escravo.

Ao resgatar as atas das reuniões e relatórios de atividades das mutuais, seus regimentos e jornais de época, as vozes dos trabalhadores puderam ser lidas e o entendimento sobre o processo de formação da classe operária ganhou profundidade. Se não existe uma simetria regional e temporal que defina esse processo uniformemente, as experiências reveladas pelas fontes apontam para relações cada vez mais ricas em suas complexidades. Fugindo dos esquemas deterministas vemos que as antigas irmandades religiosas, as sociedades mutualistas e os sindicatos operários compartilharam experiências. Não era raro no século XIX ver filiados que mantinham seus antigos laços com as irmandades religiosas e as associações de auxílio mútuo. E mais, alguns construíram elos com os sindicatos operários criados no século seguinte que incluíam vínculos com movimentos grevistas.

As investigações das experiências dos operários com as irmandades religiosas e profissionais de pretos no século XIX revelaram que o intercâmbio de práticas e ideias existiu entre eles em um nível que unia membros de diferentes cidades do país nos primeiros anos da República.

Batalha, que influenciou fortemente a geração de historiadores que compõem os capítulos do livro, afirma que não existe a possibilidade de compreensão de uma identidade da classe operária composta pelo trabalho regular e organizado sem entendermos as primeiras sociedades de artesãos que desenvolveram a ideia de valorização dos ofícios qualificados e da visão positiva de trabalho, que tratava de distinguir os trabalhadores dos pobres (sempre associados ao vício e ao ócio).

Tal discurso contribuía para um processo de construção de identidade de classe, reforçado pelas propostas dos cursos profissionalizantes desenvolvidos por algumas mutuais que herdaram esta prática das corporações de ofício para melhor qualificar os associados para o trabalho.

O papel do Estado também tem destaque nas discussões que os estudos apresentam no livro. As formas de controle que as autoridades públicas exerciam sobre as associações marcam não apenas o sentido da regulamentação do associativismo na questão da livre iniciativa, mas dizem respeito principalmente aos limites impostos pelo controle das formas de organização dos trabalhadores.

Ao colocar de lado a leitura da história política clássica, trazendo a ampliação da categoria ‘cultura’ como modo de vida (incluindo aí as experiências de sujeitos comuns nas relações cotidianas de vida e trabalho), a história do trabalho é capaz de ouvir os trabalhadores. Podemos afirmar que a leitura de Organizar e proteger oferece enorme contribuição para que isto ocorra. Mesmo partindo de concepções historiográficas nem sempre idênticas, os autores reforçam a necessidade de o pesquisador olhar para os sujeitos comuns da história. Essa atitude na pesquisa pode servir para os investigadores de diferentes áreas, principalmente para os estudiosos dos processos de trabalho da saúde.

Entender que as relações de trabalho atuais estão permeadas por preconceitos étnicos e que estes carregam formas históricas das experiências de organização dos trabalhadores, compreender que os laços de organização dos trabalhadores nem sempre são determinados pelo topo das esferas hierárquicas da administração ou da gestão do trabalho – ou ainda pela escala da formação educacional – nos aproximam da possibilidade de maior compreensão e construção do que é o trabalhador técnico da saúde na história e nos dias de hoje. Tais relações de trabalho e formas de organização dos trabalhadores transitam pelas demandas que atravessam costumes, tradições, valores, laços de solidariedade, trajetórias de vida e experiências coletivas. Não esquecendo que os trabalhadores, em suas lutas, a partir de suas necessidades e das identidades construídas, foram capazes de reinventar antigas formas de organização e autoproteção na luta por seus direitos.

Notas

1 The making of the English working, de E.P. Thompson, teve sua primeira edição em 1963 na Inglaterra, tornando-se a partir de então uma obra seminal para os estudos da história social do trabalho. A primeira edição no Brasil data de 1987 e foi lançada pela editora Paz e Terra em três volumes.

2Autores e seus respectivos capítulos: Mônica Martins (“A prática do auxílio mútuo nas corporações de ofícios no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX”); Aldrin A. S. Castellucci (“O associativismo mutualista na formação da classe operária em Salvador, 1832–1930”); David P. Lacerda (“Mutualismo, trabalho e política: a Seção Império do Conselho de Estado e a organização dos trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro, 1860–1882”); Ronaldo P. de Jesus (“Associativismo entre imigrantes portugueses no Rio de Janeiro Imperial”); Osvaldo Maciel (“Mutualismo e identidade caixeiral: o caso da Sociedade Instrução e Amparo de Maceió, 1882–1884”); Marcelo Mac Cord (“Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais: mutualismo, cidadania e a reforma eleitoral de 1881 no Recife”); Claudia Maria Ribeiro Viscardi (“O ethos mutualista: valores, costumes e festividades”); Rafaela Leuchtenberger (“A influência das associações voluntárias de socorros mútuos dos trabalhadores na sociedade de Florianópolis, 1886–1931”); Paula Christina Bin Nomelini (“O mutualismo e seus diversos significados para os trabalhadores campineiros nas primeiras décadas do século XX”).

Muza Clara Chaves Velasques – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Educação básica: tragédia anunciada? – MARTINS; NEVES (TES)

MARTINS, André S.; NEVES, Lúcia M.V.(Orgs.). Educação básica: tragédia anunciada?. São Paulo: Xamã, 2015, 208p. Resenha de: MOTTA, Tarcísio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.2, mai./ago. 2016.

Esta resenha foi elaborada a partir da transcrição editada da análise que realizei durante o lançamento do livro Educação básica: tragédia anunciada?, ocorrido no dia 30 de novembro de 2015, no auditório do Museu da República, Rio de Janeiro.

Meu papel aqui é pensar algumas questões a partir da leitura do livro, mas principalmente dizer que deve ser lido e divulgado, pois, assim como os outros trabalhos do Coletivo de Estudos de Política Educacional, é uma obra fundamental para nós que lutamos por uma sociedade mais justa, que queremos uma educação pública, democrática, laica, gratuita, socialmente referenciada e não sexista.

Antes de mais nada, quero apontar para duas questões fundamentais que o livro aborda e que tem a ver com o método e não exatamente com o conteúdo. A primeira questão é a tremenda aula sobre o que é o Estado. Geralmente, lemos análises que naturalizam o Estado como uma entidade burocrática que paira acima da sociedade, ou análises que tratam o Estado como mero instrumento de um determinado grupo ou classe social. O livro não faz nem uma coisa nem outra, porque consegue trabalhar com a complexidade do que é o Estado na atual fase do capitalismo no Brasil. Consegue perceber como está atravessado por interesses de classes e frações de classes que se organizam na sociedade civil, que inscrevem os seus interesses no aparelho do Estado e demonstra na prática, com aquilo que é o objeto de trabalho e de vida dos educadores, exatamente como esse processo acontece.

A segunda questão é que o livro é uma tremenda aula de história, sem abordar exatamente um período muito longo da história. Um dos grandes desafios dos historiadores – e falo do lugar de professor de história na educação básica – é conseguir mostrar para os alunos que onde parece haver só continuidade há descontinuidades, e onde parece haver descontinuidade há semelhanças que precisamos perceber. Acho brilhante a abordagem das duas conjunturas do capitalismo na contemporaneidade: o neoliberalismo ortodoxo dos anos 1980 e início dos anos 1990 e as mudanças que vieram conformar o que os autores denominam de neoliberalismo da terceira via. Em um período tão curto de tempo para nós que somos historiadores, o livro vai demonstrando como esse projeto vai se construindo com políticas específicas, com articulações, com a mudança no caráter e papel dos sujeitos políticos coletivos e como isso incide sobre as políticas educacionais enquanto política pública. Portanto, além do conteúdo sobre a educação propriamente dita, o livro é uma tremenda aula sobre o que é o Estado na sociedade brasileira e sobre a história recente do capitalismo com suas continuidades e descontinuidades, detalhes que são fundamentais para entender todo esse processo. É um livro cheio de vida, mesmo tratando de organismos, entidades e sujeitos políticos coletivos.

Estamos atualmente diante de um desmonte cada vez mais severo do projeto de educação proposto pela sociedade brasileira no contexto da redemocratização: a educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada, cujo marco de discussão é o ano de 1986, conforme aponta o livro. Nessa última década, cada um desses termos vem sofrendo um duro ataque.

A educação pública está sob ataque por conta da miríade de formas de privatizações que vivemos hoje. Desde a venda e compra dos pacotes de tecnologias da informação até a entrega direta da administração escolar para OSs ou para a própria polícia militar, tal qual vem ocorrendo em Goiás. Uma mistura de privatização com militarização.

A proposta de uma educação democrática vem sendo apropriada e modificada sob a perspectiva de uma democratização consentida na gestão das escolas. Os governos atualmente conseguem tolerar a eleição dos diretores das escolas públicas, mas controlam essa eleição com os cursinhos preparatórios para esses mesmos diretores, tentam limitar a possibilidade da construção das próprias candidaturas, interferem diretamente nesse processo com a cooptação dos conselhos escola-comunidade. O ataque à gestão democrática não está mais no cancelamento ou na declaração de inconstitucionalidade das leis que obrigavam a eleição de diretores, mas justamente na aplicação de uma política meritocrática que obriga a que a escola tenha um padrão determinado para atingir metas determinadas, impedindo a discussão do sentido e objetivo da própria escola com a comunidade, o que implicaria associar a lógica da democracia com a lógica da autonomia.

A educação que defendemos, além de pública, gratuita e democrática, é uma educação de qualidade, um termo que também foi apropriado e, nesse sentido, o livro é ótimo, pois demonstra como essa apropriação reduziu a ideia de qualidade, reduziu o horizonte escolar a formação para o trabalho simples. Disputar o conceito de qualidade é fundamental para nós na atualidade.

A educação laica está sob o ataque de setores do fundamentalismo religioso que interferem nos planos municipais de educação pelo país afora. Interferem para retirar o que denominam de ideologia de gênero, visando abolir das escolas qualquer possibilidade de discutir questões que são tão caras a nós.

A ideia de uma educação socialmente referenciada está sob ataque quando estamos diante de um projeto ou de projetos que se multiplicam com o nome de escola sem partidos, ou escola sem ideologia, numa lógica de um pretenso conhecimento técnico e neutro, impossível de ser praticado nas escolas. Buscam com isso retirar das escolas a possibilidade de serem lugares de desvendamento do mundo.

O livro, de certa forma, recheia esse meio do caminho. Ele permite compreender historicamente a frase que diz que a crise da educação na verdade é um projeto, demonstrando e esclarecendo esse projeto de fabricação de um determinado modelo de educação que, ao fim e ao cabo, pretende manter o status quo, de uma educação para o consenso, de uma lógica do empreendedorismo, da responsabilidade social e o quanto isso é perverso. Muitos colegas educadores das escolas públicas não percebem a perversidade desse tipo de discurso.

O livro vai além ao dar nomes aos sujeitos coletivos que poderiam ter atuado para resistir a esse projeto, mas não o fizeram. Lembro aqui, por exemplo, o quanto lutamos no Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), em 2005 e 2007, para desfiliar o Sepe da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) exatamente porque percebíamos que estas entidades não estavam mais à altura dos desafios colocados pela conjuntura. Mas isso nos obrigava a buscar a unidade com outros setores para romper o isolamento nacional nas lutas em defesa da educação. Hoje percebemos o quanto faz falta algum tipo de instituição que, do ponto de vista dos educadores, articule um projeto alternativo de educação. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes) é sempre parceiro em diversas lutas, mas, do ponto de vista da educação básica, faz muita falta um sujeito político coletivo que possa resistir a esse processo e construir um projeto contra-hegemônico que ultrapasse os muros da escola, que esteja nos sindicatos e que articule os educadores, que hoje estão no Paraná levando bombas, em São Paulo apoiando a ocupação de escolas ou no Rio de Janeiro ocupando as ruas resistindo bravamente.

Estou ansioso e esperançoso para ler a próxima parte da pesquisa, porque nós, professores da educação básica, vivemos as consequências deste processo. Fui professor da rede estadual e da rede municipal de Duque de Caxias nesse período, e um olhar atento sobre essa realidade pode ajudar a entender as relações sociais e políticas que causavam todas as angústias que nós vivemos naquele período. Tomara que a equipe consiga vencer as dificuldades de publicação para que essa segunda parte da análise sobre a educação básica possa ser veiculada.

Hoje, temos que conviver diretamente com alguns resultados dessa ‘tragédia anunciada’ discutida no livro, tais como a redução drástica do papel docente e do professor visto apenas como um mero entregador de conhecimentos prontos. No Rio de Janeiro, temos um exemplo que é muito característico desse projeto, que utiliza a tecnologia da informação para anunciar uma ferramenta que se anuncia como participativa, mas na prática diminui drasticamente a função docente: a “Educopédia”, uma plataforma ‘colaborativa’, onde os professores da rede municipal podem participar, oferecer e construir aulas, mas que na prática é utilizada para possibilitar a adoção de professores polivalentes para darem aulas de diversas matérias em sextos anos experimentais, iniciativa que vem se ampliando por toda a rede. Uma situação cruel e perversa. Alguns colegas ficaram felizes por produzir algo na Educopédia, mas a intencionalidade desse processo, além de vender mais tecnologia (que não é vista como apoio, mas como a lógica principal da educação), é retirar e reduzir o papel docente.

Outro elemento é a propaganda em torno da educação integral. Hoje todos defendem a educação integral. Na campanha de 2014 bastou que eu fizesse uma pequena crítica aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), para que muitas pessoas passassem a criticar a minha posição sobre a educação pública. Eu estava só tentando dizer que, com a criação dos CIEPs houve o surgimento de duas redes; eu não estava criticando o projeto dos CIEPS ou a proposta de educação integral. Na verdade, isso demonstra que se criou um grande consenso que tem impedido que as pessoas se debrucem sobre os detalhes das experiências em que estão inseridas e sobre os limites da educação integral existente. Passar na linha vermelha e ver os escolões que estão sendo construídos na Maré, que serão chamados de educação integral, sem que nem mesmo os professores saibam como será feita essa educação integral, porque em nenhum momento o projeto foi discutido com aqueles que vão estar lá construindo aquela escola, é o ‘X’ da questão.

Para terminar, em um encontro com Roberto Leher, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele disse algo que coincide com o princípio e a lógica desse livro fantástico que está sendo lançado. Citando Marx, em “Crítica ao Programa de Gotha”, ele diz que, do ponto de vista marxista, nós devemos lutar sempre contra a ideia de que o Estado assuma o papel de educador. Ou seja, aqueles que lutam pela emancipação humana, que querem que a escola seja um espaço de ideias e desenvolvimento de valores emancipatórios, devem lutar para que o Estado dê condições para que a escola funcione, mas não podemos admitir que Estado tenha o papel de educador do povo, educador das massas, exatamente porque ele não é neutro e está atravessado pelas relações sociais de classe. E este livro mostra, de forma brilhante, como no Brasil, nesta primeira conjuntura do capitalismo neoliberal de terceira via, o Estado se propôs a ser educador a partir de uma perspectiva de classe.

Para lutar contra isso, nós educadores, precisamos apostar ainda mais na organização coletiva das escolas, na gestão radicalmente democrática, na autonomia dos profissionais da educação, na participação da comunidade escolar para definir as metas e obstáculos a serem ultrapassados, demandando do poder público as condições para que a educação de qualidade aconteça realmente. Não tenho dúvida de que a divulgação deste livro será muito importante para vencermos essa necessária e urgente luta.

Tarcísio Motta – Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III – ANTUNES (TES)

ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza emiséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014,464 p.p. Resenha de: CHINELLI, Filippina. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.1, jan./mar. 2016.

Lançado em 2014, em meio à crise socioeconômica, política e moral que o país atravessa, o terceiro volume de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, organizado por Ricardo Antunes, demonstra que a dinâmica do capitalismo contemporâneo analisada nos volumes anteriores da obra se aprofundou: o trabalho segue central na produção de valor, ao mesmo tempo em que continua se esfacelando como direito e se acentuam os processos de terceirização, precarização, informalização, ou seja, de vulnerabilização das condições de vida que afetam, em graus variados, os trabalhadores do mundo.

O livro constitui mais uma importante contribuição para a análise do que Antunes denomina de ‘laboratório capitalista’, realizada através de 25 artigos de autoria de pesquisadores tanto em início de formação quanto de reconhecimento nacional e internacional, combinando, “pesquisas coletivas, reflexões conjuntas, mas preservando o decisivo espaço de autonomia de cada pesquisador” (p. 9).

Tendo como fio condutor a compreensão das “heranças oriundas do padrão taylorianofordista de produção” e as “emergências decorrentes dos novos experimentos produtivos que resultam da acumulação flexível e presentes de modo expressivo no universo produtivo brasileiro” (p. 9), os autores se detêm nas transformações do mundo do trabalho e suas repercussões materiais e subjetivas sobre os trabalhadores, com olhos postos no Brasil, mas considerando as configurações que o capitalismo vem assumindo nos países centrais.

Santana assinala na orelha do livro que não se trata mais de analisar essas metamorfoses e transformações no Brasil da última década “como um ente em transição geral de um modo a outro, mas em mudança dentro de um estado já definido que precisa ser conhecido, interpretado e transformado”. Cabe agora tentar apreender os resultados desse processo, intenção que se revela pela leitura em conjunto dos artigos da coletânea.

Ao contrário das interpretações laudatórias que prometeram um quase paraíso aos trabalhadores do mundo, o que une os textos é uma perspectiva teórica profundamente crítica do mundo do trabalho, assentada no materialismo histórico, conforme delineado logo na primeira parte, cujos artigos apresentam discussões de caráter eminentemente conceitual que articulam, de forma explícita ou não, as interpretações do material empírico no qual se baseiam. Nela, denominada “Sistema global do capital e a corrosão do trabalho”, autores como Antunes e Druck, Mézáros, Bihr, Linhart, Alves, entre outros, tratam, de forma rigorosa, de temas como terceirização, trabalho abstrato, precarização, imigração, subjetividade, trabalho imaterial, estranhamento, alienação etc, relacionando-os aos processos que, em escala mundial, produziram o capitalismo flexível, o que vem se dando à custa da segurança material e subjetiva dos trabalhadores e da crescente fragmentação do tecido social, tanto no centro quanto na periferia do sistema, atingindo inclusive aqueles antes protegidos de suas intempéries.

As implicações subjetivas do regime flexível de organização do trabalho são abordadas em vários destes artigos, o que demonstra o interesse crescente da sociologia do trabalho contemporânea pelo tema. É preciso tentar apreender e analisar como o capitalismo flexível se justifica, como também quais são, como funcionam e quais os efeitos sobre os trabalhadores e as sociedades dos insidiosos dispositivos que objetivam o controle e a adesão ativa de todos aos objetivos das empresas.

É disso que se ocupam, por exemplo, Danielle Linhart, Giovanni Alves e Caio Antunes. Na opinião de Linhart, nem mesmo os empregados estáveis das grandes empresas estão a salvo das consequências psicológicas – e também físicas – consequentes aos novos modelos de gestão que produzem o que denomina ‘precariedade subjetiva’ caracterizada por sentimentos de isolamento, insegurança, angústia experimentados pelos trabalhadores. Em suas palavras, os “assalariados têm medo de não ser capazes, quer ocupem postos altos ou subalternos. Eles sabem que são continuamente avaliados, comparados, julgados; sabem que são explicitamente exigidas pela administração moderna a excelência e a capacidade permanente de ir além, de provar que merecem o lugar que têm e se convencerem do próprio merecimento (p. 51)”. “Desses dois pontos de vista”, acrescenta a autora, “o fracasso torna-se catastrófico, e o medo de enfrentá-lo causa uma angústia real” (p. 51).

Alves, também tendo como preocupação as estratégias gerenciais mobilizadas pela atual organização do trabalho, afirma que o “capitalismo manipulatório”, expressão que toma emprestado de Luckács, se esmera na disputa pela captura da subjetividade, processo produzido pela “disseminação de uma pletora de valoresfetiche, expectativas e utopias de mercado que constituem o que denominamos de inovações sociometabólicas, que perpassam não apenas os espaços de produção, mas também o espaço da reprodução social” (p. 55).

Procedendo a uma análise eminentemente teórica com base em Marx e Luckács, Caio Antunes trata da subjetividade em relação ao conceito de alienação. O autor afirma que a alienação sob o capitalismo repercute em graus diferenciados nos aspectos coletivos e privados, objetivos e subjetivos de todas as esferas da vida contemporânea. Nessa perspectiva e com base em Mészáros, ele ressalta que a alienação, “para além de interpor-se na relação direta que se estabelece entre o homem e a natureza, (…) sobrepõe-se, condiciona, conforma historicamente a categoria trabalho” (p. 127), não permitindo o desenvolvimento pleno da subjetividade humana.

A segunda parte do livro, intitulada “As formas de ser da reestruturação produtiva no Brasil e a nova morfologia do trabalho”, traz artigos que se debruçam sobre a configuração atual de diferentes setores produtivos da economia do país. A referência aos textos se limitará aos temas neles analisados, alguns dos quais estreantes quando considerados os volumes anteriores. Abordam-se nesta seção tópicos como construção civil e intelecto coletivo; telemarketing, telecomunicações e a nova divisão internacional do trabalho; prestação de serviços e situação do trabalho no telemarketing e nas telecomunicações brasileiras nos anos 2000; trabalho docente voluntário; trabalho de rua e informalidade; trabalho precarizado de trabalhadores de apoio técnico das artes; divisão sexual e condições de trabalho de vida de mulheres e homens inseridos no segmento avícola no contexto de integração de uma grande empresa no setor; trabalho na agricultura canavieira; trabalho das ‘caixas’ em hipermercados ligados a multinacionais do setor; trabalho degradante dos cortadores de cana.

“Os sindicatos na encruzilhada: ação e resistência dos trabalhadores” é o título da última parte da obra que se ocupa de questões do sindicalismo brasileiro atual. Sória, por exemplo, analisa as relações ambíguas e contraditórias entre a elite do sindicalismo de caráter propositivista e os fundos de pensão, no contexto de refluxo do movimento sindical e dos governos lulistas. Articula as dimensões político-conjuntural e teórico-ideológica para explicar o envolvimento ativo de lideranças sindicais nesse processo sob a justificativa de que, para lutar contra o capitalismo e proteger os interesses dos trabalhadores, era necessário que a gerência dos fundos passasse para as mãos de sindicalistas, o que acabou por promover forte – e, acrescente-se, perigosa – aproximação com o empresariado do país.

Nogueira trata das relações entre trabalhadores, sindicatos e uma empresa multinacional do setor automobilístico paulista, mostrando suas ambiguidades e contradições. Considera que na atualidade elas se caracterizam pelo “paradigma negocial e participativo”, mas também conflitivo, “o que indica a formação de um novo corporativismo de tipo societário, legitimado pela própria base operária na fábrica, diferentemente do padrão do sindicalismo corporativista estatal existente no Brasil” (p. 370).

No penúltimo artigo desta parte e também da coletânea, com base em material empírico sobre o trabalho dos teleoperadores paulistanos, Braga analisa as relações que vigem no país entre Estado e sindicatos, com ênfase nos governos lulistas. Em perspectiva semelhante à de Sória, afirma que os sindicatos se tornaram importantes atores no que se refere ao investimento capitalista no país por meio da gestão de fundos salariais e de pensão. O autor ressalta que essa configuração começa a dar sinais de esgotamento, expresso na recente onda de manifestações que se verificou em todo o país. Contudo, embora alguns desses movimentos expressem tendências progressistas, ele reconhece que a “evolução da luta de classe no país é, fundamentalmente, reprodutivista e, em consequência, conservadora” (p. 399).

Fechando a coletânea, Marcelino se ocupa da atuação sindical de trabalhadores terceirizados de Campinas. Em sua opinião, embora a terceirização resulte em limites às possibilidades de ação dos sindicatos devido à “precariedade das condições de trabalho e da fragmentação das categorias” (p. 401), as dificuldades não são intransponíveis, visto que vários deles conseguem empreender um trabalho combativo e reivindicativo, caso do Sindicato da Construção Civil, diferentemente do Sindicato dos Comerciários, cuja atuação se caracteriza pela conciliação. Sobre as experiências analisadas, Marcelino ressalta que o caráter da ação “não é dada (…) apenas pela composição da base, mas é resultado de uma combinação entre esse elemento e as condições políticas, sociais e econômicas, o peso da estrutura sindical corporativa, o papel desempenhado pelas direções sindicais, o histórico de luta de cada categoria e o desenrolar de enfrentamentos exteriores às empresas e cruciais para a construção de uma atmosfera de embates classistas” (p. 417).

Finalmente cabe ressaltar que Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III amplia e enriquece o objetivo da série: dar ao conhecimento dos interessados, sejam alunos e professores da área de humanas, seja o público em geral, as faces atuais do capitalismo brasileiro, constituindo-se em leitura indispensável para todos aqueles que acreditam em sua superação.

Filippina Chinelli – Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Laboratório do Trabalho e da Edu-cação Profissional em Saúde, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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Saúde coletiva: teoria e prática – PAIM; ALMEIDA-FILHO (TES)

PAIM, Jairnilson Silva; ALMEIDA-FILHO, Naomar de (Orgs.). Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: Medbook, 1.ed., 2014, 720pp. Resenha de: FRAGA, Lívia; CARNEIRO, Carla Cabral Gomes.  Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14, n.1, jan./mar. 2016.

É um desafio tentar sumarizar, neste espaço, a contribuição de oitenta coautores à reflexão sobre a saúde coletiva, dentre eles Jairnilson Silva Paim e Naomar de Almeida-Filho, organizadores da obra Saúde coletiva: teoria e prática. Trata-se de uma complexa coletânea que, em seus 45 capítulos, agrupados em sete seções, apresenta uma introdução didática ao conjunto de saberes, estratégias e técnicas que compõem a saúde coletiva. Considerando as limitações deste espaço editorial e o público alvo do livro, optamos por destacar os temas e conceitos centrais abordados por seção, a fim de situar e provocar o leitor a construir seus próprios caminhos de leitura.

Iniciando o volume, na seção I são apresentados os ‘eixos’ conceituais da saúde coletiva como “campo de saberes e práticas sociais,” fundamentais para a leitura dos demais capítulos. Para tanto, são analisados historicamente as diversas iniciativas políticas e os movimentos de ideias e práticas que antecederam e formaram esse campo, suas fronteiras e similaridades. Este percurso perpassa a articulação entre a saúde oletiva, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e o Sistema Único de Saúde (SUS), destacando a necessidade de aquele campo reafirmar-se e renovar-se a fim de fundamentar a práxis transformadora de sujeitos individuais e coletivos. São apresentados o debate teórico-metodológico acerca do conceito de saúde; necessidades, problemas e determinantes em saúde; e uma densa reflexão teórica sobre os usos da noção de ‘campo’ nas ciências.

Na seção II, o conjunto dos três capítulos situa o leitor nos ‘Modos’ com os quais se estruturam os sistemas e políticas de saúde desde a concepção até a operacionalização no cotidiano dos serviços. Partindo-se do debate entre diferentes conceitos de sistemas, são apresentados os componentes de um sistema de serviços de saúde e reconhecidos os desafios para implantação de sistemas integrados no Brasil e no mundo. Em seguida, o enfoque recai sobre a discussão acerca do ciclo de políticas públicas da saúde, enfatizando-se seu caráter processual, dinâmico e complexo e a importância de profissionais e cidadãos reconhecerem-se como parte desse processo. Por fim, aborda-se a história do planejamento e da programação em saúde no Brasil, demonstrando como esta se constituiu em proposta de modelo assistencial, cujo propósito seria prover a integração de ações individuais e coletivas com efeitos na saúde da população.

“Contextos” é a terceira seção da coletânea, formada por sete capítulos que discutem a conjuntura contemporânea na qual se insere o sistema de saúde do país. Inicialmente, são apresentadas as transformações epidemiológicas da população brasileira no contexto de profundas mudanças políticas, econômicas, sociais e demográficas, iniciadas na segunda metade do século XX. São desvelados os desafios a serem enfrentados, especialmente no que tange às desigualdades socioeconômicas e à garantia do direito à saúde para todos os brasileiros. Expõe-se uma leitura panorâmica do SUS, mostrando o difícil processo de construção de um sistema universal no país e seu quadro atual. Em seguida, faz-se uma análise do sistema de assistência médica suplementar no Brasil, por meio de evidências acerca das convergências e contradições existentes entre o sistema de saúde brasileiro e estadunidense. Atenção especial é dada à dinâmica e à regulação dos planos e seguros de saúde no contexto nacional, às iniquidades e fragmentação geradas pela estrutura de oferta e financiamento do sistema e às principais modalidades de empresas prestadoras de serviços de saúde no país e sua estreita relação com a penetração do capital financeiro no setor. Tais reflexões permitem uma visão comparada entre os sistemas brasileiro, canadense, alemão e estadunidense. Na sequência, discorre-se acerca do Complexo Econômico Industrial da Saúde. A preocupação central dos autores é a discussão da dinâmica de inovação e o papel do Estado no fortalecimento nacional da base produtiva da saúde, além das repercussões desta inovação no acesso equânime da população às tecnologias produzidas. Finaliza-se a seção destacando-se a produção de informação em saúde coletiva e sua importância para a tomada de decisões em nível de gestão do sistema e dos serviços.

A RSB e o SUS são postos em perspectiva na seção IV, denominada “Hemisfério SUS”. Inicialmente, a RSB é apresentada como processo histórico e social, tomando como eixo de análise um ciclo composto de ideia-proposta-projeto-movimento-processo. Recorrendo à história, os autores avaliam três momentos distintos do processo da RSB e os desdobramentos recentes do movimento. A ênfase é dada à agenda dos governos e à atuação e inflexão do movimento sanitário no período pós-constituinte. Somada a isto, focaliza-se a análise das forças políticas e sociais em disputas em distintas conjunturas e a necessidade do desenvolvimento de uma consciência crítica para a sustentação do processo da RSB. Dada a implementação do SUS, os capítulos seguintes se debruçam sobre sua estrutura tecnológica, configuração político-institucional, controle social, gestão e financiamento do sistema, finalizando com a reflexão acerca dos obstáculos para implementação de uma modelo de atenção integral à saúde.

A seção V desta coletânea reúne as estratégias – e seus fundamentos – empregadas para realização das funções sociais de um sistema de saúde, discutidas ao longo da obra, quais sejam: promoção da saúde; prevenção e proteção a doenças, agravos e riscos; e recuperação da saúde de indivíduos, grupos e ecossistemas, assim como para operacionalização dos princípios e diretrizes do SUS. Os objetos desses capítulos são diversos e podem ser organizados em duas subseções. A primeira contém os sete capítulos iniciais, que versam sobre os componentes gerais e a organização dos serviços de saúde a partir de quatro temas: 1) Promoção da saúde, apresentada a partir da perspectiva estreitamente relacionada aos ‘determinantes sociais em saúde’; 2) Atenção à saúde, tema que ocupou maior espaço nesta subseção, central em três dos sete capítulos aqui situados, a partir dos assuntos: a relação entre os três níveis de atenção à saúde (básica, de média e de alta complexidade); a Estratégia Saúde da Família; e a qualidade do cuidado em saúde; 3) Vigilância em saúde, abordada pelo capítulo 23, a partir do foco na vigilância sanitária, e retomada, de forma ampliada, no capítulo 28, junto às campanhas sanitárias e aos programas, na discussão sobre estratégias voltadas à prevenção e controle de problemas de saúde; e 4) Regulação da Saúde, que remete à discussão sobre a relação entre Estado e mercado, com foco no papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

O segundo bloco da seção V consiste em oito capítulos sobre estratégias específicas ao atendimento de necessidades e problemas de saúde de certos subgrupos populacionais (usuários de drogas psicoativas, trabalhadores, crianças e adolescentes) e/ou ao enfrentamento de problemas específicos (doenças transmissíveis, crônicas não transmissíveis; violências interpessoais e comunitárias; saúde bucal e saúde mental). Ainda que esta seção não aborde as demais políticas e programas especiais do SUS – aqueles voltados à saúde da mulher, dos povos indígenas, da população negra, dentre outros – alguns são brevemente tratados na seção III.

Em “Estados da Arte,” oito capítulos apresentam panoramas acerca de questões centrais referentes às disciplinas fundadoras e estruturantes da saúde coletiva (Epidemiologia, Ciências Sociais e Política, Planejamento e Gestão) e de determinados temas desse campo, tais como saúde do trabalhador, trabalho e educação, comunicação em saúde, saúde bucal e sistemas de informação.

No único capítulo que integra a seção de conclusão da obra, “Epílogo,” os autores fazem uma análise de conjuntura da saúde coletiva, apontando tendências e desafios ao campo, estreitamente relacionados ao desenvolvimento socioeconômico brasileiro, no qual é central a desigualdade social abissal e persistente, embora sejam reconhecidos os avanços alcançados nos últimos anos, em função de políticas sociais. Cabe destacar que a crise política, ética e econômica que assolou o país em 2015 atualiza os problemas mencionados de forma contundente e consistente pelos autores, como a permanência da dicotomia público-privado desde a Constituição de 1988, uma tendência ao conservadorismo político e ideológico, e também o acirramento das iniquidades sociais. Indica-se a necessidade da revisão do papel e dos deveres do Estado, que historicamente não tem garantido à população serviços públicos de qualidade, reforçando as desigualdades sociais.

Tendo em vista esses aspectos, a obra é um convite para olhar os princípios conceituais e metodológicos da saúde coletiva, assim como para sua trajetória, lutas, conquistas e desafios. Tal empreendimento é considerado fundamental nos tempos atuais, marcado por tensão e incertezas, mas também por avanços em algumas dimensões da vida social, que precisam ser consolidados, expandidos e/ou reestruturados a fim de se retomar um projeto civilizatório de transformação social.

Lívia Fraga  Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Carla Cabral Gomes Carneiro Fundação Oswaldo Cruz, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990 – ARRUDA (TES)

ARRUDA, Maria da Conceição Calmon. Democratização ou cerceamento? Um estudo sobre a reforma do ensino médio técnico dos anos 1990. Rio de Janeiro: Interciência, 2013, 170p. Resenha de: RAMOS, Marise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.1,  jan./abr. 2015.

O título deste livro anuncia o caminho traçado pela autora para demonstrar que a tese da reforma do ensino médio técnico realizada no Brasil nos anos de 1990 se revelou, na prática, na sua antítese. Tratou-se de uma reforma que teve o autoritarismo como base, apesar de abrigada por um Estado formalmente democrático. Muito ao contrário de ter sido uma estratégia de universalização do ensino médio, a reforma partiu do pressuposto de que aos que vêm dos segmentos populares resta somente uma alternativa: o ingresso no mercado de trabalho o quanto antes, cerceando-lhes, assim, outras perspectivas, como o ensino superior acadêmico e de qualidade, já que a história e a cultura do país tende a legitimar esse direito aos que chamam de ‘elite’.

O livro cumpre o que promete. Apresenta um estudo sobre a referida reforma com bases teóricas e empíricas. Ao mesmo tempo em que o estudo redunda numa produção científica, ele se torna um instrumento político, pois o desvelamento dos fundamentos da reforma é também uma denúncia. Afinal, a autora conclui que tanto a arquitetura da reforma foi pensada de modo a restringir o acesso das camadas médias às escolas técnicas federais, quanto privilegiou o estabelecimento de trajetórias educacionais diferenciadas — leiam-se trajetórias que levam alguns à universidade e muitos outros ao mercado de trabalho — e circunscreveu o ensino técnico a uma formação restrita para o trabalho. Poderíamos considerar que este problema no Brasil teria sido superado com a revogação do decreto n. 2.208/97 pelo de número 5.154/2004 e a introdução de seu conteúdo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Trata-se, entretanto, de uma superação formal, pois a concepção educacional dualista, por ser produto da cultura escravocrata que caracteriza a formação social brasileira, ainda encontra, nos dias atuais, defensores influentes no debate sobre os rumos da nossa educação. Conhecer o conteúdo deste estudo é, portanto, um meio de aprender com a história para que esta não seja reinventada como tragédia ou como farsa.

Outra razão que justifica conhecer a obra e o viés empírico imprimido ao estudo. A autora faz este esforço ao investigar o perfil social e cultural, bem como interesses e expectativas de estudantes matriculados no terceiro ano do ensino médio de três escolas técnicas localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Esses, portanto, já teriam ingressado nas escolas sob a vigência do decreto n. 2208/97. A escolha das escolas, explica a autora, se baseou na representação que a sociedade tem sobre sua qualidade, além de seus estudantes demonstrarem bom desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Deve-se, ainda, ao fato de serem escolas que selecionam os estudantes mediante um concurso público.

Os resultados e a análise do estudo empírico são apresentados no quarto capítulo, tendo sido orientado por algumas hipóteses. A primeira delas considerou que a reforma não democratizou o acesso das camadas populares ao ensino técnico federal, mas, ao contrário, as distanciou dessas instituições, posto que para cursar os ensinos médio e técnico concomitantemente os estudantes precisavam dispor de dois turnos, o que se contrapõe à necessidade de os jovens das camadas populares trabalharem desde cedo. Ao mesmo tempo, cursar o ensino técnico após o ensino médio significaria prolongar o tempo desses jovens na escola, o que se confronta com a mesma necessidade.

A outra hipótese se contrapôs ao argumento dos defensores da reforma de que as camadas médias da sociedade não se interessam pelo ensino técnico, mas procuram as escolas técnicas como ‘trampolim’ para as universidades. A autora alerta que a existência de escolas técnicas privadas destinadas às camadas médias poderia ser um indicativo do interesse desse estrato social pelo ensino médio técnico. Além disso, ressalta, as políticas neoliberais, longe de terem favorecido essas camadas médias, teriam contribuído para seu empobrecimento, o que torna a formação técnica também uma alternativa que visa à qualificação para o trabalho.

Finalmente, reencontramos no livro a conclusão de que a reforma teria restabelecido a dualidade educacional dissociada de um projeto de democratização do ensino, mas vinculada a uma concepção de educação que vê na formação para o trabalho a trajetória escolar mais adequada aos alunos das camadas populares. Diríamos, porém, que a natureza dessa dualidade se modifica em relação àquela em que o ensino profissional não tinha equivalência ao de formação geral (anterior à lei n. 4.024/61) e à existência dos dois ramos do ensino de 2° Grau — propedêutico e profissionalizante — típica da lei n. 5.692/71 após o parecer do Conselho Federal de Educação n. 76/75.

A leitura dos dados obtidos pela autora e as respectivas análises são um ponto alto da presente obra. Destacamos, por exemplo, no caso das escolas estudadas, que seus estudantes pro-veem, em sua maioria, das camadas médias e não das elites, fazendo cair por terra a ideologia da ‘elitização do ensino técnico’ propalada pelos defensores da reforma. Bem colocada pela autora é, ainda, a crítica à associação das camadas médias com as elites. Segundo ela, trata-se de uma retórica utilizada para justificar o restabelecimento da dualidade e apresentar a reforma como supostamente justa.

Esses estudantes optaram por realizar o curso técnico concomitantemente ao ensino médio e justificam tal escolha pela intenção de prosseguirem os estudos em nível superior e também de trabalharem, considerada esta possibilidade seja simultaneamente à formação superior, seja como alternativa temporária a este. A autora conclui que o ingresso no ensino superior é uma trajetória frequente entre os concluintes das escolas técnicas, imediatamente ou após algum tempo de exercício profissional como técnico de nível médio. Assim, diz ela, ironicamente, que o pecado das escolas técnicas federais teria sido a associação, bem sucedida, entre formação geral e formação para o trabalho, que permite a seus estudantes autonomia na articulação dos conhecimentos recebidos e, consequentemente, autonomia para irem além, caso desejem. Não estaria aqui a tese de Dermeval Saviani (1997) de que essas escolas, por conterem os elementos de uma educação politécnica, contêm também os germens de sua construção?

Neste livro, então, encontramos, pelo estudo empírico, as justificativas para considerarmos que a possível integração entre os ensinos médio e técnico não se confunde com a educação politécnica e omnilateral, mas pode ser uma travessia em direção a ela. Trata-se de uma necessidade conjuntural — social e histórica — para que a educação tecnológica se efetive para os filhos dos trabalhadores (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005). É preciso ver que uma conquista legal nesse sentido está, antes, no texto da LDB quando, no parágrafo 2° do artigo 36, prevê que o ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Vemos que aqui se apregoa tanto um direito — cursar o ensino técnico com o ensino médio — como uma condição, qual seja, o asseguramento da formação básica. Isto é, a formação técnica não pode substituir nem sacrificar a formação geral e, portanto, em nenhuma hipótese, concorrer com ela. Antes, precisam, necessariamente, convergir para os princípios do direito social e subjetivo.

O caráter dual da educação brasileira, como bem demonstra a autora com quem dialogamos, e a correspondente desvalorização da cultura do trabalho pelas elites, ainda orientadas pela cultura escravocrata presente na formação social brasileira, que Maria da Conceição Calmon Arruda também resgata, torna a escola refra-tária a essa cultura e suas práticas. Assim, a não ser por uma efetiva reforma moral e intelectual da sociedade, preceitos ideológicos não são suficientes para promover o ingresso da cultura do trabalho nas escolas, nem como contexto e, menos ainda, como princípio. Desta forma, uma política consistente de profissionalização no ensino médio, dadas as outras razões e condicionada à concepção de integração entre trabalho, ciência e cultura, pode ser a travessia para a organização da educação brasileira com base no projeto de escola unitária, tendo o trabalho como princípio educativo. A contribuição da análise presente nesta obra é inestimável para a compreensão do problema e para a construção de estratégias que o enfrentem na difícil e contraditória relação entre Estado e sociedade civil que a política pública implica.

O livro é produto da tese de doutorado da autora, concluída no Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 2008, orientada por Leandro Konder, que nos deixou em 12 de novembro de 2014. Seu legado, porém, se imortalizou em suas obras, nas ideias e nas pessoas que ajudou a formar. Apresentar este livro neste momento torna-se, coincidentemente, uma homenagem a este grande filósofo e educador.

Referências

SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação. LDB, limite, trajetória e perspectivas. 8. ed. São Paulo: Autores Associados, 1997. [ Links ]

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino médio integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

Marise Ramos – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil – NOSELLA (TES)

NOSELLA, Paolo. Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil. Vitória: Edufes, 2012, 288 p. Resenha de: ARAÚJO, Ronaldo Marcos de Lima. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.3, set./dez. 2015.

Paolo Nosella é italiano de nascimento (1942), mas mora no Brasil desde a década de 1970. Veio ao Brasil para trabalhar com educação popular, participando da criação das primeiras Escolas da Família Agrícola (EFAs). Aqui fez mestrado (1977) e doutorado (1981) em Filosofia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e fixou residência no município de São Carlos, em São Paulo.

Nosella compõe uma geração de pesquisadores que constituiu a educação como um campo de pesquisa científica no Brasil, ainda nos anos 1970. É um dos pioneiros da Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa em Educação (ANPEd), onde teve (e tem) participação destacada no GT09 – Trabalho e Educação, do qual é um dos fundadores. Por isso recebeu homenagem no Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação (Intercrítica), em 2014, por sua contribuição à área e em alusão aos 22 anos de publicação do livro A escola de Gramsci, obra de referência para o campo.

