Usos públicos e políticos da memória: Construções – Conflitos – Representações / Anos 90 / 2015

A luta por combater as violações aos direitos humanos e as ações que visam a estabelecer políticas de memória se evidenciaram com força a partir dos últimos anos do século XX. A partir de meados dos anos 1980, no processo de redemocratização ocorrido nos países sul-americanos, rompeu-se o silêncio em relação ao passado autoritário, as vítimas passaram a reivindicar a revelação dos fatos, assinalando sua preocupação com a memória coletiva. Reconheceu-se que a memória não é um exercício individual, pertencente somente aos vitimados, mas que toda a sociedade submetida à repressão e ao autoritarismo e, sobretudo, ao ocultamento das brutalidades, tinha o direito de conhecer a verdade e buscar romper com a impunidade em relação aos crimes cometidos por entes estatais. O dossiê Usos públicos e políticos da memória: construções, conflitos e representações busca apresentar uma parte do amplo universo de pesquisas atuais sobre os usos da memória e suas implicações culturais, identitárias e políticas em suas diferentes manifestações – sejam elas construções e representações ou gestão de conflitos de memória – em sociedades marcadas por um passado traumático.

Instituir mecanismos de enfrentamento do passado traumático através da criação de estratégias que envolveram o estabelecimento da verdade e a busca de uma justiça de transição se tornou a tônica de organizações de direitos humanos em sociedades que viveram violência estatal. O enfrentamento das brutalidades cometidas pelos estados foi o caminho para buscar a verdade, reparar os danos e iniciar um processo de reconciliação com o passado com vistas a consolidar a democracia. Essas sociedades encontraram diferentes estratégias para acertar as contas com o passado, tendo em vista que a transição à democracia ou à pacificação teve expressões diversas de um país para outro.

Assim sendo, a iniciativa de organizar um dossiê que desse conta desse universo de pesquisas respondeu ao crescente interesse sobre os debates de políticas de reparação e memória, em parte estimulado pelos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, mas também por um profícuo intercâmbio interdisciplinar e internacional entre grupos de pesquisa que, de maneira comparativa, procuram entender os complexos processos de relação entre a memória e a sociedade. Assim, o volume da Revista Anos 90, coordenado por mim, Claudia Wasserman (UFRGS) e pelas professoras Caroline Silveira Bauer (UFPel) e Isabel Pipper Shafir (Universidad de Chile), também possibilitou a apresentação de artigos por parte dos integrantes do projeto Memoria y sociedad. Las políticas de reparación y memoria y los processos sociales em la construcción de la memoria pública contemporânea en Europa y América. Conflicto, representación y gestión, financiado pelo Ministério de Innovación y Ciencia da Catalunha, e coordenado pelo professor da Universidade de Barcelona (UB) Ricard Vinyes Ribas. Foi também oportuno para a divulgação de artigos oriundos de outros projetos e pesquisadores que têm como tema central de suas investigações os usos públicos e políticos da memória. Todos os artigos foram revisados pelo comitê editorial da revista Anos 90, pelos coordenadores do dossiê e submetidos ao processo de duplo parecer às cegas.

O dossiê aparece com artigos sobre memória e usos do passado na Europa, notadamente acerca de monumentos memoriais construídos em Bruxelas, na Alemanha e na Espanha, e na América Latina, com ênfase, neste último caso, para Brasil, Chile, Colômbia e México. Os autores são todos especialistas no tema e apresentam artigos que são fruto de pesquisas concluídas recentemente.

Ricard Vinyes Ribas, no artigo Los usos públicos del pasado en la Europa: hacia una memoria sincrética, analisa a House of European History como um instrumento de gestão do passado. A pesquisa refere-se às políticas sobre o passado que a União Europeia (UE) vem construindo nos últimos anos e os antecedentes intelectuais e políticos dessas iniciativas. Argumenta que o relato presente na exposição permanente do novo museu está orientado a estabelecer o mito fundacional de uma suposta identidade entre os países do bloco. Descreve igualmente a pressão exercida pelos países da Europa Oriental para instalar sua própria e excludente versão da memória europeia como a única memória possível e que deva ser adotada por todos os europeus.

