Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40 | Sérgio Carrara

O trabalho de Carrara aborda as estratégias de combate à sífilis no Brasil ao longo de um período de quase cinqüenta anos, do final do século XIX à década de 1940. Operando metodologicamente a partir da perspectiva da história social, o autor analisou uma série extensa de documentos, produzindo um retrato a um tempo abrangente e profundo do seu objeto de estudo.

Este objeto, aparentemente singelo, desdobrou-se numa série de inter-relações, configurando um campo amplo e complexo. Um primeiro ponto a ser observado diz respeito à própria sífilis; ainda que conhecida por centenas de anos já àquela época, a sífilis parece recrudescer, senão em termos epidemiológicos, pelo menos em termos de sua percepção por parte da coletividade. Vários fatores cooperam na retomada de importância deste mal venéreo; a configuração moderna da doença, atribuída a um agente transmissível na esteira dos triunfos alcançados pela bacteriologia em fins do século passado (ainda que o treponema só venha a ser identificado em 1905) e prontamente transformado em objeto de um teste laboratorial, a reação de Wassermann, constituiu uma ameaça capaz de alcançar vários órgãos e sistemas do corpo e mesmo a descendência dos indivíduos acometidos pelas suas formas “hereditárias” (hoje diríamos congênitas), espectro pairando por sobre toda a população.

Há um conjunto de médicos que, ao mesmo tempo que estruturam o inimigo — a sífilis —, credenciam-se como corpo de especialistas a combatê-la — os sifilógrafos —, dialogando com o conjunto da sociedade, a qual pretendem disciplinar; com o Estado, ao qual pretendem se associar; e com sua contraparte nos países centrais, junto aos quais pretendem se credenciar como interlocutores acadêmicos.

Estes objetivos estratégicos se desenrolam num conjunto de táticas bastante eficazes, que asseguram a introdução do combate à sífilis na agenda nacional e os espaços pretendidos, tanto em termos estritamente políticos quanto acadêmicos. Por um lado, a ameaça da sífilis é constantemente brandida, recorrendo-se freqüentemente a dados numéricos assustadores, ainda que precariamente sustentados, estendendo indefinidamente o número de pessoas acometidas pela doença. Por outro, constroí-se uma sífilis brasileira, peculiar a este país e que só se desvela por inteiro aos seus especialistas. Por fim, há nas primeiras décadas deste século uma combinação do discurso do combate à sífilis com a visão higienista que privilegiava um enfoque eugênico, na conclamação ao combate à “degeneração da raça”, da qual a sífilis seria a um tempo causa e conseqüência. Some-se a estas estratégias discursivas a caracterização clínica multiforme da sífilis, como já mencionado, e tem-se o panorama da ampla intervenção que se desenrola no período estudado, criando normas e regulamentos para a prostituição; para o tratamento e controle dos infectados; para controle pré-nupcial dos candidatos ao casamento; para a vigilância estrita dos praças nos quartéis; para um sem-número de campanhas de comunicação; toda uma panóplia de controle disciplinar segundo o modelo descrito por Foucault—não por acaso, um dos referenciais teóricos do trabalho de Garrara.

É na descrição desta montagem que Carrara introduz outro referencial teórico importante para sua compreensão: a perspectiva do processo civilizador, segundo Norbert Elias. O processo de construção e combate à “sífilis-inimigo” (expressão do autor) se dá simultaneamente ao processo de construção da nação brasileira; o país onde se deveria “pensar sifiliticamente” se define também pelas intervenções organizadas do aparato médico do Estado em organização.

Ao encerrar seu livro, o autor ainda aponta direções possíveis para desdobramentos futuros da linha de pesquisa iniciada. Destacamos em particular os paralelos apontados com a situação atual do enfrentamento da epidemia de HIV/ Aids, que efetivamente se impõem. Neste item em particular, talvez seja possível apontar uma pequena discordância com um dos possíveis desdobramentos neste último processo, apontado por Carrara: a perspectiva que, simetricamente ao papel desempenhado pela sífilis na construção do Estado-Nação, a Aids poderia marcar sua derrocada, dado o papel político alcançado pela rede de organizações não-governamentais (Ongs) que se implantou procurando, parafraseando o autor, suprir as dificuldades na atuação de Estados nacionais em crise. Se observarmos, ao menos no caso brasileiro, como parte significativa das Ongs na área de HIV/Aids tem sido cooptada pelas próprias instâncias governamentais através de um programa financiado com recursos externos, a contribuição destas organizações para o esvaziamento do papel do Estado deve ser relativizado, ao menos.

O trabalho de Garrara é, de todo modo, um marco importante no estudo da história social das doenças no Brasil, e uma referência fundamental — senão obrigatória — para este campo de pesquisa. Contribui ainda para isso a adoção de pequenos cuidados que em muito facilitam sua utilização como texto de referência, como a utilização de gráficos temporais assinalando marcos relevantes da história estudada, ou ainda a presença do índice onomástico.

Em suma, trata-se do produto sólido de um investigador maduro, que fica agora devendo os desdobramentos que nos acenou.


Resenhista

Kenneth R. de Camargo Junior – Professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CARRARA, Sérgio. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996. Resenha de: CAMARGO JUNIOR, Kenneth R. de. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.3, n.3, nov. 1996. Acessar publicação original [DR]

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