É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos e hoje leciona na Universidade Nove de Julho. Pesquisador sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), publicou inúmeros artigos, livros e capítulos de livros sobre educação popular, história da educação, trabalho e educação e, em particular, sobre Antonio Gramsci, de quem é um estudioso e apaixonado pela obra e história.

O livro Origens da Pedagogia da Alternância no Brasil é fruto do trabalho desenvolvido no mestrado de Nosella, com dissertação defendida em 1977, sob o título Uma nova educação para o meio rural: sistematização e problematização da experiência educacional das escolas da família agrícola do movimento de educação promocional do Espírito Santo(1977), sob a orientação de Dermeval Saviani (que escreveu o prefácio do livro). Sua publicação resgata um texto que trata de temática muito relevante no Brasil atual, a Pedagogia da Alternância, recuperando as suas origens, algumas de suas conformações em diferentes países e sua experimentação brasileira na EFA, revelando também diferentes problemas neste uso.

A justificativa para esta publicação, 36 anos depois da defesa da dissertação que lhe deu origem, se revela na afirmação de Miguel Arroyo (2004), que destaca a necessidade de conhecermos mais profundamente a construção histórica da educação promovida pelo movimento social do campo, pois esta pode nos mostrar muito sobre a educação pensada sobre outras bases, o da formação humana integral. Também evidencia a sua relevância o crescimento no Brasil, nas últimas décadas, dos movimentos sociais do campo, com o protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tomam a educação como parte de seus objetivos estratégicos de transformação social e que assumem a Pedagogia da Alternância como uma opção metodológica.

Na sua pesquisa Nosella buscava sistematizar a experiência de Pedagogia da Alternância da EFA. Para isso, utilizou o método fenomenológico existencial, que ele traduz como um movimento dialógico entre a observação-reflexão do autor e a situação analisada.

O autor faz a opção de no livro não atualizar o texto da dissertação, deixando ‘as marcas do tempo’. Nele o autor defende a tese de que a Pedagogia da Alternância pode ser identificada a partir de seu princípio fundamental de articulação entre escola e vida e de sua vinculação com os movimentos sociais dos trabalhadores. Pedagogicamente caracteriza-a como uma pedagogia vocacional e não profissionalizante, a serviço dos jovens do meio rural, orientada pelo objetivo fundamental de mudança social, fazendo uso de um plano de estudo, em um ambiente educativo com pequenos grupos, tendo assegurada a participação dos pais agricultores.

Ao tratar das origens da Pedagogia da Alternância, no primeiro capítulo do livro, o autor destaca que ela surge com a tarefa de enfrentar o problema colocado de que a terra seria o oposto da sabedoria, da ciência, e de que ao jovem de origem rural não restaria outra alternativa a não ser sair do campo se quisesse alcançar ‘a sabedoria’. A oposição entre a terra e a sabedoria, ciência e sucesso exigia, portanto, que fosse criada uma nova educação.

Registra a ação do sacerdote Abbé Granereau, que criou a primeira escola em alternância na França, em 1935, com o objetivo de reunir jovens de diferentes localidades que precisavam trabalhar no campo. O aspecto singular desta origem é a articulação entre esta Pedagogia com a ação e com o que hoje poderíamos chamar de desenvolvimento local. “A ‘Maison-Familiale’ nunca foi uma escola isolada da ação e do desenvolvimento sócio-econômico de seu meio” (p. 49).

O autor relata a expansão das Maisons Familiales na França, a experiência na Itália e na África para depois relatar a experiência brasileira nas EFAs por meio do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes).

Sem abrir mão do seu senso crítico, marca de sua personalidade, o autor destaca um problema com o qual se defrontava a Pedagogia da Alternância desde a sua origem (e que ainda permanece), a ideia de se tornar uma escola “sem abertura para a cidade ou para outras formas de educação”. Criticando Abbé Granereau, diz que “ele queria uma formação rural totalmente fechada, que perfizesse todo o sistema escolar, do primário até a universidade rural” (p. 51). Para o autor, esta é uma “tentação”, a de realizar uma obra em si, uma escola para os camponeses, uma espécie de “reserva indígena” ou de “redução jesuítica agrícola” e que tal ideia seria contrária ao ideal de liberdade que a proposta carrega.

Nosella fecha o primeiro capítulo falando da criação da Associação Internacional das Escolas das Famílias Rurais, em 1975, no Senegal, identificando os objetivos da Associação e informando o quadro geral das EFAs no mundo. Para ele, as EFAs têm variadas possibilidades de materialização, mas foi aplicável em diferentes regiões do mundo mantendo suas características fundamentais, o princípio da alternância e a vinculação com os movimentos sociais, o que lhe conferiria um caráter avançado.

No segundo capítulo do livro, ao tratar do plano pedagógico das EFAs partindo da experiência do Mepes, faz uma descrição geral das escolas e revela a origem da necessidade de construção de um plano pedagógico. Explica que este plano se constituiu de um conjunto de documentos que define as linhas gerais para a organização das EFAs; nele se enuncia que o objetivo fundamental da escola é a mudança social e que esta deva se orientar pelas ideias de participação, igualdade, conscientização, democracia e fim da exploração entre as classes. Assim, a EFA é definida como uma escola vocacional e não profissionalizante, a serviço dos jovens do meio rural.

Do ponto de vista metodológico, seriam três as suas principais características: a alternância; o ambiente educativo com pequenos grupos, internato e convivência; e a participação dos pais agricultores. Define o autor que a função da alternância é proporcionar a reflexão sobre a vida e a experiência real. Para o Mepes, “a vida da família e da comunidade de cada aluno representa o ponto de partida da educação nas escolas-família” (Mepes apud Nosella, p. 85).

Para a alternância, o plano de estudo ganha centralidade, pois se constitui no

instrumento fundamental da Escola-Família, ele é a pedagogização da alternância; é a forma concreta de efetivar as potencialidades educativas da alternância; é o veículo que leva para a vida as reflexões, as questões, as conclusões (…) O Plano de Estudo é um guia (questionário) elaborado pelos alunos juntamente com a equipe dos professores, ao findar uma semana de aula, a fim de investigar, com seus pais, um aspecto da realidade cotidiana da família, seu meio e suas vivências. As respostas ao Plano de Estudo, que o aluno anota em seu caderno de propriedade ou do lar, são postas em comum ao voltar à Escola no início da nova sessão de aula (Mepes apud Nosella, 1977, p. 86).

A alternância e o plano de estudo não se constituem, como se pode ver, numa estratégia de instrumentalização na realidade concreta dos conteúdos discutidos na escola. Sobre isto, Nosella conclui:

Note-se que o Plano de Estudo jamais é uma aplicação técnico-agrícola, no sentido da escola ensinar aos alunos técnicas cada vez mais aprimoradas para ele, em seguida, aplicá-las na propriedade de sua família. O enfoque do Plano de Estudo é a conscientização: “é um compromisso dos alunos e de sua família para analisar sua própria vida” (p. 86).

Toma-se a participação como um ponto realmente essencial da escola, mas a ela se associa o conceito de responsabilidade, rejeitando-se a participação formal.

Nosella finaliza este capítulo destacando a prática de avaliação nas EFAs, onde esta atividade é compreendida como “tudo aquilo que se faz para conscientizar”. A avaliação assim compreendida se revela como uma atitude constante, exame de consciência, revisão de vida, onde a avaliação da aprendizagem é apenas mais um componente. O autor registra que na experiência estudada avaliam-se tudo e todos, grupal e individualmente, a cada momento, avaliam-se as atitudes, as aptidões e a aprendizagem dos alunos, a integração e a participação do aluno na comunidade local, o ambiente educativo, a capacitação e a integração dos monitores, a participação dos pais e tudo mais que se relaciona à vida da escola e dos alunos. Nesta experiência, todos são os agentes avaliadores, e o plano pedagógico determina o que e como cada agente pedagógico irá avaliar.

No terceiro capítulo é tratada a experiência do Centro de Formação e Reflexão (CFR), que realiza um curso de formação específica para os docentes das EFAs. O Mepes tomava este como se fosse uma “Escola-Família de grau superior” tendo como objetivos a conscientização, a fundamentação teórica e a capacitação técnica. Nesta experiência, o docente era pensado como um agente educacional que deveria realizar mudanças sociais no meio ambiente de sua escola.

No quarto e último capítulo, o então mestrando Paolo Nosella identifica alguns dos principais problemas verificados na experiência e ensaia uma “tentativa de análise”, não exaustiva, sobre cada um deles. Entre os problemas observados pelo autor destaca-se a ideia de intercâmbio econômico-cultural entre Brasil e Itália que funcionou em um único sentido, apenas Itália-Brasil. Apoiando-se em Darcy Ribeiro, o autor coloca a possibilidade de esta experiência ter sido acompanhada de um processo de invasão cultural.

Nosella questiona a forte concentração de poder existente na EFA e a consequentemente pouca participação da comunidade nas decisões. Como terceiro problema, o autor destaca o impasse da expansão das EFAs, que encontra resistência dos pais que, supõe o autor, “temem a escolarização por ser um meio de êxodo do seu filho da lavoura e, portanto, causa da perda de mão de obra” (p. 120).

O quarto problema identificado por Nosella refere-se ao dilema existente entre o uso do plano de estudo ou do currículo oficial, pois este pode levar à perda da especificidade metodológica da EFA.

Também o centro de formação é verificado em uma situação-problema, já que não fica claro se o seu papel é de formar para a metodologia já elaborada ou se colocar aberto para experimentações.

O sexto problema identificado relaciona-se à fuga dos técnicos agrícolas que assumem a função docente, mas que abandonam o movimento em busca de outras oportunidades profissionais.

Por fim, Nosella destaca o sétimo problema, a dificuldade financeira de manutenção das EFAs, que dependem do apoio das comunidades e de recursos municipais, estaduais e federais.

Em seu capítulo conclusivo, Nosella observa, entre outras coisas, que a EFA do Mepes é uma iniciativa fundamentalmente positiva “por ser ela uma crítica radical ao sistema tradicional de ensino do meio rural contrapondo-se a ele como uma alternativa estrutural e metodológica, intencionalmente revolucionária” (p. 146).

Ao registrar a sua ambiguidade, pois não nasceu como obra da classe agrícola brasileira, observa que possibilidades futura da Pedagogia da Alternância estariam articuladas às perspectivas da própria classe, já que interessa apenas aos dominados um projeto de mudança social, conteúdo desta pedagogia.

O livro em tela também traz como anexos diferentes documentos, de estatuto a planos e organograma do Mepes, preservando assim a sua história e favorecendo o trabalho de novos pesquisadores interessados na experiência estudada.

O livro é finalizado com um ‘posfácio de atualização’, escrito por João Batista Begnami e Thierry De Burghgrave. Nele são atualizadas algumas informações relativas ao número de associações regionais e de EFAs no Brasil, com dados de 2012, e apresentadas algumas fases da Pedagogia da Alternância no Brasil. Também são feitas considerações acerca das EFAs em relação aos movimentos de Educação do Campo no Brasil.

Este livro de Nosella, além da descrição que faz da experiência de Pedagogia da Alternância nas EFAs e dos problemas que identifica nesta experimentação, contém uma defesa de um projeto de formação humana, de conteúdo revolucionário, que toma a mudança social como principal finalidade.

Sua leitura é necessária para todos os educadores, mais ainda para aqueles que se comprometem com os projetos de educação que se articulam à ideia de mudança social e que tomam a liberdade como referência.

Sua característica descritiva não impede que o autor deixe clara a sua leitura comprometida, de quem esteve envolvido com aquela experiência, prática e teoricamente, que se revelou e se mantém crítico de qualquer perspectiva de instrumentalização da formação humana e de sua conformação à realidade dada. Nosella olha sempre para o futuro, para uma escola de educação inteira em uma sociedade sem classes, e é articulada a este projeto que ele situa a Pedagogia da Alternância.

Referências

ARROYO, Miguel. O direito do trabalhador à educação. In: GOMES, Carlos M. (org.). Trabalho e conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 2004. [ Links ]

NOSELLA, Paolo. Uma nova educação para o meio rural: sistematização e problematização da experiência educacional das Escolas da Família Agrícola do Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo. Dissertação (Mestrado em Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1977. [ Links ]

Ronaldo Marcos de Lima Araujo – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalhadores técnicos em saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS – MOROSINI et al (TES)

MOROSINI, Márcia Valéria Cardoso; LOPES, Márcia Cavalcanti Raposo; CHAGAS, Daiana Crús; CHINELLI, Filippina; VIEIRA, Mônica. (Orgs.). Trabalhadores técnicos em saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2013. 447 p.p. Resenha de: MARTINS, Maria Inês Carsalade. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.3, set./dez. 2015.

Esta nova publicação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Trabalhadores técnicos da saúde: aspectos da qualificação profissional no SUS, resulta do estudo “Processo de qualificação de trabalhadores técnicos em saúde: a conformação dos grupos profissionais”, desenvolvido pelo Observatório dos Técnicos em Saúde da EPSJV/Fundação Oswaldo Cruz, integrante da Rede de Observatórios de Recursos Humanos em Saúde no Brasil. As organizadoras da coletânea de artigos são professoras-pesquisadoras da EPSJV: Márcia Valéria Cardoso Morosini, Márcia Cavalcanti Raposo Lopes, Daiana Crús Chagas, Filippina Chinelli e Mônica Vieira.

A primeira parte do livro se dedica a construir o referencial teórico que orienta as pesquisas sobre os grupos profissionais de saúde em áreas abrangidas pelo Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), do Ministério da Saúde, considerado como uma política de ampliação e qualificação da força de trabalho no setor saúde. Compartilho da avaliação de Gaudêncio Frigotto que, logo na apresentação do livro, destaca que a leitura do conjunto dos textos revela dois aspectos centrais e diferenciados nas análises sobre a formação e a qualificação dos trabalhadores: o esforço de construção coletiva de um referencial teórico que redunda em coerência interna nos diferentes aspectos estudados; e a compreensão de que as políticas de formação da classe trabalhadora são parte constituinte e constituída de projetos societários em disputa.

O conceito de qualificação, o papel da regulação profissional e educacional e a dinâmica da formação técnica e da ocupação de postos de trabalho em saúde no Brasil dos anos 2000, em uma perspectiva histórica, contextualiza o estudo e aponta para questões indutoras das pesquisas realizadas sobre diversos grupos profissionais: administrativos na gestão da saúde; técnicos de informações e registros em saúde; técnicos em radiologia; técnicos em histologia; técnicos em citologia; técnicos em análises clínicas; técnicos em hemoterapia; técnicos em vigilância em saúde; cuidadores de idosos; e agentes comunitários de saúde.

Para definir os marcos conceituais que fundamentam a discussão, no primeiro capítulo, as autoras fazem uma revisão teórica sobre o conceito de qualificação, contrapondo-se à abordagem das competências, conceito que vem sendo apropriado pelo segmento patronal, quase sempre associado ao de empregabilidade. A tese defendida é de que a qualificação não é fruto ou desdobramento natural das tecnologias e novas formas de organização do trabalho. Entendendo a qualificação como historicamente construída, condicionada pelo contexto econômico, político e social e, portanto, uma síntese de múltiplas determinações, as autoras argumentam que

as relações de poder entre capital e trabalho e os fatores socioculturais que influenciam o julgamento da sociedade dependem da conduta e estratégias empresariais (métodos de gestão e controle da força de trabalho) e da consciência e organização dos trabalhadores (na busca de maior decisão e intervenção no processo produtivo). (Chinelli, Vieira e Deluiz, 2013, p. 43).

No âmbito da saúde, o estudo possibilita ao leitor fazer um resgate do processo de institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), ao pesquisar as diferentes trajetórias de formação e qualificação dos técnicos em saúde, bem como das regulações profissional e educacional das diferentes profissões/ocupações.

Tendo como pressuposto teórico que a qualificação não está somente relacionada ao conteúdo do trabalho exercido, mas é uma relação social, um processo e, ao mesmo tempo, um produto social, o segundo e o terceiro capítulos fazem o resgate histórico da criação, transformação e regulamentação das profissões/ocupações técnicas em saúde. Segundo os autores, esse processo se intensifica nos anos 1970 e 1980, o que evidencia o caráter tardio delas em relação à regulamentação do trabalho industrial, relacionando as políticas indutoras no sentido da profissionalização dos técnicos de nível médio em saúde e o modelo de produção e organização setorial.

A análise da dinâmica da formação técnica e da ocupação dos postos de trabalho em saúde nos anos 2000 orienta a abordagem do quarto capítulo. A partir da base de dados do censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o estudo aponta para a predominância do setor privado na formação técnica em saúde no período 1999–2009, relacionando esse fenômeno ao fato de que essa área de formação nunca se consolidou “como de interesse público, nem [foi] desenvolvida pelas instâncias públicas” (Vieira et al., 2013, p. 127). Por outro lado, com base na evolução dos postos de trabalho de níveis elementar, auxiliar e técnico, ocupados nos estabelecimentos de saúde, e nos dados da Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária (AMS), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o período 1999–2009, o estudo discute o aumento na taxa de crescimento dos postos de trabalho em saúde, relacionando-o com as políticas públicas de saúde priorizadas no período. Os autores indicam que, em relação à totalidade dos postos de trabalho criados no setor terciário no período, houve uma marcante expansão dos postos ligados ao cuidado em saúde; o aumento dos níveis de escolaridade da força de trabalho ocupada no setor; e o setor público ainda constitui um importante mercado de trabalho para as ocupações de nível médio/intermediário (técnico/auxiliar) e, principalmente, para as de nível elementar, entre outras questões.

A segunda parte do livro, partindo do referencial teórico esboçado acima, reúne os resultados das pesquisas que recuperam a história da criação e institucionalização de dez grupos profissionais. A leitura dos capítulos nos leva a refletir que, de certa maneira, a criação/(re)recriação de algumas profissões/ocupações técnicas se relacionam diretamente com um determinado contexto de mudanças no modelo de atenção e transição epidemiológica. Nesse sentido, destaca-se a trajetória das agentes comunitárias de saúde, dos cuidadores de idosos e dos técnicos em vigilância em saúde. Do ponto de vista da transição tecnológica, as mudanças impactam diretamente a formação e regulação dos técnicos de radiologia, histologia, citologia, análises clínicas e hemoterapia. Finalmente, considerando os métodos de organização da produção dos serviços, as mudanças implicam a reorientação do processo de qualificação dos técnicos de registro e informações em saúde e dos trabalhadores administrativos que atuam na gestão da saúde.

Entre as principais questões levantadas, a (in)visibilidade, o campo de atuação, a identidade profissional, o mercado de trabalho e o desenvolvimento tecnológico são questões que perpassam todas as análises e se colocam como pontos de reflexão sobre os desafios, possibilidades e limites da qualificação dos trabalhadores de nível médio no sistema de saúde, tanto público como privado, no Brasil.

Trata-se, portanto, de uma importante referência não apenas para os ‘formadores’, mas para gestores, trabalhadores, reguladores e estudiosos do campo da saúde, que se ocupam e se preocupam com a qualidade dos serviços de saúde e com a qualificação do trabalho e do trabalhador enquanto processo indissociável.

Maria Inês Carsalade Martins – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Realidades da Educação Profissional no Brasil – BATISTA; MÜLLER (TES)

BATISTA, Eraldo Leme ; MÜLLER, Meire Terezinha (Org.). Realidades da Educação Profissional no Brasil. Campinas: Alínea, 2015. 290 p.p. Resenha de: LIMA, Julio Cesar França. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.2, maio/ago. 2015.

O livro Realidades da Educação Profissional no Brasil está estruturado em duas partes: “Aspectos da Educação Profissional” e “Movimentos Pontuais na Educação Profissional”, respectivamente, e organizado em torno de 13 capítulos que abordam diferentes aspectos teórico-práticos e períodos históricos da formação para o trabalho e da educação profissional no país. Seus organizadores são vinculados ao grupo de estudos e pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Abrindo a primeira parte da coletânea, Romeu Adriano da Silva discute a tendência de determinados estudos da área trabalho-educação, que, a partir de uma certa leitura da ´ontologia do ser social´ de Lukács, tomam a categoria trabalho como central para as pesquisas educacionais, porém com um viés predominantemente essencialista do trabalho. Dialogando com esses estudos, para os quais a práxis educativa não é trabalho, confronta seus argumentos com o de outros autores também tributários do pensamento de Lukács e com o próprio Lukács, para afirmar que o raciocínio daqueles autores opera sob a lógica da exclusão e não da contradição, a partir de uma leitura imanente e ahistórica da categoria trabalho. Para Romeu esse tipo de ´ontologia’, entre outras consequências, “parece afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, uma tese marxiana” (p. 28), o que leva não só ao imobilismo, mas na impossibilidade de se avançar em direção a uma educação de caráter emancipatório.

Em “Educação para a práxis”, de Hélica Silva Carmo Gomes e Eraldo Leme Batista, o foco são as contribuições de Gramsci para uma pedagogia da educação profissional. Partindo da crítica à pedagogia das competências que se ancora na filosofia do pragmatismo, os autores se propõem a repensar e buscar alternativas para a construção de uma nova pedagogia fundada na filosofia da práxis e que tem na escola unitária proposta por Gramsci o seu lócus de realização. Uma perspectiva antagônica ao pragmatismo, que se baseia no princípio da unidade teoria e prática, na articulação do saber para o mundo do trabalho com o saber para o mundo das relações sociais, que se preocupa com a autonomia, com o pensamento novo e independente do trabalhador, com a construção de uma nova forma de sociedade e que compreende três aspectos principais: a práxis técnico-produtiva, a práxis científico-experimental e a práxis histórico-política. Os autores reconhecem que a implementação dessa proposta no contexto atual está muito distante do real, o que não impede a necessidade de discutir a construção de caminhos possíveis para uma pedagogia da práxis que vai contra a adaptação ao existente e a coisificação do trabalho, a favor da formação de sujeitos sociais ativos e educados para a crítica da sociedade atual e da lógica compulsiva do mercado.

Justino de Souza Junior propõe atualizar o debate teórico da relação trabalho-educação com a discussão sobre “O princípio educativo da práxis”. Partindo do pressuposto de que a valorização da categoria trabalho acabou por subtrair o estatuto teórico da categoria práxis, Souza Junior resgata a sua importância para a reflexão dessa relação. Dialogando com Kosik, Konder, Paulo Netto e Vásquez, o autor aponta para a obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho, na qual a primeira é reduzida a trabalho e a segunda definida como práxis. Ao contrário, vai apontar que a práxis determina muito mais globalmente que o trabalho o ser social, pois, além do momento laborativo, a práxis envolve também o momento existencial. Baseado em Lukács, diz que “o trabalho é a práxis primeira, mas esta abre um processo que se complexifica cada vez mais e desenvolve o ser social criando outras formas de práxis que não são trabalho e se distinguem dele, mas atuam na formação e desenvolvimento do ser social (…)” (p. 77, grifo nosso). Enfim, para o autor, no debate marxista em torno da relação trabalho-educação, “a prioridade ontológica do trabalho não anula a importância da práxis social em geral para a formação do ser social, logo, ela não pode conduzir à ideia de exclusividade da importância do trabalho como princípio educativo” (p. 80). Entretanto, ao apontar que as outras modalidades de práxis, entre elas a educativa,não são trabalho fica a questão se estamos diante (ou não) de uma posição que contraditoriamente pode afastar a possibilidade de uma concepção pedagógica cujo pressuposto seja a tese da combinação da instrução com o trabalho, tal qual discutida no primeiro texto dessa coletânea.

No texto “Problematização, trabalho cooperativo e auto-organização: possibilidades de procedimentos de ensino integrado”, o debate é sobre a didática da educação profissional sob a perspectiva integradora, ou da unidade indissolúvel teoria-prática sob a perspectiva dialética. Refutando tanto o tecnicismo como o politicismo, Ronaldo Marcos de Lima Araújo e Maria Auxiliadora Maués de Lima Araújo compreendem que as técnicas de ensino são mediações das relações professor-aluno, são condições necessárias, mas não suficientes do processo de ensino, pois devem estar subordinadas, política e metodologicamente, às finalidades e práticas sociais que a conformam. No caso, articuladas com um projeto educacional integrador e emancipador. Daí que tomam como referências para o trabalho didático a problematização, o trabalho coletivo e a auto-organização. Descartando a perspectiva de neutralidade da técnica, sustentam a possibilidade de sua ressignificação e seu potencial de desenvolvimento de emancipação social e da autonomia e capacidade criativa dos discentes. Desse ponto de vista, abordam o potencial de diversas estratégias de ensino-aprendizagem, tais como, a aula expositiva dialogada, os laboratórios e oficinas, o estudo do meio: trabalho de campo, o estudo dirigido e o jogo, e as estratégias e critérios para a avaliação do processo de aprendizagem.

A preocupação de Paulo César de Souza Ignácio em “A acumulação flexível no Brasil e suas demandas de qualificação da força de trabalho” é demonstrar que o grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas no Brasil na atualidade, apesar de ajustar os sistemas de formação do trabalhador no sentido da polivalência e flexibilidade, permite dialeticamente que a politecnia seja uma alternativa concreta a essa concepção de educação. Após discutir a crise estrutural do capital nos anos 1970, a emergência do novo padrão de acumulação flexível e a consequente linearização da produção, que está na base da flexibilização do trabalho operário, sua desespecialização e polivalência, o autor analisa o comportamento do mercado de trabalho no Brasil, a partir dos anos 1990, e as demandas do capital industrial pela universalização da educação básica aliada à formação profissional de base polivalente. Com base nessa análise, sustenta que a mesma materialidade histórica que impõe o perfil de formação de caráter polivalente também é a que permite que a concepção politécnica de ensino seja trazida novamente ao debate no âmbito das políticas educacionais.

Roberto Leme Batista discute “Trabalho, educação e a ideologia da cidadania” com base na análise de documentos que serviram de referência para a reforma do ensino médio e da educação profissional no Brasil a partir dos anos 1990. Da análise o autor destaca o uso de conceitos que supostamente seriam um passaporte para a construção, desenvolvimento e consolidação da cidadania, e outros que são omitidos ou desaparecem no discurso dos teóricos do capital. Para ele, os documentos da reforma do ensino médio e da educação profissional no país são impregnados de determinismo tecnológico e ancorados fundamentalmente nas necessidades do capital.

Encerrando a primeira parte da coletânea, Zuleide S. Silveira aborda a temática da educação tecnológica, indicando que desde o pós-Segunda Guerra Mundial esse ensino vem sendo progressivamente subordinado à dinâmica da política de ciência, tecnologia e inovação articulada com o movimento de internacionalização da economia brasileira, bem como voltando a escola para as necessidades estritas do mercado. Isso ocorre por meio das reformas educacionais, do processo de ‘cefetização’ e atualmente se expressa na instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, inspirada no modelo anglo-saxão de universidade moderna. Após identificar as duas concepções de sociedade e escola em disputa no país – o projeto liberal-corporativo e o projeto que visa a emancipação política do trabalhador, e o tipo de capitalismo dependente que articula o moderno e o arcaico, a autora aponta para a contradição do capital que, de um lado, exige maior qualificação para o trabalho, ou formação para o trabalho complexo, e de outro lado, a sua desqualificação, ou a formação para o trabalho simples.

O texto “A educação profissional no Brasil: análise sobre o centro ferroviário de ensino e seleção profissional – década de 1930”, de Eraldo Leme Batista, abre a segunda parte da coletânea com a experiência de formação profissional para esse setor, a partir da trajetória de Roberto Mange e dos estudos realizados na revista do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), do qual era representante, ao mesmo tempo que era diretor do Centro Ferroviário. Identificado como o principal intelectual orgânico da burguesia industrial brasileira nesse período e com grande prestígio junto aos educadores escolanovistas, Mange era um entusiasta das propostas de formar o ´trabalhador ideal´, ´comportado´, ´civilizado´, e ´colaborador´, fundamentada nos princípios da Organização Racional do Trabalho, de base taylorista/fordista, e no desenvolvimento do método psicotécnico e na racionalização dos métodos de ensino industrial. O seu projeto pedagógico era formar uma nova classe trabalhadora nacional, dócil, amável, educada, disciplinada e que vestisse a camisa da empresa, mas também difundir o discurso de uma nova sociedade capaz de enfrentar o atraso e o subdesenvolvimento.

O texto seguinte, de Meire Terezinha Müller, complementa a discussão acima na medida em que se debruça sobre a educação profissional realizada pelo Senai, criado em 1942, e, particularmente, sobre as Séries Metódicas Ocupacionais (SMO), introduzidas no Brasil sob a liderança de Roberto Mange. Como ´método´, as SMOs “são definidas como o modelo que propõe o aprendizado a partir da decomposição das funções em várias fases, com grau crescente de dificuldade às quais os aprendizes iam tendo acesso ao vencer a série anterior” (p. 181). Eram utilizadas tanto nas disciplinas instrumentais como nas disciplinas de formação geral. Para a autora, esse ´método´ se aproxima dos postulados de Comte, Dewey e Comenius, mas se distancia do modelo de educação praticado pelas Corporações de Ofícios e das propostas de Pistrak e Makarenko. Desde sua implantação no Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, do qual Mange foi diretor na década de 1930, até a atualidade, as SMOs vêm sendo modernizadas em decorrência das mudanças operadas nos processos produtivos, mas não deixaram de ser uma educação subordinada às necessidades do capital, de base pragmática e necessária à neutralização da resistência operária e à despersonalização dos indivíduos, já que funcionam como uma barreira aos ´inaptos´ e minimiza qualquer postura crítica à rotina produtiva das empresas.

“Tempos ´Modernos’ no Brasil? O parque fabril brasileiro e as iniciativas senasianas”, de Desiré Luciane Dominschek, analisa alguns aspectos da constituição das escolas do Senai, fundado em 1942, tendo como pano de fundo o processo de industrialização na era Vargas e sua palavra de ordem ´a disciplinarização do trabalho’, bem como a reforma educacional de Gustavo Capanema. Aqui reaparece novamente a figura emblemática de Roberto Mange, primeiro diretor regional do Senai em São Paulo, e sua pedagogia industrial, baseada no método psicotécnico, na formação sequencial e nas séries metódicas. Essa proposta burguesa de aprendizagem profissional de forte apelo ideológico e que implica a taylorização e alto grau de padronização dos métodos de ensino está na base da constituição das escolas senasianas.

Talita Bordignon, em “O ´intento diferenciador´ das ações governamentais por meio do ensino técnico a partir de 1946”, discute o papel da Comissão Brasileiro-Americana para o Ensino Industrial (CBAI) e a influência do sistema educacional voltado à formação para o trabalho nas diversas esferas da vida do cidadão comum, a partir da segunda metade dos anos 1940, no contexto da ideologia nacional-desenvolvimentista. A partir da análise do Boletim do CBAI, órgão que funcionou entre 1946-1961, a autora indica que a preocupação central não se restringia à formação profissional, mas à formação moral, ideológica e cultural dos indivíduos inspirada no modelo norte-americano de viver. Além disso, aponta para o papel reservado aos médicos e psicólogos do trabalho em ´ajustar´ os indivíduos à sociedade e ao trabalho industrial, mesmo aqueles que tivessem ´capacidades reduzidas´ em relação à maioria considerada ´normal´.

O texto “O empresariado industrial nacional e seus projetos educacionais: a dialética da formação humana entre as décadas de 1970 e 1980”, de Jane Maria dos Santos Reis, problematiza a categoria formação humana na perspectiva dialética, a partir das demandas de trabalhadores pelo empresariado industrial no período considerado, visando identificar as representações dos empresários acerca da educação dos trabalhadores. Partindo da hipótese de que “os projetos educacionais do empresariado mineiro (…) são funcionais ao processo de acumulação do capital via desenvolvimento econômico de caráter dependente e combinado (…)” (p. 241), a autora conclui que os projetos educacionais visam subordinar o sistema educacional aos interesses do empresariado. Entretanto, considerando o debate proposto pela autora, a discussão ficaria mais rica com o aprofundamento sobre a improdutividade da escola produtiva, ou sobre os vínculos e desvínculos da relação trabalho-educação, e sobre a existência (ou não) de uma burguesia nacional.

Fechando a segunda e última parte da coletânea, Joice Estacheski e Rita de Cássia da Silva Oliveira discutem “A educação profissional de base politécnica: desafio para o estado do Paraná”, a partir de um olhar crítico sobre essa modalidade de ensino proposta pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Para isso, as autoras abordam as Diretrizes Curriculares da Educação Profissional do Estado do Paraná, construída em 2006, pautada no ‘trabalho como princípio educativo’ e nos pressupostos gramscianos da ‘escola unitária’ e apresentam uma pesquisa realizada com docentes dessa modalidade de ensino. Em relação ao primeiro aspecto, dizem que apesar das diretrizes apontarem para uma formação omnilateral, “as forças conjunturais do atual sistema de produção não permitiram sua concretude” (p. 263). O consenso predominante na estrutura da educação é o de se adequar às necessidades do mercado. Nesse sentido, a maioria dos cursos são na modalidade subsequente e não na modalidade integrada, se distanciando assim da perspectiva de romper com a lógica que articula a educação profissional diretamente ao mercado de trabalho. Em relação aos docentes pesquisados, na sua maioria dos cursos subsequentes, apontam que: não foram preparados para superar a visão mercadológica da formação humana; não há clareza sobre a visão ontológica do ser social e, consequentemente, da ‘educação politécnica’ e do ‘trabalho como princípio educativo’; se dividem quanto à existência ou não da dualidade educacional; e que as condições estruturais para a operacionalização dos cursos estão aquém daqueles necessários ao bom funcionamento de cursos que tenham por base a politecnia.

Julio Cesar França Lima – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional – JORGE; CARVALHO (TES)

JORGE, Marco Aurélio Soares; CARVALHO, Maria Cecilia de Araujo; SILVA, Paulo Roberto Fagundes da (Org.). Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014. 296 p.p. Resenha de: CAVALCANTI, Maria Tavares. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.2, maio/ago. 2015.

Na contracapa do livro Políticas e cuidado em saúde mental: contribuições para a prática profissional, organizado por Marco Aurélio Soares Jorge, Maria Cecília de Araújo Carvalho e Paulo Roberto Fagundes da Silva, Nilson do Rosário Costa aponta para a importância da educação profissional na capacitação dos jovens e na renovação das atribuições funcionais de adultos e afirma que a articulação entre a educação profissional e a reforma psiquiátrica é uma decisão estratégica necessária e urgente. Este é um dos motivos que torna o livro aqui comentado tão importante. Ele vem preencher uma lacuna de textos reflexivos e práticos para todos os profissionais que atuam nos diferentes cenários da reforma psiquiátrica brasileira, incluindo os profissionais de nível médio.

De nada adiantaria a implantação de um parque fantástico de serviços de saúde mental por todo o Brasil, se o que se passa no dia a dia desses serviços reproduz uma lógica onde o usuário dos serviços de saúde mental é visto apenas como o portador de uma doença mental que tem que ser silenciada, normatizada, curada. É evidente que a minoração do sofrimento e uma vida mais plena para os sujeitos que sofrem de algum transtorno mental está na pauta de qualquer profissional que atue neste campo, mas sem a adoção de alguns requisitos básicos, que invertem de certa forma a lógica da prática em saúde mental, a reforma ficaria como letra morta.

Que requisitos seriam esses?

Refletindo sobre o que uma prática renovada e ampliada tem nos ensinado, nós diríamos que são elementos fundamentais:

  • O fato de que os usuários nos mostram o caminho, sempre;
  • Ouvir nunca é demais;
  • Ter calma. Evitar soluções apressadas;
  • Nunca desistir. Apostar e acreditar sempre;
  • Colocar em duvida, suspender nossas certezas;
  • Estar presente;
  • Sempre recomeçar.

Este livro nos fala desses requisitos e nos fornece uma base para que eles se tornem possíveis. Sua origem e elaboração deve-se em parte ao Curso de Especialização Técnica de Nível Médio em Saúde Mental oferecido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz. Este curso tem como compromisso a qualificação dos trabalhadores para atuarem no Sistema Único de Saúde (SUS) em uma perspectiva que conjuga a incorporação dos novos conhecimentos científicos a uma formação integral voltada para a diversidade conceitual e temática do campo da atenção psicossocial.

O livro é dividido em 12 capítulos que vão de uma abordagem mais geral sobre o SUS e as políticas de saúde mental no Brasil até orientações para o dia a dia da prática dos trabalhadores em saúde mental nas diversas situações encontradas, seja na atenção básica, nas crises, com crianças e adolescentes, com usuários de álcool e outras drogas, com idosos e em estratégias mais diretamente ligadas à reabilitação, tais como trabalho, lazer, moradia, empoderamento dos usuários e familiares. Há ainda um capítulo sobre a psicopatologia e os transtornos mentais e um outro sobre psicoterapia e a psicofarmacoterapia. Sempre na ótica do que é mais útil para o trabalhador da ponta, aquele que está diretamente em contato com os usuários dos serviços de saúde mental dando vida com sua prática a estes serviços e a própria reforma psiquiátrica.

Na introdução, Pilar Belmonte faz um breve histórico do movimento da reforma psiquiátrica brasileira, apontando que o processo de redemocratização da sociedade brasileira no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 forneceu um terreno fértil para o projeto de reforma sanitária e de reforma psiquiátrica, e que esta última passou por alguns períodos, desde a humanização dos hospitais e o desenvolvimento de uma rede ambulatorial até a proposta do fim dos manicômios e a construção de uma rede comunitária de assistência à saúde mental, na qual os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) têm um lugar estratégico. O marco legal foi também fundamental, com a aprovação da lei n. 10.216/2001, bem como as estratégias de inversão do financiamento dos hospitais psiquiátricos para a atenção comunitária.

A importância do profissional de nível médio neste processo está no fato de que este profissional pode vir a ser um elemento fundamental para uma inserção maior dos serviços diretamente no território onde vive o usuário, sua família, onde está seu local de estudo, trabalho ou lazer, suas relações etc. Para isso o profissional precisa ser empoderado em sua função, articulando o saber (estudo) e o fazer (prática). É importante, por exemplo, que o profissional de nível médio conheça muito bem o SUS e as políticas de saúde no Brasil, tema abordado no primeiro capitulo (Machado, Fonseca e Borges). Neste capítulo, além do panorama histórico da evolução das políticas públicas de saúde no Brasil, há uma ênfase na importância da atenção primária e na estratégia de saúde da família como fundamentais para a organização do SUS. Este capítulo é complementado pelo seguinte que discute a Organização da Política de Saúde Mental (Schechtman e Alves), reforçando o direcionamento para uma assistência cada vez mas comunitária e menos hospitalar, e pelo terceiro capítulo, que aborda a Saúde Mental na Atenção Básica (Carvalho). A atenção básica é por vocação comunitária e cada vez mais fortalece-se como a porta de entrada no sistema de saúde. Como então integrar a saúde mental na atenção básica? A proposta do Ministério da Saúde é a criação de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) com a presença de profissionais de saúde mental que ‘matriciam’ os profissionais da Estratégia Saúde da Família em relação aos casos de saúde mental, inclusive com atendimentos e visitas domiciliares conjuntas.

Em seguida, o livro debruça-se sobre as Estratégias de Intervenção em Saúde Mental (Leal e Muñoz) discutindo a construção do projeto terapêutico do usuário, a importância do estabelecimento de uma relação de confiança, a identificação da rede e do território de cada pessoa, o acolhimento, a experiência do adoecimento, o cuidado com as famílias. Este capítulo é fundamental para ajudar o profissional de nível médio ou outro a elaborar a sua prática, o que realmente é importante ao atuar com um usuário de saúde mental.

Seguem-se os dois capítulos mais tradicionais, mas igualmente importantes, sobre a psicopatologia e os transtornos mentais e as terapêuticas em saúde mental (psicoterapias e psicofarmacoterapias) (Jorge). Estes são conhecimentos fundamentais para qualquer pessoa que se aventure no campo da saúde mental, mas devem ser lidos e estudados dentro da ótica de todo o livro, muito bem explicitada no capítulo que aborda as Estratégias em Saúde Mental e também no capítulo “Crise, Rede e Hospitalidade: uma abordagem para a reforma psiquiátrica” (Campos).

No capítulo sobre reabilitação psicossocial (Fagundes da Silva), ficamos conhecendo um pouco mais sobre os Dispositivos Residenciais no Brasil e as políticas de geração de renda para usuários de Serviços de Saúde Mental, bem como a importância do lazer e os centros de convivência, que se situam na interface entre saúde, assistência, cultura, educação etc.

Os capítulos específicos sobre álcool e drogas (Alarcon), saúde mental na infância e adolescência (Lima) e envelhecimento (Groisman) são excelentes introduções aos temas. E por fim há uma discussão sobre empoderamento e sua importância para o movimento da reforma psiquiátrica (Soalheiro).

Portanto, o livro Políticas e cuidado em saúde mental cumpre com excelência o que seu subtítulo antecipa – ‘contribuições para a prática profissional’. Trata-se de um livro que seguramente auxiliará enormemente a todos os profissionais do campo da saúde mental, sem exceção, pois embora dirija-se prioritariamente ao profissional de nível médio, traz uma discussão atualizada e profunda, que contempla com folgas o que qualquer profissional do campo gostaria e precisaria saber.

Maria Tavares Cavalcanti – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro – CARDOSO (TES)

CARDOSO, Adalberto. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013, 264p. Resenha de: CORÔA, Roberta. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.13, n.1, jan./abr. 2015.

Autor renomado na área da sociologia do trabalho e conhecido por sua experiência em pesquisas sobre sindicalismo, trajetórias profissionais e mercado de trabalho no Brasil, Adalberto Cardoso se destaca em seu campo de estudos pela capacidade de oferecer sofisticadas análises, utilizando sobretudo dados quantitativos, sem se furtar à contribuição de outras disciplinas e de outros enfoques metodológicos. E é isso que podemos encontrar em seu mais novo livro.

Aqueles que chegam ao livro de Cardoso, em busca de se inteirar de informações relativas à atual estruturação do mercado de trabalho no Brasil, se deparam com a boa e velha teoria sociológica. O autor vai buscar nas relações sociais contemporâneas a formulação dos conceitos e os modelos explicativos para a dinâmica do nosso mercado de trabalho, considerando as repercussões das mudanças em curso no capitalismo em escala global que se corporificam nos trabalhadores. No caminho de construir argumentos contestadores, ou ao menos necessários, do otimismo que tomou conta das análises a partir do crescimento do emprego regulado no início dos anos 2000, Cardoso sociologiza variáveis, transforma números em indivíduos imersos em suas escolhas e contextos sociais e, assim, renova o debate teórico acerca do emprego no país.

