Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito | Anderson Cavichioli

Dandara dos Santos Imagem Arquivo pessoalBBC News
Dandara dos Santos | Imagem: Arquivo pessoal/BBC News

O céu das travestis deve ser belo como as paisagens deslumbrantes da recordação, um lugar para passar a eternidade sem se entediar. As lobas travestis biscates que morrem no inverno são acolhidas com especiais pompa e alegria, e naquele mundo paralelo recebem toda a bondade que este mundo mesquinho lhes negou.

Enquanto isso, as que permanecem por aqui, bordamos com lantejoulas nossas mortalhas de linho.

(O Parque das Irmãs Magníficas, Camila Sosa Villada, 2021, p. 177)

Quão impactante e intenso podem ser um minuto e vinte segundos? Um minuto e vinte segundos é o tempo de duração de um vídeo que foi divulgado nas mídias sociais e que reproduz atos de extrema violência cometidos através de um crime de transfobia. Este crime aconteceu no início do ano de 2017 contra a travesti Dandara Katheryn, brutalmente assassinada por um grupo de homens em Fortaleza, no estado do Ceará. Parte de seu assassinato foi gravado e divulgado.

Este caso faz parte de um fenômeno amplo, a transfobia, que transpassou a pesquisa de mestrado de Anderson Cavichioli, dando espaço, posteriormente, à publicação do livro Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Esta dissertação foi defendida no ano de 2019 e foi publicada no ano de 2021 pela editora Devires.

Anderson Cavichioli, além de mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB), é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Penal. Atualmente exerce a função de delegado da Polícia Civil do Distrito Federal. É um dos fundadores e atual presidente da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (RENOSP LGBTI+), associação composta por operadores de segurança pública atuantes em diferentes instâncias e que se identificam como LGBTI+, na busca pela defesa dos direitos humanos e enfrentamento da lgbtfobia intra e extra institucional. Também se denomina como ativista dos Direitos Humanos e pessoas LGBTI+, desenvolvendo pesquisas sobre esta temática.

A editora Devires, por sua vez, teve sua fundação datada em 16 de janeiro de 2017 e tem como proposta editorial publicar textos acadêmicos e/ou literários que abordam temáticas dos estudos das sexualidades e dos gêneros, raça, classe, entre outros marcadores sociais, levando em consideração que ainda há uma lacuna no mercado editorial no que diz respeito às produções que enfoquem os campos de estudos referentes a sujeitos que foram e são subalternizados e, de certa forma, vulnerabilizados e/ou objetificados (EDITORA DEVIRES, 2022). A editora tem como propósito a divulgação de obras e autoras/es que dialogam a partir de desconstruções e estranhamentos de estigmas e hierarquizações que, social e historicamente, cristalizaram-se em nossos contextos, além de protagonizar discussões que abarcam os estudos queer, descoloniais, transfeministas, entre outros. Por se tratar de uma editora relativamente recente, esta vem ganhando destaque nos últimos anos.

Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito não tem a pretensão de reviver a morte, nem a vida, de Dandara, o que poderia reproduzir toda a violência experienciada, mas produzir reflexões sobre as políticas de produção de morte em larga escala existentes em nossos contextos, e nomeá-las a partir de diferentes aspectos. Mortes essas que acontecem com quem ousa afrontar as normativas de gênero e de sexualidade. Morte de quem ousa afrontar os binarismos estabelecidos. Morte de uma parcela da população que serve como alvo. Morte de sonhos. Morte simbólica. Morte física.

A jornalista e professora Débora Diniz, responsável por orientar a dissertação da qual resultou em livro, ressalta no prefácio que o volume deve, preferencialmente, ser lido todo de uma vez, “para que a dor se arrebate em indignação de uma só vez” (DINIZ, 2021, p. 10). Concordo com Débora, penso que livros intensos como este devem ser acompanhados de mergulhos de cabeça.

O mergulho que Anderson Cavichioli nos propõe é composto por 37 breves capítulos, além de prefácio, prólogo, posfácio e referências bibliográficas, que são distribuídos ao longo de 199 páginas.

Os capítulos são sintetizados em poucas páginas, entre duas e três, mesclando reflexões teóricas e movimentações ocorridas durante a realização do mestrado do autor, que consistiram em, ora acompanhar os desdobramentos do assassinato de Dandara, ora se debruçar em alguns aspectos das vivências dela, a partir de memórias relatadas por algumas pessoas de seu convívio, como familiares e amigos.

Anderson entrelaça a teoria e a prática, a escrita e a vivência, de maneira consistente. A obra foi embasada nas contribuições teóricas de autores e autoras como: Judith Butler, Virgínia Vergueiro, Achille Mbembe, Michel Foucault, Paul B. Preciado etc. As análises realizadas se pautaram, principalmente, nas perspectivas dos estudos queer, levando em consideração que, assim como nesses estudos, a intenção do autor foi a de abrir discussões e provocar tensionamentos em relação às lógicas sociais que são pautadas no ideal de uma cisheteronormatividade, ideal esse que acaba por desumanizar quem está afastado da matriz cisheterossexual. Como o próprio autor salienta, Dandara foi uma das tantas vítimas desse afastamento. Foi desumanizada por não pertencer à matriz cisheterossexual.