O artigo de Valentina Rozas Krause, Cruising Eisenman’s Holocaust Memorial, analisa uma exposição de arte no Museu Judaico de Nova Iorque que exibe as imagens de jovens homens gays posando junto aos blocos de pedra do Memorial do Holocausto, em Berlim. Valentina Rozas Krause reflete justamente sobre os motivos que levaram esses jovens a escolher o memorial de Berlim para suas fotos de perfil, que compõem um site de namoro. Analisa como os espaços de memória podem sofrer ressignificação em práticas cotidianas e também revela as possibilidades de um memorial performático reinscrever questões de gênero e sexualidade em narrativas aparentemente improváveis, como as do Holocausto, com o objetivo de chamar atenção para uma memória subterrânea, como a da perseguição dos nazistas aos homossexuais.

O artigo de Nancy Berthier, La Verticalidad Superlativa del Valle de los Caídos y sus avatares cinematográficos durante la transición, un Noeud de Mémoir aborda a apropriação de outro monumento histórico europeu. Construído para expressar a epopeia da ditadura franquista e para homenagear os heróis da guerra contra os republicanos, o monumento foi reapropriado pelo cinema e o artigo discute justamente de que forma uma imagem que simboliza a ditadura circulou depois da morte do ditador. Depois de explicar as características do monumento no discurso franquista, Nancy Berthier apresenta os filmes que foram feitos entre 1975 e 1981 que visavam a prolongar ou a subverter aquela narrativa memorial.

Os artigos de Caroline Silveira Bauer, O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da ditadura civil-militar brasileira e de Benito Bisso Schmidt, De quanta Memória precisa uma Democracia? Uma reflexão sobre as relações entre práticas memoriais e práticas democráticas no Brasil atual estão situados em tema muito atual do debate sobre memória da ditadura no Brasil. Caroline Bauer analisa o debate ocorrido na sessão legislativa que aprovou a criação da Comissão Nacional da Verdade evidenciando os usos públicos e políticos do passado, bem como as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade que coexistem em se tratando da temática da ditadura civil-militar brasileira. Parte de uma pesquisa mais ampla, a análise centra-se na diferença entre o “tempo dos vencidos” e o “tempo dos vencedores” e de que forma essas diferentes concepções temporais influenciam na elaboração de políticas de memória e consecução da justiça de transição no Brasil. Benito Schmidt analisa a relação entre práticas de memória e práticas democráticas, tendo como eixo projetos memoriais realizados no Brasil atual em relação à ditadura civil-militar iniciada em 1964. Examina lugares de memória e manifestações da sociedade civil que evocam o passado autoritário, considerando-os como integrantes da justiça de transição. Postula também a necessidade de uma memória exemplar a respeito da ditadura como elemento fundamental à construção de uma democracia vigorosa e de uma cidadania plena.

O artigo de Isabel Piper Shafir, Memorias de la violencia política en Chile: 1970-2014, reflete sobre a hegemonia das memórias das vítimas e sobre as vítimas no Chile e argumenta que essa preponderância encobre outras memórias. Com menor visibilidade e reconhecimento, essas outras memórias participam igualmente do processo de memorialização de uma forma menos clara e precisa, mas com importantes efeitos psicológicos, sociais e políticos. Sustenta, por outro lado, que limitar as ações e políticas de memória à reparação das vítimas pode excluir a discussão pública e o debate sério e reflexivo em torno das violências políticas exercidas no período democrático. Argumenta ainda que condenar as práticas do passado, por vezes, pode excluir as práticas atuais, igualmente perversas e violentas.

Outros dois artigos discutem as comemorações de datas redondas como forma de legitimar o passado e conciliar os traumas, mas que também colocam em movimento atores que questionam o passado plasmado nas festividades. É o caso dos artigos de Carlos Alberto Rios Gordillo, Reflexiones sobre um acontecimiento. La conmemoración del bicentenario, la memoria y el presente, sobre a comemoração dos duzentos anos de vida independente no México, e de Sebastián Vargas Alvarez, La investigación sobre las conmemoraciones rituales em Colombia (siglos XIX-XXI): balance historiográfico, sobre a literatura contemporânea a respeito das comemorações rituais na Colômbia e a estreita relação que estas festas tem com os projetos de construção e legitimação do Estado-nação durante os últimos dois séculos. Ambos artigos refletem sobre os usos políticos do passado que se fazem presentes nos eventos comemorativos, assim como evidenciam a memória como um campo de batalha atual.

Com essa variedade de pesquisas acerca da memória pública e da apropriação e reapropriação do passado, bem como de seus usos, a Revista Anos 90 espera oferecer ao leitor uma parte do que vem sendo produzido neste campo da história e que certamente constitui extraordinária contribuição para o enriquecimento de nosso conhecimento sobre o tema.

Claudia Wasserman.


WASSERMAN, Claudia. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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