Durante a leitura, emerge de forma clara a intenção do sociólogo em revelar ao leitor as disparidades de idade, sexo, cor, classe social e escolaridade que se escondem por trás das análises frias, baseadas em estatísticas de renda e consumo, sobre a expansão do setor formal no país. Em cinco ensaios comprometidos com o rigor metodológico exigido daqueles que se aventuram em trabalhar com os temidos dados quantitativos, a imaginação sociológica se faz presente em todos os momentos. O autor identifica nas trajetórias ocupacionais, posições e possibilidades dos indivíduos no mercado de trabalho as evidências de uma inércia social, econômica e demográfica não facilmente solu-cionável. São as cicatrizes de uma história marcada por longos períodos de crise econômica e social no país.

No capítulo 1, Cardoso constrói uma teoria da informalidade. Para apresentá-la, ele utiliza uma metáfora na qual a ordem capitalista contemporânea surge como uma galáxia. Do centro emanam os principais mecanismos de coordenação: o mercado, o Estado, a informação. Próximos a ele, estão as zonas mais densas e reguladas, por analogia, o ambiente formal, enquanto nas regiões periféricas encontram-se as zonas de regulação rarefeita, nas quais os mecanismos estão presentes em menor densidade, sem no entanto se encontrarem ausentes. Esses são os espaços informais que têm a sociabilidade como o principal meio de coordenação.

Ao elaborar o sistema, o autor defende os dois principais argumentos da sua teoria: a afirmação da existência de continuidades entre os espaços formais e informais – na galáxia financeira da economia capitalista, o centro se alimenta da circulação de mercadorias da periferia, ao mesmo tempo em que a periferia sofre as influências vindas do centro. Aponta ainda a presença nos ambientes informais de mecanismos coordenadores apoiados na sociabilidade – sustentada nas relações sociais de confiança, ancoradas nas redes sociais e familiares e ligadas a outros fatores que não econômicos. O resultado é a desconstrução do conceito hegemônico de informalidade, que ignora as conexões existentes entre os vários elementos do sistema e confere status inferior ao que não é exclusivamente regulado segundo a lógica das normas e leis do Estado.

No capítulo 2, Cardoso avalia em profundidade, por meio da análise de amostras quantitativas disponíveis, as dimensões que perpassam a dificuldade do Brasil gerar boas ocupações. O diagnóstico é que o país apresenta fragilidades multidimensionais, em sua maioria estruturais, que impedem a sustentabilidade de taxas elevadas de crescimento. Ganha centralidade no capítulo o papel das zonas de regulação rarefeita na própria dinâmica do emprego e nas trajetórias de homens e mulheres segundo as faixas etárias. Os dados evidenciam que essas áreas são mobilizadas em momentos diferentes das biografias dos trabalhadores, em uma lógica que, segundo o autor, combina estratégias individuais e ofertas de oportunidades.

O capítulo 3, sob a forma de questão geradora, problematiza a percepção vigente no senso comum de que determinadas posições, vistas como degradadas, não são ocupadas por pessoas brancas. O olhar sobre os dados constata as raízes históricas dessa percepção e revela que, apesar das mudanças profundas vividas pela sociedade brasileira nas ultimas décadas, ela ainda encontra sustentação no ordenamento real das ocupações. O capítulo traz evidências que possibilitam afirmar sociologicamente que as piores ocupações são, de fato, o destino mais provável para pessoas que se declaram pretas, pardas ou indígenas. Cardoso identifica as razões na rigidez da estrutura ocupacional brasileira, na qual a permeabilização de pretos, pardos e índios nas melhores ocupações tem ocorrido de modo muito lento ao longo de décadas, concorrendo para a manutenção das hierarquias e desigualdades existentes. Conclui-se que não é possível compreender adequadamente a estrutura ocupacional, nem as oportunidades de acesso a ela no Brasil, sem menção às desigualdades raciais.

No capítulo 4, o autor propõe desvendar as dinâmicas relacionais da migração entre Rio de Janeiro e São Paulo. Parte-se da hipótese de que existiria um mercado de trabalho intermetropolitano ligando as duas cidades e com relevância significativa para compreensão da estrutura ocupacional dessas regiões. Seja pela incipiência de debates sociológicos sobre o tema, seja pelo caráter disperso das dinâmicas reveladas pelos dados, o capítulo aparece um tanto solitário e não corresponde à densidade teórica que perpassa os demais segmentos do livro. Apesar da constatação de que existe um fluxo significativo de migrantes entre Rio de Janeiro e São Paulo, variável segundo a natureza da ocupação, o argumento apresenta-se apenas como um tímido passo em direção a um debate ainda não fomentado.

Por fim, no capítulo 5, reconhecemos na figura do autor o status de pesquisador renomado na área de estudos sobre sindicalismo no Brasil. O capítulo é um rico dossiê acerca das correntes teóricas que marcaram os estudos desse campo. Ao reunir os fatores ‘racionalidade individual dos trabalhadores’, ‘contexto social e familiar’ e ‘percursos individuais’ para formular seu modelo de probabilidades de filiação a sindicatos, Cardoso traz ao debate um argumento consistente e inovador para compreensão dos processos atuais de sindicalização no Brasil. Nesse percurso, cada variável utilizada é cuidadosamente explicada em termos teóricos e metodológicos, o que faz com que o alcance da análise empreendida extravase os limites pretendidos, proporcionando ao leitor o contato profundo com a produção do conhecimento sociológico sobre o tema em questão, a partir de modelos quantitativos.

Adalberto Cardoso discorre sobre ciência de maneira lúdica e se faz entender por meio de números, teorias e metáforas. A grande riqueza da obra é, sem dúvidas, a capacidade do autor em trazer as análises, em grande parte baseadas em amostras numéricas de modo a ultrapassar tantas proposições duras e superficiais acerca do atual momento do capitalismo financeiro e do mercado de trabalho. Assim procedendo, o autor humaniza os processos, dando-lhes agentes, relações sociais e subjetividade.

Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro é um livro sobre relações sociais no sistema capitalista contemporâneo, que oferece dados valiosos para uma compreensão crítica da estruturação do mercado de trabalho do Brasil

durante os anos 2000. Leitura indispensável para aqueles pesquisadores interessados em refletir de maneira mais profunda sobre temas intensamente debatidos nas mesas e corredores dos congressos de sociologia do trabalho em todo o mundo.

Roberta Corôa – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde – PINTO; CAMPOS (TES)

PINTO, Virgínia Bentes; CAMPOS, Henry de Holanda (Orgs.). Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde. Fortaleza: Edições UFC, 2013, 444p. Resenha de: CUNHA, Elenice M. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2014.

A relevância da área de Informação e Informática em Saúde (IIS) para o alcance dos princípios do SUS e melhoria de sua efetividade é indiscutível. Entretanto, o desenvolvimento da IIS, por sua transdisciplinariedade, depende da contribuição de referenciais de distintas áreas do saber. A obra Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde, organizada por Virgínia Bentes Pinto e Henry de Holanda Campos, veio ao encontro dessa necessidade.

De início, prefácio e apresentação promovem de forma consistente a familiarização com a amplitude e interfaces do objeto ‘informação em saúde’ e com o conjunto dos capítulos e temáticas abordadas. O livro, com mais de quatrocentas páginas e 15 capítulos, abrange tanto questões teórico-metodológicas para abordagem do objeto quanto discussões e definições mais diretamente relacionadas à prática dos serviços, com ênfase em questões relativas aos requisitos das Ciências da Computação.

Pela abrangência da obra, a nossa opção foi por destacar os capítulos iniciais, que tratam de temáticas que supostamente profissionais e pesquisadores da saúde estejam menos familiarizados. O primeiro capítulo apresenta uma proposta de modelo de análise para o objeto ‘informação em saúde’. A análise de domínio, abordagem teórica e metodológica de uso corrente nas Ciências da Informação, teria duas etapas bem demarcadas. A primeira etapa, em que se buscaria entender e descrever o escopo e abrangência do objeto com base na análise de suas premissas ontológicas, epistemológicas e sociais, encontra-se de forma mais detalhada e em uma aproximação com o objeto. Já a segunda etapa da análise, que supostamente permitiria intervir sobre as informações do domínio em questão, não chega a ser discutida. Há apenas a menção de que esta consiste em um “conjunto de metodologias” (p. 35) de uso frequente na Ciência da Informação.

Para os que não estão familiarizados com estudos no campo da Ciência da Informação e com a complexidade do objeto ‘informação em saúde’, a compreensão do capítulo exige dedicação e releituras. Contudo, o esforço é recompensado, posto que conceitos e proposta de análise apresentados lançam luzes sobre a complexidade do objeto e sobre implicações de tê-lo como objeto de pesquisa.

De perspectiva mais geral e abrangente, o segundo capítulo contextualiza a chamada ‘sociedade da informação’ na atualidade, com destaque para características como a interatividade e o compartilhamento, que modificam e ampliam as possibilidades de ‘saber, produzir e atuar’ dos indivíduos. Tais possibilidades, que estariam condicionadas pelo desenvolvimento de tecnologias digitais, juntamente com a sobrecarga de dados, promoveriam impactos na prática da medicina, permitindo, ou exigindo, modificações no padrão de atuação de profissionais e pacientes. A abordagem, em linguagem clara, amplia a compreensão e contribui para superar uma perspectiva tecnicista do objeto ‘informação em saúde’.

O terceiro capítulo, “Informação para o monitoramento de risco em saúde”, de abordagem mais prática, apresenta um panorama do que seria o uso das informações e a aplicação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) no Sistema Único de Saúde, sem muitas novidades para aqueles profissionais do setor saúde que já atuam na área, mas provavelmente contribuirá para profissionais da Ciência da Informação e das Ciências da Computação que tenham interesse no tema ‘informação em saúde’.

O quarto capítulo contempla discussão atual, que, no âmbito do setor saúde, precisa ser ampliada e aprofundada: o acesso livre à informação científica. No texto, a autora explicita fatos e situações que têm contribuído, no Brasil, para o movimento em favor do acesso livre à informação, como a abertura política, a crise econômica e o desenvolvimento das TICs; e ainda eventos e discussões, em âmbito nacional e internacional, relevantes para o desenvolvimento da questão. Reforça os repositórios institucionais como projeto que possibilita a implementação da ideia como política de apoio ao desenvolvimento científico e à democratização do acesso ao conhecimento, mostrando potencial para impactar positivamente na atenção à saúde.

O capítulo quinto trata da possibilidade e necessidade da representação indexal para o tratamento informacional do prontuário do paciente. Requer esforço, não para a compreensão do texto, mas para motivar-se à leitura, pois, embora básica na Ciência da Informação, a temática é pouco abordada no setor saúde, e não estamos familiarizados com ela. Contudo, deve-se ter em conta, na leitura e compreensão da obra, que é preciso empenho para desenvolver o objeto ‘informação em saúde’, dadas as interfaces da temática. O texto é elucidativo na medida em que esclarece aos iniciantes a funcionalidade e relevância da representação indexal, que em síntese agiliza a recuperação da informação.

Os capítulos seguintes discutem terminologias e padronização. Um desses capítulos, inicialmente escrito no idioma espanhol, apresenta resultados de trabalho empírico sobre identificação de termos representativos da linguagem médica especializada, por profissionais supostamente envolvidos com a questão, e relata a falta de consenso e outras dificuldades. A certa atura, no entanto, esse capítulo traz trechos em catalão, o que dificulta a compreensão do texto em sua totalidade, posto que é um idioma pouco falado no Brasil.

Arquitetura da informação em meio digital e interoperabilidade dos sistemas também são temas abordados na obra, em uma linguagem clara que possibilita a compreensão mesmo por aqueles ainda não familiarizados.

No último capítulo, os autores explicitam alguns dos dilemas e implicações da informatização dos documentos gerados nas instituições de saúde. Destacam que o prontuário do paciente não é o único documento produzido nessas instituições, pois a maioria dos processos de trabalho administrativos também geraria documentos. Nesse aspecto ressalta a importância do referencial analítico e organizativo da disciplina Gestão de Documentos. Apresenta, de forma sucinta, a legislação e instituições que deveriam nortear o processo de informatização e os possíveis interesses envolvidos.

A superação das limitações da IIS depende menos de iniciativas pontuais internas ao campo específico da saúde e mais de outros referenciais. Visto por uma profissional de saúde que se ocupa da Educação Profissional na área de Informações e Registros em Saúde, pelos temas abordados, a obra assume grande importância.

Por sua abrangência temática e consistência teórica, o livro tem potencial para servir de referência para pesquisas e como subsídio para o ensino.

Elenice M. Cunha – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social – PROCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 148p. Resenha de: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2014.

O redescobrimento das classes sociais representa uma mudança positiva, cada vez mais presente em descrições das novas estruturas sociais dos ‘centros’ e ‘periferias’ do capitalismo globalizado. Repare-se que até recentemente a categoria ‘classe social’ tinha desaparecido do léxico analítico referido à distribuição da riqueza e do poder, ocupando o primeiro plano as problemáticas de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade etc., cuja importância não deve ser subestimada, dada a persistência de odiosas formas de discriminação, desigualdade, violência e criminalidade.

Ao mesmo tempo, não pode ser considerado casual que esse cenário controverso coincida com o declínio das utopias históricas (derrubada do socialismo real e do Estado de bem-estar social, hoje idealizado) concomitante com a expansão da contrarrevolução neoliberal, por um lado, assim como a erosão dos paradigmas culturais através dos quais interpretamos a complexa realidade social, por outro lado.

É, justamente, este cenário controverso o que serve de inspiração para o livro de Marcio Pochmann que passamos a resenhar.

Dividido em quatro partes, cada qual composta de seções que abrangem 15 subtemas, o livro faz jus ao título, pois por sua leitura constatamos que a noção de ‘nova classe média’ não passa de uma construção quimérica do mercado político.

Na primeira parte, intitulada “Classe média em quatro tempos”, o eixo da exposição consiste em um diálogo entre conceituação sucinta das etapas de desenvolvimento histórico do capitalismo e a origem incerta de diferentes usos espaço-temporais do termo ‘classe média’. Concluindo com uma reflexão crítica sobre a extemporaneidade deste termo no Brasil, porque a “adoção”, escreve Pochmann, “de uma medida descontextualizada da base original da sua materialização pode se revestir apenas e simplesmente de um voluntarismo teórico inconsistente com a realidade, salvo interesses ideológicos específicos ou projetos políticos de reconfiguração da redução do papel [social do] Estado” (p. 45).

A partir deste último raciocínio parece pertinente pensar que a utilização descontextualizada do termo classe média, em substituição do termo classe trabalhadora, também serviria para incutir no ânimo dos trabalhadores a ideia de que seu vínculo unitivo não é o trabalho, mas sim o seu ‘novo padrão’ de consumo e o correspondente nível de rendimento, descolado da sua origem: a alienação da força de trabalho pelo capital. Por extensão, tudo isto implica a individualização e destruição das solidariedades de classe e das capacidades de (re)ação coletiva.

A segunda parte do livro, intitulada “Classe média: fatos e interpretação no Brasil”, contém uma argumentada exposição da origem e características do modelo fordista de desenvolvimento e da composição social do capitalismo avançado do segundo pós-guerra. Na sequência, examina as particularidades da industrialização tardia brasileira e sua relação com as condições de subconsumo da classe trabalhadora, derivadas da resistência das classes dominantes a admitir as reformas estruturais (‘civilizatórias’) que foram conquistadas (no período 1945/1975) pela esquerda político-sindical nos países desenvolvidos, sem que isso implicasse reversão da ordem capitalista. Pelo contrário, o atual processo de destruição acelerada do ‘Estado de bem-estar’ demonstra que as conquistas sociais, ligadas a essa denominação otimista (Estado de bem-estar), representam um fenômeno absolutamente excepcional na história do modo de produção capitalista.

Nesta segunda parte do livro, cabe destacar como uma linha de reflexão e debate em aberto a tese de Pochmann sobre “a combinação, na última década, de crescimento econômico brasileiro com distribuição de renda, o que permitiu a retomada da mobilidade social, especialmente aquela associada à base da pirâmide social” (p. 71), incluindo “ascensão dos trabalhadores pobres [no] projeto social desenvolvimentista” (p. 62-70).

Registremos alguns elementos que achamos importantes para compreender o alcance da reflexão de Pochmann sobre a presente trajetória econômica e social do Brasil:

  • Ampliação da base da pirâmide social com forte expansão do emprego, com três quartos dos novos empregos remunerados até l,5 salários mínimos;
  • Quase 40% de queda da pobreza em vinte anos: l988-2008 (p. 67);
  • Aumento de quase 80% do gasto social no PIB, em 25 anos: 13,3% em 1985 para 22,7% em 2010 (p. 66).
  • Incorporação ao ‘mercado de consumo barato’ de quase um quarto dos brasileiros, em que “parcela considerável da classe trabalhadora foi incorporada no consumo de bens duráveis, como TV, fogão, geladeira, aparelho de som, computador, entre outros” (p. 71).

Destacamos a sua própria conclusão: “esse importante movimento social”, escreve Pochmann, “não se converteu, contudo, na constituição de uma nova classe social, tampouco permite que se enquadrem os novos consumidores no segmento de classe média” (p. 71).

A terceira parte, intitulada “Cadeias globais de produção e ciclos de modernização no padrão de consumo brasileiro”, contém análise, assente em numerosos dados estatísticos resumidos em gráficos e tabelas, da dinâmica da economia política de consolidação do capitalismo monopolista transnacional e seus impactos nas estruturas sociais, especificamente no Brasil.

Fazendo um balanço das informações obtidas pela sua consistente exploração bibliográfica e elaboração estatística, Pochmann expõe com singular clareza as três principais razões explicativas da evolução histórica do grau de desigualdade no padrão de bens e serviços civilizados.

A primeira razão explicativa é a globalização como novo paradigma da produção das empresas transnacionais. Assente não apenas nas novas tecnologias, mas sobretudo em políticas neoliberais de liberalização dos mercados e privatização do setor público, assim como na ampliação da base de recursos produtivos, matérias e humanos, como decorrência da restauração do capitalismo na União Soviética, Leste europeu e China, principalmente. Essa enorme expansão geográfica dos mercados significou um aumento de l,5 para 3,9 bilhões do exército de força de trabalho fragmentada em estados competidores. Tudo isso tornou possível a produção massiva de todo tipo de mercadorias de baixo custo e sobre esta base a emergência das sociedades de consumo de baixo custo (low cost).

A segunda razão explicativa é a especificidade da inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, mostrada por meio da sucessão dos ciclos de modernização do padrão de consumo das distintas faixas de renda, ocupação setorial e grau de escolaridade, assim como a alteração sucessiva dos preços relativos. Trata-se de uma análise aprofundada de informação estatística abrangente, apresentada em tabelas e gráficos elucidativos.

A terceira razão explicativa da evolução das desigualdades, num sentido positivo, são as políticas sociais compensatórias, a bancarização de setores de menor renda, incluindo a expansão do crédito para consumo de bens duráveis e novos serviços. Na contraface dessas alterações encontra-se, sem dúvida, a mercantilização da vida e a financerização da sociedade.

Sabendo que a sociedade envolve muitas atividades e relações (de poder, de consciência, culturais, nacionais, sexuais, normativas etc.) que não concernem à Economia Política, o autor concentrou-se na temática da estrutura social, nitidamente transbordada da realidade por força do superdimensionamento fictício quando se fala de uma grande e nova classe média.

A quarta e última parte do livro concentra-se no exame da superação relativa da imobilidade social na primeira década deste século. Após a longa fase de regressão e estagnação da estrutura social das duas décadas anteriores, parece consolidar-se uma onda de novas ocupações e uma incerta política de rendas que visa à curva de distribuição da renda de 40% da população mais pobre. A identificação desses segmentos e o estudo da evolução geral da ocupação e do rendimento mostrariam, segundo Pochmann, sinais significativos da “volta da mobilidade social ascendente, sobretudo, na base da pirâmide social brasileira, que nada tem de nova, tampouco de classe média” (p. 139).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O que é saúde? – ALMEIDA FILHO (TES)

ALMEIDA FILHO, Naomar. O que é saúde? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011,160 p. (coleção temas em saúde) Resenha de: DANTOS, Milena Silva dos; GONÇALVES, Lucia Hisako Takase; OLIVEIRA, Marília de Fátima Vieira de. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.3, set./dez. 2013.

A obra apresentada faz parte de uma coleção sobre temas em saúde e foi publicada pela Editora Fiocruz em 2011. Naomar de Almeida Filho, ph.D. em epidemiologia e professor-titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), inicia sua obra fazendo uma apresentação sobre seu interesse pela temática abordada, demonstrando preocupação com essa questão desde a década de 1980, durante sua formação como docente e pesquisador na área da epidemiologia. Para apresentar ao leitor sua proposta, ele começa com um rápido comentário crítico, carregado de ironias em sua fala. Isso entusiasma o leitor e faz com que haja maior atração pela leitura, já que o autor é objetivo, usa uma linguagem acessível.

O que é saúde? está dividido em sete capítulos, cada um deles trazendo uma pequena introdução e o ponto de vista do autor sobre os temas em questão, além de breves comentários sobre o que será analisado adiante.

O primeiro capítulo se intitula “Saúde como problema”, em que o autor apresenta o pressuposto de que “a saúde é um problema simultaneamente filosófico, científico, tecnológico, político e prático”, apenas para dar início à apreciação analítica da obra. Sua proposta de discussão é sistematizada e de problematização de conceitos, começando por uma introdução histórico-etimológica como fundamento para uma rápida exploração da questão epistemológica da saúde – o que tem grande importância do ponto de vista teórico-conceitual para que o leitor prossiga em uma leitura clara e objetiva. Ainda neste capítulo, o autor traça uma pauta de cinco itens para continuação da discussão a respeito da temática. Estes itens foram transformados em títulos para serem debatidos nos cinco capítulos subsequentes.

O segundo capítulo, “Saúde como fenômeno”, trata da saúde como um fato, atributo, função orgânica, estado vital individual ou situação social, definido negativamente como ausência de doenças e incapacidade, ou positivamente como funcionalidades, capacidades, necessidades e demandas.

No terceiro capítulo, “Saúde como medida”, o autor analisa as estratégias de medida da saúde e faz uma avaliação do estado de saúde, indicadores demográficos e epidemiológicos e análogos de risco, competindo com estimadores econométricos de salubridade ou carga de doença. A discussão abrange limites e possibilidades de tratamento em nossa cultura científica, impasses e desdobramentos de propostas de análises quantitativas da situação de saúde, como se esta fosse um recurso econômico das sociedades modernas.

“Saúde como ideia”, o quarto capítulo, propõe a análise de concepções de saúde como ideia ou dispositivo ideológico, estruturante da visão de mundo de sociedades concretas e construção cultural. Para isso, o autor buscou explorar algumas teorias que retomam os conceitos de saúde-doença. A maioria das teorias abordadas é oriunda principalmente da antropologia médica anglo-saxônica, que busca valorizar elementos psicossociais e culturais da saúde.

O quinto capítulo, “Saúde como valor”, tem a proposta de avaliar as bases lógicas, teóricas e metodológicas da concepção de saúde como valor: valor de uso, valor de troca, valor de vida. E, para que parte da cidadania global contemporânea contemple esses valores, é necessário tê-los tanto na forma de procedimentos, serviços e atos regulados e legitimados, indevidamente apropriados como mercadoria, quanto na de direito social, serviço público ou bem comum.

“Saúde como campo de práticas” é a denominação para o sexto capítulo, que trata das pautas preliminares. Neste, exploram-se concepções de saúde como práxis, conjunto de atos sociais de cuidado e atenção a necessidades e carências de saúde e qualidade de vida, conformadas em campos e subcampos de saberes e práticas institucionalmente regulados, operados em setores de governo e de mercados, em redes sociais e institucionais. Para isto, foram retomados alguns argumentos utilizados nos capítulos anteriores.

O sétimo capítulo, intitulado “Saúde como síntese”, faz considerações das possibilidades de uma concepção holística da saúde, retomando análises anteriores. Dessa forma, o autor conclui afirmando que não se pode falar da saúde no singular, mas sim de várias ‘saúdes’, e que para estudar com rigor e eficiência teórica esse conceito plural de saúde, deve-se considerar o somatório de interfaces entre as ciências sociais e as ciências da saúde. A abordagem da questão da saúde é bastante diversificada; portanto, para se apreender essa multiplicidade de conceituações, é necessário construir algo mais sólido, complexo e articulado do que se tem na contemporaneidade.

O autor conclui a obra afirmando que a sua principal proposição é que não podemos tratar a sáude com casos isolados, mas sim como um todo, na pluralidade de vida e na riqueza de perspectivas conceituais e metodológicas, a depender dos níveis de complexidade e dos planos de emergência considerados. Afirma também que sua intenção é abrir um leque de questões e avançar nos debates provocados pelo exercício de problematização que foi levantado.

Ao longo da obra, os conceitos de saúde e de doença foram, por sucessivas vezes, discutidos de modo ora mais simples, ora com maior complexidade, destacando as diversidades de formas e realçando suas nuances. A problematização utilizada mostra que as ideias de saúde que são socialmente disseminadas refletem interações entre as diferenças biológicas, distinções sociais e políticas, ocorrendo, portanto, as reais visualizações das desigualdades na saúde.

Pensamos que o livro de Naomar de Almeida Filho seja de grande utilidade não só acadêmica, mas também para o público em geral, para que se possa disseminar uma questão tão discutida e pouco resolvida em nossa sociedade.

Milena Silva dos Santos – Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]

Lucia Hisako Takase Gonçalves – Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]

Marília de Fátima Vieira de Oliveira – Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]

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A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades – CARDOSO (TES)

CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro, Editora FGV/Faperj, 2010,463 p. Resenha de: SANTANA, Marco Aurélio. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.3, set./dez. 2013.

É moeda corrente que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo. Temos um longo histórico nesta tradição, demonstrando o quão persistente é nossa desigualdade. Nosso ranking global é dos piores. Disso já sabemos não é de hoje. Somos constantemente bombardeados com comparações entre o nosso país e outros para cima e para baixo na escala de presença mundial. Em muitos casos, ficamos ruborizados com os resultados destas comparações. Desta situação decorrem não só estratégias para que tentemos melhorar nosso posto – tantas vezes sem sucesso -, mas também, para acalentá-las, reflexões e investigações acerca do como vamos neste quesito, para entendermos os caminhos trilhados e que nos trouxeram a tal ponto.

O livro de Adalberto Cardoso traz aos leitores um novo alento nesta direção. Incorporando o “mundo do trabalho” em tal mirada, se coloca, de forma instigante, a questão da persistência da referida desigualdade em conexão com “os mecanismos de vertebração da sociedade brasileira”, no percurso de nossa experiência em termos de construção da sociedade do trabalho.

Antes de qualquer coisa, é preciso que se diga que Cardoso primou em seu trabalho pela combinação bem medida, nem tão fácil, nem tão trivial, das perspectivas ‘quali’ e ‘quanti’, o que tem sido uma das características de seus investimentos ao longo de sua trajetória de pesquisa. Aos leitores é fornecido um conjunto de dados produzidos pela literatura sociológica e historiográfica, sempre em diálogo constante com o campo analítico e suas formulações teóricas pertinentes. Transita-se por achados provenientes de análises historiográficas, survey, entrevistas, análise de trajetórias etc. Além disso, percorrendo período lato de tempo, necessário ao tratamento da questão, efetiva finas análises em seu percurso histórico e sociológico, produzindo o que o autor define como “uma sociologia historicamente referenciada”. O leitor é conduzido por operações analíticas que incluem processos ‘macro’ e ‘micro’, os quais, articulados, fornecem uma ampliação da capacidade de entendimento do tema em tela. Ressalte-se, ainda, que dada a forma de redação e desenvolvimento do texto, ele se torna acessível a um público mais amplo que o acadêmico.

Cardoso usa todo este arsenal no intuito de abrir uma nova picada explicativa acerca da persistência regular e indómita da desigualdade em nosso país. Que elementos manteriam sua durabilidade e sua especificidade no Brasil? Como por ele indicado, o ‘ser desigual’já está no DNA do sistema capitalista. O fato é que, em certo momento, a legitimação do sistema dependeu, no mundo ocidental, de “sua capacidade redistributiva, mediada pelo Estado do bem-estar”. Ainda que aberta a questionamentos, Cardoso parte da visão de que o Brasil experimentou “seu Estado de bem-estar”. O mesmo “que aqui, como acolá, é um Estado redistributivo”. Mas aí teríamos uma especificação de nossa formação social e económica: “essa redistribuição jamais se universalizou e não foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis”.

Isso, segundo o autor, se deveria aos seguintes fatores combinados: (1) “padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem capitalista no início do século XX, que deixou heranças profundas na sociabilidade capitalista posterior”; (2) “a estrutural fragilidade do Estado, sempre às voltas com seus próprios déficits e sua incapacidade de enraizamento no vasto território nacional”; (3) “a persistente violência estatal contra o trabalho organizado, muito superior à ameaça que este eventualmente representou ao longo da história”; (4) “a diminuta participação do operariado industrial na estrutura social e a enorme fragmentação das formas desorganizadas de obtenção de meios de vida no mundo urbano, fora do mundo do trabalho formal”; (5) “o baixo patamar da riqueza social produzida”; (6) “e o padrão de incorporação dos trabalhadores no mercado de trabalho urbano a partir da década de 1940, resultante da abdicação, pelo Estado, da tarefa de regular o mundo agrário, com isso transformando as cidades em polo irresistível de atração para os trabalhadores pobres do campo”.

Estes seis pontos serão fios orientadores na condução da análise que se dividirá em duas partes. Na primeira, centra-se na questão da construção da sociabilidade capitalista no Brasil. Por ‘sociabilidade’ Cardoso define, segundo ele “sem nenhuma pretensão teórica mais geral”, “as inter-relações resultantes do modo de operação das linhas de força que estruturam a ordem social, linhas que organizam as expectativas recíprocas de grupos e classes sociais quanto: aos valores mais gerais de orientação da ação recíproca, ou da ação que leva o outro em conta; e aos padrões prevalecentes de justiça, ou de bem comum, ou ‘do que deve ser’ a vida em comum; e, com ambos, as próprias ações recíprocas”.

Neste particular, o autor defende a posição de que “a escravidão deixou nela marcas muito mais profundas do que o conhecimento acumulado sobre o tema se dispõe a aceitar”. Segundo ele, “Não só a sociabilidade capitalista moldou-se pela inércia da ordem escravista, como o próprio Estado capitalista construído no quarto século brasileiro estruturou-se pela escravidão e para sustentá-la”. Com isso, ele acabou “transferindo muito de sua dinâmica (e inércia institucional) de uma geração a outra, dificultando e retardando a problematização da questão social como relevante para a sustentabilidade da ordem”.

Tal processo, mais longevo, acabou por receber reforço exatamente do período no qual houve a tentativa de implantação de uma dinâmica que marcasse uma ruptura com a escravidão. Quando no período Vargas, ao regular-se o mundo do trabalho, deixou-se de “equacionar as relações de trabalho no campo, ao tempo em que instituía a promessa de proteção social e trabalhista nas cidades”, gerando forçosamente “um campo gravitacional urbano que atraiu muito mais gente do que o mercado de trabalho capitalista em construção foi capaz de incorporar”. Aí, teríamos, a explicação de “boa parcela da persistência da desigualdade entre nós”.

Na segunda parte, o autor avança na análise do “processo estrutural de construção da sociedade do trabalho no país a partir de 1940”. Ele foca “na transição da escola para o trabalho, tomada como momento privilegiado da construção de anseios, projetos e ambições individuais e coletivas numa sociedade capitalista embalada por promessas de igualdade, liberdade e realização pessoal”. Nesta parte, Cardoso defende a posição de que “apesar das enormes tensões e conflitos que cortam a sociedade brasileira de alto a baixo, e por todos os lados, sua sustentabilidade no longo prazo é assegurada pela adesão da maioria dos brasileiros às promessas de nosso parcial Estado de bem-estar”. Esta ‘adesão’ se daria também “e muito especialmente ao capitalismo como um conjunto de oportunidades de promoção pessoal”. Tudo isso ocorreria “apesar da resistente frustração das expectativas a que seu caráter inercial deu guarida”.

Este ponto, aliás, subjaz ao longo de todo o livro a animar a reflexão e a investigação. Diante de ordem social tão desigual, por que os menos aquinhoados não se rebelam contra ela na tentativa de pô-la abaixo? Se em outras experiências o Estado de bem-estar, via redistribuição, abriu caminho para a legitimação de sua ordem, no caso brasileiro, com toda esta herança e um Estado de bem-estar a nosso modo, ‘parcial’, por que é que os do andar de baixo não se sublevam ao ponto de mudar a ordem estabelecida?

A questão da percepção dos atores sociais se torna muito importante. Uma ordem social pode ser percebida de formas muito diferentes pelos atores, classes e grupos sociais, levando-se em conta critérios, tais como ‘justiça/injustiça’, ‘igualdade/desigualdade’ e ‘legítimo/ilegítimo’. Nestas percepções, nem sempre o ‘desigual’ se associa com o ‘ilegítimo’. O que poderiam parecer conjugações ‘óbvias’, ‘imediatas’, ‘necessárias’ etc., nem sempre o são. É exatamente neste tipo de conjugação que se assenta o ritmo de dinâmica e inércia apresentada por uma determinada ordem social capitalista.

No caso brasileiro, a partir dos elementos apresentados por Cardoso teríamos que a “sociedade é desigual, a sociedade é injusta, a cidadania é impotente diante disso, o padrão de justiça de ricos e pobres é igualitarista, e o Estado é o agente da solução da desigualdade”. Este conjunto atuaria diretamente como fator impeditivo de que “a ordem desigual seja vista como ilegítima, por indicar que, no futuro, as coisas estarão melhores do que hoje, e que cada um pode se beneficiar da melhoria geral do país”.

Há, aí, por esta via, a produção de uma “legitimidade da desigualdade”. Os pobres não perceberiam “a estrutura de posições” como ‘desigual’, mas a aceitariam “como consequência esperada de meios vistos como aceitáveis”. Assim, eles “aspiram a essas posições, mas concordam que não as merecem. É o mesmo que dizer que estariam nelas se tivessem feito por isso”. Nestes termos, o que ocorre é que como a sociedade é percebida como aberta, a “frustração em relação à posição atual, se existe, não é vivida como resultado da injustiça social, ou da dinâmica coletiva, mas sim como fracasso individual”.

O que se tem, a partir do exposto, é que os possíveis processos de alteração da ordem restariam obstados em nome de uma ‘utopia brasileira’, como nomeada por Cardoso, ou seja, as sedutoras “promessas sempre amesquinhadas de inclusão nessa mesma ordem desigual”. Associada à forte repressão às ‘forças do trabalho’ ao longo de nossa história republicana, a crença nesta ‘utopia’ deixaria reduzidíssimo, para não dizer nenhum, espaço para projetos alternativos de transformação social. Como antes, e sempre, repressão e consenso em operação. Ante as mudanças sociais profundas e de largo espectro, estaríamos, na sociedade brasileira, entregues às ‘pequenas’ mobilidades sociais, as quais, em um universo de extrema desigualdade, ganhariam dimensão enorme, ainda que em termos ‘pessoais’, além de sempre garantirem a visão de um campo de possibilidades futuro, aberto à frente. Neste quadro, as propostas alternativas e seus atores foram ‘substituídos’ pelo Estado como “agente da utopia social-democrata”.

O estudo de Cardoso auxilia muito no sentido de pensar a ordem social, sua construção e manutenção ao longo do tempo. É uma reprodução que se trata de entender. Como se preocupa com a ‘persistência’, as forças de possibilidade alternativa acabam ficando marginais, sendo minimizadas ou, ainda, sendo trazidas para o interior da reprodução do sistema. Como em todo estudo deste corte, a força do enfoque da reprodução pode gerar uma certa claustrofobia pessimista. O peso do passado molda o presente e engolfa reprodutivamente as possibilidades de futuro.

Após quatro séculos de escravidão no Brasil, e com ela marcando indelevelmente a sociedade capitalista, como ‘escapar’ desta herança? O arremedo de social-democracia que tivemos, se abriu espaços possíveis de superação, forneceu ainda elementos complicadores aos projetos de transformação. ‘Movimentos’ se transmudaram em ‘mobilidade’. Antes de mudar a sociedade, mudar seu lugar nela. Deslocando ainda da cidadania ao Estado o papel de ‘agente da utopia’. E, sobretudo, garantindo, especificada, a persistente desigualdade.

Interessante pensarmos mais especificamente, sob a luz do trabalho de Cardoso, a sociedade brasileira nos últimos dez anos, nos quais retornaram, ainda que atualizadas, as discussões sobre o desenvolvimento ‘econômico’ e ‘social’ e, com elas, a das formas de lidar com a desigualdade social, através de uma perspectiva para além do mercado. Muitos avanços foram conseguidos. Sobre este período, que seria a mais recente estação de um longo percurso, poderiam surgir questões. Entre outras tantas, tais como: que sendas alternativas puderam ou não ter sido abertas em nossa longa herança? Até que ponto reiteramos onde poderíamos ter diferido? Que papel jogaram ou deixaram de jogar as ‘forças do trabalho’ neste processo? Fomos eficazes em produzir bases sólidas para o enfraquecimento dos pilares de sustentação da desigualdade? Seja lá como for, a questão da persistência de nossa desigualdade está e, pelo visto, estará ainda na ordem do dia. E o livro de Cardoso se impõe, nesta quadra, como leitura indispensável.

Marco Aurélio Santana – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ). E-mail: [email protected]

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Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir – RANIERI (TES)

RANIERI, Jesus. Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, 176 p. Resenha de: MARTINS, Maurício Vieira. Revista Trabalho/ Educação e Saúde, v.11, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2013.

A relação existente entre o pensamento de Marx e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os estudiosos do marxismo. Dentre as várias posições que se delinearam a este respeito, podemos citar a de Louis Althusser, que entendia que o corpus teórico marxiano deveria ser expurgado do pensamento de Hegel, para que ele encontrasse finalmente sua cientificidade mais genuína. Na outra ponta do debate (embora sem polemizar explicitamente com Althusser), temos a contribuição de György Lukács, que afirmava que, apesar de suas incontornáveis diferenças frente a Hegel, Marx absorveu de modo crítico alguns temas presentes no mestre de Jena.

O livro de Jesus Ranieri, Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria social do devir se filia claramente a esta última tendência. Já na Apresentação de seu trabalho, Ranieri é transparente ao reconhecer que sua leitura de Hegel deve muito às indicações presentes no Lukács tardio, especialmente em sua grande obra da maturidade, Para uma ontologia do ser social (que dedica um extenso capítulo precisamente a um balanço do legado hegeliano para o marxismo).

Sendo assim, Ranieri visa sobretudo recuperar aqueles elementos presentes em Hegel que se mostrem fecundos para uma teoria social de escopo mais amplo, ainda que para isso seja preciso proceder a uma crítica dos aspectos mistificadores igualmente presentes no filósofo alemão. Com este intuito, Trabalho e dialética enfatiza a compreensão hegeliana do mundo como uma processualidade permanente, que não se deixa capturar por uma visão estática da realidade (visão que ainda marcaria mesmo um filósofo tão proeminente como Kant). Com efeito, em Hegel, “a medida da reflexão é a certeza de que o mundo muda e de que a mudança exige um método capaz de acompanhar o movimento de mutação que, em si mesmo, já representa um universo de conexões” (p. 70).

Se é verdade que o primado do devir sobre o ser já havia sido afirmado há séculos por um filósofo como Heráclito, é igualmente verdadeiro que Hegel extrai consequências de fundo de tal compreensão, que se corporificam em sua abordagem propriamente dialética. Destarte, para poder formular adequadamente o devir mundano, é necessário um método que se liberte das antinomias excludentes dentro das quais se movia a tradição filosófica anterior, como essência e aparência, forma e conteúdo, necessidade e acaso etc. Libertação que vem a ser, aliás, outra das grandes contribuições de Hegel enfatizadas por Ranieri, como mostra sua análise das determinações-da-reflexão (Reflexionsbestimmungen, categorias desenvolvidas na Ciência da Lógica hegeliana). Muito resumidamente falando, tais determinações nos mostram o trânsito contínuo entre aquelas mencionadas categorias que haviam sido formuladas de modo dicotômico pela tradição filosófica anterior. Tendo sua origem mais remota no esforço de apreensão do mundo pela consciência sensível, as determinações-da-reflexão, quando corretamente apreendidas, findam por mostrar sua referência ao ‘outro’ do fenômeno isolado: “o conteúdo da ‘consciência sensível’ devia ser, em princípio, o puro singular, mas ele (o conteúdo) é dialético, já que força o singular, no seu excluir de si o outro, a referir-se ao outro, depender dele e, assim, ir além de si mesmo.” (p. 54).

Além da compreensão da realidade como um devir permanente e da correta visualização das determinações-da-reflexão, há que se destacar, ainda, o pensamento de Hegel sobre o trabalho humano como extremamente fecundo para as bases de uma teoria social consistente. De fato, Hegel foi um dos primeiros filósofos a mostrar a descontinuidade introduzida pelo trabalho no mundo natural. Nas argutas palavras do próprio filósofo: “…a ferramenta não possui ainda nela mesma a atividade. É coisa inerte, não retorna [zurückkehren] a si mesma. Obrigo-me a trabalhar com ela. Tenho a astúcia [List] de introduzi-la entre mim e a coisidade externa, a fim de poupar-me e de suprir com ela minha determinação e utilizá-la” (p. 80).

A partir destas indicações, Ranieri mostra que o trabalho humano introduz categorias de finalidade num universo que era antes dominado apenas por relações causais. Este é o núcleo fecundo para uma teorização acerca do ser social, que encontra no trabalho o protótipo mais antigo, incessantemente modificado, de sua constituição. Porém, prossegue Ranieri, o erro de Hegel foi ter projetado a teleologia de fato existente no trabalho para a história como um todo, o que o levou a acreditar numa espécie de teodiceia que supõe que existem finalidades ocultas no transcorrer da história humana: “o idealismo errou ao não compreender que a teleologia (a posição conforme a fins) não existe em outra esfera a não ser aquela do trabalho humano” (p. 116).

O texto aborda também a célebre dialética do senhor e do escravo, momento em que fica evidente o talento de Hegel em mostrar a tensão reflexionante dos papéis inicialmente assumidos por cada um destes personagens: apesar do exercício de sua dominação, o senhor passa a depender cada vez mais do trabalho do escravo para poder se relacionar com a natureza (p. 110). Já nos capítulos finais de seu livro, Ranieri discute como Marx simultaneamente se apropriou e transformou alguns dos mencionados núcleos temáticos desenvolvidos por Hegel.

Apenas como exemplo de tal procedimento, destaquese que o método de exposição marxiano – objeto de tantas controvérsias entre os especialistas – tem inegavelmente uma dívida com Hegel, mas dele se diferencia, já que: “para Marx, expor corretamente significa fundar, para a qualificação correta dos elementos componentes do objeto, uma teoria das abstrações racionais” (p. 147). Aqui, o primado cabe ao esforço de captura das determinações singulares do objeto que está sob análise (e não mais à sua referência mediatizada ao Espírito, princípio motor e culminância da dialética hegeliana). É a partir deste entendimento que se torna possível visualizar, por exemplo, as características do trabalho abstrato – que se desenvolve plenamente apenas na sociedade capitalista – como categoria que se articula ao capital, passando a presidir a lógica contraditória de desenvolvimento desta mesma sociedade. É por esta razão que o “método marxiano leva em conta que a determinação última da realidade é propriamente uma contradição real e não simplesmente um movimento lógico de autoconstituição do conceito (…), tal como é concebida a dialética em Hegel.” (p. 155).

Por fim, cabe o registro acerca de uma questão conceitual quase ausente na bemvinda contribuição de Ranieri. Referimonos ao que Marx certa vez nomeou como o “aspecto negativo do trabalho”, intimamente entrelaçado à sua positividade. Numa passagem decisiva dos Manuscritos de 1844, mesmo reconhecendo a grandeza da teorização de Hegel, Marx nos alerta: “Hegel se coloca no ponto de vista da Economia Política moderna. Concebe o trabalho como a essência do homem, que se prova a si mesma; ele só vê o aspecto positivo do trabalho, não seu negativo” (Marx, 1985, p. 190).1 Ora, este último aspecto está estruturalmente ligado ao estranhamento vigente na sociedade capitalista, ao esvaziamento das capacidades humanas em favor do capital. Assim é que Marx formula o trabalho em sua bivalência: se ele é o fundamento do processo do tornarshomem (destacando-o de sua determinação natural), é também, e ao mesmo tempo, fonte cotidiana de alienação e de mortificação dos trabalhadores. Garimpando mais nos referidos Manuscritos, veremos que há um conceito mais amplo que o de trabalho (Arbeit), que vem a ser o de atividade (Tätigkeit) consciente. E Marx visa claramente expandir esta dimensão da atividade consciente; daí sua insatisfação com o fato de que “até agora toda atividade humana era trabalho, isto é, indústria, atividade estranhada de si mesma” (Marx, 1985, p. 151). Reencontramos esta crítica à unilateralidade do trabalho também em ideologialemã, quando Marx sustenta, sem meias palavras, que a “revolução comunista se dirige contra o modda atividade até nossos dias, elimina o trabalho…”. É apenas neste momento que ocorre a “transformação do trabalho em autoatividade” (Marx e Engels, 2009, p. 56 e p. 59).2 Ora, tais afirmações seriam ininteligíveis se não levássemos em conta as considerações anteriores, referentes à crítica marxiana à negatividade também presente no trabalho. Entendemos que o texto de J. Ranieri se beneficiaria de um desenvolvimento conceitual desta contraditoriedade real. Vale lembrar que, no campo marxista contemporâneo, autores ilustres como Moishe Postone chegam a sustentar que “a análise marxiana do capitalismo (…), não é levada a cabo do ponto de vista do trabalho, mas se baseia mais propriamente numa crítica ao trabalho no capitalismo” (Postone, 2006, p. 59).3

Como se vê, neste ano de 2013 (que marca os 130 anos do falecimento de Marx), o pensamento do filósofo continua nos interpelando nas mais variadas dimensões de nossa experiência mundana. O texto de Jesus Ranieri ilustra de forma eloquente a fecundidade de uma obra.

Notas

1 Marx, Karl. Manuscritos: economía y filosofía. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 190, grifos nossos. Notemos que o próprio Jesus Ranieri traduziu para o português estes densos Manuscritos, aqui publicados pela Boitempo Editorial.

2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 56 e p. 109, respectivamente.

3 Postone, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación social. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 59. Não concordamos com a íntegra do argumento de Postone, mas ele é relevante para o ponto aqui sob exame.

Maurício Vieira Martins – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? – SOUZA (TES)

SOUZA, Jessé de. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?. Editora UFMG, 2010, 354 p. Resenha de: TEIXEIRA, Marcia de Oliveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.2, maio/ago. 2013.

Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
(Maria, Maria – Milton Nascimento)

Economistas e sociólogos debatem a emergência de uma nova fração da classe média no Brasil; para muitos, efeito das políticas de transferência de renda e acesso ao microcrédito, enquanto para outros, da estabilidade econômica. A contribuição de Jessé de Souza e da equipe do Centro de Estudos sobre Desigualdade ao debate é parte de um projeto de pesquisa de maior fôlego. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?, somado a outras publicações, é uma tentativa de construir uma teoria de classes sociais para o Brasil contemporâneo. Para tanto, destaca a reprodução dos privilégios de classes e das desigualdades sociais duráveis, as dimensões simbólicas e não-econômicas constituintes da reprodução das classes, bem como a dinâmica entre relações fordistas e pós-fordistas em uma sociedade periférica.

O quadro interpretativo de Batalhadores foi construído no diálogo com Max Weber, Pierre Bourdieu, Bernard Lahire e Richard Senneth. Ele enfatiza o passado incorporado dos atores individuais e sua posição na compreensão prática do mundo, as disposições construídas e operadas em diferentes situações de vida; os contextos de socialização e de atuação significativos na trajetória de vida dos indivíduos de determinada classe. O diálogo ácido com Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Roberto DaMatta, aprofundado em outras publicações, não foi abandonado. O intuito é criticar as interpretações do Brasil assentadas na negatividade da herança ibérica, no personalismo, no patrimonialismo e na caracterização de uma modernidade incompleta.

Há um diálogo secundário com a produção etno-metodológica, com as concepções da teoria ancorada e com o interacionismo informando o desenho da pesquisa, a prática de campo e a análise das concepções de mundo formadas e operadas pelos batalhadores. Especificamente com relação à teoria ancorada, destaco o zelo pela empiria.

Um aspecto valorizado por Jessé de Souza (para contrapor-se à ideia da nova classe média no Brasil) é o fato de Batalhadores resultar de uma extensa pesquisa de campo. Entretanto, em nenhum momento o leitor conhece as condições de realização da pesquisa de campo, tampouco sobre os instrumentos de pesquisa. Pouco foi dito sobre a escolha das regiões, das cidades e sobre os entrevistados. A descrição das condições de realização da pesquisa fortalece o argumento, além de ser tópico obrigatório em face do quadro teórico-metodológico utilizado.

Ao contrário dos economistas, para Jessé de Souza as análises centradas na renda não permitem compreender os processos constitutivos das ‘classes sociais’ e suas fronteiras. Ele parte da economia política, privilegiando as dinâmicas entre as relações de produção e as classes sociais para construção de sua teoria sobre classes no Brasil. Essa opção é essencial para entendermos porque batalhadores não formam nova fração da classe média.

Classes sociais são constituídas por aportes ideológicos, éticos, morais, educacionais, compreendidos pela noção de cultura. Mas não é possível gerar uma teoria do processo de produção do mundo social (e sua compreensão pelos indivíduos) e da formação de classes centrada na matriz cultural. O desafio de Jessé de Souza é construir uma análise não hierárquica capaz de considerar os diversos fluxos entre as dimensões cultural e material.

Batalhadores distinguem-se, e, portanto, autorizam Jessé de Souza a reivindicar sua condição de classe, pela “pequena incorporação dos capitais impessoais mais importantes da sociedade moderna, capital econômico e capital cultural” (p. 327). A burguesia define-se pela reprodução de ambos, enquanto a classe média pela reprodução do capital cultural.

Como ‘renda’ não é um elemento delimitador de ‘classe’, observamos uma enorme diversidade entre os indivíduos caracterizados como ‘batalhadores’. Há ‘batalhadores empreendedores’ constituídos por pequenos comerciantes (lojinhas de garagem, barracas de rua ou em feiras, lojinhas de bairro e comunidades populares), donos de indústrias de pequeno porte (confecções, serralheria, carpintaria) e pequenos agricultores. De modo geral, são ex-trabalhadores rurais, ex-empregados do comércio ou do setor industrial, os quais perderam seu emprego por demissão ou fechamento das empresas. No caso das mulheres, o abandono dos maridos as transforma em única fonte de geração de renda da família. Há também os batalhadores ‘assalariados’ dedicados ao trabalho em pequenas e médias indústrias, vendedores, técnicos, profissionais do setor de serviços como telemarketing.

Jessé de Souza destaca mobilidade entre frações de classe e classes (batalhadores, empreendedores e ralé). Muitos depoimentos tratam de mudanças bruscas no nível de renda, acesso a trabalho permanente e a moradia. Mesmo os ‘batalhadores empreendedores’ não se afastam significativamente de situações de vulnerabilidade. Patrão ou empregado portam as mesmas marcas constitutivas da classe, a dinâmica das interações sociais, as visões de mundo e o modo de operá-lo e, principalmente, estão sujeitos às mesmas práticas de dominação do capital financeiro. O trabalho desempenha uma posição essencial na reprodução material e na concepção de mundo do batalhador.

É preciso compreender o mundo que autoriza o ‘batalhador’ a se reproduzir como classe. Para Jessé, não se trata do mundo dominado pelas sobrevivências coloniais ou por arranjos pré-capitalistas, tampouco pelo fordismo. Ao contrário, há uma correlação entre a emergência dos batalhadores e o processo de transição para o capitalismo financeiro. Processo de transição situado na periferia, na qual a produção fordista foi severamente excludente, mantendo parte da força de trabalho à margem. Ele explica assim o grande impulso que os batalhadores conheceram nos últimos anos. O mundo social dos batalhadores é formado por trabalhos flexíveis, pela provisoriedade de estratégias de vida, pela necessidade de adaptar-se rapidamente às condições de trabalho mutantes e a mercados reconfigurados por tendências da estação. Os batalhadores são efeito do processo de incorporação de trabalhadores pobres excluídos da sociedade fordista às novas formas de organização do trabalho e da produção.

Os batalhadores asseguram inserção no mundo do trabalho do capitalismo financeiro (como proprietário de pequenos negócios e/ou empregados) pela constituição de um conjunto de disposições, entre outras, para disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo. Estamos lidando, por conseguinte, com uma classe social apta e pronta para trabalhar em jornadas extensas, em pequenos negócios realizados em ambiente improvisados, sem garantias e direitos trabalhistas; onde o dono e o empregado, em geral de uma mesma família, labutam lado a lado e estão sujeitos às mesmas condições de trabalho pouco salubres; onde as relações de trabalho e a produção são imprevisíveis, pois dependem de mercado de consumo de produtos sazonais, formados por consumidores de pequeno poder de compra, recentemente fortalecido pelos programas de transferência de renda, além da previdência social; onde muitos ‘patrões’ estão sujeitos a tornarem-se empregados pela escassez de créditos, mudanças bruscas no mercado de consumo, aumento da concorrência, ação da fiscalização. Digo que os batalhadores estão aptos e prontos porque possuem os conhecimentos práticos e intelectuais (disposição), além do potencial para desenvolvê-los, e admitem as condições do trabalho flexíveis. Eles (in)corporam essas condições como naturais, porque as relacionam com condições herdadas ou compreendem que por intermédio delas poderão assegurar para si e para sua família condições de vida mais dignas. Nos relatos, “condições de vida mais dignas” significam acesso permanente a trabalho, moradia, comida e educação. Os batalhadores não se afastam definitivamente de situações de vulnerabilidade, afastam-se apenas das mais extremas.

Para compreendermos a disposição para o trabalho dos batalhadores é preciso olhar com mais atenção os processos de construção e reprodução de concepção de mundo e das ‘disposições’. Jessé de Souza considera a religião como um dos elementos fundamentais na construção de mundo dos batalhadores e, nesse sentido, de sua reprodução como classe social no capitalismo periférico. A religião opera por intermédio das trajetórias exemplares (mescladas aos exemplos familiares); da valorização do trabalho árduo (‘trabalho duro’ no roçado, no pequeno comércio ou pequena oficina), no desenvolvimento e exercício de uma solidariedade com familiares, vizinhos e membros da congregação; na reprodução de uma concepção herdada de família; na valorização de atitudes em prol de uma vida melhor. Cabe aqui observar a conexão entre ‘vida melhor’ e futuro (inexistente na ralé). Para os batalhadores, projetar o futuro implica não voltar a viver situações de extrema vulnerabilidade. A concepção de mundo fruto da vivência religiosa (em uma ‘comunidade’ congregada em torno de uma igreja e seu pastor) associa-se às percepções forjadas na vivência prática em diferentes situações de vida regulada pelo trabalho.

A formação das dimensões éticas e morais essenciais ao trabalho duro nos batalhadores com origens rurais, notadamente no nordeste, estão imbricadas com ações de entidades ligadas à Igreja Católica. Nas periferias urbanas e, mais recentemente na região rural, as religiões pentecostais dominam. De fato, Jessé de Souza chama atenção para como religiões pentecostais, desde sua origem nos Estados Unidos da América na primeira metade do século XX, capturaram as demandas sociais e religiosas de migrantes do campo, trabalhadores da pequena indústria e do comércio das periferias urbanas.

Outro elemento constitutivo da concepção e interações sociais dos batalhadores é a família. Família e relações familiares que transcendem o modelo pais e filhos, cuja lógica de estruturação é o direito sucessório na propriedade do capital. Trata-se de famílias com configurações bastante diversas, mas firmemente amarradas pela valorização do ‘trabalho duro’, do compromisso com a manutenção da reprodutibilidade da própria família, o estímulo para investir na melhoria da educação, mas sempre conciliada com o trabalho.

A conclusão decepciona, mesmo considerando que o volume de dados exige prazos mais dilatados (necessidade que não é acompanhada pelo imperativo da publicação mais célere dos resultados). Mas ao final de 248 páginas de apresentação e análise de material empírico, o leitor espera mais do que uma retomada à crítica do livro A classe média brasileira: ambição, valores e projetos de sociedade de Bolivar Lamounier e Amaury de Souza. Esse livro é importante enquanto representativo de estudos comprometidos com ideologias de classes e partidos políticos. A crítica à incapacidade desses estudos colaborarem para a compreensão da dinâmica das classes sociais no Brasil na periferia do capitalismo financeiro era o ponto de partida de Batalhadores. A conclusão deveria retomar exatamente o projeto de produção de uma teoria original, apresentado na introdução, agora à luz dos dados sistematizados.

O trabalho de Jessé de Souza tem o mérito de preservar a complexidade das relações sociais e das interações entre classes (simplificadas ou desconsideradas por outros estudos). Mas é necessário aprofundar a análise dos fluxos e fronteiras entre a classe média, os batalhadores e a ralé; bem como ampliar os estudos empíricos para testar a capacidade explicativa do modelo proposto por Jessé de Souza. Será que ele seria diverso em espaços onde encontramos relações de produção fordistas e dinâmicas econômicas diferentes das encontradas no Norte, Nordeste e mesmo na zona da mata mineira?

Marcia de Oliveira Teixeira – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana – RIBEIRO (TES)

RIBEIRO, Marlene. Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação humana. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 456 p. Resenha de: PREVITALI, Fabiane Santana. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.1,  jan./abr. 2013.

Importante obra escrita pela professora Marlene Ribeiro, resultado de seus estudos de pós-doutoramento realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana em 2008, sob a supervisão do professor Gaudêncio Frigotto. Marlene Ribeiro é graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (1973), mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (1987), doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995). Atualmente é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), na Faculdade de Educação, tendo já desenvolvido trabalhos ligados à docência e à pesquisa na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL).

A obra Movimento camponês, trabalho e educação – liberdade, autonomia, emancipação: princípios/fins da formação resulta não apenas de um denso esforço teórico, mas também da experiência política da autora como militante junto aos movimentos sociais populares por 19 anos. Essa combinação entre experiência prática e acuidade teórica permitiu à autora oferecer uma contribuição de inestimável importância sobre os movimentos sociais populares rurais/do campo e de seus projetos educacionais.

O livro está dividido em seis capítulos ao longo dos quais a autora analisa de maneira instigante a história e a organização dos movimentos sociais no Brasil, tendo como foco de discussão os movimentos sociais populares rurais/do campo, suas lutas e reivindicações, avanços e retrocessos enquanto sujeitos políticos coletivos de um projeto de educação fundado na liberdade, autonomia e na emancipação humana. Em suas pesquisas, a autora destaca as experiências pedagógicas realizadas pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), as Casas Familiares Rurais (CFRs), existentes em todo o país, os diferentes cursos oferecidos pela Fundação de Ensino e Pesquisa da Região Celeiro (Fundep) e pelo Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), no Rio Grande do Sul, e pela Escola de Formação Florestan Fernandes, em Guaracena, no estado de São Paulo. Apesar de a discussão centrar-se nos movimentos sociais populares rurais/do campo no Brasil, desde o século XIX até os dias atuais, a autora lança luzes também sobre as experiências histórico-concretas do movimento camponês em países como o México, a Rússia, a França, a Inglaterra e a Alemanha.

No capítulo primeiro, cujo título é “Sujeitos sociais e educação popular”, a autora analisa os conceitos de movimentos sociais populares, educação rural/do campo e educação popular a fim de identificar os movimentos sociais enquanto sujeitos sociais históricos propositores de um projeto de educação que se contrapõe “ao modelo civilizatório de escola, imposto pela modernidade” (p. 28).

No capítulo segundo, “Movimento camponês é ou não sujeito histórico?”, a autora envereda para o exame crítico das noções de liberdade, autonomia e emancipação, as quais estão incorporadas às experiências pedagógicas dos movimentos sociais populares rurais/do campo. Aqui a autora destaca as contradições presentes na realidade rural, na qual há “situações distintas de trabalho e propriedade que explicam interesses e ideologias diferentes” (p. 75).

O terceiro capítulo, intitulado “Educação rural/do campo: contradições”, traz a discussão da educação rural no conjunto das políticas públicas educacionais e, em contrapartida, as ações dos movimentos sociais populares rurais/do campo no sentido de garantir uma educação como princípio de cidadania, mas, ao mesmo tempo, reivindicar uma educação que contemple os interesses desses trabalhadores. Cabe aqui explicitar o conceito de meio rural no qual se pauta a autora: “conjunto de regiões e territórios em que as populações desenvolvem atividades diferentes, tais como: a agricultura, o artesanato, as indústrias pequenas e médias, o comércio, os serviços, a pecuária, a pesca, a mineração, a extração de recursos naturais e o turismo, entre outros” (p. 74).

No capítulo quatro, “Liberdade, autonomia, emancipação: uma construção histórica”, a autora explora os conceitos de liberdade, autonomia e emancipação por meio da retomada dos acontecimentos histórico-sociais de onde eles emergem, bem como das correntes de pensamento que os explicam, explicitando assim as visões de mundo e os posicionamentos de classes. Nesse sentido, a autora esclarece que a escolha dos autores examinados no capítulo, de Locke a Stuart Mill, passando por Kant, Hegel e Tocqueville, Marx e Engels, não foi aleatória, mas “visou responder às experiências pedagógicas dos tempos/espaços alternados de trabalho e educação” (p. 200).

A questão da relação trabalho-educação é dissecada no quinto capítulo, sob o título “Trabalho-educação no movimento camponês: origens e contradições”. A autora debruça-se sobre as origens, francesa e italiana, da pedagogia da alternância para em seguida analisar sua apropriação e recriação nas EFAs, nas CFRs, nos cursos oferecidos pela Fundep e pelo Iterra, destacando o processo de formação dessas organizações, bem como o papel desempenhado pela Igreja e pelo Estado.

A idéia de alternância, esclarece a autora, “compreende uma formação em tempo pleno com uma escolarização parcial” (p. 335). Enquanto método, a pedagogia da alternância articula, em tese, teoria e prática, “na medida em que se alteram situações de aprendizagem escolar com situações de trabalho produtivo, exige uma formação específica dos professores que as licenciaturas de um modo geral não oferecem” (p. 292). Destaca-se, portanto, que a característica fundante desse método é o “trabalho como princípio educativo de uma formação humana integral, que articula dialeticamente o trabalho produtivo ao ensino formal” (p. 293). Nesse sentido, a pedagogia da alternância vem sendo apropriada pelos diferentes movimentos sociais populares vinculados ou não à luta pela terra e também por diversas organizações sindicais de trabalhadores, explicitando “as divergências relacionadas aos projetos sociais que sustentam as experiências pedagógicas enfocadas” (p. 329).

Como exemplo dessa divergência, a autora evidencia a alternância entre escola e empresa, “tendo essa o significado dos tempos/espaços alternados entre ensino na escola e trabalho de estágio na empresa, com remuneração, porém sem amparo em direitos sociais” (p. 334), explicitando a divergência de interesses entre capital e trabalho, especialmente em um contexto marcado pelo desemprego. Outro elemento de destaque na argumentação da autora refere-se à formação dos trabalhadores assentados, vinculados ao Movimento dos Sem Terra (MST), uma vez que se trata da formação para permanência no campo sem que haja a garantia de posse da terra. Nesse contexto, “apesar do esforço realizado pelos movimentos sociais populares, buscando uma educação voltada para os seus interesses, essa formação é inócua se os jovens não dispuserem de terra para desenvolverem um trabalho e organizarem uma família” (p. 338).

O sexto e último capítulo da obra, “Liberdade, autonomia, emancipação – EFAs, CFRs, Fundep e Iterra”, tem como objeto a problematização da compreensão dos conceitos de liberdade, autonomia e emancipação pelos movimentos sociais populares rurais/do campo, especialmente no âmbito das EFAs, CFRs, do Fundep e do Iterra. De acordo com a autora, prima-se assim por ressaltar as práticas desenvolvidas nessas organizações, seus avanços e limites no seio da ordem capitalista. Para a autora, as EFAs e as CFRs apresentam diferenciais conceituais e metodológicos em relação ao Fundep e ao Iterra, uma vez que são inspirados por teorias pedagógicas distintas. No entanto, apesar das diferenças e para além delas, as práticas pedagógicas estão, segundo a autora, fundadas na crítica da apropriação privada da produção de bens materiais e culturais presente na sociedade capitalista. Assim, “esboços de um projeto de educação integral1 integram o projeto social dos movimentos sociais populares, sinalizando para uma sociedade em que as classes populares possam exercer a liberdade, ter autonomia em seus processos organizativos e conquistar a emancipação verdadeiramente humana” (p. 418). Apesar das diferenças teórico-metodológicas, a autora destaca a presença de Paulo Freire nas experiências de tempos/espaços alternados de trabalho agrícola e educação escolar realizadas pelas EFAs, CFRs, do Fundep e do Iterra.

Portanto, tratando de temas relevantes de forma instigante, o livro da professora Marlene Ribeiro é um dos mais qualificados e densos estudos sobre a relação trabalho-educação nos movimentos sociais rurais/do campo no Brasil atualmente, resultado de uma pesquisa rigorosa e de sólida análise. A autora demonstra com particular competência a sua tese: como a educação popular construída pelos movimentos sociais populares, em particular o movimento camponês, assume, como processualidade, uma possibilidade emancipatória2, isto é, um projeto coletivo de transformação social, para além das concepções de liberdade e de autonomia presentes no seio da sociedade burguesa.

Pela atualidade e importância do tema, esse livro é uma leitura indispensável aos estudiosos e todos os demais interessados em não somente compreender o processo social em curso mas também transformá-lo.

Notas

1 Grifos da autora.
2 Grifos nossos.

Fabiane Santana Previtali – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]

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A pesquisa em trabalho, educação e políticas educacionais – ARAUJO; RODRIGUES (TES)

ARAUJO, Ronaldo Marcos de Lima; RODRIGUES, Doriedson S. (Orgs.). A pesquisa em trabalho, educação e políticas educacionais. Campinas: Alínea, 2012. 188 p. Resenha de: TEODORO, Elinilza Guedes. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.11, n.1,  jan./abr. 2013.

O livro organizado por Ronaldo Marcos de Lima Araujo e Doriedson Rodrigues é uma coletânea de dez textos organicamente organizados e resultam de um colóquio de pesquisa realizado em abril de 2009 pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE), do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará.

O referido evento tomou como temática norteadora questões referentes à pesquisa em trabalho e educação, políticas educacionais e suas relações com a abordagem de pesquisa qualitativa e o materialismo histórico e dialético, chamando para essas discussões pesquisadores vinculados ao projeto Laborar – Laboratório em Rede de Políticas e Práticas de Formação do Trabalhador -, financiado pela Capes (Procad), e ao projeto As Práticas Formativas em Educação Profissional, financiado pelo CNPq.

As discussões ali travadas mostram que no âmbito das políticas educacionais na área de Trabalho e Educação duas perspectivas sociológicas as fundamentam, quais sejam: mercadológica e social e, sendo assim, os textos debatem questões especificas de estudo assumindo que a realidade social é tomada pelo que resulta das relações de produção presentes em nossa sociedade e pelos posicionamentos político-ideológicos de projeto societário que expressam. Contribuem ao final para melhor caracterização das investigações e estudos dentro da área de Trabalho e Educação, compreendendo políticas educacionais que fomentam práticas formativas emancipatórias e as que permitem a conformação de trabalhadores aos interesses do mercado.

No primeiro artigo, “Trabalho e formação profissional: desafios teórico metodológicos das comparações intranacionais”, Fernando Fidalgo destaca como principal desafio teórico-metodológico para as três pesquisas vinculadas ao Laborar, e seus respectivos grupos de pesquisa, o tratamento das peculiaridades produzidas em cada realidade local pela tendência a tratar as pesquisas de cunho crítico relativos a formação dos trabalhadores, apenas nos seus aspectos macrossociais. O texto contribui apresentando quatro dimensões a serem consideradas nos estudos que compõem o referido projeto que possibilitará a comparação entre eles e a consolidação de uma metodologia comparativa de realidades entre estados. Nesse sentido, o texto apresenta uma lista de 16 elementos balizadores aos estudos das políticas de gestão do trabalho e da formação profissional para possibilitar uma tipologia e finalmente apresenta o desafio de superar a visão binária de estudos dos sistemas públicos e privados, aproximando-se dos estudos de redes em sua complexidade e com as diversidades próprias da formação social em realidades distintas.

O segundo artigo “Demandas por qualificação profissional – Recife, segunda metade do século XIX”, de Ramon de Oliveira e Adriana Maria Paulo da Silva, trata das investigações no âmbito da História da Educação Profissional no estado de Pernambuco, em que objetiva analisar o perfil das demandas por qualificação profissional de trabalhadores e empregadores, ao mesmo tempo em que analisa a oferta de serviços de aprendizado de ofícios específicos, no recorte temporal que inicia na segunda metade do século XIX. A referida investigação também se situa no interior do projeto Laborar e tem como grande contribuição o aprofundamento dos aspectos teórico metodológicos no âmbito da pesquisa histórica em Trabalho e Educação, mais especificamente das demandas de qualificação profissional, possibilitando estudar e reconhecer a existência, e por vezes ausência delas, de diferentes políticas públicas de educação profissional.

Ana Waleska P. C. Mendonça, autora do terceiro artigo, “O ensino profissional no Brasil, contribuições das pesquisas sobre a história das instituições escolares”, enfatiza a renovada tradição de estudos sobre instituições escolares em países como Portugal, França e também Brasil e a quase ausência de estudos sobre escolas de ensino técnico ou profissional na França e também aqui. Para isso a autora recupera um estudo de Compére e Savoie (2005) e provoca com questões referentes ao motivo da ausência de tais estudos que muito contribui para pesquisas sobre história de instituições escolares na área de Trabalho e Educação. Tomando as referências ‘renovadas’, a autora afirma que dois grandes objetivos se colocam ao estudo da história de instituições escolares: evidenciar os aspectos organizacionais que definem o quadro educacional numa dada escola e identificar o modo diverso como os sujeitos dessa unidade escolar colocam em ação o programa institucional definido para ela. Nessa perspectiva, finaliza o texto com desafios que se colocam ao estudo historiográfico de modo geral e no campo do estudo de instituições escolares de educação profissional. Pode ajudar a enfrentar problemáticas que atravessam o debate sobre o ensino profissional, quais sejam: dimensão pluridimensional que requer o tratamento das relações da escola com seu entorno, consigo mesmo e com o poder central e lidar com a memória individual e coletiva para construir a memória institucional para alem da enumeração de fatos de modo descritivo.

“Apontamentos para o trabalho com documentos de política educacional” é o artigo de Olinda Evangelista e propõe elementos teórico-metodológicos para o estudo de fontes educacionais específicas: os documentos da política educacional, desde leis a documentos oficiosos, relatórios escolares, dados estatísticos, regulamentos, para dar alguns exemplos. A autora compõe suas considerações em três frentes: a posição do pesquisador em que aborda o sujeito pesquisador como produtor de conhecimento, a posição dos documentos que invariavelmente expressam determinações históricas a serem apreendidas pelo pesquisador e a posição da teoria que possibilita a mediação entre sujeito e realidade em estudo. O referido texto, por sua didática e clareza, contribui com jovens pesquisadores, pesquisadores em formação e mesmo pesquisadores experientes podem usufruir dos destaques apresentados pela autora em cada um das nuances presentes no exercício da pesquisa.

O quinto artigo “Trabalho e formação – crônica de uma relação política e epistemológica ambígua”, de José Alberto Correia, enfoca as relações entre experiência e formação com o objetivo de contribuir com a compreensão do trabalho de formação. Para isso, o autor discute a produção histórica de mudanças nas definições das relações entre experiência e formação, em seguida toma experiências de formação inovadoras para reequacionar as relações entre trabalho e formação e, finalmente, encerra o texto de forma não conclusiva, refletindo epistemologicamente sobre os processos de produção de saberes e possíveis alternativas.

“Ações em rede na educação, contribuições dos estudos do trabalho para análise de redes sociais” é o texto de Eneida Oto Shiroma. Apresenta resultados preliminares da pesquisa que estava desenvolvendo cujo objetivo era compreender os mecanismos pelos quais proposições internacionais são assimiladas e traduzidas no interior da escola e que evidenciou uma metodologia que possibilita visualizar articulações e relações entre global e local que muito significam para o estudo das mediações nas redes educacionais, pois são capazes de modificar e influenciar práticas, relações pessoais e gestão do trabalho docente no interior da escola.

O sétimo artigo “A pesquisa histórica em trabalho e educação”, de Maria Ciavatta, também trata resultados iniciais de uma pesquisa em andamento referente ao ‘pensar historicamente’, tratando questões referentes a como se elabora, no âmbito da pesquisa, a história da relação nominal entre Trabalho e Educação. Nesse sentido, a autora refuta as posições positivistas, a-históricas, generalistas e pós-modernas para reconstruir o real da relação entre trabalho e educação calcada nas referências marxianas para análise da realidade.

O texto seguinte “As pesquisas sobre instituições escolares: o método dialético marxista de investigação”, de autoria de Paolo Nosella e Ester Buffa, apresenta uma importante contribuição no tocante a referencial teórico e metodológico ao campo da historiografia de instituições escolares, ao apontarem que o estudo da totalidade histórica requer o uso do método dialético, pois ele permite aproximação do singular. Apresentam um balanço crítico dos estudos realizados desde 1950 até os dias atuais, as contribuições e características do método dialético e concluem reafirmando a defesa no investimento em estudos de instituições escolares conquanto apresentem percalços e possíveis perigos de desvios metodológicos, pois que esses estudos costumam mobilizar paixões que podem acender motivações para envolvimento em projetos de mudança social e elevação do nível de responsabilidade dos educadores por seus atos e gosto pelo estudo de história local e nacional.

O penúltimo texto do livro, “Trabalho e educação – o desafio para se construir uma política em rede para formação dos trabalhadores”, é de autoria de Gilmar Pereira da Silva. Levanta pontos relevantes a um trabalho de pesquisa em rede e os desafios que os pesquisadores terão que enfrentar. O autor descreve as bases em que os estudos estão acontecendo no âmbito do Projeto Laborar, que envolve a UFPE, A UFMG e UFPA, bem como as ênfases referentes ao estudo da educação de trabalhadores executado em cada uma dessas unidades e a diversidade metodológica necessária à execução do mesmo.

“O marxismo e a pesquisa qualitativa como referências para investigação sobre educação profissional” é o último texto do livro, de autoria de Ronaldo Marcos de Lima Araujo, que discute e combate uma ideia recorrente nos espaços acadêmicos da incompatibilidade entre pesquisa qualitativa e referencial marxista.

O livro representa, pois, uma importante obra no campo da metodologia de pesquisas sobre políticas de formação de trabalhadores sendo de interessante e proveitosa leitura porque trata as questões metodológicas por dentro dos relatos de estudos e experiências de pesquisadores distintos da área de Trabalho e Educação.

Elinilze Guedes Teodoro – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará, IFPA, Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]

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Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano – ORTEGA; ZORZANELLI (TES)

ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. 192 p. Resenha de: AMARAL, Jonathan Henriques do. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10 n. 3, p. 561-565, nov.2012/fev.2012.

Talvez não seja necessário possuir um conhecimento teórico amplo para perceber a importância que tem sido atribuída ao corpo na contemporaneidade. Em programas televisivos, revistas semanais ou pesquisas científicas, é possível constatar o papel central desempenhado pelo corpo em explicações sobre quem somos, quem podemos ser (sim, a ‘natureza’ corporal não é mais um limite) e como devemos administrar nossas vidas.

É justamente sobre essa importância do corpo que Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli dissertam nesse livro. As complexas relações entre ciência, corpo e saúde consistem no fio condutor que perpassa e une os quatro capítulos da obra. Escrito em linguagem acessível, mas sem prescindir da profundidade das informações apresentadas, o livro consiste em referência fundamental para quem se interessa pela abordagem das ciências humanas para a compreensão do corpo.

No primeiro capítulo, os autores apresentam um histórico das tecnologias de visualização do interior do corpo – desde o século XV até os dias de hoje. O desenvolvimento dessas tecnologias está relacionado à crença de que a visão seria um sentido dotado de objetividade, de modo que, por meio delas, seria supostamente possível ver o interior do corpo exatamente como ele é. Os autores chamam esse ideal de objetividade de ‘mito da transparência’. Contudo, para os autores, o corpo visualizado em seu interior é tudo menos transparente, pois sua complexidade foi acirrada pelos métodos que o tornaram mais visível. Se, por um lado, as tecnologias de visualização possibilitaram obter inúmeras informações acerca do funcionamento corporal, por outro, o corpo continua sendo um mistério, pois muitas destas informações são de difícil entendimento, e há muitas doenças e estados corporais que a ciência médica não consegue compreender.

Graças à crença na objetividade da visão, essas tecnologias têm desempenhado um papel central no diagnóstico de doenças e na produção de verdades científicas sobre o corpo e a saúde. No entanto, as tecnologias de visualização não prescindem do olhar treinado do especialista, e este olhar sempre envolve uma interpretação, a qual nunca é neutra, mas assentada em determinados pressupostos. Por exemplo, as imagens obtidas por neuroimageamento – amplamente difundidas nos meios de comunicação – não consistem em fotografias de cérebros reais, mas na reconstituição de parâmetros estatísticos e matemáticos.

Os autores não deixam de reconhecer os avanços proporcionados pelas tecnologias de visualização para o diagnóstico e tratamento de problemas de saúde, de modo que elas não são, de forma alguma, dispensáveis. No entanto, Ortega e Zorzanelli criticam a abordagem estritamente visual do corpo, em detrimento da compreensão de aspectos subjetivos – que também estão relacionados a doenças, mas não podem ser visualizados por nenhuma tecnologia.

O segundo capítulo inicia com uma reflexão sobre uma mudança fundamental ocorrida na forma de compreender a subjetividade: a ideia de um sujeito habitado por um profundo espaço interior, no qual se encontrariam as explicações para as características individuais, vem dando lugar a uma concepção de subjetividade compreendida em termos corporais e biomédicos, a partir dos quais são explicados nossos comportamentos, nosso caráter, dentre outras características.

O corpo não esconde mais uma identidade interior: ele é a própria identidade. Cada vez mais os indivíduos têm criado suas identidades sociais a partir de critérios baseados no corpo e na saúde, a tal ponto que até mesmo a cidadania se tornou ‘biológica’, conforme expressão dos próprios autores: indivíduos que compartilhem determinadas condições corporais se reúnem para reivindicar tratamentos médicos, acesso a medicamentos e outros serviços. Essa centralidade do corpo na construção da identidade explica por que ele tem sido alvo de constantes intervenções, tanto em sua superfície (através de cirurgias plásticas, dietas, exercícios, tatuagens, dentre outras práticas) quanto em seu interior (que é visualizado em busca de tratamentos médicos).

Termos biomédicos têm sido amplamente difundidos pelos meios de comunicação, integrando- se ao vocabulário popular e sendo utilizados na forma como os indivíduos compreendem e descrevem a si mesmos. A avaliação moral de um indivíduo também se dá a partir dos cuidados que ele toma (ou não) com o corpo e a saúde, de modo que fumantes, obesos, sedentários, dentre outros ‘desviantes’, se tornam objeto de críticas: o fracasso em atingir e/ou manter ideais corporais e de saúde é visto como fraqueza de vontade.

O gerenciamento de riscos vem assumindo grande importância. ‘Saúde’ não é mais sinônimo de ausência de doenças, mas potencialização de estados saudáveis e prevenção de possíveis problemas, através da realização de exames, tratamentos preventivos, dentre outros recursos.

Os conhecimentos da genética, por exemplo, possibilitam averiguar a probabilidade de desenvolvimento de determinadas doenças para, assim, controlá-las. Portanto, a biologia não é mais destino, pois é possível agir sobre o corpo no presente para evitar problemas futuros.

As explicações etiológicas atuais são baseadas unicamente no corpo, como se uma doença tivesse apenas causas orgânicas. O cérebro é um órgão que vem recebendo destaque nessas explicações, e é sobre este destaque que os autores falam no terceiro capítulo. Os seguintes fatores podem explicar o atual prestígio do cérebro: a ascensão de explicações neurocientíficas para perturbações comportamentais e mentais; o desenvolvimento de neuroimagens e seu poder de persuasão perante o público; e a extensão das preocupações das neurociências aos comportamentos morais e sociais.

É nesse contexto que emerge o chamado ‘sujeito cerebral’ – uma nova figura antropológica que se refere a discursos, práticas, formas de pensar sobre si e o outro que partem do pressuposto de que o cérebro é o único órgão necessário para definir o que alguém é. Em outras palavras, é como se o indivíduo fosse o seu próprio cérebro, havendo uma equalização entre a condição de ter um cérebro e ser alguém.

Cada vez mais o ser humano vem sendo definido pela ‘cerebridade’, conforme expressão dos próprios autores. O trocadilho com ‘celebridade’ parece ter sido intencional, pois o destaque que o cérebro vem recebendo, tanto nas neurociências quanto na cultura popular, realmente tem transformado este órgão em uma celebridade.

O sujeito cerebral não se constitui como uma entidade autônoma, que teria vida própria e exerceria efeitos sobre as coisas. O conceito se refere a discursos, formas de pensar, manifestações práticas e teóricas que pressupõem uma visão específica sobre o ser humano, baseada estritamente no cérebro. Essa visão está presente, por exemplo, em debates sobre morte cerebral; em concepções acerca de comportamentos, doenças e experiências; e no surgimento de novas áreas do saber, situadas na convergência entre as ciências humanas e as neurociências, como a neuroeducação e a neuropsicanálise.

Em linhas gerais, a neuroeducação parte do princípio de que a aprendizagem pode ser aprimorada pelo conhecimento de suas bases neurobiológicas. Uma conclusão problemática que se pode inferir dessa premissa é a de que o cérebro seria o único elemento em jogo nos processos de aprendizagem. Já a neuropsicanálise visa à reconciliação entre perspectivas psicanalíticas e neurológicas, buscando obter fundamentação científica para o conhecimento psicanalítico.

Para os autores, não se pode simplesmente descartar o conhecimento neurocientífico na compreensão do ser humano. As neurociências trouxeram, por exemplo, contribuições relevantes para o aprimoramento da aprendizagem de pessoas portadoras de necessidades especiais. O que os autores criticam é a redução do ser humano ao cérebro, visto que há outros fatores envolvidos em nossa constituição enquanto sujeitos.

O capítulo quatro tem como foco as chamadas síndromes funcionais – classificação descritiva que se refere a um conjunto de sintomas corporais que não possuem causas orgânicas.

Uma vez que essas síndromes não podem ser diagnosticadas objetivamente, elas ocupam um status marginal, como se fossem menos importantes ou legítimas por não apresentarem localização precisa no corpo, passível de ser visualizada por tecnologias médicas. Convém lembrar que essa ‘ilegitimidade’ deve ser compreendida em relação a determinados parâmetros, segundo os quais uma doença ‘verdadeira’ deve possuir explicações biológicas e ser atestável por exames, enquadrando-se em diagnósticos ‘objetivos’. Contudo, o fato de uma doença não possuir fundamento biológico não significa que ela não exista, pois pode ser causada por fatores psicológicos e socioculturais.

Graças a essa valorização do conhecimento médico, têm surgido grupos de portadores de determinadas patologias que ‘lutam’ em prol de explicações biológicas para suas doenças, de modo que elas sejam consideradas ‘reais’. Uma das formas de atuação desses grupos é a arrecadação de recursos para financiamento de pesquisas científicas, que descubram as ‘verdadeiras’ causas (isto é, causas biológicas) de suas patologias. As tecnologias informacionais desempenham um papel importante nesse tipo de ativismo, pois possibilitam a aproximação de indivíduos localizados em contextos distintos e o acesso a informações médicas.

Em suma, o livro permite a elaboração de questionamentos sobre a importância que tem sido atribuída ao corpo e à ciência médica.

Utilizando argumentação consistente, os autores demonstram os limites de uma compreensão estritamente biológica dos fenômenos que envolvem o corpo humano. Ora, se o corpo não responde a certas perguntas que a ciência lhe faz, talvez as perguntas a serem feitas sejam outras, envolvendo outros fatores que não os biológicos.

Jonathan Henriques do AmaralUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: [email protected]>

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Filosofia da práxis e didática da educação profissional – ARAUJO; RODRIGUES (TES)

ARAUJO, Ronaldo M. de Lima; RODRIGUES, Doriedson S. (Orgs.). Filosofia da práxis e didática da educação profissional. Campinas, Autores Associados, 2011, 148 p. Resenha de: PORTO JÚNIOR, Manoel José. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10 n. 3, p. 561-565, nov.2012/fev.2012.

Este livro é constituído de cinco artigos apresentados no Seminário “A Pedagogia da Práxis e a Didática da Educação Profissional”, promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE) da Universidade Federal do Pará (UFPA). O prefácio é de Gaudêncio Frigotto e, como anuncia este autor: Em seu conjunto, os textos trazem uma contribuição original ao pensamento educacional brasileiro no âmbito da educação profissional, contrapondo-se não só à tradição liberal e neoliberal que dominam na teoria e na prática, mas também a tendências reducionistas ou academicistas oriundas de uma determinada leitura na tradição marxista. (p. V) O primeiro artigo, intitulado “Referências sobre práticas formativas em educação profissional: o velho travestido de novo ante o efetivamente novo” – de Ronaldo M. de Lima Araújo e Doriedson S. Rodrigues –, é dividido em duas partes, de acordo com os dois projetos antitéticos de formação dos trabalhadores, um deles sob a lógica do capital e o outro comprometido com a formação omnilateral.

Demonstrando a existência de um fio condutor entre as práticas pedagógicas do início da industrialização, distinguidas pelas séries metódicas ocupacionais, e a atual pedagogia das competências, o texto caracteriza o processo de formação vinculado ao capital como uma renovação do velho. Aponta as referências racionalista, individualista e neopragmatista da pedagogia das competências, identificando-a com a nova sociabilidade do capital. O ‘saber fazer’ passa a ser o discurso dominante dessa formação pragmática dos trabalhadores.

Na segunda parte, os autores apresentam bases para o projeto contra-hegemônico, percorrendo as elaborações de Marx, Pistrak, Gramsci, Saviani e Frigotto, revelando a evolução da noção de trabalho como princípio educativo. Defendem uma educação de base científica, que combata o espontaneísmo e o individualismo, baseada na solidariedade social, que reconheça o homem como um ser histórico.

Ciência e cultura são enfatizadas como constituintes de um projeto pedagógico que articula trabalho e educação, construindo uma educação omnilateral, crítica e articulada com a luta dos movimentos sociais.

O segundo artigo, escrito por Marise Ramos, intitula-se “Referências formativas sobre práticas em educação profissional: a perspectiva histórico-crítica como contra-hegemonia às novas pedagogias”. Partindo dos pressupostos da luta de classes e da disputa por hegemonia, a autora insere a escola como mediação importante na luta pela emancipação humana. Contudo, salienta que a liberdade plena só virá a partir da superação da alienação do trabalho no campo das relações produtivas.

Para defender a pedagogia histórico-crítica, a autora revisita as pedagogias da essência e da existência, propondo a superação de ambas de forma dialética. Na crítica a ambas, aponta a ausência de historicidade do ser humano e das relações sociais.

Ramos demonstra o caráter pragmático da pedagogia nova, em busca de uma adaptabilidade dos educandos, sob o lema do ‘aprender a aprender’. Para isso, analisa as obras de Dewey e de Piaget e demonstra que as bases da pedagogia das competências são o (neo)pragmatismo e o (neo)tecnicismo.

Por fim, propõe o currículo integrado, que tenha o trabalho como princípio educativo e que forme uma unidade entre conteúdo e método, baseando-se nas seguintes etapas: prática social; problematização; instrumentalização; catarse; e prática social. Trabalho, Ciência e Cultura são as categorias básicas para a compreensão do processo de produção moderno.

O terceiro artigo, escrito por Maria Rita N. S. Oliveira e intitulado “Organização curricular da educação profissional”, trata de fundamentos de uma pedagogia da práxis, além de apresentar uma reflexão sobre as políticas de Educação Profissional, com vistas à organização curricular do ensino técnico. Para tanto, entende o ensino como prática social, permeado pelo trabalho, pela relação dialética entre sujeito e estrutura social e pelos métodos de ensinar e aprender. Salienta a necessidade de problematizar a relação entre ensino e pesquisa, de modo a superar dialeticamente as abordagens conteudista e experimental.

Ao tratar das políticas para a Educação Profissional de nível médio, a autora refere-se à dualidade estrutural da educação, mostrando que, agora, essa dualidade foi transferida, também, para o ensino superior. Entende tal situação como uma adaptação à nova ordem globalizada e excludente do capital. A pedagogia das competências possui o caráter pedagógico de conformar e adaptar o trabalhador para a nova sociabilidade. Contudo, Oliveira percebe as contradições existentes nesse processo, verificando que nas escolas ocorre a recontextualização por hibridização do currículo, que abre a possibilidade de disputas a respeito dos rumos do ensino.

A categoria conciliação caracterizaria as políticas públicas para a Educação Profissional do primeiro governo Lula, que produziu o decreto n. 5.154/04. O ensino integrado é proposto como forma de uma educação tecnológica, baseada numa visão unitária e dialética que integra a formação geral e a específica. Contudo, no segundo mandato, o caráter de conciliação é reforçado pela categoria da adesão. Assim, surge a organização da Educação Profissional por eixos tecnológicos e é instituído o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de Nível Médio, que indicam uma recomposição, pela submissão aos ditames do mercado, da hegemonia do produtivismo nessa modalidade de educação.

O quarto artigo, escrito por Gilmar Pereira da Silva e intitulado “Trabalho e educação na Amazônia: uma experiência de educação dos trabalhadores”, analisa a trajetória do Projeto Vento Norte da Central Única de Trabalhadores (CUT), que integra a atuação da central em seis estados: Pará, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre.

Com base nas categorias que fundamentam tal projeto – educação, trabalho e desenvolvimento –, o autor apresenta uma visão militante e posicionada a respeito dos embates que ocorrem internamente na CUT. E defende uma atuação da central sindical para além daquela tradicional, alargando a interlocução com grupos que extrapolam a parcela sindicalizada da classe, bem como propondo parcerias com outros sujeitos da sociedade civil. Aponta a complexidade do projeto em uma região tão vasta e com enormes dificuldades de transporte. Ainda, utilizando o conceito de região, salienta as peculiaridades culturais dos povos amazônicos, que não podem ser negligenciadas em um projeto da classe trabalhadora.

Em seguida, o autor discorre sobre a metodologia de pesquisa militante que utiliza, enfatizando a experiência como construtora do saber.

É a partir do posicionamento que caracteriza a postura propositiva e negociadora assumida pela CUT como resultado das limitações históricas que Silva justifica as atuações da central na área da educação, utilizando-se de verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Também considera positiva sua atuação institucional, ocupando espaços no governo. Ao buscar referência em Gramsci, considera que a idéia de proposição não nega a revolução, como argumentam uma parcela de dirigentes da CUT, além de outros que já abandonaram a central.

O quinto e último artigo do livro, escrito por Justino de Souza Júnior, intitula-se “Educação profissional e luta de classes: um debate em torno da centralidade pedagógica do trabalho e do princípio educativo da práxis”. Como descrito no título, o autor polemiza a questão do trabalho como princípio educativo absoluto, buscando elevar a escola e a práxis político-educativa a uma condição de igualdade com aquele, baseando-se nas obras de Marx e Engels.

Na introdução, o autor discute a construção de um projeto histórico sob o ponto de vista do proletariado, definindo que tal projeto não existe a priori, mas, sendo resultado da contradição capital versus trabalho – que incita projetos antagônicos –, surge a partir da consciência dessa contradição adquirida a partir da experiência da luta de classes.

A polêmica estabelecida com o trabalho como princípio educativo, ao propor sua substituição pela práxis, decorre de sua definição de trabalho como trabalho abstrato. Para o autor, o trabalho abstrato (alienado, assalariado em sua forma histórica sob o capitalismo) produz, ao mesmo tempo, uma busca de formação/educação aligeirada e imediatista por parte da classe trabalhadora (lógica do capital) e, por outro lado, impõem relações sociais que favorecem sua identificação operária, em contraposição aos interesses do capital. A partir disso, considera que o trabalho alienado faz parte da proposta educativa emancipadora, ao lado da escola – com todos os limites de um espaço sob disputa desigual – e da práxis político-educativa desenvolvida e controlada pelos próprios trabalhadores. Essa última dimensão traria a possibilidade de tranformar a classe-em-si – potencialmente revolucionária – em classe-para-si – efetivamente revolucionária.

O autor problematiza a relação tempo de trabalho e tempo de não-trabalho na formação da omnilateralidade humana. Considera, então, que a categoria práxis político-educativa, abrangendo o momento laboral e o momento das demais atividades formativas sob uma lógica de classe, constitui-se como o princípio educativo mais potente. Assim, questiona a transferência do princípio ontológico do trabalho mecanicamente para a educação, como pretende a pedagogia centrada no trabalho.

O artigo tem como contribuição destacar os riscos de submissão do projeto educativo que se pretende emancipador à lógica estabelecida pelas relações de produção capitalistas. Contudo, entendo que suas críticas decorrem de definir o trabalho nas suas condições históricas atuais. Por outro lado, distanciar a práxis do trabalho, entendido ontologicamente, poderia supor que ela não possui nenhum grau de determinação pela forma de produção material da vida dos sujeitos. A práxis político-educativa da classe trabalhadora será totalmente consciente e emancipada? São boas as questões que surgem da leitura desse trabalho.

Por fim, o livro é um convite ao debate sobre a didática da Educação Profissional, socializando diferentes abordagens, sob o ponto de vista dos trabalhadores, a respeito dessa modalidade de educação.

Manoel José Porto Júnior – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense/Campus Pelotas, Pelotas, Brasil. E-mail: [email protected]

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Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea – MINAYO et al (TES)

MINAYO, Carlos; MACHADO, Jorge Mesquita Huert; PENA, Paulo Gilvane Lopes. (Orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011, 540 p. Resenha de: LEÃO, Luís Henrique da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10 n. 2, p. 347-351, jul./out.2012.

Esta obra oferece ao leitor uma revisão do campo da saúde do trabalhador no Brasil considerando suas dimensões teórico-conceituais e político-institucionais, bem como apresenta dilemas, desafios e perspectivas teóricas e práticas para a área diante das transformações econômicas e sociais da atualidade.

Nos últimos anos verifica-se um quadro de mudanças caracterizado por globalização dos mercados, reestruturação produtiva e incorporação de novas tecnologias, coexistindo com processos de trabalho tayloristas-fordistas, além da expansão do setor de serviços e do aumento de trabalho informal e exclusão social, ao lado dos problemas estruturais da formação social do Brasil.

Em face dessa conjuntura, que também modifica o perfil dos trabalhadores e a dinâmica do emprego/desemprego, o livro aborda questões essenciais para os horizontes científico e institucional da saúde do trabalhador.

Foi organizado por pesquisadores de significativa trajetória no surgimento e desenvolvimento desse campo no Brasil – Carlos Minayo Gomez, sociólogo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Jorge Mesquita Huet Machado, médico e tecnologista da Fiocruz e Paulo Gilvane Lopes Pena, médico e professor da Universidade Federal da Bahia – e reuniu pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa do país, favorecendo interlocuções férteis sobre o saber acumulado na área.

A origem do livro está relacionada às atividades do Grupo de Trabalho de Saúde do Trabalhador da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), que em 2007 realizou o I Simpósio Brasileiro de Saúde do Trabalhador (I Simbrast) no Rio de Janeiro, com a participação de vários pesquisadores. O objetivo foi fazer um balanço da área avaliando suas conquistas e avanços, assim como limitações e entraves. Ao mesmo tempo, buscou identificar carências e vislumbrar tendências à luz das transformações atuais.

Diversos textos apresentados e discutidos naquele encontro compõem o conteúdo deste livro, formando uma coletânea diversificada, dinâmica e coletiva que contribui para o processo de desenvolvimento desse campo no país.

O livro é iniciado, no texto introdutório, com uma reflexão crítica acerca da construção e trajetória da saúde do trabalhador, suas características, marco teórico-conceitual e impasses atuais. Minayo-Gomez problematiza a noção de ‘campo’ da saúde do trabalhador, com base nos pressupostos de Bourdieu, afirmando que esse conjunto de conhecimentos e práticas interdisciplinares, multiprofissionais e interinstitucionais nascido no contexto da redemocratização brasileira do início da década 1980, na verdade, se insere no campo das relações saúde-trabalho. Nele, a saúde do trabalhador, como perspectiva da saúde coletiva, supera dialeticamente concepções hegemônicas da medicina do trabalho e saúde ocupacional e noções reducionistas de causa e efeito ancoradas em modelos mono ou multicausais que relacionam doença a um agente ou a fatores de risco dos ambientes de trabalho. Além disto, considera o trabalhador como sujeito ativo nos processos e se baseia na compreensão da saúde como direito vinculando- se, como campo institucional, aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Sob essas premissas identificadoras do campo e a partir da noção de habitus, também de Bourdieu, Minayo-Gomez questiona se de fato existiria um grau de coesão teórica e prática entre os diversos pesquisadores e trabalhadores da área a ponto de compartilharem o mesmo paradigma. Ele constata que é preciso avançar bastante, pois o ‘campo’ está fragmentado e “não há uma verdadeira comunidade teórico-prática, com conceitos, categorias e planos de ação acordados, trabalhando com um único paradigma” (p. 32). Ao finalizar, ele chama a atenção para a necessidade de aprofundamento teórico, institucional e fortalecimento do movimento coletivo dos trabalhadores para a construção contínua da área.

O livro foi subdividido em quatro partes, iniciando com oito capítulos que analisam o estado das práticas com foco nas políticas públicas de prevenção e vigilância, e em algumas experiências institucionais.

Os autores discutem os desafios da política de saúde do trabalhador em direção ao desenvolvimento sustentável e a necessidade de considerar a categoria trabalho como determinante nos processos saúde-doença, apresentam os pressupostos da vigilância em saúde do trabalhador no contexto do SUS, avaliam a estratégia da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), mencionando fragilidades como o distanciamento do controle social e a baixa articulação intra e intersetorial.

São abordadas ainda a política nacional de humanização, a implantação das políticas setoriais de ergonomia, as lutas pelo controle do benzeno no Brasil e a potencialidade do conceito de território para análises e intervenções em saúde, trabalho e ambiente.

Esse conjunto de textos de caráter avaliativo e propositivo sinaliza diversos pontos críticos a serem superados para a efetiva institucionalização da saúde do trabalhador no Brasil e sugere caminhos para o fortalecimento das políticas e ações institucionais.

Os quatro capítulos da segunda parte tratam de outros fenômenos marcantes na realidade brasileira: os acidentes e os agravos à saúde relacionados ao trabalho. Questões cruciais são debatidas, tais como as dificuldades e possibilidades de dimensionamento do número de acidentes de trabalho no país, os impactos do modelo produtivo do agronegócio brasileiro à saúde e ao ambiente, e o desafio da caracterização das doenças dos trabalhadores.

Diante dos processos de saúde-produção-doença, que inclusive refletem históricos conflitos sociais brasileiros, os autores propõem a criação de meios para melhoria das condições de trabalho e vida dos trabalhadores, afirmando a necessidade de movimentos que “ponham fim à ideia de que mortes no trabalho, mesmo ‘no varejo’, sejam aceitáveis” (p. 223), e a importância de “problematizar a vida que se discute em saúde do trabalhador, porque alguns trabalhos, mesmo com todo o avanço tecnológico, permanecem matando lentamente, ou até abruptamente” (p. 290).

É pertinente destacar que uma importante contribuição dessas discussões foi a incorporação da temática ambiental, que trouxe para o debate a relação saúde, trabalho e ambiente, ampliando a principal categoria de análise da área – o processo de trabalho e sua relação com o processo saúde-doença – e demandando novas perspectivas de ação intersetorial e transversal com vistas à sustentabilidade ambiental e social.

Outras questões fundamentais para a saúde do trabalhador nas atuais conjunturas do mundo do trabalho são as relações entre subjetividade e trabalho. Crescem as demandas de sofrimentos psíquicos que desafiam a gestão, os profissionais do SUS e demais setores. Esse tema é aprofundado no terceiro bloco do livro. São seis capítulos que trazem reflexões críticas sobre o trabalho na atualidade com base em autores como Negri e Hardt, discutem criticamente sobre o ‘mental’ no trabalhar na perspectiva da ergologia, debatem as principais abordagens do campo da saúde mental e trabalho, como a psicodinâmica do trabalho, e expõem a diversidade de acepções dos construtos subjetividade e sofrimento na produção científica em saúde do trabalhador.

Essas discussões, embasadas em abordagens distintas e até mesmo conflitantes, enriquecem o campo da saúde do trabalhador e aprofundam conceitos para o processo de compreender intervir nas vivências dos trabalhadores.

Outras importantes contribuições podem ser percebidas na última parte, que em seus seis capítulos enfoca dimensões do trabalho em serviços e as questões de gênero. Neles são expostos os fundamentos teóricos sobre a noção de serviços e os desafios da saúde do trabalhador nesse contexto, as complexidades e condições de trabalho no setor saúde, as contribuições da ergologia para o campo da saúde pública, a divisão sexual do trabalho na educação e as características e desafios do trabalho em telemarketing.

Esses capítulos aprofundam as reflexões sobre a saúde do trabalhador diante da emergência de um novo paradigma produtivo centrado no setor terciário, que alterou o padrão industrial dos séculos XIX e XX. Fato relevante, pois historicamente o campo da saúde do trabalhador focalizou o paradigma industrial na academia e nas ações institucionais. As transformações dos processos e organização do trabalho do novo modelo calcado no setor de serviços desafiam a saúde do trabalhador e exigem inovadoras perspectivas de análise-intervenção. À luz dessas tendências, o livro realizou um importante trabalho de contextualização teórica e metodológica, contribuindo para a superação da ênfase dos estudos no setor secundário da economia que fora motivo de críticas ao campo.

Importante chamar a atenção também para o setor primário, uma vez que a agricultura é outra realidade desafiadora no Brasil. O país é um dos maiores exportadores de commodities, como soja, café e cana e apresenta sérios problemas no que tange às condições de vida e trabalho no mundo rural. Uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho e situações extremas como mortes por exaustão em canaviais são alguns exemplos. Os capítulos 6, 7 e 11, inclusive, apontam a necessidade de maior articulação acadêmica e política em prol da melhoria das condições nesse setor.

Percebe-se, portanto, que o livro analisa o trabalho em sua integralidade, considerando não apenas os riscos físicos, químicos, biológicos e mecânicos dos ambientes laborais, mas também as relações sociais. Além das condições de trabalho, a categoria organização do trabalho foi abordada, dando relevo às pressões, às hierarquias, às relações de poder, à divisão e conteúdo das tarefas nas novas dinâmicas produtivas do capitalismo.

Após expor os blocos temáticos do livro e suas contribuições, convém ainda ressaltar lacunas no campo da saúde do trabalhador, observadas pelos autores, que poderiam formar uma agenda de pesquisa. No âmbito acadêmico revela-se a falta de rigor conceitual sobre a relação do trabalho com o processo saúde-doença e ausência da interdisciplinaridade nas pesquisas, bem como a repetição de discursos simplificadores e a ênfase nos trabalhadores como objetos de estudo passivos. E, do ponto de vista institucional, verifica-se a falta de políticas integradas, poucas avaliações das ações, distanciamento entre pesquisadores, representantes de trabalhadores, gestores e formuladores de políticas, e dificuldades de um diagnóstico da real situação da classe trabalhadora.

A estas limitações soma-se a fragilidade do movimento de trabalhadores organizados como sujeitos ativos e impulsionadores das políticas. Refreou-se a sua atividade protagonista na definição de linhas de ação conformando uma atuação de ‘controle social’ dos governos, em instâncias instituídas como conselhos de saúde, comissões intersetoriais, entre outras.

Alguns capítulos abordam essa importante temática, demonstrando a necessidade de debater academicamente a questão da participação dos trabalhadores e fomentar maiores articulações para que esse movimento coletivo, ora fragilizado, seja protagonista das ações.

Lacunas como essas, segundo os organizadores do livro, “só serão superadas por meio da intensificação da articulação entre as análises teóricas, as propostas políticas e as ações de intervenção, conforme tem sido a tradição desse campo” (p. 21).

Em síntese, o livro traz reflexões cruciais sobre as principais questões da saúde do trabalhador, empreendidas com lucidez, perspicácia, rigor científico e compromisso com a transformação da realidade, marca histórica da área. Constitui-se como obra de referência para interessados no tema, oferecendo um ‘estado da arte’ das políticas e das práticas da saúde do trabalhador na atualidade, cuja relevância e pertinência são inegáveis. Os enriquecedores subsídios teórico-metodológicos trazidos contribuem para a solidez do campo e convoca pesquisadores, trabalhadores, técnicos e demais atores sociais a um renovado compromisso coletivo com um bem inalienável: a vida, a saúde dos trabalhadores.

Luís Henrique da Costa Leão Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. E-mail: [email protected]

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O agente comunitário de saúde: práticas educativas – MIALHE (TES)

MIALHE, Fábio Luiz (Org.). O agente comunitário de saúde: práticas educativas. Campinas: Editora Unicamp, 2011, 152 p. Resenha de: MOROSINI, Marcia Valéria Guimarães Cardoso. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10 n. 2, p. 347-351, jul./out.2012

O livro organizado por Fábio Luiz Mialhe é uma coletânea de cinco artigos que abrangem temas que transitam entre a organização do modelo de atenção no marco da atenção primária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), os desafios da educação em saúde, o trabalho educativo dos agentes comunitários de saúde (ACS) e o ensino em serviço.

No primeiro artigo, “A Saúde da Família no Brasil e seus agentes”, Samuel Jorge Moysés identifica e problematiza as tensões que perpassam a Estratégia Saúde da Família (ESF), localizada entre a perspectiva de reorientação do modelo de atenção e de conservação da segmentação sanitária, típica dos pacotes seletivos de atenção à saúde. Suas análises discutem os avanços obtidos com a implementação da ESF no âmbito do SUS, especialmente quanto a alguns indicadores de saúde, mas enfatizam as contradições ainda existentes no que diz respeito à organização do trabalho em saúde e às possibilidades do trabalho em equipe e da transformação das práticas de atenção à saúde, no sentido da integralidade e da equidade.

O segundo artigo, “Educação em Saúde no mundo contemporâneo”, de autoria de Fernando Lefèvre e AnaMaria Cavalcanti Lefèvre, debate a representação hegemônica de saúde, associada ao corpo doente, refletindo sobre os aspectos da sociedade contemporânea que reforçam o fenômeno da individualização da doença, especialmente a imperiosa orientação ao consumo crescentemente individualizado de mercadorias e serviços, no qual a assistência à saúde e seus produtos restauradores se inserem. Os autores propõem uma mudança de perspectiva na qual a saúde/doença possa ser vista como resultante de uma sociedade que estruturalmente gera adoecimento; criticam a hiperespecialização em curso no campo da saúde e defendem haver um conflito entre a lógica leiga e a lógica técnica/ sanitária na saúde, que poderia ser enfrentado por meio da pedagogia do diálogo de Paulo Freire, promovendo a interação dessas lógicas e a sua modificação mútua.

Helena Maria Scherlowisk Leal David, autora do terceiro artigo, “Educação em Saúde e o trabalho dos agentes comunitários de saúde”, recupera elementos importantes do trabalho do agente comunitário de saúde, no qual destaca a centralidade da dimensão pedagógica e da prática educativa. A autora ressalva, entretanto, referindo-se a Bornstein (2007) e Luckesi (1980), que a mediação educativa realizada pelo ACS pode ser tanto transformadora quanto conservadora, sendo esta última preponderante nos serviços de saúde, o que indica uma inconsistência entre discurso e prática na atenção básica.

A autora analisa ainda outras contradições que se produzem na interseção entre a origem comunitária do ACS, a visão de mundo e o conhecimento deste trabalhador, produzidos na relação com a realidade, e a perspectiva tecnicista, baseada na racionalidade biomédica que predomina no âmbito dos serviços e dos profissionais de saúde. Ela anuncia que, mesmo não sendo reconhecido ou valorizado, o trabalho do ACS como um educador popular em saúde é o papel que melhor expressa as possibilidades de compreensão, crítica e transformação da realidade praticadas pelos ACS na relação com os outros sujeitos da comunidade. Por fim, David indica a necessidade de se reinventar a prática educativa, explorando outras possibilidades de aproximação entre ciência e senso comum, experimentadas, por exemplo, na perspectiva da construção compartilhada do conhecimento, e conciliando em bases críticas o projeto histórico com as transformações produzidas no cotidiano da vida das classes populares.

A discussão sobre o trabalho educativo dos ACS ganha novos dados no artigo seguinte, “Os discursos dos agentes comunitários de saúde sobre suas práticas educativas”. Nesse texto, David e Mialhe apresentam os resultados de uma pesquisa sobre o tema, desenvolvida no município de Piracicaba, no estado de São Paulo, analisando informações obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas com oitenta ACS integrantes das equipes de Saúde da Família desse município.

A pesquisa utiliza uma abordagem ‘qualiquantitativa’, baseada no método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), segundo Lefèvre e Lefrève (2005), no qual o pensamento expresso na fala dos sujeitos é tratado como uma variável Os autores reforçam a necessidade de as práticas educativas desenvolvidas pelos ACS serem revistas de forma a superarem os limites da adequação normatizadora e das decisões individuais e passarem a compreender outros macrodeterminantes que concorrem para o processo saúde-doença. Indicam também que, para a construção de um novo modelo de prática educativa, é preciso que os gestores apoiem os processos de educação permanente para todos os trabalhadores da Saúde da Família, assim como a qualificação profissional dos ACS por meio do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde.

David e Mialhe concluem o capítulo afirmando que o trabalho educativo do ACS se enriquece na medida em que este se aproxima e se torna capaz de expressar as contradições presentes nas condições de vida das classes menos favorecidas, sendo esta a única justificativa para mantê-lo como membro das equipes de saúde da família.

O último artigo, “Ensino em serviço para o desenvolvimento de práticas educativas no SUS pelos agentes comunitários de saúde”, de autoria de Lúcia Rondelo Duarte, fecha a coletânea apresentando o relato de várias experiências – o trabalho “A construção de um programa de educação com agentes comunitários de saúde”, o Projeto Club Pink de promoção da saúde e um projeto envolvendo alunos do Curso de Graduação em Enfermagem e agentes comunitários de saúde, visando à melhoria da qualidade de vida desses no trabalho.

Entre as questões abordadas pela autora, destaca-se a posição que assume em relação à formação dos ACS, quando esta afirma que as habilidades e potencialidades desses trabalhadores serão mais bem desenvolvidas por meio de programas educativos que priorizem suas necessidades e das comunidades em que atuam, assim como, sejam construídos com eles e não para eles. Nesse sentido, a autora aponta a importância de haver partido de um diagnóstico inicial das percepções, dificuldades e angústias dos ACS acerca do processo de trabalho e das atividades que realiza.

O texto trata ainda do trabalho educativo dos ACS e do papel dos enfermeiros na supervisão dos agentes, discorrendo sobre promoção da saúde, empoderamento, educação permanente e autoestima. Essas noções, entretanto, são tomadas de forma naturalizada, sem contemplar as contradições que as acompanham, o que termina por dificultar uma análise crítica destas em relação a elementos importantes também presentes no artigo, como a concepção ampliada do processo saúde-doença, a educação popular em saúde, a construção compartilhada do conhecimento e a emancipação.

De maneira geral, a coletânea centra-se em temas relevantes e atuais para a compreensão dos conflitos que permeiam o trabalho do agente comunitário de saúde, iluminando o papel educativo desse trabalhador e o seu potencial transformador.Dessa forma, oferece contribuições importantes para a compreensão das contradições e dos desafios percebidos nas práticas cotidianas dos agentes comunitários de saúde na principal política de orientação do modelo de atenção à saúde no SUS – a Estratégia Saúde da Família.

Referências

BORNSTEIN, Vera J. O agente comunitário de saúde na mediação de saberes. Tese de Doutorado (Saúde Pública) – Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fiocruz, 2007.

LEFÈVRE, Fernando; LEFRÈVE, Ana Maria C. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). Caxias do Sul: Educs, 2003.

LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1980.

Marcia Valéria Guimarães Cardoso Morosini – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]>

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Saúde, trabalho e direito: Uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória – VASCONCELOS; OLIVEIRA (TES)

VASCONCELLOS, Luiz Carlos Fadel de; OLIVEIRA, Maria Helena Barros de (Orgs.). Saúde, trabalho e direito: Uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011, 600p. Resenha de: GOMEZ, Carlos Minayo. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.10, n.1, mar./jun. 2012.

Este livro está organizado em 12 capítulos que tratam dos seguintes temas: (1) relações saúde, trabalho e direito; (2) exploração do corpo ao longo da história; (3) imperfeição da regra trabalhista referente à saúde; (4) legislação previdenciária e seus significados; (5) ausência da questão da saúde pública no enfoque da Organização Internacional do Trabalho; (6) movimentos de lutas dos trabalhadores pela saúde; (7) importância do aporte do Modelo Operário Italiano para o campo da saúde do trabalhador; (8) diferenciações conceituais entre saúde ocupacional e saúde do trabalhador; (9) construção e institucionalização da área de saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde; (10) a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador; (11) desenvolvimento insustentável e ausência de foco nas relações entre saúde e trabalho; (12) confluência de uma trajetória crítica das relações entre saúde, trabalho e direito para uma práxis educativa.

O próprio subtítulo do livro já anuncia a tônica presente ao longo do conjunto dos capítulos. Farta informação e análises críticas caracterizam esta obra que constitui uma nova vertente no tratamento habitualmente dado pela literatura existente às questões referentes à promoção da saúde dos trabalhadores. O amplo leque de temas abordados configura o texto como um valioso compêndio, apoiado em vastíssima bibliografia, que sistematiza conceitos, processos históricos e oferece compreensão para lacunas nessa área de atuação. Por essa razão, não se pode fazer uma síntese do riquíssimo e diversificado conteúdo da obra. Destacam-se, portanto, apenas alguns aspectos dos assuntos desenvolvidos extensamente nos seus 12 capítulos e que expressam formas diversas de compreensão da problemática da saúde no trabalho.

Apresentam-se de forma muito original as premissas e concepções que regem a formulação de políticas, das estratégias, dos mecanismos operacionais e das práticas dos diferentes atores que lidam com os problemas da saúde dos trabalhadores. Cabe ressaltar a importante contribuição trazida com a introdução da temática do direito à saúde no seu aspecto irrestrito de cidadania plena, típica dos demais direitos civis, econômicos, sociais e humanos fundamentais. Com o intuito de analisar o percurso histórico seguido na regulação das questões relativas a esse direito, realiza-se uma genealogia das instâncias internacionais e nacionais de normatização trabalhista nas sociedades industriais. Contextualiza-se, de forma profícua, a origem dos problemas que levaram à realização do conjunto das convenções relativas ao setor e ao estabelecimento de recomendações a esse respeito. No plano nacional, ressalta-se a importância da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e da Legislação Previdenciária no que se refere à reparação, do ponto de vista financeiro, dos danos provocados pelos efeitos nocivos e fatais das condições de trabalho dos segurados.

Descrevem-se com profusão de detalhes os eventos, correntes ideológicas e movimentos que influenciaram e deram origem à criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como organismo internacional reconhecido como regulador do mundo do trabalho. Destaca-se, particularmente, o panorama institucional, histórico e conjuntural que conduziu à constituição desses espaços de negociação, como as ameaças das greves e dos movimentos revolucionários. Entre os exemplos citados de negociação estão: a delimitação da jornada de trabalho, a proposta de tripartismo, os acordos internacionais para normatizar o trabalho infantil e da mulher, o trabalho noturno e a exposição a agentes químicos como chumbo e fósforo. A OIT também trouxe para si a responsabilidade de regulação internacional da saúde como componente da preservação da força de trabalho, mas fora do âmbito da saúde pública. Ao fazê-lo, acaba desonerando outras instâncias internacionais, inclusive a Organização das Nações Unidas (ONU), que na Declaração dos Direitos Humanos não incorpora essa perspectiva. Essa ausência também se nota na própria atuação da Organização Mundial de Saúde (OMS). Os autores ressaltam, porém, que o Brasil foi um dos poucos países a inserir o tema da saúde do trabalhador na Constituição, como direito de cidadania e dentro dos princípios estruturantes do Sistema Único de Saúde (SUS).

O livro descreve os movimentos de luta pela saúde, seja de forma implícita na conquista de reivindicações econômicas e de mudanças nas relações de trabalho ou, de forma explícita, quanto aos riscos à saúde. Merece destaque a farta documentação reunida sobre a atuação do movimento sindical brasileiro ao longo do processo de industrialização e dos diversos governos. E, especificamente, a luta pela saúde a partir do final da década dos anos 1970, em que a experiência italiana de combate à nocividade nos ambientes de trabalho exerceu notável influência na construção do pensamento das diretrizes operacionais a respeito.

Nesse sentido, os autores ressaltam a contribuição do Departamento intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (DIESAT) como uma grande referência de ação sobre bases intersetoriais e interdisciplinares para a saúde do trabalhador do ponto de vista da saúde coletiva. Apresentam-se também as lutas nas indústrias paulistas como ações pioneiras frente à negligência das empresas em relação à exposição a determinados agentes químicos e físicos. Os autores referem as várias mobilizações do movimento sindical nas últimas décadas do século XX em prol da saúde e dão realce aos desafios atuais e à fragilidade da sua atuação, entre outros motivos, por sua cooptação pelo Estado.

Uma parte considerável do conteúdo do livro é dedicada a analisar o processo de institucionalização dos instrumentos de proteção à saúde do trabalhador no SUS, as propostas de desenvolvimento de ações no nível nacional e a criação de instâncias intersetoriais e interministeriais, inclusive das que dizem respeito ao controle social. Os autores tecem considerações sobre os avanços conseguidos com os diplomas legais de saúde que legitimaram a área no cenário institucional, histórico e conjuntural. Avaliam, criticamente, que tais avanços não redundaram em ações efetivas e permanentes, pois não foram inseridos na formulação de políticas setoriais e nem como componentes do desenvolvimento sustentável. É mencionada uma série de entraves no percurso histórico de implementação da Política de Saúde do Trabalhador, em que progressos e retrocessos, ingerências políticas e conflitos corporativos entre o setor Saúde, do Trabalho e da Previdência social são a tônica. Os autores enfatizam que são vários os sinais reveladores de tais limitações como é o caso dos sistemas deficientes de informação e notificação de agravos, da reduzida atuação da vigilância, da débil articulação intra e intersetorial e da insuficiente capacitação de profissionais.

Destaca-se e, ao mesmo tempo, é questionada a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), uma das iniciativas recentes mais significativas para a institucionalização do tema de saúde dos trabalhadores no SUS. Considera-se que essa iniciativa, implantada formalmente em todos os estados do território nacional e estruturada por meio de centros de referência municipais e regionais, teria maior efetividade se, de fato, fosse orientada pelo paradigma sistêmico e holístico da concepção de rede. Entretanto, ressente-se da falta de comunicação entre os centros e escassas articulações no interior do SUS e com outros setores, ao que se alia uma concepção eminentemente assistencialista em saúde do trabalhador.

O foco central da reflexão crítica sobre a natureza dos avanços e das grandes limitações diagnosticadas se localiza na crônica ausência de respostas do Estado às legítimas demandas trazidas pelos movimentos sociais organizados e pelos próprios técnicos das instituições e serviços sobre os problemas de saúde do trabalhador. A conclusão é que, hoje, tanto o setor saúde como o do trabalho e da previdência estão muito aquém do enfrentamento dos determinantes dos agravos relacionados ao trabalho.

Em síntese, são muitos os méritos deste livro que realiza uma viagem instigante por vários terrenos teóricos e práticos, levantando questões e apontando debilidades no campo do direito e da saúde do trabalhador. Oferece, ainda, fundamentada crítica sobre ausência de compromissos efetivos em pontos e áreas cruciais, dando relevância a vários avanços conquistados.

Carlos Minayo Gomez – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história – MÉZÁROS (TES)

MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo, Boitempo, 2011. 370 p. Resenha de: NEVES, Renake Bertholdo David. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.3, nov. 2011.

O mais novo livro do filósofo húngaro István Mészáros lançado pela Boitempo, na coleção Mundo do Trabalho, tem como escopo fundamental demonstrar a relação dialética descoberta por Marx entre estrutura social e história, objeto de relevância primordial para as ciências humanas e sociais.

Mészáros faz uma apurada e erudita análise da relação contida na metáfora base-superestrutura, isto é, a relação fundamental entre o modo de produção, a base material da sociedade, e a consciência social, manifesta em suas diversas formas – arte, religião, moral, política etc. O autor evidencia a concepção dialética expressa no modelo de base e superestrutura, refutando as acusações de ‘determinismo econômico’ imputado a Marx, e mostra que a metáfora deve ser entendida como uma totalidade cujas partes não estão simplesmente interconectadas, nem são igualmente importantes: formam um todo estruturado, com uma ordem interna adequada e uma hierarquia determinada, ainda que, em conformidade com o caráter intrínseco a um complexo dialético, devam ser apreendidas como dinamicamente em mutação.

O autor deixa claro que, na concepção dialética de Marx, cada elemento da vida social teve de ser explicado em termos de sua gênese e transformação histórica. Reconhece a importância do famoso ‘Prefácio’ de 1859 à Contribuição à crítica da economia política, admitindo que ele traz uma avaliação concisa da relação entre base e superestrutura, mas também recorre largamente aos Grundrisse ea O capital a fim de fundamentar seu argumento.

O filósofo explicita que não existe correspondência mecânica entre a materialidade e as ideias, mas uma interrelação dialética tripla que constitui o intercâmbio entre base e superestrutura: primeiro, as relações de produção conformam a estrutura econômica da sociedade; segundo, sobre essa base material, erige-se uma superestrutura jurídica e política; por fim, o terceiro fator essencial nesse intercâmbio é constituído pelas diversas “formas ideológicas” que se arquitetam como “formas sociais determinadas de consciência e, como tais, correspondem à superestrutura jurídica e política” (p. 127).

O exame da evolução da superestrutura jurídica e política ganha destaque nessa análise sobre a relação entre a estrutura material e as formas de consciência. Mészáros sublinha que essa forma normativa se desenvolve como tal apenas em sociedades que se diferenciaram em classes, e não pode ser confundida com a ‘superestrutura’ em seu sentido primordial, sendo uma forma historicamente específica de superestrutura e que adquirirá proeminência a partir do advento do sociometabolismo do capital.

A superestrutura jurídica e política é definida, ao mesmo tempo, como um regulador do intercâmbio social e um “usurpador a serviço dos usurpadores da riqueza social” (p. 99). O aporte de Mészáros sobre o tema joga por terra o mito capitalista do Estado mínimo, do laissez-faire, pois apresenta categoricamente como o Estado no capitalismo alcançou sua preponderância no curso do desenvolvimento da produção generalizada de mercadorias e da instituição prática de relações de propriedade adequadas à manutenção desse tipo de produção da riqueza social, não podendo deixar de prescindir de seu caráter centralizador e burocrático, que a tudo invade, para garantir a reprodução ampliada do capital, inclusive por meio do aparato militar. A origem do Estado moderno, constata Mészáros, não é resultado de uma determinação material supostamente unilateral – explicação bastante usual nas concepções marxistas vulgares -, mas se constituiu dialeticamente por meio de sua necessária interação recíproca com a base material do capital. Portanto, o Estado não apenas foi moldado pela estrutura material da sociedade, mas também moldou (e molda) a acumulação do capital, assumindo a função de ser a estrutura de comando geral do sistema do capital diante da incontrolabilidade da dinâmica centrífuga de uma produção que subsome o valor de uso ao valor de troca e que está sempre orientada para a acumulação.

Mészáros defende que a continuidade da normatividade da superestrutura jurídica e política é radicalmente inconciliável com a ideia de emancipação comunista; isso não significa que na sociedade dos ‘produtores associados’ seja possível a ausência de uma normatividade, pois o recuo progressivo das barreiras naturais exige a intervenção crescente dos fatores superestruturais, porém de maneira autoconsciente, não na forma alienada dos sistema do capital. A superação do Estado é, portanto, condição necessária, entretanto não suficiente, para a transição rumo a uma sociedade socialista. Caminho que não é fácil, sustenta Mészáros, em face dos exemplos das sociedades do Leste Europeu, onde o Estado se reconstituiu mais poderoso do que nunca.

Por sua vez, a relação entre base e superestrutura não pode ser dissociada de outra ideia cara ao filósofo lukácsiano: a de uma ontologia do ser social permeada por uma teleologia do trabalho. O autor assinala que o fundamento estrutural de todos os processos sociais “é a objetividade trans-histórica das determinações ontológicas sociais” (p. 49), uma vez que o metabolismo social é radicado no metabolismo entre humanidade e natureza. E nesse metabolismo, o trabalho cumpre a função de mediação ativa, sempre com um pôr teleológico. Contudo, o materialismo histórico, alerta Mészáros, só pode conceber a “teleologia objetiva e com fim aberto do trabalho em si” (p. 55), e jamais pode invocar a ideia de uma progressão de estágios ‘logicamente necessária’ no desenvolvimento histórico real. Esse foi um dos grandes equívocos manifestos nas concepções idealistas da história, que acabaram por tratar a teleologia em geral como uma forma de teologia, elaborando suas explicações em termos de ‘causas finais’, identificando-as com a manifestação do “propósito divino na ordem da natureza” (p. 55). A refutação dos pontos de vista idealistas do processo histórico, no entanto, se deterá com maior apuro em um capítulo dedicado às filosofias da história de Kant e Hegel, cuja teleologia do processo histórico está carregada de aspectos teológicos, mas tributários das limitações de um horizonte social determinado – a ascensão do modo de produção capitalista -, e não de um quadro teológico conscientemente assumido, como era o caso em santo Agostinho, Joaquim de Flora ou Friedrich Schlegel. Mészáros mostrará como os sistemas teleológicos desses pensadores são incompatíveis com a teleologia presente no pensamento marxiano, incidindo em uma teologia que congela a história em um ponto do tempo ‘ideologicamente conveniente’, auto-legitimando a sociedade burguesa: a história é “trazida para um fim”, em vez de representar o quadro explicativo de toda a teoria, como o é em Marx. O principal fio condutor da crítica dessa teleologia da história apologética do capital será o excelente exame sobre a fusão entre necessidade natural e necessidade histórica realizada por esses filósofos e também pela economia política. Tal síntese, como demonstra a análise de Mészáros, transforma aquilo que é historicamente específico em algo alegadamente natural, tornando eterno o “controle social metabólico do capital” e dando ao capitalismo um caráter supra-histórico. O autor, contudo, faz questão de pontuar que esses pensadores empreenderam a apologia do capital na fase ascendente do modo de produção capitalista, quando, apesar do impacto alienante que ele ocasionou sobre as diversas esferas da vida humana, houve o maior progresso produtivo de toda a história até então e uma extensão da igualdade e liberdade a todos os indivíduos – mesmo que apenas formalmente -, ao mesmo tempo em que o antagonismo de classes não era tão agudo. Tal apologética é muito distinta daquela perpetrada por cientistas e filósofos que vêm realizando suas investigações e reflexões já na fase descendente do sociometabolismo do capital, uma vez que, nesse último caso, a apologia é realizada contra todas as evidências das contradições insolúveis e dos antagonismos de classes explosivos desse modo de produção. Mészáros assinala que a “busca da verdade” é abandonada em detrimento da defesa dos interesses de reprodução e acumulação do capital.

O autor pondera que o conceito de mudança estrutural que exprime uma visão histórica aberta, em direção a um futuro “estruturalmente alterável”, sobre a base das determinações estruturais objetivas do desenvolvimento em desdobramento em si, é absolutamente incompatível com o ponto de vista do capital.

O ser humano, assinala Mészáros, torna-se sujeito histórico no desenvolvimento progressivo de sua capacidade para superar os graves obstáculos da necessidade, seja ela natural ou “histórica autoimposta”, alienante. É nesse processo de autoconstituição do sujeito ativo da história que se pode identificar o processo histórico de transformação emancipadora da humanidade de que falava Marx.

