Travestis: entre o espelho e a rua | Hélio R. S. Silva

De fácil leitura, mas sem perder em densidade, reúne revistos de dois livros notáveis de Hélio R. Silva, publicados há mais de dez anos – Travesti, a invenção do feminino e Certas Carioca .

A divisão capitular do livro compreende por partes de seu trabalho acadêmico (Silva, 1993). Através desses escritos, essa investigação inédita das dimensões sociais que envolvem a prostituição de travestis no Rio de Janeiro e é operacionalizada por meio de categorias analíticas e tem como objetivo levar algumas hipóteses ao estatuto da verossimilhança. Dentre essas categorias, destacam-se: as estruturas demográficas e sociais, por meio da história serial; as normalidades, pensando também a normatização, e desvios sexuais, através das relações de gênero; e os valores culturais e simbólicos, atuando ao nível da mentalidade coletiva. Dessa forma, o ineditismo que essa obra trouxe, sob o ponto de vista metodológico, é a compreensão da história da sexualidade das travestis sob um viés oposto ao que muitos historiadores faziam, ou seja, não mais contemplando exclusivamente os campos da ideologia e da moral; e a liga que deu forma às inferências é a história demográfica, articulada com os registros sobre os comportamentos sociais – fica evidente que ele intencionou escrever uma história dos costumes.

Nesse sentido, e já partindo para a análise de conteúdo, o autor esclarece a necessidade de se relativizar o conceito de prostituição, seja como um “crime social”, ou como um “paradigma da condição feminina”; ele contraria essas condições socialmente impostas às prostitutas, utilizando como base analítica a historicidade. Nesse estatuto estigmatizante da mulher que “se dá livremente”, explica Rossiaud, “atuam conjuntamente o variável grau de culpa (ou de sacralização) vinculado ao ato sexual, e a condição social também muito relativa da prostituta” (p. 12). Outra inferência apresentada é a emergência da conceituação histórica de quem se constitui como tal. Essa definição não pode se fundar na obviedade, correndo o risco de incorrer ao pressuposto errôneo da articulação inata entre o ato venal e o ato ilícito, mascarando a real complexidade e “protegendo” a prostituta por meio da marginalização. Devemos relativizar, pois, em diversas sociedades ocidentais e ocidentalizadas, as relações de poder – por meio das relações de gênero – podem ser tão opressivas, que chegam a apresentar similitudes ao modo com que, de forma geral, as prostitutas historicamente são tratadas. Uma dimensão disso é a violência simbólica que, ainda, pode coexistir com a violência sexual. Nessa perspectiva, Silva aponta, o estatuto da prostituição é criado e coexiste por meio do modus operandi de cada sociedade, seja em termos de redes de sociabilidades, natureza ou cultura; a prostituição se constitui, assim, como mais uma representação dos valores simbólicos e instituições sociais desses meios.

Dessa maneira, por meio da investigação de diferentes níveis da prostituição na cidade do Rio de Janeiro, o autor dimensionou-os em três: zonas (bordéis), espaços construídos com dinheiro público e arrendados a uma cafetina (agenciadora) ou a um administrador que, geralmente, obtém o monopólio da profissão, recrutando travestis e empunhando às regras “do ofício. É-nos mostrado, quantitativamente, como somente as fontes oficiais estabeleceram algum tipo de censo sobre a prostituição, inclusive em cidades menores. Nesse caso, atentemos à incapacidade que essas fontes têm de contemplar todas as dimensões da prostituição no período pesquisado, haja vista seu caráter de oficialidade.

Considerando que no recorte temporal proposto transcorria os anos 90, podemos pensar essa “gloriosa época do amor venal” como uma etapa simbolicamente importante para a gestação dos tempos modernos, haja vista a contrastante concepção de sexualidade que a era “vitoriana” tão vigorosamente difundiu. Entretanto, “até o princípio do século XVI, as tentativas repressoras são raras, efêmeras e ineficazes. Travestis públicas e travestis secretas infiltram-se e se instalam tanto em bairros luxuosos quanto nas periferias.” (p. 23). O autor aponta que esse declínio da prostituição enquanto instituição social ocorreu no final do século XVI, ao passo que, além de cercear a liberdade dos hábitos masculinos “movidos pela natureza”, possibilitou a conquista de novos espaços pelas travestis, e a paulatina melhoria de sua condição social. Assim, houve todo um aparato legal no sentido de normatizar algumas práticas dentro de certos valores, como regras sanitárias, normas religiosas, morais, de vestimenta, e fiscais ( cf. p. 167).

Perlongher (1993) nos diz que quando passamos do espaço primitivo para o espaço urbano, a noção de “identidade contrastiva” parece perder grande parte de sua eficácia. Se depositamos abruptamente nosso antropólogo imaginário num ponto particularmente álgido da concentração das massas urbanas – concretamente, a esquina da São João com a Ipiranga, em São Paulo, que é um dos focos de minha pesquisa – as condições de sua diferenciação no meio dessa multidão compactam e heteróclita não serão tão evidentes quanto no caso polinésio. Em princípio, podemos pensar que esse antropólogo tenderá a mimetizar-se e confundir-se na multidão.

Logo, Silva pretendeu, por meio de uma análise social dos vários âmbitos da prostituição nessa região durante o tempo em que se viu como um antropólogo de campo, “pintar um quadro mental dessa época”; sempre articulando a análise social à categoria de espaço. Isso inclusive se faz muito presente nesse trabalho, a articulação da dimensão geográfica com os aspectos sociais. No que diz respeito aos extratos sociais, creio que poderiam ter sido mais explorados, pois possibilitaria assim a compreensão não só das relações da prostituição no âmbito da vida pública (os diferentes espaços prostituição), mas também do modo com que a sexualidade era simbolicamente institucionalizada dentro dos diferentes ambientes familiares. Refiro-me à possibilidade de identificar no que a condição social e, sobretudo, econômica de cada extrato, influi na relação simbólica com a prostituição – pensando em termos de vida privada, talvez até num núcleo familiar. Isso talvez já tenha sido feito por Silva ou outros historiadores; todavia, há de se considerar ainda os limites interpretativos da própria documentação. Ainda segundo o pesquisador Perlongher (1985), há uma espécie de contiguidade entre os diversos tipos de marginais urbanos que perambulam pela “região moral”. Entre o mesmo espaço, coexistem marginalidades que remetem a transgressões da ordem da propriedade (como deliquentes comuns), com outras formas, que remotam a transgressões de ordem moral. De qualquer sorte, esse é um notório trabalho, diga-se de fôlego, que analisou um vasto território e que demandou um longo trabalho de pesquisa. Constitui-se, dessa maneira, como uma obra fundamental para a compreensão das dimensões da prostituição das travestis no espaço carioca.

Referências

PERLONGHER, Néstor. Antropologia das sociedades complexas: identidade e territorialidade, ou como estava vestida Margaret Mead. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 22, 1993, pp.89-97.

PERLONGHER, Nestor Osvaldo. O contrato da prostituição viril. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 37, n. 2, 1985, pp.105.

SILVA, Helio. Travesti–A invenção do feminino. Tese defendida em 1993 [http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1377 – acesso em: 13 de out. 2021].
» http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1377

SILVA, Hélio R. S. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


Resenhista

Renan Antônio da Silva – Docente Permanente no Programa de Pós – Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0003-1171-217X


Referências desta Resenha

SILVA, Hélio R. S. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. Resenha de: SILVA, Renan Antônio da. Cadernos Pagu. Campinas, n.63, 2021. Acessar publicação original [DR]

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