O autor ressalta que há um conjunto de saberes-poderes, que se transfiguram em códigos morais, que perpassam os nossos contextos e desumanizam olhares. Esses saberes-poderes colonizam corpos, vidas, sujeitos… e os hierarquizam. O corpo de Dandara se configurava como um daqueles que são condizem com o topo, e nem com os primeiros degraus, dessa hierarquia, portanto foi desumanizado, tornando-se abjeto.

Cavichioli nos chama a atenção sobre quão desafiante é falar sobre corpos dissidentes sem que haja essa hierarquização e desumanização. O autor também atenta para o fato de que, por não ser uma pessoa transgênero, ele aborda tais assuntos, mas sem tomar um protagonismo, havendo, segundo ele, uma responsabilidade e um dever ético em se discutir essas temáticas, abrindo possibilidades de diálogos. É nessa abertura de diálogos que se encontra, de fato, a necessidade de se avolumar obras como esta.

Dandara foi uma vítima da política de produção de morte. Perante a lei, ela nunca existiu. Nunca teve seu nome retificado. Nunca foi nomeada pelo nome que escolheu para si. Foi enterrada com um nome masculino.

No livro, Dandara é a única pessoa nomeada. No livro, ela existe. Ela existiu. “Nomear é fazer existir” (Anderson CAVICHIOLI, 2021, p. 72). O autor enfatiza que

Nomear Dandara é um ato de responsabilidade, uma forma de reconhecer sua existência como alguém cujos direitos foram violados, como tardiamente admitiram os sistemas de justiça nacional e internacional. Sua história exige o testemunho de seu extermínio. Nomeá-la é forçar a reconhecer seu rosto, identificá-la como a travesti assassinada à luz do dia, abandonada à decisão de vida ou morte sobre sua vida precarizada e destituída de humanização (CAVICHIOLI, 2021, p. 45).

Também compreendo como um ato de responsabilidade a abrangência de espaços para que as temáticas das formas de vida consideradas dissidentes sejam cada vez mais discutidas, levadas em consideração, nomeadas… havendo possibilidades para que esses sujeitos dissidentes sejam os escritores de suas próprias histórias, sejam os produtores de suas resistências e de suas existências.

O autor realiza uma denúncia sobre a precarização de dados sobre violência lgbtfóbica no Brasil, sobre os retrocessos advindos de um governo conservador e sobre as restrições de políticas públicas voltadas à comunidade LGBTQIA+ em um país permeado por violências estruturais. Infelizmente, ao falar sobre histórias de travestis, quase sempre haverá o atravessamento de histórias de morte. Falar de morte é, antes de tudo, muito complexo. Pensar as causas e os efeitos de mortes que abrangem casos que não são isolados, envoltos por nuances que vão além de análises individuais. Anderson Cavichioli, ao falar sobre Dandara, além de reconhecê-la em sua individualidade, repercute sobre todo um fenômeno de violência transfóbica estrutural. Apesar de ser um assunto que causa incômodo, que rasga o peito… Anderson trata desse assunto com muito cuidado, respeitando a história de Dandara e de tantas outras travestis de corpo e de alma assassinadas.

Anderson descreveu Dandara como um exemplo de possibilidade de desestabilização dos espaços de poder, pois, ao reivindicar-se mulher, desviava dos binarismos de gênero de nossa sociedade, se distanciava das normativas. Lutava por seu nome. São nessas possibilidades de vivências diversas que circulam as resistências. Nas páginas finais, ele enfatiza que é necessário lutar pelas vidas e resistir.

A obra em questão, ao debater assuntos relacionados a um caso específico, sinaliza denúncias às incalculáveis violências enfrentadas por sujeitos dissidentes de sexualidade e de gênero, exemplificando o horror que pode estar atravessado às normativas, gerando uma política de morte em relação a estas vidas preteridas através de um fenômeno estrutural que ocorre de maneira ampliada, a transfobia.

Portanto, traz contribuições no que diz respeito ao campo dos estudos de gênero e das sexualidades, contribuindo para a ampliação, de uma forma crítica e ética, da literatura que vem se avolumando nos últimos anos acerca das transexualidades e das travestilidades. No livro, o autor aborda a temática das transexualidades e travestilidades sem as patologizá-las e sem incluí-las a padrões que fogem à concepção de normalidade. Além do mais, Cavichioli se propõe realizar discussões interseccionais que perpassam perspectivas de gênero, classe, sexualidade, religiosidade e raça ilustradas em um contexto do Brasil contemporâneo, embasando sua narrativa com autoras e autores que se dispõem a tratar de temáticas voltadas à contemporaneidade.