O grande confronto histórico de nosso tempo enfrentado todos os dias pelos sujeitos históricos é o antagonismo estrutural fundamental entre capital e trabalho. A defesa da transformação emancipadora que desmistifica criticamente o fetichismo do capital só poderia surgir em um momento determinado, no início da fase descendente do desenvolvimento do sistema do capital. A ordem reprodutiva societal alternativa possui uma fundamentação objetiva, constituindo sua viabilidade a partir das “potencialidades positivas necessariamente malogradas do capital”, como o tempo disponível proporcionado pela incrível produtividade do trabalho que o capitalismo engendrou, mas que não pode ser realizado como um ‘reino da liberdade’ num sistema que se orienta pela acumulação cega.

O estudo de Mészáros responde não apenas a uma preocupação teórica fundamental para as ciências humanas e sociais. O empenho em apresentar como se dão as determinações histórico-sociais, de demonstrar a diferença entre aquilo que é particular e universal, e entre o que é especificamente histórico e aquilo que é trans-histórico (e de que nada há no que se refere ao mundo dos homens que possa ser tomado como supra-histórico) também vem suprir outro anseio, pois a apreensão do movimento histórico real possibilita importante arma para a “necessária intervenção emancipadora” dos seres humanos. A referência à 11ª tese sobre Feuerbach de Marx, aliás, será constante ao longo de todo o livro: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.

Renake Bertholdo David das Neves – Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea – ORTEGA (TES)

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, 256 p. Resenha de: ZORZANELLI, Rafaela Teixeira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.2, jul./out. 2011.

Participamos de um processo de redescrição dos limites de nossos corpos impulsionado pelas tecnologias biomédicas: ultrassonografias, tomografias, ressonâncias magnéticas, técnicas video-laparoscópicas… Quem de nós já não fez uso de algum método disponível no manancial biotecnológico na atualidade? Além disso, somos bombardeados por imagens de células, transplantes, cirurgias e cérebros nas revistas semanais e em programas televisivos que nos atualizam sobre o nível de conhecimento adquirido acerca do mundo abaixo da pele. As novidades biotecnológicas não param de surgir, oferecendo novos limites para os corpos: as células-tronco prometem curas para doenças devastadoras, o transplante de face recupera funções perdidas, o congelamento de óvulos oferece novos limites à gestação. Parte do vocabulário médico passa a ser partilhada também pelo homem comum, interessado em obter aquilo que a ciência médica parece oferecer. Se a medicina ocidental transformou-se em um dos mais importantes ‘guias de leitura’ do corpo na contemporaneidade é porque tem oferecido respostas convincentes aos anseios colocados pelo tempo em que vivemos, tais como o esforço para diminuir o impacto de doenças, melhorar a qualidade de vida e adiar a morte. É sobre esse rico contexto que se debruça o livro de Francisco Ortega.

Os dois primeiros capítulos da obra podem ser considerados uma filosofia do presente; neles se debate o lugar do corpo na biopolítica e sua relação com a formação de práticas bio-identitárias, tomando como foco o tema das modificações corporais na cultura contemporânea. Uma ideia recorrente é a de que o corpo está sendo colonizado por diferentes formas de inscrição: por um lado, por tatuagens, piercings, plásticas, práticas de restrição alimentar, bodybuilding; por outro, pelas técnicas de visualização que pretendem revelar os segredos de nossa visceralidade.

No que tange às modificações corporais, a ideia para a qual o autor nos remete é que, a princípio entendidas como singularização e estilização da existência, essas práticas podem revelar um menosprezo pelo corpo, na medida em que revelam uma vontade de recusar sua materialidade orgânica e o que nele há de abjeto: seus resíduos, imperfeições, sobras e excessos. Já no caso das tecnologias de visualização do interior corporal, o autor ressalta o fato de que, muito além do sentido de exploração da visceralidade, em prol de melhores diagnósticos e terapias, há nessa ‘vontade de ver’ uma tentativa de transformar o estranho e incerto de nossa corporeidade aquilo que nos escapa ao olhar e ao controle em algo familiar e previsível.

O terceiro capítulo dedica-se a um trabalho histórico que compreende, ao modo de uma história cultural, um panorama da visualização médica do corpo dos desenhos vesalianos até as ressonâncias magnéticas, passando por diferentes manifestações no cinema e nas artes plásticas. Ortega realiza uma genealogia de diferentes tecnologias médicas de visualização do corpo humano, dedicando-se ao episódio histórico da dissecação de cadáveres e à consequente construção do ideal de um conhecimento objetivo, baseado no modelo do corpo-máquina. Como bem cabe ao tema da visualização médica do corpo, o leitor é presenteado com belas ilustrações da história médica, como extratos do De humani corporis fabrica, de Vesalius, e obras de artes plásticas realizadas com base em imagens cerebrais.

O último capítulo é tomado por um tom filosófico, e a discussão se centra no lugar do corpo nas proposições construtivistas e fenomenológicas. Na verdade, já nos dois capítulos iniciais há um prenúncio das polêmicas que reaparecerão no capítulo final. Uma delas é a análise crítica das posições construtivistas nos debates atuais sobre o corpo, análise que poderíamos resumir, grosso modo, na ideia de que “tudo é discurso” (p. 197), ou seja, que o corpo é efeito de ações e dizeres sobre ele, não restando materialidade biológica como parti pris da experiência corporal. Michel Foucault e Judith Butler são os autores com os quais Ortega debate, situando-os como inspiradores dessa posição construtivista, bastante comum nos estudos culturais e de gênero. Outra polêmica levantada pelo autor diz respeito à sua posição corajosa de não dispensar um legado mínimo de invariantes existenciais-biológicas que moldariam a dimensão material da corporeidade. Para isso, ele se apoia, entre outros, em Edmund Husserl, Maurice Merleau-Ponty, Samuel Todes e Drew Leder. Destacar o status da materialidade corporal em um ambiente intelectual de adesão aos pressupostos construtivistas é uma atitude no mínimo ousada, uma vez que posições teóricas que não aderem integralmente a esses enunciados são frequentemente taxadas de conservadoras e essencialistas no contexto acadêmico brasileiro.

O terceiro ponto polêmico debatido pelo autor é a sua dura crítica à atmosfera de culto à fragmentação do corpo, cujo exemplo emblemático é o elogio ao corpo-sem-órgãos, que Deleuze e Guattari retomam de Artaud, na medida em que o corpo fragmentado tem sido entendido como um antídoto contra o antropomorfismo, a identidade engessada e as ilusões do humanismo, oferecendo, assim, uma alternativa à visão universalizante do corpo como totalidade orgânica. A ideia defendida pelo autor, no entanto, vai em direção contrária: “as posições teóricas que afirmam a construção discursiva do corpo e negam a sua materialidade fornecem o substrato teórico para as novas tecnologias médicas (…), com sua afirmação da construção, virtualização e obsolescência do corpo vivido” (p. 75). O aspecto para o qual Ortega aponta é o fato de que o corpo fragmentado das filosofias pós-modernas não se distanciaria do corpo dilacerado e dessubjetivado das imagens médicas, que constroem doenças sem sujeitos. Todas essas asserções conduzem o autor a defender a ideia de que o discurso construtivista não pode servir como crítica ao discurso das biotecnologias: “não acreditamos que exista alguma forma de resistência no corpo despedaçado” (p. 178). Para o autor, um paradigma da corporeidade que leve em conta a materialidade do corpo é mais adequado do que um paradigma construtivista porque permite o confronto crítico dos discursos dominantes da biomedicina e das biotecnologias.

Esse breve panorama já indica o potencial de debate da obra. Caberia aos leitores, por exemplo, refletir: sendo Foucault um declarado opositor da fenomenologia, por ele considerada um exemplo de teoria fundacionalista sobre o sujeito, sobre como conciliar uma concepção fenomenológica do corpo vivido, sem negá-lo como efeito de práticas e discursos.

Como o livro indica desde seu título, as ‘incertezas’ do corpo são muito bem percorridas nesse trabalho de Francisco Ortega. O corpo é mesmo incerto, porque os sentidos que ele pode adquirir imerso no mundo não estão dados a princípio. São também incertos os processos fisiológicos que o habitam e que, em silêncio, nos fazem viver ou morrer. Algumas das respostas criadas para lidar com tantas incertezas seja no plano do corpo individual, seja no plano social das técnicas médicas são analisadas com criatividade e apuro acadêmico em O corpo incerto de Francisco Ortega.

Rafaela Teixeira Zorzanelli – Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS – L’ABBATE (TES)

L’ABBATE, Solange. Direito à saúde: discursos e práticas na construção do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010. 284 p. Resenha de: JESUS, Aidecivaldo Fernandes de. Revista Trabalho, Educação e Saúde (Online) vol.9, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2011.

A autora inicia seu livro propondo uma reflexão sobre o ‘direito’ e o ‘direito à saúde’; faz uma síntese da evolução histórica do conceito desde o Código de Hamurabi, passando pela Lei de Moisés e os Direitos Romanos, até a Declaração dos Direitos Humanos. Além disso, como testemunha ocular da VIII Conferência Nacional de Saúde aliás, participante ativa e entusiasta do tema, como deixa claro em sua apresentação, a autora apresenta ainda as proposições sobre ‘direito à saúde’ debatidas no evento, introduzindo esses conceitos no cotidiano institucional do Sistema Único de Saúde (SUS).

Com essa abordagem, esclarece o que seria a formal publicação dos direitos enquanto enunciado, bem como o inerente embate de forças entre os atores que num determinado momento ‘lutam’ e participam da construção desse direito no âmbito da sociedade em que se estão inseridos. Esses apontamentos preparam o cenário para inserir o leitor na problemática nuclear do texto, ou seja, a do questionamento das posições assumidas por alguns setores sociais/atores estratégicos em relação ao direito à saúde e ao próprio conceito de saúde no universo do SUS.

Segundo a autora, esses setores/atores seriam formuladores de políticas e/ou sujeitos coletivos que representam prestadores ou consumidores organizados e de relevância para o projeto de construção do sistema, cujo princípio balizador é, exatamente, o direito à saúde. E sua proposta de pesquisa é a de analisar o modo de pensar e atuar desses representantes, buscando, em seus discursos, congruências e incongruências no que diz respeito às suas práticas políticoinstitucionais nos vários campos em que atuam.

Especificamente, a autora pretende esclarecer o projeto de implantação do SUS na cidade de Campinas durante o governo municipal do Partido dos Trabalhadores, no período de 1989-1990, entrevistando personagens essenciais nesse processo, além de representantes de diferentes setores. Sua pesquisa contemplou aspectos da trajetória de vida desses personagens, sua atuação políticoinstitucional e as práticas sociais que promulgaram. As informações obtidas são de ordem discursiva, seja a partir de fontes secundárias (jornais, livros, boletins de instituições e informes internos), seja mediante as entrevistas realizadas por ela com os atores. Com isso, oferece ao leitor uma polifonia de vozes sobre um mesmo tema: o direito à saúde.

O conjunto e a riqueza das informações colhidas na investigação permitiram uma lista de entidades/atores que forneceram material posteriormente organizado em quatro capítulos: o setor privado na área da saúde, o setor público, o movimento sindical e o movimento popular.

Segundo Gastão Wagner de Souza Campos, prefaciador do livro, a metodologia empregada na investigação permitiu uma curiosa combinação do geral com o particular, do indivíduo com o coletivo. Saliente-se, porém, que o livro não se restringe ao local: o estudo de caso feito permite a análise de atores articulados e atuantes na implantação do SUS em todo o país.

No capítulo 1, “O setor privado na área da saúde construção e manutenção de um projeto”, a autora relata a história da organização da saúde em Campinas, estabelecendo um ‘estado da arte’ do setor à época da pesquisa, mais especificamente da assistência à saúde. Contextualizando as conjunturas socioeconômicas desse processo, esclarece inicialmente a organização da atenção médica em Campinas com base em hospitais filantrópicos e beneficentes. Assim, parte dos primórdios da implantação do sistema de saúde na cidade e, por meio desse relato histórico, apresenta a realidade social municipal atual e suas necessidades.

Em seguida, traça o movimento de organização dos médicos como corporação, e sua articulação com a previdência social, que culminou na criação, em 1929, de duas entidades: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC) e o Sindicato dos Médicos. Em seguida, ressalta a organização da assistência médica previdenciária, numa situação de equilíbrio e crescimento econômico do município, e a participação dos profissionais nos Institutos de Assistência Previdenciária (IAPs), mediante a qual exerceram sua influência sobre o sistema.

Após a unificação dos IAPs no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), a autora analisa a atuação dos médicos diante da mudança no controle do sistema de saúde que leva à criação de empresas e cooperativas médicas, numa realidade de intensa e desorganizada expansão urbana. Dentre as cooperativas criadas, o projeto mais importante do setor privado de Campinas é a criação da cooperativa médica Unimed. A autora avalia a concepção de direito à saúde do setor privado e sua reação às propostas de organização do sistema de saúde em Campinas pela Secretaria Municipal, que deixa explícito o tensionamento do debate com o setor público. A transcrição dos comentários desses sujeitos permite ao leitor construir uma visão própria acerca deles.

Segundo a autora, a corporação médica é coerente quando atua para construir e manter o seu projeto próprio de assistência à saúde. Porém, para ela, tais colocações não deveriam ser empecilho para aceitar o princípio da constituição do direito à saúde, o qual, exatamente pelo seu nível de formalização, implica a própria constituição da democracia, da modernidade. Pontua, então, que existe uma negação desse princípio no setor, evidente nos depoimentos dos pesquisados. A maior dificuldade dos médicos é a de abandonar o seu ideário liberal, impossível de ser posto em prática em sua plenitude, a não ser por um número limitadíssimo de profissionais que se relacionam com um reduzidíssimo número de clientes. Com esse ideário, presente de forma extremamente forte na profissão médica, impossibilita-se sua realização na prática pelos próprios condicionamentos que essa prática médica vem adquirindo na especificidade do capitalismo brasileiro, na qual esse ideário permanece como ideologia.

No capítulo 2, “O setor público – um projeto em direção ao Sistema Único de Saúde”, a autora descreve e analisa parte do esforço feito pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, em 1989, para assumir de direito e de fato a direção política do sistema de saúde, apostando na possibilidade de tornar realidade concreta a municipalização dos serviços de saúde. Inicialmente, a autora faz uma reconstituição histórica, caracterizando o sistema público de saúde de Campinas: o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde (Suds). Mapeia e esclarece os serviços oferecidos à época, bem como os principais atores do setor. Em seguida, relaciona os personagens representantes do setor público cinco membros do colegiado da Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde selecionados para serem entrevistados. A autora detalha a trajetória desses atores, sua formação política e/ou acadêmica, esclarecendo ao leitor suas implicações e motivações institucionais.

Apesar do compromisso desses atores com o projeto da Secretaria Municipal de Saúde, eles não compartilhavam o mesmo projeto. Isto fica explícito em seus depoimentos sobre o direito à saúde, em que sobressaem suas diferentes concepções e práticas. Porém, todos aceitavam tacitamente o direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde e, por isso, diferenciam-se dos médicos do setor privado. Ao destacar as trajetórias desses personagens, a autora permite que o leitor compartilhe da enorme perplexidade deles diante da dinâmica das instituições e da tarefa de que se incumbiram.

No capítulo 3, “O movimento sindical e o direito à saúde a conscientização dos trabalhadores”, a autora analisa a implantação, em Campinas, do Ambulatório de Saúde do Trabalhador, em 1987. Para ela, é importante desvendar essa história, pois está diretamente relacionada com as concepções que esses sujeitos trabalhadores tinham sobre a organização dos serviços de saúde e acerca do papel que os sindicalizados deveriam assumir, como usuários, na constituição do SUS.

A autora contextualiza as conjunturas político-institucionais da época favoráveis a tal projeto e descreve o universo sindical de Campinas e sua interlocução com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Ao fazer isso, mostra a ideologia partidária progressista dos atores entrevistados o que, aliás, orienta muitas de suas posições e facilita a compreensão quanto a alguns aspectos dos depoimentos desses sindicalistas e das práticas implementadas por eles em suas entidades. Foram selecionados o Sindicato dos Metalúrgicos e o Sindicato dos Bancários por causa da diferença nos tipos de trabalho e, consequentemente, nas repercussões específicas em sua saúde. Além disso, foi abordada a importância que cada sindicato atribuía às questões da saúde do trabalhador, bem como a filiação específica do sindicato a determinada central sindical.

Mais uma vez a autora faz uma breve descrição da trajetória dos entrevistados, de suas concepções políticas e visão de mundo, e assim, também nesse setor, permite ao leitor uma melhor compreensão dos depoimentos dados. Na área da saúde, a atuação desses sujeitos inspirou-se nas suas concepções sobre o direito à saúde, na maneira como pensavam a relação entre o público e o privado e na forma como concebiam o papel do Estado na organização dos serviços de saúde. Aqui também, segundo ela, existia uma aceitação plena do direito à saúde como princípio básico da organização dos serviços de saúde do município. A criação do ambulatório representou um tipo de estratégia em que se combinavam as ações de natureza política, técnica e administrativa de instituições públicas de saúde com as de alguns sindicatos.

No capítulo 4, “O movimento popular de saúde instituindo o direito à saúde como dimensão do cotidiano”, a autora nos relata a trajetória do Movimento Popular de Saúde de Campinas, criado, em 1987, a partir de um seminário de moradores de vários bairros que buscavam soluções para os seus problemas de saúde. Segundo ela, ao nos trazer as trajetórias e práticas de alguns participantes da coordenação desse movimento, foi possível resgatar a importância do processo que esses moradores vivenciaram e a interlocução do movimento com os outros setores já descritos. As cinco mulheres entrevistadas foram selecionadas com base na combinação de representação com liderança. Ao descreverem suas trajetórias, revelam sua subjetividade, sua condição político-social como membro de determinado grupo, comissão ou entidade. E suas biografias se cruzavam de forma significativa com os movimentos dos quais participavam. Nesse capítulo, ainda de forma mais vibrante e viva, a autora nos oferece uma rica descrição das práticas ocorridas dentro desses movimentos. Talvez por essas características, é que se percebe especificamente nesses depoimentos uma abrangência maior do direito à saúde. A autora faz essa constatação e conclui que, portanto, o direito à saúde deve dizer respeito não apenas ao maior acesso a serviços de saúde de qualidade, mas também ao direito a condições de higiene, transporte, educação e salários dignos, sem discriminação de sexo, idade, condição física ou seja, mais do que o direito à saúde, é o direito à vida.

Em suas considerações finais, a autora nos brinda com um exercício reflexivo, ao imaginar como seria uma rodada de conversações entre esses setores, com suas diferentes implicações. Aposta, assim, no diálogo para a construção de uma verdadeira democracia econômica, social e política, propondo que essa deveria ser a nossa utopia.

Segundo Nelson Rodrigues dos Santos, autor do Posfácio, a autora conseguiu realizar o dom incomum de unir, em sua pesquisa, um elevado nível metodológico e também político e humanístico; e de manter, o tempo todo, como fio condutor, os princípios e diretrizes constitucionais consubstanciados em torno do valor ‘direito à saúde’. Portanto, o que temos como produto final é um imprescindível e belo livro, que nos permite aprofundar reflexões e posicionamentos sobre o ‘macro’ e o ‘micro’, sobre a hegemonia e a contra-hegemonia.

Aidecivaldo Fernandes de Jesus – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, Brasil. E-mail: [email protected]

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As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault – PORTOCARRERO (TES)

PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 260 p. Resenha de: LOPES, Fábio Henrique. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.1,  mar./jun. 2011.

Para além de ensaios: problematizações das ciências, da(s) vida(s) e das filosofias

Ensaios! Produção provisória e inacabada, exercícios de reflexão, conjunto heterogêneo. Em vários momentos, a filósofa Vera Portocarrero lembra a seus leitores que o livro que leem é constituído por ensaios em torno das ciências da vida. Mapeando, expondo e explorando as possibilidades históricas de investigação da vida, esses exercícios articulam, aproximam, distanciam e expõem, com precisão, as diferenças e as singularidades entre as proposições de Georges Canguilhem e de Michel Foucault, ou seria melhor dizer, entre a epistemologia do primeiro e a arque-ogenealogia proposta pelo segundo.

Ensaios, como a autora diz, pensados numa perspectiva quase fragmentária, aparentemente eclética, mas agenciados e problematizados a ponto de permitir a reflexão crítica em torno de determinadas formas filosóficas e históricas de problematizar a vida. Originais contribuições para várias áreas do saber e da filosofia: história das ciências, histórias das ciências biomédicas, história moderna e contemporânea, por exemplo.

Com a mesma clareza característica de sua narrativa, a autora também evidencia as ressonâncias e apropriações que mais marcaram suas investigações, indicando suas condições de possibilidade, os diálogos possíveis, e transpondo os limites de superficiais mapeamentos bibliográficos, historicizando e buscando articular hipóteses, contribuições e limites das obras selecionadas, como de cada parte de seu próprio livro. Não posso deixar de mencionar a justa medida com a qual a autora revela as suas hipóteses de trabalho, abertas e expostas em cada ensaio, em cada parte desse todo: sua obra. Dessa maneira, esclarecem-se ao leitor, inclusive para melhor marcar e destacar as contribuições e possíveis limites dos ensaios, os objetivos de cada parte, de cada texto, de cada reflexão.

Três problematizações estruturam a obra. Em primeiro lugar, a da história das ciências da vida, ou, como a autora diz, as “questões que fundamentam as metodologias em filosofia e história das ciências biomédicas” (p. 25). Em seguida, focaliza o problema da concepção vitalista da vida e de seu valor como conceito operatório nas análises históricas. Por fim, aborda as formas de investigação da vida no pensamento de Michel Foucault.

Na primeira parte, “Filosofia, história e ciências da vida”, a autora problematiza aquilo que se compreende por ciências da vida, partindo de suas historicidades, das implicações e desdobramentos de uma racionalidade científica, suas especificidades de saber, de força e de poder. Inicialmente, o objetivo é traçar uma preocupação com o tema das ciências da vida, sugerindo relações estabelecidas entre a metodologia histórico-filosófica e as ciências, em termos de objeto, objetividade, interdisciplinaridade, verdade, prática e relações de forças.

Para estudo da história das ciências e do objeto da história das ciências da vida, Canguilhem, Latour e Foucault são lembrados, e suas proposições destacadas. Conceito e historicidade, internalismo versus externalismo, práticas do saber, mola propulsora da produção científica, denúncia do caráter arbitrário da Razão, relações (e batalhas) de forças, dicotomia entre natureza, ciência e sociedade, métodos científicos de trabalho e reflexão, mudanças na forma de olhar o vivo, legitimação científica, concepções datadas de verdade, constituem as condições de possibilidade do saber, de discursos e de batalhas travadas com as ciências da vida e por meio delas.

O eixo do segundo momento da obra, “Vitalismo, epistemologia e arqueologia”, é o conceito de vida. A autora destaca e explora a emergência da noção de vida e as possibilidades de problematizar o conceito de vida. De forma articulada e perspicaz, situa a emergência das problematizações e dos objetos às suas condições de possibilidade; os enunciados, às suas produções e objetos; a relação das ciências, dos saberes, com relações e exercícios de poder que “disciplinam e gerem a vida dos indivíduos e das populações, para problematizar o perigo desta forma de dominação da vida que as ciências representam” (p. 77).

Nesse segundo momento da obra, Foucault, Jacob, Canguilhem e Pasteur aparecem em destaque na tematização da vida. Além deles, Descartes e Kant também são evocados e articulados como possibilidade da própria reflexão.

Natureza e principais características da vida, a reprodução do organismo, hereditariedade, concepção vitalista da vida, transmissão, ser vivo como organismo, modalidades históricas de opor a vida à morte, microbiologia, vida microbiana, revolução pastoriana, positivismo, novos tipos de saber e de práticas médicas, formulações de conceitos, domínio das ciências biomédicas, condições de vida, ato vital, força vital, normalidade, normatividade, normalização, noções de ciência, episteme, passagem do estudo dos seres vivos para o estudo da vida, enfim, noção científica moderna de vida – lembrando que até o final do século XVIII, o conceito de vida não existe – formulam hipóteses, permitem os quatro ensaios dessa segunda parte. Indicam níveis diferentes de análise, como a epistemologia e a arqueologia, expõem para debate e reflexão uma histórica ordem discursiva, composta de interdições, controles, vontades e regimes de verdade, territórios de fala, produtos de saber, dispositivos e relações de poder, processos de normalização e normatividade.

Por fim, na terceira e última parte, “Vida, arqueologia e genealogia”, as proposições de Michel Foucault centralizam e permitem as hipóteses e os estudos. A noção de vida aparece como a) objeto de saber; b) objeto de saber-poder (incidindo sobre a vida dos indivíduos – anátomo-política do corpo -, e das populações – biopolítica); e c) como obra de arte. Em lugar de identificar e localizar a origem da noção de vida nas obras de Foucault, de revelar sua evolução e desnudar sua verdade oculta – operação e armadilha reflexivas negadas com muita clareza -, a autora constata que a noção é constituída por meio de um conjunto de problemas, os quais são apresentados, explorados e analisados. Para destacar a complexidade da noção e da pesquisa do conceito de vida na obra de Foucault, a autora ressalta as articulações com outros conceitos – tais como olhar, morte, homem, sexualidade, poder -, além dos diferentes níveis de análise – arqueologia, genealogia e estética da existência.

Níveis diferentes, descontinuidades temáticas, reformulações metodológicas, problematizações datadas, articulações, imbricações e rupturas que comprovam a possibilidade de pensar diferentemente o que e como se pensa, neste caso, a vida. Vida pensada na perspectiva de uma história do saber, de uma história da ciência, em nível das condições de possibilidade da existência dos saberes. Vida vinculada às formas, estratégias e dispositivos de poder imanentes aos saberes investidos em campos como o corpo, a população, a vida – uma análise do poder em sua forma de exercício específica a cada época. Vida concebida e pensada pelo estudo dos modos de subjetivação do indivíduo. Três problematizações, três movimentos, três domínios foucaultianos privilegiados na terceira parte do livro em que a filósofa Vera Portocarrero apresenta o tratamento da questão da vida nas análises de Michel Foucault.

Como nas duas partes iniciais do livro, a autora estabelece diálogo, fincando diferenças, aproximações e apropriações, entre a(s) filosofia(s) de Foucault, entre suas proposições e aquelas de Descartes, Kant, Jacob e Canguilhem. O homem, o sujeito, representações, organização epistemológica, possibilidades dos conhecimentos e das teorias, princípios de organização dos discursos sobre a vida, relações entre saberes e poderes em torno da vida, tecnologias modernas de poder, corpo, vida da população, dispositivos de regulação e de segurança, a vida como alvo, governamentalidade, governo, política, domínios de saber, poder disciplinar, disciplinas, esquadrinhamentos, exames, biopoder, racismo, guerra, nível de vida, ordenamento, duração da vida, longevidade, mortalidade, finitude, descontinuidades, intervenções, controles, positividade do poder, em suma, o estudo da vida na episteme moderna são temas que aparecem na própria trajetória das pesquisas de Foucault e que são explorados pela autora.

Totalmente articulados aos temas, abordagens e provocações dos ensaios, os apêndices “Vida, genealogia da ética e estética da existência” e “Governamentalidade e cuidado de si” funcionam muito bem em harmonia com o livro. Um momento em que a autora sintetiza e articula as pesquisas do filósofo francês em torno da estética da existência e da vida como obra de arte. Compreende e indica algumas rupturas e recuos na trajetória de Foucault, sua inquietação com o tempo presente, sua pretensão de pensar a ética como um modo de vida – mesmo sentido atribuído à filosofia -, as diferenciações possíveis entre ética e moral, a ousadia e a coragem do “dizer verdadeiro”, as modificações de si, o cuidar-se, uma arte de viver como governo da própria vida, cuidado de si, governo de si, conversão a si e posse de si, modalidades, inquietações e modos outros de problematizar a vida impossíveis de ser considerados em qualquer estudo, ensaístico ou não, sobre as ciências da vida.

Para concluir, lembro algumas inflamadas palavras de Deleuze, escolhidas livremente em dois textos. No primeiro, “Carta a um crítico severo”, ele nos remete à busca possível dos funcionamentos, das engrenagens de uma obra, de um discurso, e se pergunta “como ele [texto] serviu ou serve? Serviu para quê?” Assim, o que interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual é a máquina! A interpretação de um texto remeteria à homogeneização do próprio acontecimento, do texto como acontecimento, do autor e do intérprete. Afetos, intensidades, experiências, experimentações são todos avaliados e os significados, atualizados por referências dadas e conhecidas anterior e antecipadamente. Na segunda obra, que escreveu com Claire Parnet, Deleuze diz que hoje devemos ler um livro como escutamos um disco: se gostamos, se a música nos toca de alguma maneira, se produz em nós efeitos, intensidades, afetos, seguimos ouvindo e ouvimos mais, mais e mais; mas se a música não nos toca, se ela não nos afeta, ou se nos afeta negativamente, abandonamos o disco, desligamos o rádio ou mudamos de estação. Com a obra de Portocarrero, é impossível não ser tocado. Fluxos novos, fruto de um laborioso trabalho de reflexão, mesmo sendo ensaística, como insiste a autora, são sedutoramente propostos por ela. Os textos funcionam como caleidoscópios, como experimentações, como fluxos, como provocações e desafios.

Ao contrário da escrita a ser interpretada, Deleuze sugere outra escrita, escrita-outra, escrita como fluxo, não como um código, a ser decifrado, a ter sua verdade e natureza encontradas, reveladas, resgatadas e, enfim, apresentadas e apreciadas. Com Deleuze, somos convidados a perceber as maneiras de ler um livro. Resumidamente, podemos considerá-lo como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado. Por isso, o comentário, a interpretação, as explicações se fazem necessárias, exigidas e defendidas. Porém existiria outra possibilidade: a leitura por intensidade, mais condizente com o livro de Portocarrero – o livro considerado como uma pequena máquina a-significante. Nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. Leitura tipo ligação elétrica, fluxo entre outros, que entra em relação de corrente, contracorrente, de redemoinho com outros fluxos, não só os da fala.

É disso que se trata. Com Deleuze, reconheço agenciamentos, fluxos e intensidades entre proposições, temas, problematizações, objetos, métodos, saberes, subjetivações e poderes, todos alinhavados, em conexão, em tensão. Histórias, desafios, prazeres de uma leitura, de um texto preciso, ensaístico, mas intenso e maduro, fruto de uma trajetória filosoficamente vivida e instruída.

Fábio Henrique Lopes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores – CASTRO (TES)

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Tradução Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 477 p. Resenha de: NARDI, Henrique Caetano. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

A obra de Michel Foucault ganhou um renascimento bibliográfico impulsionado pelos eventos que marcaram os 20 anos de sua morte, em 2004, ano do lançamento do livro de Edgardo Castro na Argentina que aqui apresento. O autor é doutor em Filosofia pela Universidade de Fri-burgo (Suíça) e professor de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de San Martín (Argentina). É também pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina, agência de fomento equivalente ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

A obra recebeu uma tradução cuidadosa em 2009, o que já é um primeiro mérito a destacar no texto. O livro é apresentado pelos revisores técnicos (Alfredo Veiga-Neto e Walter Omar Kohan), assim como pela tradutora (Ingrid Müller Xavier) como um ‘motor de busca’ que ajuda a percorrer a vasta obra de Foucault e sua preciosa e complexa caixa de ferramentas conceituais.

Não se trata de um motor de busca genérico e cabe aqui apresentar ao leitor as primeiras notas técnicas sobre o trabalho. O autor adverte que não se trata de uma obra exaustiva e que os crité-rios de inclusão dos verbetes (entradas) obedecem a uma leitura pessoal. Edgardo escolheu guiar o leitor nos aspectos menos conhecidos e menos explorados da obra de Foucault, apresentando, por exemplo, informações úteis para superar dificuldades linguísticas em relação aos termos em grego, assim como os autores menos conhecidos que Foucault cita. Obviamente ele não deixa de lado os conceitos e temas centrais e os pilares de sustentação da obra, os quais, por sua vez, ganharam espaço destacado no livro e, na minha leitura, compõem a parte do livro que é a mais rica em análise e a mais interessante para o leitor iniciante.

Como motor de busca, eu teria algumas críticas tanto em relação à edição original em espanhol, assim como à tradução para o português. A crítica se dá pela escolha do autor em referenciar os termos para edições em francês dos livros de Michel Foucault. Ou seja, se o leitor quiser buscar na fonte os termos ou conceitos apresentados terá de comprar edições em francês, algumas, inclusive, que não estão mais disponíveis, como, por exemplo, a edição em quatro volumes dos Ditos e escritos (1994) em francês que agora só é vendida na versão em dois volumes (2001). Em minha opinião, este objetivo da obra que se dedica a informar a localização de termos e autores não acrescenta muito ao que já está disponível nos Ditos e escritos publicados em francês, pois estes apresentam um índice remissivo e de autores exaustivo que orienta o leitor de forma mais eficaz que o proposto por Edgardo. A edição em português poderia ter corrigido este problema, mas não o fez. Outro alerta importante ao leitor é que o livro, como já assinalei acima, foi pu-blicado em 2004 e não incorpora os seminá- rios publicados na coleção Hautes Études, da Gallimard/Seuil, posteriores a 2003, fato este apontado pela tradutora. Não foram incluídos, portanto, os seminários: Sécurité, Territoire, Population (2004), Naissance de la Biopolitique (2004), Le Gouvernement de Soi et des Autres I (2008) e Le Gouvernement de Soi et des Autres II: le courage de la verité (2009).

Em comparação com outras obras de introdução e apresentação dos conceitos de Michel Foucault, o livro de Edgardo é o mais extenso dis-ponível em português. O livro de Judith Revel (2005), Michel Foucault: conceitos essenciais, editado pela Claraluz – tradução do livro Le vocabulaire de Foucault (2002), por exemplo, tem somente 33 entradas (verbetes); o livro de Edgardo tem 294 entradas (verbetes).

As grandes qualidades do livro estão na visão panorâmica da obra. Ele permite tanto ter uma compreensão extensa da caixa de ferramentais conceituais deixada por Foucault, assim como montagens preciosas de citações que marcam o percurso do autor. Edgardo adverte de que sua obra (p. 15) não deve ser vista a partir de um texto com ponto final, mas um ponto de partida para uma obra coletiva, um convite para explorar o trabalho de Foucault.

O estilo do texto do livro é relativamente uniforme, o autor propõe inicialmente uma breve introdução do conceito e na sequência encadeia uma série de citações relativas ao mesmo que aparecem em diferentes momentos da obra de Foucault, assim como os relaciona a outros conceitos/temas. Este formato torna a leitura um pouco truncada, mas, ao mesmo tempo, permite que acompanhemos as torções conceituais ao longo da obra, as quais tornam material a ideia de escrita como experiência, ou seja, como Foucault afirmava, a escrita tinha, para ele, a função de transformação, ele escrevia para não ser o mesmo.

Referências

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, v. I, II, III e IV. Paris: Gallimard, 1994. [ Links ]

______. Dits et écrits, v. I e II. Paris: Gallimard, 2001. [ Links ]

______. Sécurité, territoire, population. Paris: Ga-llimard, 2004. [ Links ]

______. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres I. Paris: Gallimard, 2008. [ Links ]

______. Le gouvernement de soi et des autres II: Le courage de la vérité. Paris: Gallimard, 2009. [ Links ]

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. [ Links ]

______. Le vocabulaire de Foucault. Paris: Ellipses, 2002. [ Links ]

Henrique Caetano Nardi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde – RAMOS (TES)

RAMOS, Marise. Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; UFRJ, 2010, 290 p. Resenha de: SAVIANI, Dermeval. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

Licenciada em Química em 1990 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marise Ramos passou a lecionar a disciplina físico-química no ensino médio e em 1995 concluiu o mestrado com a defesa da dissertação “Do ensino técnico à educação tecnológica: (a)-historicidade das políticas públicas dos anos 90”. Em 2001, concluiu o doutorado mediante a defesa da tese “Da qualificação à competência: deslocamento conceitual na relação trabalho-educação”, da qual resultou o livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?, publicado no mesmo ano de 2001. Entre 2002 e 2010, simultaneamente ao exercício da docência na Escola Politécnica da Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre o tema “trabalho, conhecimento e formação humana” como base teórica para o estudo da educação profissional em saúde. Do projeto “Educação profissional em saúde: concepções e práticas nas Escolas Técnicas do SUS” resultou o livro objeto desta resenha.

A obra trata das concepções, políticas e práticas da formação dos profissionais da saúde. Para o tratamento desse objeto a autora desenvolveu uma densa investigação baseada em fontes primárias colhidas por meio de pesquisa de campo junto aos agentes das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (ETSUS), apoiada numa ampla e significativa gama de fontes secundárias que lhe permitiram examinar as políticas de formação dos profissionais da saúde como expressão de projetos de formação humana em suas bases filosóficas e pedagógicas.

Cumprida a trajetória da pesquisa, Marise se dedicou à ordenação dos achados tendo em vista a socialização dos resultados alcançados. No método de exposição que guiou a escrita do livro, ela começa por aclarar as políticas que orientaram as ações das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde e, passando por um longo détour, desvela os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS reveladas pela pesquisa empírica. Em consequência, o livro se apresenta com a seguinte estrutura:

Após uma introdução em que situa e justifica a escolha do tema, a autora aborda as políticas de formação em saúde no Brasil no período de abrangência do estudo, isto é, entre 1980 e 2000. É essa a problemática tratada no primeiro capítulo denominado “Políticas de educação profissional em saúde no Brasil (1980 a 2000)”, no qual ela aborda a gênese das Escolas Técnicas do SUS, as concepções educacionais em disputa na origem dessas escolas, o Programa de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem, considerado como um diferencial na história das Escolas Técnicas do SUS, e a educação permanente que apresenta novos desafios para as referidas escolas técnicas.

Situado o objeto, a autora dele se afasta momentaneamente em busca das mediações filosóficas dos projetos de formação humana, das concepções de educação e das correntes pedagógicas. São esses os temas tratados respectivamente nos capítulos 2, 3 e 4.

No capítulo 2, “Projetos de formação humana e mediações históricas”, Marise começa pelo trabalho como base da formação humana na medida em que constitui a síntese da essência e da existência do ser humano; prossegue analisando as categorias de trabalho e práxis; e conclui com o estudo da prática e experiência no pragmatismo e na filosofia da práxis.

No capítulo 3, “Sentidos filosóficos e políticos da educação”, são analisadas a pedagogia da essência, a pedagogia da existência e sua superação pelas perspectivas de uma educação orientada pela filosofia da práxis.

O capítulo 4, “Um panorama sobre as correntes pedagógicas”, é dedicado ao estudo das pedagogias não críticas e das pedagogias críticas.

Apetrechada com esses elementos mediadores que asseguram a consistência de sua análise teórica, Marise retorna ao seu objeto sistematizando os elementos captados nos depoimentos dos educadores das Escolas Técnicas do SUS. É esse o objeto do capítulo 5, que examina os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS.

Completam a obra as “Conclusões”, nas quais se mostra a não confirmação das hipóteses iniciais, discutem-se as contradições presentes nas concepções dos agentes das Escolas Técnicas do SUS, resumem-se os principais resultados e se fecha a exposição com a constatação de que o referencial epistemológico e etico-político das políticas de educação profissional em saúde vem sendo hegemonizado, desde a década de 1980, pelo pragmatismo associado à micropolítica.

Se a hipótese inicial foi que a emergência da pedagogia das competências como orientação teórica se deveu a um vazio epistemológico e etico-político provocado pela tentativa da educação profissional em saúde de superar a supremacia tecnicista e conteudista no ensino, a conclusão revelada pela pesquisa não confirmou essa hipótese. O resultado a que se chegou indica que, em lugar do vazio epistemológico, aquela tentativa de superação das pedagogias tradicional e tecnicista se desenvolveu apoiada na epistemologia pragmatista na qual se funda o escolanovismo. Consequentemente, nas palavras da autora, “a pedagogia das competências se constituiu em referência para as escolas não em razão de uma lacuna teórica produzida por uma concepção epistemológica e pedagógica sincrética, mas sim pelo fato de essa pedagogia se constituir numa atualização do escolanovismo no contexto de indeterminações da sociedade contemporânea” (p. 276). Assim, em lugar da síncrese, o que se deu foi uma síntese entre o pragmatismo e a micropolítica que impediu a assunção da concepção de educação politécnica e omnilateral pelos trabalhadores das escolas técnicas da saúde.

Mas a autora encerra o trabalho observando que a hegemonia do pragmatismo associado à micropolítica é exercida em meio a contradições teóricas e práticas que, se adequadamente aprofundadas, podem abrir novas possibilidades, entre as quais destaca a perspectiva teórica por ela adotada e enunciada como “o referencial epistemológico e etico-político do materialismo histórico-dialético” que fundamenta a concepção de educação politécnica e omnilateral da formação humana.

Para tratar do tema específico da pesquisa voltado para a compreensão da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, a autora ampliou consideravelmente a abrangência do estudo ao fundamentar sua análise em considerações filosóficas sobre o trabalho como princípio educativo, sobre o significado filosófico e político da educação e sobre as correntes pedagógicas.

Destaque-se que Marise Ramos moveu-se de forma segura, guiada pelo método do materialismo histórico explicitamente assumido, corretamente compreendido e aplicado de forma coerente e competente.

Desenvolvendo um trabalho original pelo tema tratado, pelas fontes utilizadas, pela perspectiva teórico-metodológica e pelo método adotado no trato das fontes, na construção da pesquisa empírica e na análise dos resultados, a autora traz contribuições importantes para fazer avançar o debate sobre as relações entre educação e trabalho de modo geral e, especificamente, sobre a educação profissional.

Considerando o recorte temático, o livro interessa de modo imediato e direto aos profissionais da saúde, com destaque para os professores e alunos das escolas técnicas de saúde, além dos pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação da área de Educação e Trabalho. No entanto, como situa a questão específica no quadro mais amplo da fundamentação filosófica, política e pedagógica referente à relação entre educação e trabalho e às correntes pedagógicas, esta publicação interessa a todos os que trabalham no campo da educação profissional, da política educacional, da história e filosofia da educação e das teorias pedagógicas.

Em suma, pela atualidade, originalidade e relevância do tema tratado, assim como pela clareza e consistência da fundamentação teórica, o livro Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, de Marise Ramos, traz uma contribuição importante para um melhor entendimento do momentoso problema da educação profissional e se constitui num material de grande utilidade para as atividades de gestores, professores e estudantes das escolas técnicas, dos cursos de pedagogia e demais cursos de formação de professores.

Dermeval Saviani – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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Conhecimento e imaginário social – BLOOR (TES)

BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. Tradução de Marcelo do Amaral Penna–Forte. São Paulo: Editora Unesp, 2009, 300 p. Resenha de: SPIESS, Maiko Rafael. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.8, n.2, Rio de Janeiro, jul./out. 2010.

Em diversas áreas do conhecimento, existem obras clássicas que são amplamente reconhecidas e discutidas, e cuja importância e influência persistem após muitos anos de sua publicação original. O livro Conhecimento e imaginário social, de David Bloor, lançado originalmente em 1976, é certamente uma destas obras. Desde seu lançamento, este livro – curiosamente, muitas vezes mais comentado do que propriamente lido – é considerado como uma das principais portas de entrada para a então nascente sociologia do conhecimento científico, que, sob a influência de pensadores como Mannhein, Kuhn e Wittgenstein, possibilitou a análise da produção científica através de uma perspectiva distinta da tradição mertoniana. De fato, a partir do marco simbólico representado pela obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn (1962), o foco de análise sociológica sobre a atividade científica foi sendo gradativamente alterado: ao invés da investigação sobre os mecanismos de interação e as normas internas dos cientistas, a sociologia passou a investigar também o próprio ‘conteúdo’ da ciência. Em outras palavras, a atividade científica passou a ser analisada como o resultado de determinadas práticas sociais específicas, mas não privilegiadas ou intrinsecamente distintas das demais atividades humanas e, portanto, um objeto passível de análise sociológica (Knorr-Cetina & Mulkay, 1983). Neste sentido, Conhecimento e imaginário social contribuiu fundamentalmente para o processo de consolidação desta abordagem ao conhecimento científico.

De fato, na ocasião do lançamento da segunda edição em inglês do livro, em 1991, a possibilidade de análise social a respeito da ciência já havia se institucionalizado, resultando na emergência de um prolífico campo multidisciplinar, conhecido internacionalmente como Sciencantechnology studies.1 Neste contexto, os leitores de Conhecimento e imaginárisociaeram sociólogos, filósofos, historiadores, antropólogos e até mesmo cientistas de áreas exatas e aplicadas, que compunham este campo de estudos e reconheciam a obra de Bloor como uma das principais inspirações para sua área de atuação. Sobretudo, convém salientar que os quatro princípios estabelecidos para o ‘programa forte da sociologia do conhecimento’ (causalidade, imparcialidade, simetria e reflexividade), compartilhados pelos colaboradores de Bloor na ‘Escola de Edimburgo’, e delineados no primeiro capítulo do livro, influenciaram, direta ou indiretamente, diversos autores seminais deste campo, tais como Harry M. Collins e até mesmo Bruno Latour. Assim, dado o contexto de seu surgimento e sua influência posterior, torna-se impossível negar o alcance e importância desta obra.

Por conta de seu conteúdo e ineditismo, a edição lançada recentemente pela Editora Unesp, com tradução de Marcelo do Amaral Penna-Forte, serve tanto ao leitor brasileiro das áreas de filosofia e epistemologia, quanto ao leitor familiarizado com os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Trata-se de uma obra instigante (mas também um tanto árdua para leitores menos familiarizados com certos debates filosóficos), que se dedica principalmente à construção da legitimidade da análise sociológica do ‘conteúdo’ do conhecimento científico, justamente através da descrição daquilo que o autor chama de ‘programa forte’, e de sua aplicação aos casos mais extremos possíveis: a ‘lógica’ e o ‘conhecimento matemático’, ambas disciplinas consideradas exemplos de objetividade e neutralidade.

O livro está dividido em três grandes partes. A primeira parte, composta pelos quatro capítulos iniciais, refere-se ao programa forte da sociologia do conhecimento científico, seus preceitos, fundamentos e sua relação com a filosofia da ciência e também com as demais disciplinas científicas. Nestes primeiros capítulos, o autor procura demonstrar que, para além da superação das acusações de ‘idealismo’ e ‘subjetivismo’, o sucesso da sociologia do conhecimento científico está relacionado, de fato, com a adoção de uma postura científica tradicional, incorporando “os mesmos valores assegurados em outras disciplinas” (p. 21).

Aparentemente, Bloor estava consciente das possíveis consequências desta postura de ‘estudo científico da ciência’: ele reconhece que a ideia de uma sociologia da ciência pode parecer uma heresia, ou um ataque à ciência moderna, e sugere que a postura tradicional dos cientistas, de ausência total de questionamentos sobre a ciência, assemelha-se à manutenção da sacralidade do conhecimento religioso, conforme estudado por Durkheim. A aura quase impenetrável destas formas de conhecimento deve ser mantida por seus praticantes, sob pena de a investigação sistemática de seu funcionamento acabar com seu caráter privilegiado. Em especial, para o autor, esta postura de preservação da ciência é justamente a causa do ocultamento da influência dos demais fatores sociais sobre a produção científica.

Apesar dos possíveis ataques e críticas de cientistas e filósofos, Bloor insiste que

A poderosa imagem de Durkheim pode ser empregada com a suposição de que, quando pensamos sobre a natureza do conhecimento, o que estamos fazendo é, indiretamente, refletir sobre os princípios segundo os quais a sociedade é organizada. (p. 85)

Desta maneira, é possível concluir que se todo conhecimento diz algo a respeito da sociedade onde ele foi criado, então o conhecimento religioso e o conhecimento científico, ou as crenças ‘corretas’ e ‘erradas’ podem ser consideradas de modo ‘simétrico’, pois possuem valor explicativo semelhante:

O mundo pode ser povoado por espíritos invisíveis em uma cultura e por partículas atômicas sólidas e indivisíveis (mas igualmente invisíveis) em outra (p. 70).

Em outras palavras, este tratamento simétrico exposto acima e a busca pela ‘causalidade’ do conhecimento científico permitem construir uma perspectiva em que a disciplina sociológica e os fatores sociais não sejam aplicados apenas para explicar os erros e distorções no conhecimento científico, mas principalmente para compreender a determinação do contexto social sobre as descobertas e enunciados científicos, o papel da natureza e da experiência empírica no processo de construção consensual da ‘verdade’, e até mesmo as condições para a existência do próprio conhecimento sociológico.

Uma vez expostas estas premissas do programa forte, a segunda parte da obra apresenta uma análise do conhecimento matemático, procurando identificar diversos aspectos da influência social em seu conteúdo. O quinto capítulo inicia-se apresentando a ideia da autoridade moral imposta pelo caráter autoevidente e persuasivo dos enunciados e sequências lógicas da matemática. A partir disso, procura desconstruir esta autoridade, discutindo a ‘natureza’ das construções matemáticas, opondo e reordenando as ideias de pensadores como Mill e Frege, de modo a agrupar argumentos que possibilitem identificar os diversos elementos de causalidade do conhecimento matemático (p. 160).

No capítulo seguinte, Bloor expande esta perspectiva, discutindo a ideia de que pode existir “variação na matemática assim como há variação na organização social” (p. 163), utilizando-se de exemplos de ‘matemática alternativa’, tais como o estilo cognitivo diferenciado da matemática grega antiga (p. 167) ou as condições sociais que permitiram o surgimento da noção dos números irracionais (p. 184). Com isso, afirma que existe a possibilidade de variações no pensamento matemático, que podem ser explicadas através de causas sociais, ao mesmo tempo em que nega a existência de uma realidade matemática definitiva, exterior aos indivíduos. Este raciocínio se aprofunda no capítulo sete, dedicado ao processo de ‘negociação’ da lógica matemática, especialmente em relação aos contra-exemplos e processos de construção de provas de determinados teoremas. Por exemplo, ao utilizar-se da análise de Lakatos sobre o teorema dos poliedros de Euler (p. 219), Bloor demonstra o caráter negociado das definições matemáticas:

A invenção de novas ideias de prova ou de novos modelos de inferência pode alterar radicalmente o significado de um resultado lógico informal ou matemático informal. (…) Essa abertura à invenção e negociação, com todas suas possibilidades de reordenar a atividade matemática anterior, significa que qualquer formalização pode ser subvertida. Ou seja: quaisquer regras podem ser reinterpretadas e desenvolvidas de novos modos (p. 228).

O capítulo oito apresenta sinteticamente as conclusões decorrentes das reflexões teóricas e dos exemplos empíricos apresentados: inicialmente, Bloor insiste no caráter socialmente determinado do conhecimento, da lógica e da noção de objetividade. O conhecimento é concebido, afinal, como conjectural e relativo, tão subordinado ao contexto social de sua produção, quanto à realidade material que ele analisa. Além disso, o autor reafirma a necessidade de associar as ciências sociais, tanto quanto possível, ao método das ciências tradicionais; afinal, a ciência é a “nossa forma de conhecimento” (p. 240), e somente assim a sociologia do conhecimento poderia encontrar seu devido lugar entre as demais ciências.

Finalmente, na terceira parte do livro (apresentada na forma de posfácio), Bloor analisa algumas das críticas à primeira edição da obra, notadamente em relação às acusações recorrentes sobre a ingenuidade, idealismo, imparcialidade do programa forte. Sem grande surpresa, Bloor indica que muitas das críticas são baseadas em entendimentos incorretos a respeito das teses do livro, decorrentes principalmente da resistência generalizada ao processo de dessacralização da ciência, possivelmente decorrente das aplicações do programa forte. De modo significativo, o autor volta-se para a própria obra para defendê-la, tornando o posfácio uma parte interessante e historicamente relevante, mas realmente dispensável para a compreensão geral das teses do livro.

Em relação à edição brasileira, o projeto gráfico é agradável e a tradução é fiel ao tom original da escrita de Bloor. Todavia, é necessário ressaltar a existência de alguns poucos erros de tradução e digitação como, por exemplo, na página 131 onde se lê “Questão mais controversa é se a sociologia pode atingir o âmago do conhecimento sociológico [sic, grifo nosso]”, quando na realidade o original refere-se ao conhecimento matemático. 1

Em linhas gerais, para o leitor brasileiro contemporâneo, Conhecimento e imaginário social é uma obra importante para a compreensão da emergência e consolidação de uma área especializada das ciências humanas, os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Mais especificamente, para o leitor pouco familiarizado com este campo, ou para aqueles que abordam a questão através da filosofia ou da matemática, trata-se de um livro desafiador, que faz jus às ciências exatas, ao mesmo tempo em que expõe algumas de suas particularidades e inconsistências internas, que normalmente são obscurecidas pelas reconstruções históricas de seus próprios praticantes.

Notas

1 No Brasil, este campo ficou conhecido como “Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia” (ESCT).

2 “A more controversial question is whether sociology can touch the very heart of mathematical knowledge” (Bloor, 1991, p. 84).

Referências

BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. [ Links ]

KNORR-CETINA, K; MULKAY, M. Introduction: Emerging Principles in Social Studies of Science. In: KNORR-CETINA, K; MULKAY, M (Ed.). Science Observed. Perspectives on the Social Study of Technology. Sage Publications: London/Beverly Hills/New Delhi, 1983. [ Links ]

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989. [ Links ]

ROOSTH, Sophia; SILBEY, Susan. Science and Technology Studies: From Controversies to Post-Humanist Social Theory. In: TURNER, Bryan S. The New Blackwell Companion to Social Theory. London: Blackwell Publishing Ltd, 2009. [ Links ]

Maiko Rafael Spiess – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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O que é o SUS? – PAIM (TES)

PAIM, Jairnilson Silva. O que é o SUS?. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, 148 p. Resenha de: LIMA, Sylvia Marisa Braga de; MATTA, Gustavo Corrêa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.1,  mar./jun. 2010.

O que é o SUS?, título do novo livro de Jairnilson Silva Paim, reconhecido pensador baiano e militante da Reforma Sanitária Brasileira, pode nos levar a pensar imediatamente algumas questões: Para que mais um livro sobre a história e organização do Sistema Único de Saúde (SUS)? Já não teríamos o bastante, das mais variadas formas e conteúdo?; O que é o SUS? nos remeteria a pensar o que ‘não’ é o SUS? Difícil resposta em tempos de indistinção paradigmática entre público e privado, entre Estado e sociedade; Em função da diversidade de serviços, políticas e ideologias que atravessam o sistema de saúde brasileiro, como discutir de forma original e sintética os principais elementos que o constituem ao mesmo tempo apresentando seus principais desafios e contradições?

Na realidade, essas questões apontam para desafios, obstáculos literário, científico e político, que, em primeira mão, poderiam ser colocados em segundo plano para um livro que, de acordo com o autor, não pretende ser “uma obra acadêmica voltada para estudiosos e pesquisadores” (p. 9). Mas não é o que se observa neste livro que, apesar de pretender alcançar um público mais amplo e não necessariamente iniciado nas discussões acadêmicas e políticas sobre a reforma sanitária brasileira. Sua virtude é a capacidade de dialogar e apresentar teses muito caras ao pensamento sanitário brasileiro de forma clara, simples e, ao mesmo tempo, sem perder a densidade de sua dimensão política, ética e social. Aliás, características inerentes à trajetória de Paim, ao longo de tantos anos de contribuições e militância política na construção do SUS.

O livro está organizado em cinco capítulos que podemos identificar como temas que englobam desde a concepção de saúde e de sistema de saúde, passando pelo processo histórico de construção das políticas de saúde e da reforma sanitária brasileira, chegando aos elementos legais e institucionais do SUS, além de refletir sobre seus avanços e desafios.

Realmente, a linguagem proposta por Paim é simples, mas sem perder a densidade, como fazem os grandes sábios. Portanto, seu auditório é amplo. É composto por estudantes, docentes, cidadãos, gestores, profissionais de saúde, entre outros. Enfim, todos aqueles que têm em comum a alma crítica e atenta às crenças e valores da reforma sanitária brasileira e lutam para a consolidação do SUS.

Ao final do livro, Paim convida o leitor para seguir discutindo o SUS por meio de sugestões de leituras que vão desde documentos históricos, no marco da reforma, como “A questão democrática na área de saúde”, publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1980, até seu próprio livro Reforma sanitária brasileira: contribuição para compreensão e crítica, de 2008, no qual Paim aprofunda muitos dos temas debatidos aqui e suas propostas para fazer avançar o SUS.

Gostaríamos, para ampliar o debate, de destacar três grandes momentos do livro, entre vários que poderíamos selecionar, onde o autor apresenta de forma crítica e contundente suas posições, deixando de lado o didatismo descritivo e a eloquência característica dos livros que louvam e idealizam o SUS, alienando-o da materialidade histórica a que pertence.

“O SUS ‘não é’ um mero meio de financiamento e de repasse de recursos federais para estados, municípios, hospitais, profissionais e serviços de saúde. ‘Não é’ um sistema de serviços de saúde destinados aos pobres e ‘indigentes’. Pelo menos não é isso que se encontra na constituição e nas leis, nem é o proposto pela RSB” (p. 72)

No livro, Paim explora, denuncia e aponta soluções para as distorções que o SUS vem sofrendo ao longo dos anos. Relaciona, sobretudo, seus impasses com o cenário político e econômico das últimas décadas, bem como com a cultura política e o histórico de malversações do erário público e os diversos interesses econômicos e ideológicos que estão em jogo na arena da seguridade social brasileira.

De um lado, há o evidente interesse do famigerado complexo médico-industrial brasileiro na transformação de toda e qualquer ação e serviço de saúde numa relação de mercado, de consumo e de acúmulo de capital por parte de empresas nacionais e internacionais. Isso faz com que, muitas vezes, ‘em defesa do SUS’, estratégias de gestão público/privado sejam colocadas em cena, fazendo do sistema um mero distribuidor de recursos e um regulador das relações entre público e privado.

Além disso, em nome da equidade e da escassez de recursos para o setor público de saúde no Brasil, o SUS transmuta-se numa expressão focalizada das políticas sociais voltadas para pobres e desassistidos de toda a sorte. Isso não quer dizer que não se devem priorizar os que mais necessitam, mas reduzir as ações e serviços de saúde a uma classe social é fazer do SUS o amortecedor social para a delimitação das áreas livres para exploração dos planos de saúde privados e do livre mercado no setor saúde. Este SUS é o oposto da proposta de direito à saúde que está inscrita na constituição de 1988 e que foi resultado de uma histórica e ampla conquista popular.

Estas reflexões nos levam ao segundo grande momento que pretendemos destacar.

“A constituição estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, mas em nenhum momento condena o SUS a ser refém da ‘administração direta’. Novas institucionalidades podem ser concebidas e pesquisadas no âmbito da ‘administração indireta’ que, além de garantir maior efetividade e qualidade dos serviços prestados, facilitem uma ‘blindagem’ contra o predomínio de interesses político-partidários e corporativos na gestão do sistema e na gerência de programas e serviços” (p. 131).

O autor aqui apresenta uma preocupação fundamental em relação aos usos que governos, políticos e partidos políticos fazem do SUS nas suas diversas esferas de atuação (federal, estadual e municipal), não seguindo os princípios, diretrizes, resoluções de impacto orçamentário e administrativo que dão forma e conteúdo ao SUS. Pelo contrário, observa-se com muita frequência o desvio de recursos para fins distintos do setor saúde e a adoção de ações e serviços que não atendem, por exemplo, a universalidade e integralidade da atenção à saúde. Além disso, entraves burocráticos e administrativos da gestão pública impedem a resolubilidade e a qualidade do SUS, que muitas vezes requerem agilidade e inteligência para atuar com rapidez e estrategicamente.

Por outro lado, o que Paim chama de blindagem política do SUS, com todas as razões coerentes e necessárias que argumenta, poderia colocar em xeque o processo político e social inerente à própria constituição democrática do SUS. Cabe à sociedade e ao Estado fortalecer as instituições sociais e radicalizar as formas de representação e participação para fazer cumprir, de forma democrática e dialógica, os objetivos e as estratégias para o direito à saúde no Brasil.

Em relação a isso, no terceiro momento que destacamos, Paim conclama a sociedade para lutar, novamente e ininterruptamente, pela emancipação social que o SUS representa.

“Daí a pertinência de revisitarmos a reforma sanitária e ampliarmos suas bases sociais e políticas, no sentido de radicalizar a democracia e lutar pelas mudanças prometidas no seu ‘projeto’. Nessa perspectiva, retomar mobilizações em prol do desenvolvimento de uma consciência sanitária na população e entre os trabalhadores do SUS parece-nos inadiável. Informar, comunicar, conscientizar, mobilizar, organizar e pressionar são verbos que conotam ações fundamentais para a defesa do SUS e o avanço da reforma sanitária” (p. 132).

Com esta chamada para retomar o movimento sanitário, ampliando suas bases, sofisticando seus dispositivos e fortalecendo a consciência política coletiva, Paim retoma sua trajetória, jamais abandonada, de militância e esperança nas conquistas sociais pela saúde.

A fim de se garantir os direitos dos cidadãos usuários do SUS, o autor lista medidas a serem cumpridas e direitos dos pacientes, tomando em especial atenção as questões de financiamento, humanização e ética. Defende que a luta pelo direito à saúde passa, necessariamente, pela reorientação das políticas públicas, econômicas e sociais que favoreçam a redução das desigualdades, a cidadania plena, a qualidade de vida e a democracia.

Em resumo, o livro O que é o SUS? não é apenas mais uma obra sobre o processo histórico de construção da Reforma Sanitária Brasileira e suas conquistas, mas principalmente um texto que fornece uma base sólida e crítica para a defesa do SUS e da democracia. É um manual de bolso para conhecermos os avanços, as contradições, os desafios e uma pauta de luta para todos os cidadãos brasileiros, profissionais de saúde ou não, em defesa da vida, da emancipação social e da saúde como um direito humano e universal.

Sylvia Marisa Braga de Lima – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

Gustavo Corrêa Matta – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Os marxismos do novo século – ALTAMIRA (TES)

ALTAMIRA, César. Os marxismos do novo século. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, 460 p. Resenha de: COELHO, Eurelino. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.1, mar./jun., 2010.

Era para ser o fim do marxismo, de novo. Após as crises terminais da URSS e dos regimes políticos e econômicos que foram construídos no Leste Europeu depois do final da Segunda Guerra Mundial não faltaram vozes anunciando a desaparição iminente do marxismo dos meios intelectuais e dos espaços políticos em que ele existira até então. Ou então era a pós-modernidade que, ao transformar profundamente todas as dimensões da realidade, terminava deixando o pensamento marxista desprovido de referente. Em qualquer dos casos, de acordo com esses profetas, o marxismo estava em vias de tornar-se uma peça de antiquário, mais uma lápide no cemitério das idéias e da política.

Ocorreu, porém, que mais uma vez a profecia era falsa. O marxismo não apenas sobrevive, apesar de tudo, mas foi capaz de se renovar e de abordar de modo original e profícuo os próprios temas que supostamente teriam determinado a sua extinção. O livro de César Altamira discute a emergência desses ‘marxismos do novo século’ contra o pano de fundo das transformações que incidiram sobre o mundo da luta de classes no final do século XX. O contexto do aparecimento desses novos marxismos é o da grande crise capitalista global da década de 1970 que pôs fim aos 25 anos ‘gloriosos’ de crescimento do capitalismo. Por ‘novos marxismos’ devemos entender, basicamente, três grupos de intelectuais que ganharam evidência nesse período, a saber: a chamada Escola Francesa da Regulação, os autores que publicam nas revistas Common Sense e Capital & Class (chamados também de open marxism) e o operaísmo italiano, juntamente com seu desdobramento ‘autonomista’ que, dos três, é aquele com o qual Altamira mais se identifica e que ele melhor descreve e analisa. Com a possível exceção dos regulacionistas, são autores relativamente pouco publicados e lidos no Brasil, o que já confere ao livro de Altamira o mérito de apresentá-los aos leitores brasileiros.

No entanto, o autor faz bem mais do que apresentar os ‘novos marxismos’. Sua análise da crise dos anos 70 é parametrizada pelas categorias teóricas do operaísmo, sobretudo a obra de Toni Negri. O desenvolvimento do capitalismo – e suas crises – não são pensados como movimentos cuja lógica seja interna ao capital, mas como fenômenos gerados pelo conflito entre o capital e o trabalho: “A crise não pode ser considerada expressão de leis imanentes que conduzem o sistema ao estancamento e à paralisia do desenvolvimento. Deve sim ser apreendida a partir da ação operária que enfrenta o capital como sujeito antagônico” (p. 63). Assim, a grande crise dos 70 foi a manifestação do apogeu da combatividade do operário-massa, a forma assumida pelo trabalhador coletivo no período do fordismo. A resposta do capitalismo veio na forma da globalização e da aceleração da incorporação de capital fixo (mudanças tecnológicas), medidas com as quais se buscava “controlar as ameaças trazidas pelos conflitos de classe” (p. 67) e que tiveram como consequência a produção de uma nova ‘composição de classe’, o engendramento de um novo trabalhador coletivo – o operário social, substituto histórico do operário-massa fordista. Não é mais a velha fábrica fordista o lugar privilegiado da exploração da força de trabalho na produção de valor, mas sim o conjunto da sociedade. Poder-se-ia falar numa ‘fábrica social’ na medida em que as “diversas atividades a que se dedicam as pessoas, não apenas como trabalhadores, mas também como estudantes, consumidores, compradores, telespectadores estarão diretamente ligadas ao processo de produção” (p. 76).

Trata-se de uma expansão sem precedentes do trabalho assalariado e, por conseguinte, do antagonismo capital-trabalho. Para Altamira, seguindo de perto as indicações operaístas, o operário social é o novo sujeito histórico que antagoniza o capitalismo pós-moderno. Seria um ‘trabalhador de tipo novo’, caracterizado por estar imerso em redes comunicacionais e pela “forte e cada vez mais próxima recomposição e combinação entre tempo de trabalho e tempo de vida” (p. 77). Para o capital o objetivo passa a ser o de apropriar-se da cooperação coletiva e de seu substrato, a capacidade comunicacional dos trabalhadores.

Esta caracterização do contexto de emergência dos novos marxismos choca-se violentamente contra as alegações de autores para quem as novas configurações da vida social contemporânea teriam aposentado as análises marxistas. Altamira sabe disso e comenta alguns desses autores em sua longa introdução, o que agrega ao texto mais um valor: ele constrói sólidas refutações marxistas para algumas teses bastante difundidas e pouco contestadas, como as de Laclau e Mouffe, Alberto Melucci ou Alvin Tofler.

Ao texto não faltam ousadia e espírito polêmico, inclusive contra posições no interior do marxismo, pois, para Altamira, nem todo marxismo está preparado para os desafios do século XXI. As “novas genealogias marxistas capazes de imaginar um horizonte crítico diferente” são precisamente aquelas que não se deixam atingir pela “desintegração do bolchevismo”. O leninismo, esse sim, foi superado pela história porque era “um marxismo super-adaptado a um momento particular do desenvolvimento do capitalismo que, consubstanciado no fordismo, adquiriu características próprias: divisão taylorista do trabalho, mecanização industrial, ênfase na organização de massa, etc.” (p. 23).

Não será menor, entre os leitores marxistas, a polêmica provocada por seu endosso à recusa da dialética propugnada por Toni Negri. Ele aborda a questão nos dois últimos capítulos explorando os principais pontos de divergência entre os autores ligados ao open marxism e o operaísmo. Os primeiros, inspirados pela dialética negativa de Adorno, admitem a presença do sujeito no objeto negado. A existência do sujeito trabalhador é concebida não apenas contra, mas dentro do capital, como sua contradição. A relação entre os polos capital e trabalho não é de exterioridade, mas de determinação dialética e o capitalismo é constituído por esta contradição imanente. A emancipação do trabalho, nesta perspectiva, passa pela dissolução (Auflösung) da contradição. Negri (e Altamira), ao contrário, postula uma negação não dialética entre o capital e o trabalho, uma relação de exterioridade e antagonismo que enfatiza a autonomia ontológica do trabalho perante o capital. Altamira interpreta esta posição como sendo a afirmação da materialidade da classe operária em contraposição à visão do marxismo crítico e do open marxism na qual, como no Lukács de História e consciência de classe, “os trabalhadores considerados de maneira concreta e direta, em carne e osso, parecem estar ausentes” (p. 333). O antagonismo tem caráter absoluto e sua solução exige a destruição do oponente. Altamira ainda extrai, dessa dissensão, desdobramentos no plano da organização política: enquanto o open marxism aposta na crítica e na compreensão das contradições, o operaísmo engaja-se na atividade espontânea das lutas dos trabalhadores (mantendo-se, assim, mais próximo de Lenin, apesar de tudo). O capítulo final prolonga esta contraposição para o terreno epistemológico. Contra o perfilhamento clássico do marxismo no campo da dialética, que Altamira (seguindo, mais uma vez, Negri) identifica como o “eixo teórico Hobbes-Rousseau-Hegel-Marx” ele propõe outro eixo, notadamente materialista: Maquiavel-Spinoza-Marx. O exame de aproximações e divergências entre os pensamentos de Althusser e Deleuze servem de guia para as contribuições que ele propõe ‘para uma teoria do conhecimento materialista’, o título do último capítulo.

Por mais incômodo que provoquem, as idéias de Altamira não são fáceis de atacar. Inútil cobrar delas fidelidade estrita aos textos de Marx, já que o autor não se cansa de repetir que está interessado na renovação do marxismo, o que inclui permitir-se selecionar criteriosamente os elementos que perduram daqueles que ficaram datados na obra marxiana. O caminho mais promissor para uma crítica parece ser o de testar a validade lógica, histórica e política dos argumentos, ou seja, aceitar o debate nos termos propostos por ele. Poderíamos também indagar sobre a relação entre o tipo de crítica que ele nos propõe e as lutas da classe trabalhadora ‘de carne e osso’ e insinuar que haja aí, talvez, uma dialética. Ou argumentar que ainda existem bons motivos para formularmos questões sobre o problema da consciência de classe a partir de observações de fenômenos que não se deixam explicar pela mera ‘afirmação do ser’ deleuziana. Ou mesmo poderíamos nos perguntar sobre se as noções de composição de classe e antagonismo absoluto deixam espaço para uma formulação adequada do problema da dominação de classe, considerando-se que o capital não foi, afinal, derrotado.

A relevância das questões propostas por César Altamira e a qualidade da sua formulação, não importa se concordamos com as respostas que ele nos dá, constituem razão mais do que suficiente para que seu livro seja lido. Seu maior mérito, porém, talvez seja outro. Ao invés de apenas reivindicar a validade ou a atualidade do marxismo, Altamira trata de procurar desenvolver o marxismo aplicando-o a temas da contemporaneidade. Ele não apenas nos fala dos marxismos do novo século: ele nos dá um texto que é a prova concreta de que o marxismo continua vivo e capaz de enfrentar as questões do nosso tempo.

Eurelino Coelho – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]

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Capitalismo, Estado e Educação – LUCENA (TES)

LUCENA, Carlos (Org.). Capitalismo, Estado e Educação. Campinas: Alínea, 2008, 217 p. PREVITALLI, Fabiane Santana. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 2, p. 397-401, jul./out.2009.

Importante obra organizada pelo professor e cientista social, doutor em Filosofia e História da Educação, Carlos Lucena, lançada no segundo semestre de 2008 pela editora Alínea. Os artigos reunidos no livro apresentam um diagnóstico do processo de mundialização do capital que, na visão dos autores, ocorre sob a hegemonia das políticas neoliberais, das mudanças tecnológicas, bem como sob o discurso ideológico da valorização da educação.

Contrários às teorias que afirmam as regras do livre mercado como fatalidade ou, parafraseando Carlos Lucena, como sendo “o fim da História”, os autores analisam o intenso processo de mundialização do capital como processo histórico no âmbito das lutas de classes e problematizam seus impactos sobre o trabalho e a educação.

A obra está organizada em dez capítulos.

Os dois primeiros centram a análise na relação entre globalização e mundialização do capital e da educação. Olinda Maria Noronha, no primeiro capítulo, “Globalização, mundialização e educação”, enfatiza as ações dos organismos internacionais no sentido de promover um novo tipo de educação, de pedagogia e de formação de professores, os quais privilegiam um saber fazer pragmático e utilitário que é requerido pelo mercado. No segundo capítulo, “Globalização capitalista e apropriação”, Lucília e Janaína Machado relacionam a questão ambiental e da educação no âmbito do processo de globalização, ressaltando os desafios educacionais e ambientais em função da lógica do sistema de produção e circulação de mercadorias. Para as autoras, embora o desenvolvimento sustentável esteja sendo discutido como novo paradigma conceitual e político, são enormes as dificuldades para o cumprimento de resoluções e planos de ação em razão da racionalidade econômica capitalista à qual está subordinada a cidadania.

No terceiro capítulo, “Transformações no Estado-Nação e impactos na educação”, o autor José Luís Sanfelice faz uma síntese bastante elucidativa sobre o processo histórico de formação e transformação do Estado-Nação e demonstra como a educação, à medida que a globalização avança, vai se tornando um serviço privado e perdendo seu sentido fundamental que é permitir o acesso dos seres humanos à cultura e a conhecimentos disponíveis, assumindo assim um caráter acentuadamente mercantilizado. Nesse contexto, Sanfelice destaca o papel da ciência e da tecnologia como elementos de dominação na relação geopolítica entre os Estados capitalistas centrais e periféricos, contribuindo para que permaneçam intocadas as determinações estruturais da sociedade sob a lógica do capital.

A questão da ciência e da tecnologia também é abordada por Carlos Lucena, no quarto capítulo do livro. Sob o título “Mundialização, ciência e tecnologia”, o autor debruça-se sobre os pressupostos teóricos das crises do capitalismo e questiona a neutralidade da ciência e da tecnologia uma vez que a base das mesmas assenta-se na própria reprodução do capital.

Para Lucena, “a ciência não é uma invenção do capitalismo, até porque ela é tão antiga quanto a humanidade, mas o capitalismo inventou formas de explorá-la, subjugando seus resultados a seus interesses” (pág. 91).

O quinto e o sexto capítulos discutem a questão da reestruturação produtiva do capital era protagonizado pelos jesuítas, pautado pela aquisição do saber clássico acumulado pela civilização ocidental cristã. Era um ensino altamente refinado e eficiente para os fins sociais e culturais do poder hegemônico. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, os autores resgatam as reformas pombalinas, as quais transferiram a educação quase que exclusivamente a cargo das famílias pertencentes à aristocracia agrária escravocrata.

Com o advento da República, o traço elitista permaneceu. Foi somente na ditadura militar que a expansão do ensino tornou-se uma realidade ou, nas palavras dos autores, “que a sociedade brasileira deixou, na realidade, de ser uma ‘sociedade sem escolas’”. Todavia, o traço característico da constituição da educação brasileira é a sua dualidade: escolas de ensino precário para as classes populares e escolas eficientes para as elites.

O quinto e o sexto capítulos discutem a questão da reestruturação produtiva do capital e seus impactos no mundo do trabalho no contexto internacional e no Brasil, respectivamente. Em “La precariedad como paradigma de la reestrutucturación capitalista em la fase de la crisis estructural”, Luciano Vasapollo demonstra o quadro do desemprego, bem como o depauperamento das condições de trabalho e do aumento da pobreza, tomando como referência os Estados Unidos e a Europa. Ao caracterizar a reestruturação produtiva do capital, o autor foca sua análise na formação de um “novo sujeito do mundo do trabalho (…) que é determinado não somente pelas transformações nas atividades produtivas, mas também por sua configuração sócio-política e sua capacidade de organizar- se em um novo movimento sindical que saiba interpretar as necessidades de emancipação” (pág. 121-122).

Ricardo Antunes, em “Riqueza e miséria do trabalho no Brasil”, apresenta, a partir de um conjunto de estudos setoriais realizados por diversos autores, as principais tendências da reestruturação produtiva no Brasil sob a égide do neoliberalismo, apontando a centralidade do desemprego global, da flexibilização e da precarização do trabalho como fenômenos dominantes e como estratégias de dominação nessa nova fase do capital.

No sétimo capítulo do livro, “Estado, políticas públicas e educação no Brasil”, Antonio Bosco de Lima analisa a crise do Estado capitalista como um processo de revigoramento da reprodução do capital por meio do recurso de fortalecimento do mercado. O autor apresenta uma interessante análise do Estado na perspectiva do pensamento político liberal e da teoria marxista, tecendo contundentes críticas ao liberalismo e neoliberalismo. No centro dessa discussão está a escola pública que, para Bosco, “(…) é um aparelho do Estado que, de acordo com os neoliberais, precisa ser controlada pelo mercado” (pág. 147). Estabelece-se, portanto, uma disputa no campo político-ideológico em que, de um lado, encontra-se a comunidade educacional para quem há a necessidade de uma escola mais democrática e, de outro lado, o pensamento neoliberal dominante pelo qual é preciso tirar o conteúdo político das escolas.

Assim, segundo o autor, não é o conteúdo da escola que está em crise, tampouco a educação formal, mas o modelo de escola na sociedade regida pela lógica do capital.

Tendo como objeto de discussão a noção de dignidade e de direitos do homem, Robson Luiz de França, no oitavo capítulo “O trabalho como princípio da dignidade da pessoa humana”, destaca a degradação das condições de vida dos trabalhadores e o aumento do desemprego estrutural no âmbito da ascensão das políticas neoliberais.

Nesse contexto de aprofundamento das desigualdades sociais, de um “estilo de vida que se estabelece pelo não-comprometimento e pela ausência quase total da solidariedade social” (p. 168), a educação tende a tornar-se, crescentemente, em um meio de transmissão de princípios doutrinários neoliberais, assumindo um caráter adaptativo. Portanto, o que está em questão para o autor é a adequação da escola à ideologia dominante assim como as formas de resistência da mesma a esse processo.

No nono capítulo, “O Estado e o mundo do trabalho em mutação”, Maria Vieira Silva analisa as relações entre Estado-Nação e as ações do terceiro setor e seus impactos na educação.

Chama-nos atenção o argumento da autora, segundo o qual o terceiro setor é um espaço político de ruptura da cidadania e dos direitos públicos historicamente conquistados. De acordo com a autora, a educação escolar na década de 1990 tem sido um campo fértil para a consolidação de ações e proposições do terceiro setor.

Nesse contexto, Vieira defende uma concepção crítica da educação, voltada para o atendimento dos interesses daqueles que, ao longo de um processo histórico, ficaram à margem dos bens sociais e materiais produzidos coletivamente pela humanidade.

No capítulo que encerra o livro, cujo título é “Entre o real e o virtual”, Andréia Galvão aborda a reforma sindical e trabalhista em debate no governo Lula. A autora discute a flexibilização da legislação do trabalho como parte da estratégia do capital mundializado, com o objetivo de derrubar as formas de regulação sobre o trabalho, ou seja, a desconstrução de direitos sociais historicamente conquistados pelos trabalhadores. Para Galvão, o governo Lula tem mantido a flexibilização trabalhista, ainda que em ritmo menor que o verificado no governo FHC. A autora ainda destaca alguns pontos da reforma sindical, para demonstrar que ela vem para restringir a liberdade e a autonomia dos sindicatos. Nesse sentido, Galvão conclui que não há no governo Lula “um compromisso em assegurar e, muito menos, em ampliar os direitos trabalhistas” (pág. 215).

Assim, tratando de temas relevantes de forma instigante, o livro organizado por Carlos Lucena constitui-se num importante instrumento teórico para cientistas sociais, educadores e demais interessados em compreender criticamente os processos socioeconômicos, políticos e educacionais que regem a sociabilidade nas nações capitalistas neste inicio do século XXI. A sua leitura é fundamental para aqueles que desejam discutir, numa perspectiva crítica radical, as inter-relações entre trabalho e educação em tempos de globalização e mundialização do capital sob a égide de políticas fundadas no neoliberalismo.

Fabiane Santana Previtalli – Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]

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Políticas públicas educacionais – ROSÁRIO; ARAÚJO (TES)

ROSÁRIO, Maria José Aviz do; ARAÚJO, Ronaldo Arcos de Lima (Orgs.). Políticas públicas educacionais. Campinas: Alínea, 2008, 156 p. Resenha de: FERREIRA, Eliza Bartolozzi. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7 n. 2, p. 397-401, jul./out.2009.

Este livro é resultado de estudos e pesquisas empreendidos no interior do Programa de Pós- Graduação em Educação/Centro de Educação/ Universidade do Pará. É relevante a contribuição desta obra no conjunto da produção científica que estuda as políticas educacionais implantadas no último quartel do século XX e início do século XXI. As transformações políticas, econômicas e culturais resultantes do processo de globalização tiveram um impacto significativo na organização da educação brasileira, o que motivou uma produção relativamente extensa de conhecimento sobre as políticas educacionais, reunindo uma considerável contribuição para o pensamento e a prática educacional no país. Este livro se insere nesse quadro.

Em uma perspectiva teórica crítica, esta obra oferece um panorama das políticas públicas educacionais da atualidade, utilizando-se de diversos recursos metodológicos como estratégia de análise do objeto em questão, tais como: a historiografia para o estudo da organização escolar em Belém e para o debate da exclusão e elitização da escola brasileira; a hermenêutica como recurso para a compreensão do trabalho como princípio educativo, tema importante para os educadores, principalmente, devido à atual implantação da política de Ensino Médio integrado; e o estudo de caso, para a reflexão da formação de docentes na educação profissional no bojo das políticas do Programa de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), no Pará. Além disso, o livro conta com estudos sobre a política de avaliação institucional do Ensino Superior e sobre o caráter da política de autonomia escolar desenvolvida no quadro da reforma do Estado brasileiro.

“Se o trabalho foi sempre um fato educativo, em que sentido Marx pode ser considerado o fundador da pedagogia que elege o trabalho como seu princípio educativo fundamental?” Com essa pergunta, tem início o capítulo 1 do livro, sob o título “O trabalho como princípio pedagógico em Marx, Lênin e Gramsci e sua problemática na atualidade”. O texto é uma produção conjunta de Paolo Nosella e Elinilze Guedes Teodoro, os quais se utilizam do método hermenêutico ou histórico-filológico, pois o objetivo é o estudo de textos a partir dos sentidos das palavras escritas em seu contexto original.

Os autores tiveram como preocupação mostrar que a originalidade de Marx consistiu em transformar o fato universal em princípio teórico. Para comprovar essa assertiva, eles se pautaram na conhecida obra de Mario Alighiero Manacorda, Marx e a pedagogia moderna, que resgata os escritos de Marx, Lênin e Gramsci. Algumas clássicas teses marxistas são destacadas no texto: o trabalho é historicamente determinado e ligado à educação; uma nova sociedade deve unir o ensino ao trabalho produtivo das jovens gerações; uma escola politécnica suprime a divisão do trabalho entre os homens e entende que a relação entre escola e trabalho produtivo inscreve-se numa concepção de cultura desinteressada, de longo alcance cientifico, humanística e moderna. Esta problemática, posta na realidade contemporânea do pós-industrialismo, é aprofundada porque implica na superação das graves condições sociais.

O capítulo 2, “Formação de docentes para a educação profissional e tecnológica: por uma pedagogia integradora da educação profissional”, escrito por Ronaldo Marcos Lima de Araújo, objetiva refletir sobre a formação de docentes na educação profissional, a partir das experiências de pesquisa desenvolvidas no âmbito do Proeja e do Projovem. O autor resgata os conhecimentos produzidos pela didática e adota o materialismo histórico como referência teórica. Seu estudo afirma sobre a necessidade de uma didática para a formação do docente da educação profissional, que deve incluir a articulação dos saberes técnicos específicos da área, dos saberes didáticos e do saber do pesquisador.

Essa formação, segundo o autor, deve ser feita nas universidades e nos centros de educação tecnológica – atualmente, Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). Não obstante salientar a importância do Proeja e do Projovem como política social, o autor destaca as dificuldades desses programas no que diz respeito à sua execução, pelo fato de o quadro docente não atender aos referenciais teóricos necessários de formação em uma educação profissional comprometida com a emancipação do trabalhador.

O capítulo 3, “A organização do ensino público primário de Belém-PA – 1930/1937: projeto político-educacional”, de Maria José Aviz do Rosário, busca compreender as raízes da organização escolar em Belém ao resgatar o movimento político do período varguista de 1930 a 1937. Nessa época sob o domínio de interventores políticos com perfil coronelista, o município de Belém tinha uma rede de ensino relativamente grande, em que pesava a ausência de uma autonomia política e financeira.

O projeto político-educacional empreendido em Belém, no período em questão, é revelado pela autora a partir da análise de documentos primários que registram a opção dos interventores pela modernização do ensino à moda da escola ativa. Nesse passo, a organização escolar do município de Belém seguiu as orientações do escolanovismo como estratégia de acomodação da correlação de forças políticas da época.

Com a discussão sobre a importância, complexidade e ambiguidade presentes na correlação de forças políticas na sociedade contemporânea, a autonomia da escola é posta em questão no capítulo 4. Com o título “Autonomia da escola pública: diferentes concepções em embate no cenário educacional brasileiro”, Antonio Cabral Neto e Luis Carlos Marques Sousa traçam uma análise crítica do contexto histórico vivido no Brasil após a década de 1990, conhecido pela adoção de políticas neoliberais, com o objetivo de identificar suas implicações na ressignificação do conceito e da prática da autonomia nas escolas públicas do país. Segundo os autores, a apropriação indevida do conceito de autonomia empreendida pelas políticas educacionais das duas últimas décadas dificulta o processo de democratização da gestão educacional, pois sua ênfase se dá na desconcentração de responsabilidades para as unidades escolares, sem a devida descentralização do processo de tomada de decisão. Essa tendência segue o caminho oposto das lutas dos educadores iniciadas no movimento histórico ensejado pelos pioneiros da educação nova.

A política de avaliação do Ensino Superior é o tema abordado no capítulo 5, “A avaliação institucional como política pública”, escrito por Olgaíses Maués, com ênfase na análise do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). A autora faz uma reflexão crítica do contexto de regulação implantado no processo de reforma do Estado brasileiro após a década de 1990, no qual a avaliação institucional é alçada como uma estratégia de controle e de formalização da lógica privatista dominante no mundo ocidental. A reforma do Estado pode ser caracterizada como estratégia de implantação de um Estado regulador e avaliador.

O conceito de regulação é desenvolvido pela autora como formas que o Estado busca para exercer seu controle sobre a sociedade.

Para tanto, o gerencialismo é uma estratégia utilizada no lugar do modelo burocrático dominante na maioria dos Estados capitalistas. Nesse modelo, o Estado deixa de controlar o processo e passa a centrar seu interesse apenas nos resultados e, com isso, adota práticas mais flexíveis na definição dos processos e uma maior rigidez na avaliação da eficiência e eficácia dos resultados.

A nova regulação, portanto, tem como objetivo a realização de um ajuste de acordo com o mercado, mediante a desconcentração das ações. A autora ressalta que a avaliação institucional deveria assumir uma concepção progressista, tal como defendida pelos movimentos organizados, sendo aquela referenciada nas demandas da sociedade e responsabilizada em acompanhar todo o processo institucional ao permitir o ajuste de percurso com a finalidade de cumprir as metas sociais de uma qualidade emancipatória. Ao centrar a análise no Sinaes, a autora destaca sua congruência com a concepção de regulação hegemônica, pois apresenta caráter somativo e punitivo, distante da proposta inicialmente elaborada pelo governo atual.

O capítulo 6 é uma produção conjunta de Amarílio Ferreira Jr. e Marisa Bittar, intitulado “Elitismo e exclusão na educação brasileira”.

Ao passo que a exclusão da escolaridade, para a maioria da população brasileira, foi arquitetada pela classe dominante, a educação foi considerada um privilégio dos poucos que constituíam a elite nacional. Os autores defendem que a sociedade brasileira, até o início da década de 1970, era uma “sociedade sem escolas”, não obstante o país sempre ter contado com a existência da instituição escolar. Os argumentos dos autores são construídos com base na historiografia da educação brasileira, cujo movimento se inicia no período colonial. Neste, o ensino era protagonizado pelos jesuítas, pautado pela aquisição do saber clássico acumulado pela civilização ocidental cristã. Era um ensino altamente refinado e eficiente para os fins sociais e culturais do poder hegemônico. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, os autores resgatam as reformas pombalinas, as quais transferiram a educação quase que exclusivamente a cargo das famílias pertencentes à aristocracia agrária escravocrata.

Com o advento da República, o traço elitista permaneceu. Foi somente na ditadura militar que a expansão do ensino tornou-se uma realidade ou, nas palavras dos autores, “que a sociedade brasileira deixou, na realidade, de ser uma ‘sociedade sem escolas’”. Todavia, o traço característico da constituição da educação brasileira é a sua dualidade: escolas de ensino precário para as classes populares e escolas eficientes para as elites.

Eliza Bartolozzi Ferreira – Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: [email protected]

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Escola e democracia (edição comemorativa) – SAVIANI (TES)

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia (edição comemorativa). Campinas: Autores Associados, 2008, 164 p. Resenha de: RAMOS, Marise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.7, n.1, mar./jun. 2009.

O leitor poderia se perguntar sobre o valor da iniciativa de se lançar uma edição comemorativa do livro Escola e democracia, de Dermeval Saviani, considerado um clássico na área da Educação. Para aqueles que não conhecem a obra, a resposta seria óbvia. Já os que a conhecem encontrarão a resposta para além do significado simbólico – que sustenta, a princípio, o caráter comemorativo da edição – vindo a se motivar pelo valor que os prefácios a oito edições, inclusive à presente, assim como o apêndice – o texto Setenta anos do ‘Manifesto’ e vinte anos de Escola e democracia: balanço de uma polêmica – acrescem à obra.

Os prefácios e o apêndice reiteram o estilo do autor de dialogar com os leitores, especialmente quando provocado, tornando públicas as motivações que subjazem à sua obra, mediante uma franca disposição de revisitá-la a partir das interpretações. No caso de Escola e democracia, a interpretação da obra original por pesquisadores dedicados ao estudo da História da Educação como um trabalho de natureza historiográfica levou Saviani a explicitar que se tratava, ao contrário, de uma obra de natureza polêmica. É a diferença entre ambas as abordagens que serve de fio condutor ao apêndice, dirigido, segundo o autor, aos historiadores da educação, constituindo-se, porém, num texto de referência teórico-metodológica para os estudiosos da educação em geral.

Primeiramente, dele depreendemos a necessidade de que a leitura de um texto não o desvie de sua origem ‘literária’ e de contexto. Nesse sentido, assim como o autor explica que Escola e democracia, um conjunto de textos que, valendo-se da metáfora da ‘teoria da curvatura da vara’, procurava polemizar com a visão apologética sobre a Escola Nova que mobilizou os educadores nas décadas de 1970 e 1980 – contexto em que reside e que justifica seu estilo polêmico – ele demonstra o quanto o Manifesto dos pioneiros da educação nova, documento cuja interpretação levou a tal apologia, era um instrumento político. Nesse sentido, o recurso em que se apóia toda a obra – a teoria da curvatura da vara – enunciada por Lênin ao ser criticado por assumir posições extremistas e radicais, foi amplamente utilizado pelos apologetas da Escola Nova. Porém, alerta o autor, diferentemente do uso por ele feito, o escolanovismo se valeu dessa metáfora como um dispositivo instaurador da própria verdade, o que exigiu a crítica formulada no livro em questão.

Demonstrado que o conteúdo de qualquer publicação escapa ao controle de seus autores, compreende-se, com o autor, que a natureza do Manifesto levou a “versões ‘popularizadas'” – “modo como esse ideário se fixou na cabeça dos professores” (p. 97) – sobre as quais incidiu a crítica formulada em Escola e democracia. Reitera o autor que em nenhum momento esteve em causa as elaborações dos Pioneiros, principalmente porque, como um documento de política educacional, essas versavam mais sobre a defesa da escola pública. Os esclarecimentos reaparecem neste texto, mas foram expostos no prefácio à 34ª edição que acompanha também a presente. Com argumentos cristalinos, o autor demonstra que, embora a Escola Nova tenha sido posta no centro da polêmica, o livro não se colocava contra o seu ideário em si, menos ainda à formulação contida no Manifesto, embora o reconhecimento de seu caráter progressista só tenha sido explicitado posteriormente, junto com os esclarecimentos. Mas a denúncia da Escola Nova teria sido uma estratégia visando a demarcar mais precisamente o âmbito da pedagogia dominante, então caracterizada como a pedagogia burguesa de inspiração liberal.

Com esse texto e em outras passagens dessa edição comemorativa, aprendemos também o quanto repetir uma ideia de diferentes formas pode ser necessário para que seu conteúdo filosófico – a concepção de mundo que a sustenta – possa ser compreendido e, talvez, compartilhado. Foi o que levou o autor a esclarecer a relação entre as ideias expostas em Escola e democracia e a visão marxista, tal como fez no prefácio à 20ª e na atual edição da obra. É nessa perspectiva que os capítulos três e quatro do livro devem ser lidos, posto que neles o leitor (re)encontrará os fundamentos da pedagogia histórico-crítica, como contraposição à pedagogia burguesa de inspiração liberal que esteve na base da Escola Nova.

No prefácio à 34ª edição, o leitor encontrará uma posição mais contundente do autor nesse sentido. Ao negar que o livro tenha se proposto a ser um ‘antiManifesto de 1932‘, ele nos convida a lê-lo sim como um manifesto, mas de lançamento da pedagogia histórico-crítica. A maneira como ele mesmo enuncia a estrutura do livro qualifica o convite e ajuda a responder às perguntas iniciais deste texto, posto que, antes de tratar, no capítulo dois, da denúncia das visões apologéticas da Escola Nova – o que é feito mediante a apresentação de três teses que, pela via polêmica, curvam a vara para o outro lado – o leitor é brindado com um completo diagnóstico das principais teorias pedagógicas, cotejadas com as contribuições e os limites de cada uma delas. Se nesse capítulo a necessidade de uma nova teoria é anunciada, seus fundamentos teórico-metodológicos e sua proposição como uma pedagogia histórico-crítica é formulada, assim como se esclarecem, no último capítulo, as condições de sua produção e operação em sociedades como a brasileira.

Se o caráter didático dessas exposições justifica a pertinência de mais uma edição da obra, como bibliografia básica para os estudantes dos cursos de graduação em pedagogia e de pós-graduação em Educação; seus fundamentos filosóficos, demonstrados pela apropriação das categorias do método histórico-dialético para a formulação de uma teoria pedagógica, demonstram sua atualidade, por manter-se na contracorrente do pensamento hegemônico. Em tempos quando o velho se traveste de novo, tal como se vê com as pseudoteorias pedagógicas (neo)pragmatistas e (neo)construtivistas, a reafirmação da validade histórica da filosofia materialista histórico-dialética como referencial teórico-metodológico e ético-político é revolucionário.

É esta a referência que leva o autor a dialogar, de forma franca, clara e contundente, com seus críticos historiadores da educação, particularmente Clarice Nunes e Zaia Brandão. Isto ele faz reiterando que o equívoco de seus críticos foi não diferenciar a abordagem polêmica da historiográfica, posto que suas três polêmicas teses, a saber: a) do caráter revolucionário da pedagogia da essência e do caráter reacionário da pedagogia da existência; b) do caráter científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos; e c) de como quando menos se falou em democracia no interior da escola mais ela foi democrática e quando mais se falou em democracia menos ela foi democrática, foram tomadas como resultado de uma investigação historiográfica e não como exercício de um procedimento expresso na metáfora da teoria da curvatura da vara. Ainda que enunciadas como teses, na linha do método dialético essas ideias tratavam-se mais de antíteses que, postas em contradição com as primeiras, potencializariam a síntese que seria uma nova teoria pedagógica. Mas com esse exercício, alerta o autor, ele se situava no âmbito do debate ideológico e não no plano da discussão historiográfica. Isto não foi reconhecido por seus críticos, dentre os quais Clarice Nunes.

O deslocamento dessas ideias do plano ideológico para o historiográfico também estaria na origem da interpretação de Zaia Brandão de que, pela sua análise, ter-se-iam apagado as diferenças, ambiguidades e contradições que atravessaram a história do movimento da escola nova. A memória do próprio marxismo ou de marxistas que nela estiveram ter-se-ia, então, silenciado. Ao contrário, o que os críticos historiadores chamam de silenciamento do marxismo o autor explica como a compatibilidade que houve entre marxistas e liberais em torno do objetivo modernizador que o ideário da Escola Nova propunha. Tal compatibilidade talvez tenha se reforçado pela hegemonia do Partido Comunista, para o qual era necessário, primeiro, realizar a revolução democrático-burguesa como condição para se colocar, posteriormente, a revolução socialista.

Esses argumentos que o autor agora traz a público, porém, não estavam dados na obra original. Neste momento, ele se vale de outro de seus estudos, qual seja, o texto O pensamento de esquerda e a educação na República brasileira. Um estudo que, segundo o próprio, não sendo historiográfico, mas tendo um certo caráter analítico sem o objetivo de polemizar, procura compreender o processo histórico, apresentando um enunciado na condição de hipótese a ser mais bem investigada. A ocupar o primeiro plano de uma análise, um assunto dessa complexidade histórica e política não seria simplesmente tematizado para contrapor a uma crítica, tal como é o propósito do autor nesse texto. Por isto, o respeito aos limites com que é tratado. Sua abordagem, porém, não deixa de nos convidar a um estudo mais aprofundado, reiterando, então, o mérito do diálogo travado com o autor com seus críticos.

É o diálogo, portanto, o ponto forte dessa edição comemorativa de Escola e democracia. A carta de Zaia Brandão enviada ao autor em resposta a tais considerações é expressiva. Ao reconhecer a impropriedade de se ter tomado o texto como historiográfico, reitera-se, porém, o impacto que o mesmo provocou na historiografia da educação. A tal consequência não prevista, porém científica e politicamente tão relevante, somente uma obra da envergadura de Escola e democracia poderia levar. Tornar público esse debate, “rompendo o silêncio em torno das interpretações produzidas no âmbito da historiografia da educação brasileira” sobre o seu trabalho, “tão somente com o espírito de somar esforços no fortalecimento de nossa área de investigação” (p. 100), é digno de um intelectual como Dermeval Saviani. Quanto ao valor da iniciativa de se lançar uma edição comemorativa do livro Escola e democracia, com a ampliação que se quis retratar aqui, esperamos que o leitor possa se posicionar com a oportunidade de (re)visitá-la.

Marise Ramos – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Americanismo e fordismo – GRAMSCI (TES)

GRAMSCI, Antonio. Americanismo e fordismo. São Paulo: Hedra, 2008, 96 p. Resenha de: NEVES, Lúcia Maria Wanderley. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.7, n.1, mar./jun. 2009.

É sempre bem-vinda uma iniciativa editorial que traga às novas gerações obras marxistas em tempos de um antimarxismo explícito ou subliminar, presente na literatura, que tenta dar conta das mudanças que se processam na atualidade mundial e brasileira e que fundamenta a formação dos cientistas sociais nos anos iniciais do século XXI. Antimarxismo que vem atingindo até mesmo Antonio Gramsci, autor que, até pouco tempo, pelo menos no Brasil, era citado por um largo espectro das forças políticas nacionias.

O “Americanismo e fordismo”, título dado pelo próprio Gramsci ao Caderno 22 dos Cadernos do cárcere, em 1934, composto de 16 notas, é conhecido dos brasileiros de longa data. Ele foi editado no Brasil em 1968, pela Civilização Brasileira, na chamada edição temática, como parte do livro Maquiavel, a política e o Estado moderno, com tradução de Luiz Mário Gazzaneo. Mais recentemente, em 2001, novamente pela Civilização Brasileira, ele se inclui no volume 4, Temas de cultura, ação católicaAmericanismo e fordismo, da edição brasileira da íntegra dos Cadernos do cárcere, editada por Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques.

Agora, a editora Hedra nos brinda com este trecho específico da complexa e abrangente reflexão de Antonio Gramsci, traduzido por Gabriel Bogossian, com introdução e notas técnicas dos professores Ruy Braga e Álvaro Bianchi, das universidades de São Paulo e de Campinas, respectivamente.

Este recorte feito pela editora Hedra no conjunto do universo gramsciano tem como objetivo, segundo o professor Ruy Braga, no final da introdução às notas do Caderno 22, contribuir para a reflexão sobre a atual conjuntura internacional, “no instante em que a crise econômica estadunidense catalisada pelo colapso do financiamento imobiliário subprime nos rememora aquela outra de 1929″ (p. 25).

A introdução ao texto foi dividida em duas partes, precedida de um rápido preâmbulo no qual situa a relevância atribuída por Gramsci a esse bloco histórico, denominado de americanismo e fordismo, no conjunto dos seus escritos do cárcere. Na primeira parte, intitulada “Hegemonia estadunidense”, o autor ressalta primeiramente a abrangência atribuída por Gramsci ao fenômeno do americanismo. Observa também que, por envolver as dimensões econômica, política e ideológica, este fenômeno passa a constituir-se em um novo modo de vida, profundamente imbricado na esfera produtiva com o taylorismo e o fordismo. Chama a atenção ainda para o deslocamento do eixo dinâmico da economia mundial da Europa para os Estados Unidos, provocado por este fenômeno. Salienta ainda que o marxista italiano privilegia nessas notas “a organização do trabalho e da produção social do consentimento na indústria moderna”, realçando que o fordismo, ao se expandir da fábrica para o conjunto das relações sociais de produção, propicia a criação de um novo tipo de trabalhador, conformado a partir da conjugação dos elementos da força e do consentimento. Por fim, o autor destaca ainda a percepção gramsciana de que o ‘fenômeno americano’, aparecendo como uma resposta à queda tendencial da taxa de lucro, se constitui em estratégia burguesa de superação da crise de hegemonia em processo à época.

Na segunda parte da introdução, denominada “A dialética da pacificação”, o professor Ruy Braga salienta que, no americanismo e fordismo, a burguesia estadunidense alcança sua elaboração ‘superior’, distinguindose das classes dominantes tradicionais. Essas novas frações hegemônicas fundam um novo Estado que amplia suas esferas estruturais, para além da aparelhagem estatal, com a expansão de aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil. Esse Estado ampliado efetiva a passagem de um individualismo econômico característico das fases anteriores do capitalismo para uma economia programática, viabilizadora de novas relações sociais, baseadas no consumo de massas; aumenta a produtividade capitalista; efetiva a pacificação das classes trabalhadoras e, ao mesmo tempo, restaura a hegemonia burguesa abalada por um período significativo de crise orgânica. Salienta, por fim, na análise do americanismo e fordismo, o seu caráter de revolução passiva.

Tais observações introdutórias ao texto gramsciano levam o professor Ruy Braga a concluir que “americanismo e fordismo representam as duas faces de uma mesma moeda”: um processo de racionalização do trabalho e da produção e, ao mesmo tempo, um novo ajuste entre estrutura e superestrutura, “(…) no sentido de recompor a unidade entre as relações sociais de produção e os aparelhos de hegemonia” (p. 25).

Comparando a edição da Civilização Brasileira de Americanismo e fordismo, de 2001, com esta nova edição da editora Hedra, de 2008, podemos observar que esta última tenta atribuir maior leveza ao texto, dando às notas uma aparência de ensaio, especialmente quando traz para notas de rodapé trechos em que Gramsci intercala observações paralelas. Percebe-se, ainda, nessa perspectiva, uma tentativa de dar maior clareza aos parágrafos, subdividindo-os em frases mais curtas.

Não obstante esses recursos tornem, de fato, a leitura mais fácil e estimulante ao leitor iniciante, retiram, em parte, o caráter fragmentário da escrita das notas, característica fundamental dos Cadernos do cárcere, em que pese a robustez e a organicidade do seu pensamento.

Merecem destaque ainda, no tocante à tradução, certas discrepâncias significativas entre a edição de 2001 e a de 2008, algumas quanto à imprecisão no uso da língua portuguesa, outras no que se refere a divergências no próprio conteúdo. Essas imprecisões de conteúdo e forma podem ser verificadas, por exemplo, na nota 11, na página 71. Enquanto a editora Hedra traduziu: “O industrial americano se preocupa em manter a continuidade da eficiência física do trabalhador, da sua eficiência muscular e nervosa. É seu interesse ter uma competência estável, um complexo harmonizado permanentemente, porque até o complexo humano o coletivo trabalhador de uma grande empresa é uma máquina que não deve ser desmontada com grande freqüência, nem ver renovados os seus pedaços individuais sem grandes perdas”, a edição de 2001, na página 267, traduz esse mesmo trecho de maneira diversa, certamente mais adequada em termos conceituais: “O industrial americano se preocupa em manter a continuidade da eficiência física do trabalhador, de sua eficiência muscular-nervosa: é de seu interesse ter um quadro estável de trabalhadores qualificados, um conjunto permanente harmonizado, já que também o complexo humano (o trabalhador coletivo) de uma empresa é uma máquina que não deve ser excessivamente desmontada com freqüência ou ter suas peças individuais renovadas constantemente sem que isso provoque grandes perdas.”

Em que pese estas e outras imprecisões verificadas, esta nova tradução tem o mérito de trazer mais uma vez à tona a atualidade impressionante do pensamento gramsciano, por apontar e discutir, neste trecho e no conjunto de sua obra, temas pertinentes à pauta da agenda política mundial e nacional desses anos iniciais do século XXI, tão bem destacados pelo professor Ruy Braga na introdução.

A leitura desta nova edição deve se traduzir em um convite para um aprofundamento do estudo das idéias gramscianas, cuja obra completa está à disposição do leitor brasileiro nos dois volumes das Cartas do cárcere, nos dois volumes dos Escritos políticos e nos seis volumes dos Cadernos do cárcere, todos publicados pela editora Civilização Brasileira.

Lúcia Maria Wanderley Neves – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea – ROSSO (TES)

ROSSO, Sadi Dal. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 208 p. Resenha de: TEIXEIRA, Márcia Oliveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v. 6 n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

Nas últimas semanas, enquanto aguardávamos o desfecho do segundo turno das eleições municipais de 2008, embaladas entre outros indicadores pelos constantes recordes no volume de empregos com carteira assinada, o país viveu uma paralisação nacional dos bancários. Seria mais uma greve, caso não fosse simultânea à crise deflagrada por quase duas décadas de hegemonia das teses neoliberais e sua apologia à desregulamentação dos mercados, à transnacionalização e à financeirização do capital.

Seria mais uma greve caso sua pauta de reivindicações não nos permitisse vislumbrar algumas características do mundo do trabalho contemporâneo – a sobreposição de diferentes formas de vínculos e de contratação, a terceirização, a flexibilização, as novas competências e atribuições.

Estes temas e eventos estão em sintonia com as reflexões de Sadi Dal Rosso, em especial com o seu mais recente livro Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea, lançado pela Boitempo Editorial no âmbito da coleção Mundo do Trabalho. Sadi Dal Rosso é professor titular da Universidade de Brasília e sociólogo com formação em filosofia, com passagens por centros de pesquisa europeus e norte-americanos, além da intensa produção de artigos, capítulos em coletâneas e livros. Suas pesquisas analisam as metamorfoses recentes do mundo do trabalho no ocidente capitalista, com destaque para temáticas associadas às condições de trabalho e à jornada de trabalho, essa última compreendendo discussões sobre a história, a flexibilidade, a intensidade e a redução de jornadas, além de uma série de estudos sobre o movimento sindical. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea aborda uma dimensão muito presente nos estudos acadêmicos (e nas pautas sindicais) sobre o trabalho na contemporaneidade ocidental, porém nem sempre aprofundada – a intensificação do trabalho.

Dal Rosso organiza sua análise sobre o processo de intensificação e a categoria de intensificação do trabalho em duas seções. Na primeira, uma discussão teórica da intensificação do trabalho, também desdobrada em duas partes – uma análise do conceito de intensidade do trabalho que abarca a discussão das teorias do trabalho e da mais-valia, seguida de uma descrição dos sistemas de organização do trabalho (taylorismo, fordismo, toyotismo). Ambas as partes são acompanhadas de uma breve, porém cuidadosa, revisão dos estudos contemporâneos da teoria de mais-valia, da produtividade e da intensidade do trabalho.

A discussão da teoria de mais-valia destaca-se no desenvolvimento da argumentação de Dal Rosso. De fato, ele parte da necessidade ou não de atualização da teoria diante das mudanças na acumulação e na reprodução do capital e, por conseguinte, das relações de trabalho. Mudanças geradas no intenso processo de deslocamento da base produtiva do setor industrial para o setor de serviços, com predomínio do capital financeiro. Nesse sentido, a compreensão da intensificação propugnada por Dal Rosso envolve uma revisão crítica de todas as categorias afetadas pelo processo de reestruturação do capital e associadas à teoria do valor trabalho – trabalho morto e trabalho vivo, trabalho material e imaterial.

Dal Rosso constrói sua argumentação em torno da possibilidade de tomar a intensificação como categoria diferenciada da produtividade.

Para consecução desse objetivo, o autor se lançará ao exercício de delimitar o fenômeno da intensificação. E, em contrapartida, de operar uma delimitação na própria categoria de produtividade.

A intensidade, segundo o autor, descreve um processo histórico correlato, mas individuado e, nesse sentido, delimitado histórica e socialmente em sua relação com outros fenômenos, mas em especial com aqueles descritos pela categoria de ‘produtividade’. Por conseguinte, Dal Rosso argumenta que a capacidade compreensiva das relações de trabalho no mundo produtivo contemporâneo é restrita, caso se considere a intensificação como fenômeno subsumido à categoria produtividade. Ou seja, a atribuição de um novo estatuto à intensificação implica o tensionamento da categoria produtividade.

Tensionar sua capacidade analítica dos fenômenos contemporâneos. Fenômenos produzidos pela reestruturação produtiva e pelas relações de trabalho.

Do exercício de formalização, para usar uma expressão do próprio autor, resulta compreender a intensidade como produção de mais trabalho (maior volume de produção e/ou valor de troca) tomando um mesmo período de tempo. O grau de intensidade está, por seu turno, no epicentro da luta de classes entre trabalhadores e capitalistas detentores dos meios de produção.

Os sistemas de organização do trabalho, aos quais Dal Rosso dedica o segundo capítulo, desempenham uma posição destacada não apenas na reprodução do capital produtivo, mas também no enfrentamento das resistências dos trabalhadores à intensificação (e não exatamente à produtividade).

Chamo a atenção do leitor à ênfase dada por Dal Rosso à matriz econômica (ou economicista) do conceito de produtividade. É importante conquanto ele atribui uma matriz sociológica à intensidade, implicando uma maior atenção às relações, às normas de conduta e aos padrões que participam do processo social e histórico de intensificação do trabalho. Assim, as duas categorias envolvem elementos instituintes distintos e possuem estatutos diversos. Essas diferenças ficam patentes quando o autor explicita a produtividade. Diz Dal Rosso: “trabalho é considerado mais produtivo quando seus resultados no momento t2 (depois) são maiores do que no momento anterior t1 (antes)” (p. 25). Produtividade é uma categoria da ordem da quantidade, do aumento de volume e de escala. Ela nos permite gerar medidas precisas. Ela é quantificável e comporta como tal a quantificação da atividade e dos produtos em um determinado período de tempo. Desta feita, é uma categoria afinada com os sistemas de organização da produção e do trabalho, notadamente o taylorismo e o fordismo. E mais: ela é uma categoria própria a uma configuração do capitalismo baseada na hegemonia da produção industrial.

Para Dal Rosso a insuficiência analítica da produtividade manifesta-se quando indagamos como o aumento ocorre, ou seja, quando procuramos compreender o fenômeno em si do aumento de produtividade. Segundo ele, a única situação onde ocorre aumento da produtividade sem envolvimento da intensificação do trabalho é quando “há resultados que decorrem de avanços efetuados tão-somente nos meios materiais com os quais o trabalho é realizado” (p. 25). Tese que lhe permite caracterizar a produtividade como um conceito restrito àquelas situações nas quais os efeitos das transformações tecnológicas são prevalentes (p. 29).

“Um trabalho é considerado mais intenso do que outro quando, sob condições técnicas e de tempo constantes, os trabalhadores que o realizam despendem mais energias vitais, sejam físicas, emocionais, intelectuais ou relacionais, com o objetivo de alcançar resultados mais elevados quantitativamente ou qualitativamente superiores aos obtidos sem acréscimo de energias.

A categoria intensidade do trabalho é reservada para descrever o fenômeno que reúne distintas formas e maneiras de fazer com que o trabalhador produza resultados quantitativa ou qualitativamente superiores, mantidas constantes as condições técnicas, a jornada e número de funcionários. (…) Trabalho mais intenso distingue-se de trabalho mais produtivo à medida que os resultados mais elevados do trabalho são obtidos mediante o acréscimo de energias adicionais do trabalhador e não resultados de ganhos mediante avanços técnicos, como acontece quando se emprega o conceito de produtividade” (p. 196-197).

Dal Rosso parece estabelecer uma forte aliança entre a categoria de produtividade e tudo aquilo descrito como trabalho morto; enquanto a intensidade descreve situações e fenômenos sob a égide do trabalho vivo. Portanto, a categoria intensidade goza de uma maior amplitude analítica para lidar com fenômenos da fase atual da produção capitalista precisamente pela sua relação com a categoria de trabalho vivo. Ao destacar o estatuto sociológico e o fato de ser fixada em regras e normas de conduta, ele parece tomá-la como uma categoria própria para designar atividades do setor de serviços e aquelas afetadas pela reestruturação produtiva, seja pelas mudanças na base técnico-científica ou nos mecanismos gerenciais. Trata-se, assim, de formas de trabalhos transformadas no processo de transição do fordismo para formas de organização e de produção ditas pós-fordista; processo, em geral, designado como reestruturação produtiva. Do ponto de vista teórico, a intensidade tal qual propugnada pelo autor, parece ampliar a capacidade analítica de trabalhos e arranjos produtivos imateriais. Talvez por isso Mais trabalho! esteja recheado de exemplos retirados do setor de serviços.

Entretanto, devemos sempre duvidar de esquemas fáceis, mormente quando está em jogo a teoria do valor trabalho. O próprio Dal Rosso parece resistir à idéia de considerar que o estatuto da categoria intensidade foi transformado pelos efeitos da reestruturação produtiva ao considerar o taylorismo e o fordismo como sistema de intensificação do trabalho. (Ou será o contrário, o estatuto da produtividade é que foi alterado pela reestruturação?). De todo modo, considero que o leitor deve refletir durante a leitura sobre possíveis perdas em termos analíticos quando se opera a delimitação proposta pelo autor na categoria produtividade, separando- a da intensidade.

Ricardo Antunes, no texto Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil (2004), levanta alguns aspectos pertinentes para analisarmos as propostas de Dal Rosso em relação à categoria intensidade e, de modo geral, à situação do trabalho na contemporaneidade.

Primeiro, a reestruturação produtiva do capital no Brasil, que entre outros aspectos é um país de capitalismo tardio, assume formas diferenciadas. Assim, a análise de diferentes setores e ramos da economia redunda em desenhos multiformes (Antunes, 2004). Segundo, a análise da reestruturação produtiva altera a configuração do capitalismo localmente, mas como se tratam de processos recentes não há desenhos conclusivos. A partir das ponderações de Antunes, cabe indagar sobre a capacidade analítica da categoria intensificação (segundo a descrição de Dal Rosso) para compreendermos o mundo de trabalho contemporâneo em países de capitalismo tardio. Países esses nos quais o processo de reestruturação é diverso ou multiforme (para usar a expressão de Antunes), criando arranjos singulares entre diferentes formas históricas de organização da produção e do trabalho; e com relação a esse último, arranjos diferenciados entre trabalho vivo e trabalho morto.

Essa preocupação não escapou a Dal Rosso. Na segunda parte, intitulada “A intensidade do trabalho e os trabalhadores”, o autor discute os resultados preliminares de um estudo desenvolvido por sua equipe com trabalhadores ligados a diferentes setores da economia. Trata-se agora de discutir a capacidade analítica da categoria ‘intensificação’ para lidar com dados empíricos sobre condições de trabalho em Brasília.

A escolha de Brasília não é fortuita. Parte dos estudos sobre a produtividade refere-se ao setor industrial, característica também compartilhada pelas análises sobre a intensificação do trabalho. Brasília, por seu turno, concentra atividades econômicas ligadas ao setor de serviços.

E o estudo de Sadi Dal Rosso envolveu subsetores do setor de serviços pouco presentes nos estudos acadêmicos, como o educacional.

Porém, para tensionar ao máximo sua categoria, o setor industrial não foi esquecido, está representado pela indústria gráfica. Brasília também permitiu a sistematização de dados sobre setor público, representado por órgãos da administração do distrito federal e do governo federal.

O estudo classificou a economia de Brasília em três grupos – capitalista moderno (bancário, telefonia, construção civil, comunicações, shopping centers, escolas privadas, serviços médicos privados, indústria), tradicional (oficinas mecânicas, serviços pessoais, restaurantes, indústria gráfica, emprego doméstico, transporte coletivo, vigilância e limpeza) e governamental- estatal. Os dados foram coletados por intermédio de questionários com trabalhadores.

Considero, todavia, a amplitude da amostra fonte de alguns problemas, bem como a classificação em si de alguns subsetores como capitalista moderno ou tradicional. Mas irei concentrar- me na amplitude. Dal Rosso sustenta o desenho de sua pesquisa argumentando que ele lhe permitiu “avaliar em que medida o processo de intensificação é relevante no conjunto do trabalho local e nacional” (p. 101). Adiante complementa, referindo-se à análise empírica da intensificação, “fornece também uma medida de comparação internacional da transformação em curso das condições do trabalho em distintas sociedades, o que autoriza pensar a intensificação como fenômeno global próprio do capitalismo contemporâneo e não apenas como algo local ou regional devido a particularidades da formação histórica” (p. 101).

Inspirada pelas ponderações de Antunes, pergunto se é possível pensarmos em algo tão geral como o processo de intensificação nacional sem investigar os efeitos diferenciados da reestruturação e os arranjos produtivos resultantes para cada setor e subsetor? Em que medida a amplitude do estudo nos permite distinguir intensificação de produtividade? Considerando a condição de país com um capitalismo tardio e cujos impactos da reestruturação produtiva são extremamente diferenciados, não deveríamos primeiro iniciar estudos circunscritos a um setor e a uma região? Por fim, será que as especificidades da economia de Brasília fornecem elementos capazes de subsidiarem análises futuras sobre a intensificação do trabalho no Brasil? Considero a opção metodológica de Dal Rosso extremamente rica como mapa preliminar para estudos do processo de intensificação. Ele indica caminhos, aponta questões e, principalmente, expõe algumas tendências e situações em curso em subsetores e atividades que merecerão maiores aprofundamentos em futuras investigações do seu grupo de pesquisa. Porém, há problemas quando apreciamos o estudo empírico à luz dos objetivos do autor. A análise da intensificação é prejudicada pela falta de informações e de uma descrição aprofundada de processos como a terceirização, a introdução de novas tecnologias, as mudanças gerenciais na gestão e fusões que acometeram não apenas os setores e subsetores estudados, mas as próprias empresas.

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os caminhos da liofilização organizacional: as formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 28., 2004, Caxambu. Anais, 2004. Mimeografado.

Márcia de Oliveira TeixeiraEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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O emprego no desenvolvimento da nação – POCHMANN (TES)

POCHMANN, Marcio. O emprego no desenvolvimento da nação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, 240 p. Resenha: CASTRO, Ramón Peña. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 659-664, nov.2008/fev.2009.

No próprio título do livro, Pochmann deixa claro o horizonte intelectual em que situa a questão do emprego: a nação-Estado, entendida como materialidade humana historicamente diferenciada, tanto no plano territorial como, sobretudo, no social. Neste aspecto se associa à sólida tradição acadêmica desenvolvimentista.

Desenvolvimentista, no bom sentido do termo, entendido como desenvolvimento, a um só tempo, social, nacional e regional. Como é sabido, para essa tradição (personificada por Celso Furtado e outros reconhecidos economistas, críticos do pensamento único), a questão do emprego, enquanto forma naturalizada do trabalho de mercado, somente pode ser entendida e explicada cientificamente no contexto histórico do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e de sua forma de inserção mundial.

Contexto, esse, muito mais amplo e esclarecedor do que o estreito e dogmático marco conceitual do chamado mercado de trabalho.

Em correspondência com sua opção teórico-metodológica, Marcio Pochmann estrutura O emprego no desenvolvimento da nação em uma Apresentação e sete capítulos. Na Apresentação, sintetiza seu objetivo: analisar a evolução, quantitativa e qualitativa, do emprego, em função das modalidades de desenvolvimento do brasileiro e da sua inserção internacional, descrevendo, a seguir, o conteúdo dos sete capítulos que compõem o texto. Os três primeiros capítulos versam sobre determinantes fundamentais do emprego, relativos ao desenvolvimento econômico nacional e regional. Os seguintes, quatro capítulos, abordam a dinâmica setorial do emprego rural, do emprego público e da ‘informalidade’, cuja dimensão e diversidade se mostram diretamente proporcionais ao volume do desemprego e à deterioração qualitativa dos empregos, realmente existentes.

O percurso temático do livro pode ser explicado como a tentativa de transformar em tese demonstrada a contundente afirmação contida na hipótese de partida, segundo a qual “a crise do emprego não é irreversível nem inevitável” (p. 10).

Visando essa demonstração, Pochmann desenvolve um panorama amplo e problemático de temas, debates e demonstrações, solidamente documentados ao longo dos sete capítulos.

É obvio que não se pode numa resenha resumir todos os variados aspectos do problema do emprego que são abordados no livro de Pochmann. Cabe, porém, referir sucintamente os pontos especialmente relevantes e sugestivos.

Em função disso, começamos por mencionar a sua distinção entre variáveis ‘endógenas e exógenas’. Com a primeira denominação o autor se refere às dinâmicas do salário, custo do trabalho e qualificação, entre outras. Com a segunda, da evolução e natureza dos investimentos, a modalidade de inserção internacional e inovação tecnológica. Ambos tipos de variáveis se entrecruzam, sem dúvida, para determinar o emprego e o funcionamento do mercado de trabalho, conforme a vontade discricionária dos empregadores.

Pochmann sintetiza a origem e natureza concentradora e dependente do atual modelo de acumulação do capital, resultante da ‘construção interrompida’ (p. 19-28, 110-122), para seguidamente expor, de forma amplamente documentada, a dinâmica do emprego. Com isso deixa patente a deterioração, qualitativa e quantitativa, dos empregos existentes, o desemprego massivo e estrutural e a dramática ampliação das desigualdades sociais. Fenômenos nada novos na história brasileira, mas que ficam emblematicamente ilustrados pela forte redução atual da participação do trabalho no total de renda nacional: de 36% (2003) contra 50% (no final da década de 1970, p. 27); pelo elevado e persistente desemprego, acelerado a partir da década de 1990 para atingir na presente década um patamar “três a quatro vezes mais alto que as taxas registradas na década anterior”.

O autor demonstra que, de fato, hoje nenhum trabalhador está imunizado contra o desemprego.

Os dados mencionados pelo autor provam, por exemplo, que o aumento dos níveis de escolaridade média e superior da população economicamente ativa (PEA) coincide com elevadas e persistentes taxas de desemprego entre os mais escolarizados. Daí, o que ele denomina “anomalia do desemprego intelectual” e o desperdício e perda de potencial, exemplificados pela importante “fuga de cérebros”. Trata-se de fenômenos novos, produzidos pelo atual modelo de acumulação concentradora de capital financeiro e de “inserção passiva e subordinada na economia mundial” (p. 36-46).

Completa o quadro de desestruturação do mercado de trabalho a desaceleração e queda do assalariamento, a partir dos anos 90, quando apenas 60% dos novos ocupados foram contratados como assalariados, aumentando, paralelamente, as formas de contratação precária, sem garantias legais, nem proteção social, assim como também a chamada ocupação ‘autônoma’.

Esta falsa autonomia ocupacional passou a responder por 21% do rendimento total do trabalho (no período 1990-2003), ficando o emprego ‘por conta alheia’ com menos de 70% (destes somente 52% correspondiam ao emprego formal).

Esses dados dão uma vaga idéia do significado real do grau de esfacelamento da condição salarial, politicamente protegida, que o discurso oficial pretende naturalizar com eufemismos tão triviais como flexibilização, terceirização e informalidade.

A terceirização – eufemismo que esconde uma série de formas destinadas a reduzir custos, aumentando simultaneamente a exploração do trabalho – respondeu, no período 1995- 2003, por 33,8% dos postos de trabalho gerados pelo setor privado formal. Em 2005, o segmento terceirizado registrou 4,1 milhões de empregos formais, quase l6% do emprego. Em termos oficiais, o segmento terceirizado envolve cinco categorias: “serviços não especializados prestados por empresas especializadas; atividades de limpeza e conservação, prestadas por empresas; alocação temporária de mão-de-obra; serviços de segurança e vigilância e ocupação em empresa individual” (p. 31).

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados por Pochmann (p. 29), indicam que a chamada economia informal era constituída por 10,3 milhões de ‘empreendimentos’ (dos quais 9,3 milhões ‘por conta própria’), absorvendo mais de 27% do total de ocupados, com destaque para a construção civil, onde o trabalho informal representa mais de 40% do total de ocupados. Segundo a mesma fonte (IBGE), mais de 70% dos ocupados na chamada economia informal pertencem à categoria ‘conta própria’ e seu rendimento equivale a 55% da média da PEA.

O texto resenhado deixa claro que a informalidade é o refúgio compulsório do desemprego e da precariedade generalizada do emprego realmente existente. Mais ainda, ela é, com toda evidência, produto e componente programado para assegurar a racionalidade funcional do atual modelo de acumulação capitalista, comandado pela oligarquia financeira universalizada.

Nesta ordem de idéias, acreditamos que este pequeno texto pode ser lido e digerido com proveito. Assim, uma primeira lição a tirar dele é a da comprovação de que o desemprego e o emprego fluidicamente precário ou informalizado são perfeitamente funcionais ao capitalismo moderno. Tal abordagem contribui, sem dúvida, para desmistificar a falsa naturalidade do mercado, como a principal instituição da modernidade capitalista. Instituição essa que tem, na falsa igualdade contratual do mercado de trabalho, a prova mais patente da sua impostura, cuja desproteção ou desorganização é diretamente proporcional ao poder discricionário dos empregadores, hoje potenciado pela crescente privatização do Estado.

Importa, igualmente, atentar para o fato de que o texto resenhado permite uma leitura saudável do maltratado conceito de Política, ao deixar claro que a política de emprego (como qualquer outra relativa à Educação, à Saúde ou à Ecologia, por exemplo) tem tudo a ver com a ordem socioeconômica e que, por isso mesmo, a Política não pode ser rebaixada a pura tecnologia de gestão ou administração de fatores (como ocorre com a ‘coisificadora’ nomenclatura de Recursos Humanos). Uma visão que apresenta a Política existente como uma ordem sobrenatural e predeterminada de relações, sob denominação técnica de governança, anglicismo pós-moderno, falaciosamente identificado com a democracia.

Outro aspecto destacável do texto de Pochmann é que nele dialogam continuamente o rigor conceitual com as urgências da reflexão política comprometida, o que nos autoriza a concluir que o autor e seu texto caminham, com passo tranqüilo e sem dissimulada retórica, na contramão da ordem dominante e do seu discurso ‘politicamente correto’. Discurso que nos últimos tempos transformou as ciências econômicas e sociais, difundidas em muitos espaços da academia e da mídia de mercado, em versões teológicas secularizadas, elevadas a princípios de realidade das relações sociais.

A incipiente crise mundial que apenas se iniciou com a queda das bolsas e a falência de alguns bancos, muito representativos do capitalismo homicida que nos domina, permite temer uma intensificação maior da ofensiva do capital contra o trabalho, iniciada nos anos 70.

A crítica desta realidade exige, em primeiro lugar, o conhecimento das suas causas e a identificação dos seus mecanismos e agentes. A história ensina – dizem os sábios – mas não tem tido discípulos aplicados. O desafio continua sendo o de sempre: a crítica de uma realidade exige a construção de outra realidade (que os filósofos chamam práxis: atividade teórica e prática a um só tempo).

Para terminar, uma reflexão politicamente comprometida, cuja pertinência parece neste momento crítico do mundo mais do que correta: “O Brasil – escreve Pochmann – precisa combinar urgentemente regime democrático com crescimento econômico sustentado. Isso seria, de fato, um êxito inovador para qualquer brasileiro nascido a partir dos anos 1960” (p. 8).

Ramón Peña Castro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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