Referências

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021.

Diniz, Débora. “Prefácio”. CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito Salvador: Devires, 2021. p. 09-10.

EDITORA DEVIRES. Salvador, 2022. Disponível em Disponível em https://editoradevires.com.br/ Acesso em 10/05/2022.
» https://editoradevires.com.br/

SOSA VILLADA, Camila. O parque das irmãs magníficas São Paulo: Planeta, 2021.


Resenhista

Daniela Cecilia Grisoski – Psicóloga pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), possui Mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e atualmente é doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mails: [email protected]; [email protected]  https://orcid.org/0000-0003-3848-5704


Referências desta Resenha

CAVICHIOLI, Anderson. Dandara Katheryn: a mulher de nome bonito. Salvador: Devires, 2021. Resenha de: GRISOSKI, Daniela Cecilia. Notas sobre Dandara Katheryn por Anderson Cavichioli. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e87542, 2022.  Acessar publicação original [DR]

Travestis: entre o espelho e a rua | Hélio R. S. Silva

De fácil leitura, mas sem perder em densidade, reúne revistos de dois livros notáveis de Hélio R. Silva, publicados há mais de dez anos – Travesti, a invenção do feminino e Certas Carioca .

A divisão capitular do livro compreende por partes de seu trabalho acadêmico (Silva, 1993). Através desses escritos, essa investigação inédita das dimensões sociais que envolvem a prostituição de travestis no Rio de Janeiro e é operacionalizada por meio de categorias analíticas e tem como objetivo levar algumas hipóteses ao estatuto da verossimilhança. Dentre essas categorias, destacam-se: as estruturas demográficas e sociais, por meio da história serial; as normalidades, pensando também a normatização, e desvios sexuais, através das relações de gênero; e os valores culturais e simbólicos, atuando ao nível da mentalidade coletiva. Dessa forma, o ineditismo que essa obra trouxe, sob o ponto de vista metodológico, é a compreensão da história da sexualidade das travestis sob um viés oposto ao que muitos historiadores faziam, ou seja, não mais contemplando exclusivamente os campos da ideologia e da moral; e a liga que deu forma às inferências é a história demográfica, articulada com os registros sobre os comportamentos sociais – fica evidente que ele intencionou escrever uma história dos costumes. Leia Mais

História & Outras Eróticas | Martha S. SAntos e Marcos Antonio Menezes

O que pode um corpo sem juízo? Quando saber que um corpo abjeto se torna um corpo objeto e vice-versa? Não somos definidos pela natureza assim que nascemos Mas pela cultura que criamos e somos criados

Sexualidade e gênero são campos abertos

De nossas personalidades e preenchemos

Conforme absorvemos elementos do mundo ao redor

Nos tornamos mulheres – ou homens,

Não nascemos nada

Talvez nem humanos nascemos

Sob a cultura, a ação do tempo, do espaço, história

Geografia, psicologia, antropologia, nos tornamos algo

Homens, mulheres, transgêneros, cisgêneros, heterossexuais

Homossexuais, bissexuais, e o que mais quisermos

Pudermos ou nos dispusermos a ser

O que pode o seu corpo?

Jup do Bairro.

História & Outras Eróticas, organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio Menezes e Robson Pereira da Silva, é fruto de um esforço científico coletivo que extrapola a materialidade dos textos que compõe a obra. O troca-troca cultural entre arte e agenda política (MEIHY, 2020, p. 13) que nos chega, tem origem na realização do VI Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí. Desta feita, os louros pela excelência são creditados aos/às autores/as e estendem-se aos discentes e docentes do Curso de Licenciatura em História da referida universidade, bem como, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo investimento na produção científica brasileira. Leia Mais

Travestis: carne, tinta e papel | Elias Ferreira Veras

Em sua segunda edição, o livro “Travestis: carne, tinta e papel” de Elias Ferreira Veras, nos aproxima do “universo trans” sob a ótica do pesquisador/ator/sujeito. Essa aproximação é feita por meio das narrativas das travestis entrevistadas, das revistas Manchete e Playboy e de periódicos cearenses. O objetivo de Veras é problematizar as condições de emergência do sujeito travesti na capital do Ceará, Fortaleza. De forma admirável, o autor cita a passagem do tempo das perucas para o tempo dos hormônios-farmacopornográficos (evocando Paul B. Preciado), o que demanda um processo de subjetivação, quando ser travesti passa a significar ser um novo sujeito, e não apenas uma prática clandestina e privada.

Para chegar a esse resultado, há uma travessia: o autor inicia sua jornada no curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), torna-se mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É a tese de doutoramento de Elias que faz esse retorno às origens, temporal e geograficamente, saindo do Sul para voltar ao Nordeste e incidindo sobre a temática para então culminar no livro. Leia Mais

Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 203-222. (Coleção Ditos e Escritos, IV.)

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1988.  PELBART, Peter Pal. A vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1, 2018.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected].